Paulo Guedes

Hélio Schwartsman: Guedes subiu no telhado?

O ministro tolera certo nível de pressão do chefe, mas deve haver linha vermelha além da qual ele não vai

Nada indica que Paulo Guedes deixará o governo nos próximos dias. Ele parece ter assimilado bem a patada pública que o presidente Jair Bolsonaro lhe desferiu. Mas a contradição fundamental não irá embora. O objetivo do equilíbrio fiscal, do qual Guedes é um emblema, não é facilmente conciliável com a ideia de engordar programas sociais permanentes para ajudar o presidente numa eventual reeleição.

Meu palpite é que Guedes e o teto de gastos é que irão embora. O ministro tolera certo nível de pressão do chefe, mas deve haver uma linha vermelha além da qual ele não vai. Não estou seguro de que o capitão reformado se conformará à zona de conforto do ministro.

Bolsonaro, embora já tenha dito que o Bolsa Família era um jeito de comprar o voto do “idiota” e assegurado que não recorreria a esse tipo de expediente, sentiu o gostinho de surfar na popularidade que programas assistenciais propiciam ao governante sob o qual se materializam e quer criar um para chamar de seu, o Renda Brasil.

Não acho que seja tão simples. O que conferiu bons índices de aprovação ao presidente foi a ajuda emergencial, que vai de R$ 600 a R$ 1.200. E o próprio Bolsonaro já reconheceu que isso não pode ser mantido. Muito em breve esse auxílio será interrompido. Mesmo que a equipe econômica encontre uma fórmula para assegurar um Renda Brasil de R$ 300, estamos falando de um programa de valor substancialmente menor e que atingirá muito menos beneficiários do que os que hoje recebem a ajuda de emergência. Como as pessoas irão reagir?

De um modo geral, o cérebro responde com mais intensidade a perdas do que a ganhos. Embora estejamos navegando em terra incógnita eu não me surpreenderei com uma onda de mau humor em relação ao governo, em especial porque é difícil vislumbrar um cenário em que a economia pós-pandêmica cresça com tanto vigor que compense o fim da ajuda de emergência.


Celso Ming: Umas e outras maldades de uma nova CPMF

Quanto mais se examinam as distorções que esse tributo pode trazer, mais ele se torna inaceitável

Dia após dia, vão aparecendo novas maldades embutidas no projeto da nova taxa sobre movimentações financeiras, cujo nome, sobrenome e sigla seriam Imposto sobre Transações Financeiras, ITF.

Na última quarta-feira, a assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, confirmou que esse novo tributo não se restringiria apenas a operações digitais, como tantas vezes afirmara o ministro Paulo Guedes. Mas, como disse ela, alcançará “todas as transações da economia”.

Também não é verdade que se trata de uma alíquota baixa, de apenas 0,2%. Ela incidirá sobre as duas pontas de cada transação, tanto sobre quem paga quanto sobre quem recebe. Ou seja, a alíquota verdadeira é 0,4%, mais alta do que o 0,38% cobrado pela antiga CPMF, que atingia apenas a ponta do pagamento.

Isso significa muita coisa. Recolherá o ITF tanto quem estiver pagando pelo pãozinho com cartão de crédito como também o padeiro. Significa, também, que o contribuinte brasileiro pagará também pelo consumo no exterior. Se ele liquidar sua conta com cartão de crédito, terá de recolher automaticamente os 6% do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre câmbio (conversão da moeda estrangeira em reais), mais o 0,2% dessa nova taxa. O turista estrangeiro que quitar suas contas no Brasil com cartão de crédito não estará sujeito ao imposto, mas quem dele receber terá de recolher sua parte.

Se o que a assessora especial Vanessa Canado está dizendo for confirmado e se todas as transações financeiras estiverem sujeitas a esse tributo, então teremos uma penca de distorções no sistema financeiro do País.

A primeira delas está na Bolsa. Pagar mais 0,4% por compra e venda de ações pode comer um pedaço importante do retorno da operação. Os negócios day trade, por exemplo, poderiam ficar inviabilizados. O mercado secundário perderá liquidez, com prejuízo para todo o mercado de capitais.

E vejam a situação da caderneta de poupança. Hoje, o rendimento mensal não passa de 0,125%. Se o depósito já comerá 0,2%, porque será preciso transferir da conta corrente para a conta de poupança, e se a retirada comerá outro 0,2%, então, só esse imposto estará queimando mais de três meses de rentabilidade.

Impacto semelhante acontecerá sobre os fundos de investimento que já estão sujeitos ao Imposto de Renda e à taxa de administração – e, com o novo imposto, terão sua rentabilidade corroída por mais 0,2% no momento da aplicação e outro 0,2% no momento da retirada. Ou seja, o estrago desse imposto sobre o rendimento do mercado financeiro, num ambiente de juros reais quase negativos, será substancialmente maior do que no tempo da CPMF, quando os juros básicos eram superiores a 10% ao ano.

Se esse ITF for aprovado, outra distorção será a enorme propensão ao uso de dinheiro vivo para pagamento de contas, que seria para fugir pelo menos de uma perna do imposto. O padeiro, acima citado, por exemplo, preferirá receber em dinheiro. E o mesmo acontecerá com outros recebedores de pagamentos: o feirante, o médico, a escola, o dentista… Por aí se vê que a demanda por papel-moeda tenderá a se multiplicar a ponto de não haver lobo-guará que dê conta do serviço.

Para evitar pagamentos em moeda, o governo parece propenso a adotar os dispositivos do efeito Ives Gandra. Explicação: o tributarista Ives Gandra Martins, nesse episódio mui amigo do contribuinte, sugeriu ao governo que um grande número de “pagamentos por fora”, feitos com o objetivo de fugir ao ITF, poderia ser evitado se a PEC do novo tributo incluísse cláusula que torna inválidas transações cuja taxa não tivesse sido recolhida.

Assim, negócios com imóveis, com veículos e outras operações que exijam registro em cartório ou equivalente perderiam validade caso o interessado não apresentasse algum comprovante do devido recolhimento do tributo.

Nas últimas semanas, apareceram mais análises que diziam mais ou menos o seguinte: esse novo imposto é mesmo perverso, mas é melhor engolir essas perversidades e garantir as receitas necessárias para a recuperação da atividade econômica do que continuar no sufoco em que estamos.

Mas quanto mais se examinam as distorções que esse tributo poderá trazer, mais ele se torna inaceitável.


Eliane Cantanhêde: Na frigideira com Moro

Bolsonaro tem os votos e as decisões, Guedes tem duas opções: engolir em seco ou cair fora

Desta vez, o presidente-candidato Jair Bolsonaro acertou duplamente, no conteúdo e na forma. O que resolve a questão do desenvolvimento e da renda é mesmo o emprego e foi uma bela sacada anunciar que não vai “tirar de pobres para dar a paupérrimos”. Quem há de discordar? De quebra, é bom slogan de campanha, pois atinge quem tem um mínimo de bom senso e os alvos do presidente, o Nordeste e os de baixa renda, ou seja, o eleitorado que parecia cativo do PT.

De fato, causou espanto a “mágica” do ministro Paulo Guedes para financiar os devaneios populistas e a campanha à reeleição do presidente: tirar de abono salarial, salário-família, seguro-defeso (para pescadores artesanais) e até do Farmácia Popular (remédios grátis para, por exemplo, hipertensão e diabetes). A explicação dos burocratas é que há muita fraude, muito rico tirando ‘casquinha’. Ou seja: se a água da banheira está suja, jogue-se o bebê fora.

Bolsonaro disse “não” para Paulo Guedes, que já reclamou da “debandada” do seu time e ainda tem de ouvir calado a crítica pública do presidente a quem sobrou. E foi antes de a assessora Vanessa Canado responder à pergunta que não queria calar: o “novo imposto” de Guedes é, sim, a velha CPMF. E isso balança o tripé da política econômica: Bolsonaro, Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que ora se alia a Guedes, a favor do teto de gastos, ora a Bolsonaro, contra a CPMF.

Com o técnico Guedes em baixa, Bolsonaro e Maia ficam mais à vontade em seus planos políticos. Um só pensa em 2022, o outro finge que não, mas vai tentar se reeleger à presidência da Câmara em fevereiro de 2021. E os dois podem se ajudar. Bolsonaro vai inclusive abandonando o “Jairzinho Paz e Amor”, reassumindo sua verdadeira identidade, das armas e da guerra, e encenando a mesma peça da fritura de subordinados.

Planalto e Economia dão a mesma versão: o presidente adora Guedes, Guedes adora o presidente e ninguém sai. Mas os fatos jogam o ministro na fogueira onde já arderam Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Joaquim Levy, Ricardo Galvão, Regina Duarte. Sabe-se lá por que, Bolsonaro não resolve as coisas no seu gabinete, olho no olho. Parece que a fritura só tem graça com público, claque, câmeras. O presidente dá um solavanco no sujeito numa entrevista. O mercado treme, os setores envolvidos tomam as dores e vem o deixa-disso. No fim, ou a vítima se demite, como Moro e Levy, ou é demitida, como Mandetta e Galvão.

O fato é que o presidente descobriu, aliviado, que ninguém é mesmo insubstituível. Diziam que, se Moro caísse, o governo caía junto. Moro se foi e nada aconteceu. Mito por mito, os bolsonaristas jogaram fora o ministro junto com a Lava Jato e ficaram com o capitão. Dizem agora que, se Guedes cair, o mercado abandona o barco. Que nada! Com outro Paulo Guedes, o mercado se acomoda direitinho.

A questão não é só política e econômica, é também aritmética. Nem o Guedes que aí está nem um outro Guedes qualquer tem poderes mágicos para somar dois mais dois e dar três. Nem para manter o teto de gastos e ao mesmo tempo fazer o que Bolsonaro quer. Mas Bolsonaro é quem tem voto e quem decide as prioridades para gastos e cortes. Se Guedes não gostar, tem duas alternativas: engolir em seco ou jogar a toalha. A ver.

R$ 1 bilhão
Enquanto o STF não anula a delação premiada de Joesley e Wesley Batista, a PGR analisa uma repactuação que pode custar caro aos irmãos da JBS: R$ 1 bilhão. E justamente quando o ex-presidente Temer é inocentado em primeira e segunda instâncias e surge o estranhíssimo envolvimento de quase R$ 10 milhões dos Batistas com Frederick Wassef.


William Waack: ‘Acabou o auxílio, volta pra miséria’

O governo está entre a alegria do momento e o pesadelo de amanhã

A dupla crise de saúde pública e econômica colocou Jair Bolsonaro diante de opções aparentemente irreconciliáveis. Ele ainda não encontrou o caminho para prosseguir naquilo que as circunstâncias o obrigam: a) continuar prestando ajuda emergencial a milhões de necessitados, um reconhecido imperativo político e humanitário e b) investir em obras públicas para retomada da economia, que precisa de estímulos para crescimento.

Note-se que não é uma escolha entre um ou outro. Não há recursos para um nem para outro dentro dos limites impostos pela crise fiscal.

Parece cansativa a repetição, mas é necessária: a questão fiscal domina totalmente nossa política. E, como assinalou o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, o problema central não é a existência do teto de gastos, mas o crescimento dos gastos obrigatórios.

Para agravar, há prazos curtos a serem respeitados (MPs que caducam, fim do período emergencial, aprovação do Orçamento, por exemplo) e números recentes compilados pela FGV escancaram a urgência imposta pela realidade social e suas temidas consequências políticas. São números de enorme crueldade, acentuada pela pandemia (aliás, os mesmos números indicam que a medida mais eficiente de confinamento foi pagar para as pessoas não terem de sair de casa).

Graças ao auxílio emergencial não se registrava desde 1986, época do Plano Cruzado (congelamento de preços), movimento tão acentuado de pessoas saindo de uma faixa socioeconômica (a dos paupérrimos) e indo para um degrau acima. O economista Marcelo Neri, que compilou os dados, foi, porém, contundente: “Acaba o auxílio, esses milhões descem de volta para onde estavam”.

É um sinal eloquente da nossa pobreza quando R$ 600 dados de mão beijada fazem tanta diferença nas estatísticas sobre faixas de renda. Ocorre que a manutenção desse auxílio não é possível com a situação fiscal presente. Bolsonaro livrou-se de um dilema inicial ao suspender a ideia de Paulo Guedes (correta em princípio) de remanejar recursos de programas sociais menos eficientes e dirigi-los a um programa de renda básica batizado como se quiser. “Seria tirar de pobres para dar a paupérrimos”, reconheceu o presidente, que, nesse ponto, demonstrou percepção política mais aguçada que a de seu principal ministro até aqui.

Livrou-se de um dilema, mas não do problema. A montagem dos programas de assistência na base da ampliação da renda além do Bolsa Família, a cada dia mais urgentes, depende do progresso em outras frentes políticas, como a negociação de reformas de altíssima complexidade. E que estão ligadas umas às outras: a tributária depende do Pacto Federativo que está sendo ligado à PEC emergencial, e tudo também depende de uma reforma do Estado via reforma administrativa, por exemplo. Sem criar impostos, sem furar o teto.

O maior perigo tem sido vocalizado também por forças políticas que apoiam o governo no Congresso e têm bom trânsito com a equipe de economia. O senador Marcio Bittar (MDB-AC), por exemplo, relator da PEC do Pacto Federativo, anda preocupado em se “tentar dar uma alegria no momento criando, em troca, um pesadelo por muitos e muitos anos”, declarou. Ou seja, continuar ajudando os 10 milhões de invisíveis às custas de qualquer responsabilidade fiscal.

É nesse contexto que ganha um significado muito maior a expressão “articulação política”. Pois não se trata de “apenas” conseguir votos para aprovação de matérias ou a manutenção de vetos (como ocorrido na Câmara recentemente). Talvez a palavra em espanhol “concertación” expresse melhor o que significa “articulação política” em época de opções irreconciliáveis: é um esforço político coletivo, coordenado, dirigido e com um foco preciso.

É óbvio que esse esforço no momento é muito acanhado. E sofre a concorrência de um comportamento típico de décadas de decisões políticas no Brasil: livrar-se de um pesadelo do momento jogando-o para o futuro.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro frita Guedes na primeira vez em que tenta governar

Presidente joga para a plateia e quer que ministro faça mágica no gasto social

Jair Bolsonaro tem de tomar sua primeira decisão relevante de governo: o dinheiro que seria destinado ao Bolsa Família Verde Amarelo. O que acontece então nessa situação inédita?

Bolsonaro frita o ministro Paulo Guedes (Economia) em público.

Em um palanque, disse que não vai tirar dinheiro de pobres para dar a paupérrimos. É fato que o Ministério da Economia havia vazado esse plano de renda básica sem ter o “tá ok” do presidente. Tais coisas acontecem porque o governo não tem rumo, programa e Bolsonaro lida com os ministros como se fossem estranhos: não governa, libera o desgoverno (Educação, Ambiente, Itamaraty) ou o não-governo (Saúde).

O pito de Bolsonaro virou rebu. Ministros vazaram intrigas contra Guedes para jornalistas e povos dos mercados. Azedou o clima entre credores do governo e negociadores de dinheiro em geral, que ignoraram pedidos de “patriotismo” de Bolsonaro. Juros e dólar subiram.

O ambiente na finança melhorou um tico quando Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara e do parlamentarismo branco, reafirmou que não vai passar no Congresso qualquer tentativa de burlar o teto de gastos e que é preciso rever vinculações de despesas, sem dizer quais.

Maia também disse que a Economia vazou planos que não estavam autorizados por Bolsonaro. Ou seja, nesta rodada da refrega entre o governo e o ministro, bateu em Guedes. O deputado reassumiu a regência do programa econômico reformista, pois.

De que vinculações falava Maia? Do piso da saúde e da educação? É a última grande despesa carimbada. Os outros gastos obrigatórios relevantes são aqueles vinculados ao salário mínimo, como o piso da Previdência e de benefícios assistenciais, e salários de servidores.

Maia, assim como Guedes, está dizendo que o dinheiro para o Renda Brasil terá de vir do corte de outras despesas. Bolsonaro quer que Guedes faça mágica ou joga para a plateia (“não me deixam governar”).

Mantido o teto, não há dinheiro para os planos sociais que podem sustentar a popularidade presidencial a não ser que se compre uma briga social feia.

No entanto, mesmo o corte brabo de salários de servidores previsto na PEC Emergencial renderia uns R$ 15 bilhões em 2021 e R$ 37 bilhões em 2022. Isto é, o dinheiro demoraria a chegar e iria todo para o Renda Brasil. Assim, o investimento em obras cairia para perto de zero.

Guedes quer financiar o Renda Brasil com cortes do abono salarial, do Farmácia Popular e do seguro desemprego sazonal de pescadores, o que daria no máximo uns R$ 24 bilhões. Um Renda Brasil que pague R$ 270 mensais a 20 milhões de famílias custaria quase R$ 65 bilhões por ano (o Bolsa Família custa R$ 33 bilhões anuais). Bolsonaro quer um programa maior.

O que sobra para talhar?

Benefícios de Prestação Continuada (BPC), que pagam mais de R$ 60 bilhões por ano a idosos e pessoas com deficiência muito pobres. Ou uma redução de despesas com o seguro desemprego, que antes da calamidade estavam orçadas em R$ 35 bilhões em 2020. Esses cortes não passam no Congresso.

Logo, Bolsonaro está em uma sinuca de bico, como diz o povo. Começou a tratar Guedes como tratava Sergio Moro nos meses antes da degola: desautorizações e pitos do tipo “quem manda sou eu”. O Posto Ipiranga foi reduzido a loja de conveniência.

Muita gente acha que já tem uma faixa de “passa-se o ponto” na lojinha. Que fosse. Nada disso resolve o problema político-eleitoral de Bolsonaro. Para resolver, ou derruba o teto sem mais, à matroca, o que vai dar em besteira econômica, ou compra briga social.


Míriam Leitão: Economia tem escolhas difíceis

Não há mágica na economia. O presidente Jair Bolsonaro terá que escolher entre quebrar o teto ou propor ao Congresso medidas amargas para ampliar programas sociais. Mesmo criando impostos ele pode ter dificuldade de gastar mais porque o teto estabelece que as despesas só podem crescer de acordo com a inflação. O que ele vai escolher? O presidente quer combustível para o seu populismo e, portanto, o teto tende a cair. O ministro Paulo Guedes vai dizer que quem recebeu os votos foi Bolsonaro, portanto é ele que decide.

Ontem formou-se o tipo da situação em que ninguém tem razão. O presidente Bolsonaro jogou para a plateia, na sua agenda cada vez mais eleitoreira, ao dizer que suspendeu o projeto da equipe econômica, porque não tiraria “do pobre para dar ao paupérrimo”. O ministro Paulo Guedes erra sempre o mesmo erro: achar que é fácil o que é politicamente muito difícil. Acabar com programas sociais antigos, no meio de um recessão e alta de desemprego, só se tivesse muito apoio do presidente e grande articulação política. No ano passado tentou diminuir os beneficiados pelo abono salarial e o Congresso rejeitou.

O presidente está em campanha, é populista e nunca teve como agenda a austeridade fiscal. Em 2018, repetiu algumas frases que aprendeu com Paulo Guedes para vender a ilusão do liberalismo austero que o mercado financeiro comprou, com enorme dose de autoengano. Bolsonaro quer o bônus das bondades que o governo fizer, mas não quer ficar com ônus algum de eventual medida amarga. Na reforma da Previdência deixou que outros pagassem o custo de defendê-la, e lavou as mãos: “por mim não faria”. Guedes avalizou um político que durante sua carreira de deputado jamais demonstrou entender a importância do controle das contas públicas. Para completar, nem Bolsonaro como político, nem Guedes como economista têm intimidade com políticas sociais. A pandemia criou a necessidade de políticas de socorro para a população.

O auxílio emergencial nasceu de uma pressão da sociedade, o valor se elevou por decisão do Congresso. Mas agora, feliz com a popularidade, o presidente credita tudo ao governo e já prometeu: “resolvemos estender até dezembro”. E depois disso ele quer uma política social para dizer que é do seu governo, como fez com o Minha Casa, Minha Vida. Os juros caíram meio ponto percentual, mas na cerimônia do Planalto foi vendida a ideia de que era um programa novo.

O que a equipe econômica quer explicar é que uma pessoa que recebe abono salarial não é um “excluído”. Tem carteira assinada, 13º salário, FGTS. A política pública seria mais focalizada se estivesse voltada para quem está agora sem renda. A dúvida: é o único lugar de onde se pode tirar para ampliar o Bolsa Família? O Ministério da Economia já sabia que teria que brigar no Congresso, mas foi nocauteado pelo próprio presidente, que em vez de discutir internamente, expôs a divergência de público para faturar politicamente. Assim ele pode fingir a sensibilidade social que nunca teve.

O Big Bang Day do ministro Paulo Guedes é um conjunto de ideias que ele vem defendendo, mas nunca elaborou para apresentar. Vamos ver se agora consegue. Ele fala em desvincular, desindexar, e desobrigar o Orçamento como se fosse algo simples e inédito. Todas as equipes econômicas tentaram desengessar o Orçamento, e tudo o que conseguiram foi a flexibilização parcial com a DRU, a Desvinculação de Receitas da União.

Outra proposta que está sendo formulada é a da criação de um imposto. A assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, explicou que o novo tributo que está sendo pensado será amplo.

– A contribuição sobre pagamentos ganha nova conotação em relação à CPMF por conta da digitalização da economia. Quando se torna a economia menos corpórea, a forma de rastrear a economia sem dúvida é mais fácil por meio de pagamentos. Para ser um tributo de base ampla, ele não captura só as transações da economia digital. Tem que capturar todas as transações da economia.

Não é fácil fazer isso. Nada é fácil no Ministério da Economia em época de crise. Por isso é preciso se preparar para o debate político. Mas antes de tudo o presidente da República tem que saber se quer pagar o preço de governar, ou se quer apenas fazer demagogias de palanque.


Ricardo Noblat: Paulo Guedes tem um pé dentro e o outro fora do governo

Ministro da Economia fraco não se sustenta

O Ministério da Economia informa e o Palácio do Planalto confirma: Paulo Guedes fica no governo e segue prestigiado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Por ora, a primeira parte da informação é verdadeira. A segunda, não. O Posto Ipiranga virou a mercearia da esquina, nem mesmo loja de conveniência.

Para ficar no governo, Antônio Delfim Netto, o xerife da economia à época do regime militar de 64, dizia que só o tirariam de lá se fosse amarrado à cadeira.

Com o mesmo objetivo, mas com sacada menos assertiva do que a de Delfim, Guedes diz que o eleito foi Bolsonaro e que, portanto, é ele quem manda.

Um dos dois será obrigado a recuar de suas posições para seguirem juntos. Respeito à lei do teto de gastos (Guedes) não combina com mais gastos (Bolsonaro).

Em ano de eleição, e a dois de eleição presidencial, o Congresso parece mais receptivo ao que pensa Bolsonaro, candidato a pai dos brasileiros mais pobres.

O nó a desatar é que aparentemente só haveria uma maneira de respeitar o teto de gastos e de, no entanto, poder gastar mais: a criação de um novo imposto.

Algo do tipo da antiga CPMF, só que bem mais robusta e abrangente, que incidisse sobre transações de toda natureza, sem poupar nenhuma.

Guedes topa. Bolsonaro poderia topar. Não lhe fará a menor diferença dar mais uma vez o dito pelo não dito. Ou seja: que é contra novos impostos.

Quanto ao Congresso… Quanto à reação do distinto público… Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, é contra uma nova CPMF.

O Supremo Tribunal Federal está pronto para dizer que eleição e reeleição de presidentes da Câmara e do Senado são questões internas das duas casas.

Davi Alcolumbre (DEM-AP) quer mais um mandato de presidente do Senado e deverá consegui-lo. Maia não diz que quer mais um, mas não nega.

Pelo menos até fevereiro do próximo ano, ao fim do seu atual mandato, Maia, sensível aos humores do mercado, será um obstáculo à aprovação de um novo imposto.

Bolsonaro está fazendo com Guedes o que tentou fazer com Sérgio Moro, ministro da Justiça: dobrá-lo às suas vontades. Moro caiu fora. Guedes também poderá cair.

Quando Guedes diz que o eleito foi Bolsonaro e que ele é quem manda, incorre em uma platitude. Mas não significa que ele se conforma com qualquer coisa.

Quem sabe faz a hora. Ministro da Economia fraco não se sustenta por mais que só admita sair amarrado na cadeira. Delfim sabia, e acabou saído. Guedes sabe.


Luiz Carlos Azedo: Mudança de franquia

“Guedes deu uma de bom cabrito, mas não se tem precedentes de um ministro à frente da Economia do país aceitar um pito público desses sem pedir demissão”

Perdão pela ironia, mas faz sentido: o presidente Jair Bolsonaro não quer mais saber de Posto Ipiranga, seu coração bate pela BR Distribuidora. Agora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá de fazer uma escolha de Sofia: ou joga ao mar suas velhas teses e, com ela, o que resta da equipe de economistas liberais, ou pega o boné e volta para seus negócios. O que Bolsonaro fez, ontem, ao criticar publicamente a proposta do projeto Renda Brasil apresentada pela equipe econômica, é muito desmoralizante. Durante visita a Ipatinga, em Minas, o presidente da República desautorizou o ministro: “Ontem (terça, 25), discutimos a possível proposta do Renda Brasil, e falei: ‘Está suspenso’. A proposta, como apareceu para mim, não será enviada ao Parlamento. Não posso tirar de pobre para dar a paupérrimo”.

Guedes deu uma de bom cabrito, mas não se tem precedentes de um ministro à frente da Economia do país aceitar um pito público desses sem pedir demissão. É uma situação inimaginável, por exemplo, com o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, que exigiu a saída de todos os ministros desenvolvimentistas que o desafiaram. Nem o senador José Serra, que foi ministro da Saúde, dava pitaco na economia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso só tratava de divergências com Malan em privado. O mesmo pode ser dito em relação ao ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, no governo Temer. Grande artífice do “teto de gastos”, que foi fundamental para reverter a recessão do governo Dilma Rousseff, ninguém apitava publicamente na economia além dele, nem no auge da crise provocada pelo caso JBS, na qual o presidente Michel Temer, por duas vezes, teve que evitar um impeachment.

Guedes, porém, tirou por menos: “É assim mesmo. Ele é o presidente e é quem decide”, disse. Apesar da forte reação do mercado — em baixa no mundo inteiro, o dólar está disparando no Brasil; o índice Bovespa desabou ontem —, o ministro da Economia disse que a equipe deve apresentar “o cardápio” de programas que podem ser unificados ao atual Bolsa Família, criando o Renda Brasil. “Está tudo equacionado. Não tem truque nem fura-teto. Tudo será feito com total transparência”, disse à jornalista Cristiana Lobo, da GloboNews. Há controvérsias. Bolsonaro terá nova rodada com ministros e assessores para decidir o valor do novo programa de transferência de rendas para os mais pobres. Sua proposta era acabar com os descontos de despesas com saúde e educação no Imposto de Renda, uma mecanismo para transferir renda da classe média para os mais pobres. Bolsonaro discorda por motivos óbvios: está deslocando o eixo da sua base eleitoral para os mais pobres, mas não quer perder apoio da classe média mais do que já perdeu. Este é o xis da questão: Bolsonaro antecipou em dois anos e meio a sua campanha de reeleição. Toda a política econômica está sendo subordinada ao seu projeto eleitoral.

Pulo do gato

O problema mais urgente a ser resolvido pela equipe econômica é a prorrogação do abono emergencial de R$ 600, cujo valor o presidente da República quer que seja o mesmo do Renda Brasil, o programa que vai substituir o Bolsa Família. O auxílio emergencial de R$ 600 é pago a 64 milhões de pessoas; o Bolsa Família, que não passa de R$ 205, quando beneficia cinco pessoas, atende a 14 milhões de famílias. Não existe a menor possibilidade de manter essa escala nem esse valor, sem quebrar a economia, mesmo incorporando os recursos de 27 programas sociais do governo, entre os quais, o abono salarial e o seguro-defeso. Guedes propôs um programa no valor de R$ 250, mas Bolsonaro quer mais. Também não aceita o fim do seguro-desemprego, que entraria no bolo.

O ministro da Economia ainda acredita num pulo do gato, nos dois sentidos: a criação de um imposto sobre todas as operações digitais, que teria uma base praticamente universal, porém, pode levar ao entesouramento de moeda e ampliação de operações em dinheiro vivo, além de promover um grande efeito cascata. Isso ampliaria muito a carga tributária, ou seja, tudo ao contrário do que pregam os economistas liberais. Há setores simpáticos à tese no mercado financeiro, mais preocupado com a administração da dívida pública e com o deficit fiscal, bem como no Congresso, onde a base parlamentar do governo pressiona para que haja aumento de gastos com obras.

Entretanto, o maior adversário da proposta do novo imposto no Congresso é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Entre os economistas, a crítica à proposta baseia-se nas teses do economista Arthur Laffer, para quem a diminuição dos impostos cobrados das empresas pode aumentar a arrecadação do Estado. Segundo a “Curva de Laffer”, a partir de um certo ponto, por mais que a alíquota do imposto seja aumentada, o tributo deverá gerar menos receita fiscal. Nossa carga tributária é cada vez maior, por causa da progressiva criação e aumento de alíquotas de impostos. Segundo a Receita federal, a carga tributária bruta em 2019 atingiu 33, 17% do PIB, ou seja, um terço da renda nacional vai para os governos da União, estados e municípios; sem a contrapartida de investimentos e serviços de qualidade, a máquina administrativa consome quase tudo. Ninguém aguenta mais.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-mudanca-de-franquia/

Paulo Fábio Dantas Neto: A mão invisível do caos

O que é politicamente substantivo na negociação em curso entre Jair Bolsonaro e Paulo Guedes?  É parceria (ainda que conflitiva) ou é conflito (ainda que entre parceiros)?

Esse parece ser aspecto ao mesmo tempo incerto e crucial para compreendermos melhor como (e se) os dois estão discutindo sua relação.  Por enquanto quem não tem acesso íntimo ao suposto diálogo pode apenas especular, a partir das pistas de noticiário, de condutas antecedentes dos jogadores e de uma visão nublada do tabuleiro em que jogam. Especulo, portanto, devidamente advertido pelo pensamento de Wanderley Guilherme dos Santos, autor da expressão que empresta título a esse texto especulativo.   

Vejo a relação em causa como conflito de interesses entre dois parceiros de uma parceria que está quase na hora de acabar. Um sinal de desfecho talvez haja quando eles não tiverem nem mais vontade de brigar, ao menos em público. Chegada a hora, aquele que possui mais recursos políticos e também a superioridade hierárquica sacará primeiro e resolverá a seu favor o conflito de interesses. Mas que conflito é esse, afinal? Para tentar responder, prossigo na especulação: Guedes quer entregar resultados ao mercado econômico-financeiro e Bolsonaro quer ofertar mercadorias no mercado político-eleitoral.

Desde que a dupla Lula-Palocci se desfez, a conciliação desses dois interesses não está disponível em qualquer dos dois mercados. A crise de 2008 instalou, em ambos, um "Nós X eles " que só não se tornou visível já na eleição de 2010, pela força política que então possuía o "venha a nós". Mas o "lá eles" já se entrincheirava e se armava, no mercado econômico.

O contexto crítico não é propício à renascença de uma ambiguidade benigna que concilie a lógica dos dois mercados. Há quatro anos, entre duas eleições, o ex-presidente Temer tentou, mas seu paz e amor não deu certo. Más línguas dizem que não deu porque, como protagonista, ele estava mais para vampiro e, ao agradar à plateia do mercado econômico, assustou a do mercado político. Penso mais que não deu porque, às vésperas de 2018, os elencos de ambos os mercados com os quais Temer contracenava levaram suas respectivas plateias a pedirem um bis de 2014. Assim, deixaram o protagonista e seu partido pendurados no pincel. E ficou inviável uma alternativa democrática ao conflito bipolar.

Como pensar que, já a meio caminho entre 2018 e 2022 - e em contexto de pandemia, o novo elenco eleito não vai produzir, perante as mesmas plateias, um quarto ato da mesma peça? Se agora o protagonista é um extremista, contar com bonança é, no mínimo, imprudência. Se se deseja esse avanço será preciso apelar à inteligência artificial da política. Isso vale também para o governismo, onde essa inteligência artificial não costuma prevalecer. Se o processo correr solto, deixado aos apetites naturais, bolsonarismo político e liberalismo econômico precisarão se separar para viverem suas vidas em liberdade. Cada qual buscando novo par no repertório já testado no campo que lhe é mais estranho. Assim, o bolsonarismo retirará sua poesia econômica da memória dos anos iniciais de Dilma Rousseff e o liberalismo econômico buscará sua poesia política no voluntarismo do governo Collor.

Trata-se de má notícia para quem, no governo e em certa esquerda que pretende ser seu oposto simétrico, crê e aposta na sustentabilidade da atual aliança governista. Além de não ter fé ideológica na indissolubilidade desse matrimônio, penso que é de interesse público a sua dissolução. Embora não justifique predição eleitoral, não deixará de ser uma brecha na fina camada de cimento que agrega o pacote econômico-social cujo anúncio foi adiado. Para contrapor, à química destrutiva dos infernos, de malvadeza e sedução, uma política social progressista e progressiva, que preserve e alargue o atual patamar de direitos sociais, será preciso que a inteligência artificial da política respeite a mão invisível do caos. Em tempo de penumbra, o futuro a ela pertence e temos acesso a ele só como arma retórica. 

A fritura de Guedes ainda não é explícita talvez porque não seja fácil achar um economista sério que abrace a economia eleitoral de Bolsonaro. Mas não é sensato apostar fichas na paciência política do presidente. O mercado condiciona, mas não decide a ponto de obrigar Bolsonaro a aguardar o máximo consenso possível. Ele sabe que o caminho até 2022, que é seu norte, passa, já em 2020, pelos nordestes de todas as regiões do Brasil, onde o voluntarismo liberal de Guedes é moeda eleitoralmente podre. Então é intuitivo que o divórcio venha, por litígio ou capitulação. E sem longo prazo, porque o prazo está dado, na economia, por emergências da crise e, na política, pela antecipada campanha da reeleição. 

O monopólio da iniciativa pragmática está, no momento, em mãos de um agregado que podemos chamar, grosso modo, de direita voluntarista e dogmática: extrema em política e ultra em economia. Condição que esse agregado ostenta por prerrogativa institucional e por uma momentânea aprovação auferida em pesquisas. O que fazer é a pergunta que ronda todas as outras famílias, da esquerda, do centro e também da centro-direita que reúne democratas conservadores e liberais.  Um léxico antibolsonarista, do ponto de vista político, e não liberal, do ponto de vista econômico, está sendo ensaiado pela corrente hegemônica do PT, saltando por cima da "briga de branco" palaciana. Por outro lado, reunir projetos políticos presentes nas oposições não petistas ao dos liberais perdedores da briga palaciana de agora, parece ser a via na qual Rodrigo Maia já opera, em sintonia com a direção do DEM. São dois eixos principais de articulações paralelas de possíveis candidaturas presidenciais relevantes, antigovernistas e também comprometidas com o sistema político democrático. Próximos a cada um desses eixos, ou entre eles, há outros partidos e nomes com potencial agregador. Suas potências precisam ser consideradas a sério. Ao mesmo tempo precisarão considerar que se chegarem a 2022 como projetos partidariamente delimitados, sacramentarão uma diáspora democrática, como em 2018.

Fora desse quadro referenciado no sistema político, há um lugar distinto para o nome de Sergio Moro. Sem vocação unitária, nem delimitação partidária, aparece como outsider cujas chances são diretamente ligadas ao fracasso de tudo o mais.  O ótimo seria o refluxo da bolha maniqueísta que essa cogitação de candidatura introduz no ambiente político. Um sub ótimo talvez seja sua digestão (mais complexa que a do próprio Guedes) no abraço aglutinador de dissidentes da aventura bolsonarista, que as articulações prudenciais de Maia podem oferecer. Isso pode ocorrer ao menos no primeiro turno, mesmo que não se conecte a uma grande política que se costure no segundo e até retorne ao ninho de onde acaba de sair.  

DEM e PT podem delimitar (não centralizar) um campo democrático de grande política. Precisam entender-se sem demora e de modo objetivo, na direção de adubar terreno para futura aliança no segundo turno (pensá-la como possível no primeiro seria excessivo, talvez impróprio bem-querer) de um 2022 que há um mês parecia longínquo e hoje já se impõe às agendas dos atores. Esse entendimento entre pontas pode envolver pactos de não agressão e mesmo de cooperação, sem a obsessão paralisante da frente única a qualquer preço.  Mesmo que em cada um dos dois eixos o processo se afunile para uma unidade do respectivo campo – e mesmo que esse afunilamento transborde, como é desejável, para abarcar atores outsiders positivos e se conectar a uma nova sociedade civil - sem um realismo programático orientado a uma grande política ainda mais aberta, o horizonte de eventuais candidaturas relevantes tende a ser a disputa para chegar ao segundo turno e ter a primazia de perder por último.

Nesse sentido, entrevista recente do governador da Bahia a O Globo é sinalização estimulante, desde que não seja só uma voz dissonante e o PT acabe adotando uma política positiva, como até aqui tem sido a do DEM. Os mais céticos talvez possam suspender provisoriamente seus juízos e dar o benefício da dúvida a um realismo moderado, amparado no respeito devido pela política à mão invisível do caos.


*Paulo Fábio Dantas Neto é cientista político e professor da UFBa.


Pablo Ortellado: A hora de Paulo Guedes

Se o bolsonarismo sobreviveu a uma ruptura com o lavajatismo, tudo indica que pode sobreviver a um rompimento com o liberalismo de Paulo Guedes

O bolsonarismo foi um movimento político concebido em 2018 a partir da articulação do conservadorismo moral, sobretudo aquele de orientação religiosa, com o lavajatismo e o liberalismo econômico.

Os dois primeiros tinham uma base social mobilizada sobre a qual se construiu a campanha eleitoral. Apesar de afinidades internas, a aliança se desfez com a saída do governo do ex-ministro Sergio Moro. Será que a aliança com o liberalismo, que é de conveniência, consegue resistir às pressões sobre Paulo Guedes?

A força de mobilização do lavajatismo vinha da grande popularidade da Operação Lava Jato e da vitoriosa campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff. A força do conservadorismo moral, por sua vez, vinha do punitivismo penal, que é muito popular, e da campanha das igrejas cristãs contra a ideologia de gênero.

Já o terceiro componente, o liberalismo, não tinha base social significativa. Mas era fundamental porque conferia a um projeto político insurgente legitimidade junto às elites econômicas.

A aliança do conservadorismo com o liberalismo de Guedes não está ancorada em afinidades doutrinárias —como as que existiam com o lavajatismo com quem compartilhava uma inclinação punitivista. Além disso, não dispõe dos laços históricos de compromisso que conservadorismo e liberalismo econômico desenvolveram nos Estados Unidos.

À medida que Bolsonaro compreende que sua popularidade depende da expansão dos programas sociais, Guedes está cada vez mais em perigo. Moro parecia mais indemissível e partiu sem fazer grande estrago.

O radicalismo doutrinário de Guedes tem feito com que reiteradamente busque financiar programa social com cortes em outros programas sociais e que busque compensação fiscal com a introdução de um imposto regressivo parecido com a CPMF.

Quando uma abordagem de senso comum recomendaria financiar uma expansão do sistema de proteção social com um pequeno aumento da carga tributária sobre os ricos ou com um corte nas renúncias fiscais, Guedes tirou do seguro desemprego para financiar o primeiro emprego; agora está querendo tirar do abono salarial para dar ao Renda Brasil e não desiste da obsessão de criar um imposto como a CPMF. Se política social traz popularidade, não faz sentido tirar de uma para dar para outra.

Cedo ou tarde, Bolsonaro vai perceber que não precisa de um ultraliberal na pasta da economia —e que, como Lula demonstrou, é perfeitamente possível combinar uma política econômica razoavelmente responsável, do ponto de vista fiscal, com políticas sociais de impacto.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Carlos Andreazza: O minion dribla-teto

Guedes quer ser o pai do novo Bolsa Família

Bolsonaro opera na ambiguidade. A história do veto presidencial afinal mantido sobre a possibilidade de aumentar salários de servidores públicos é exemplar da maneira propositalmente dúbia como manipula suas relações. No caso, com o que se chama de controle de gastos.

Lembremos.

Ainda em maio, ele autorizara que sua liderança apoiasse um acordo, no Senado, que abriria generosa janela de exceções à regra imposta até dezembro de 2021; arranjo por meio do qual várias categorias — inclusive as forças de segurança pública, que lhe compõem a base — poderiam ter reajustes na remuneração. Uma disposição segundo a qual — conforme já indicara a reforma da Previdência dos militares — alguns grupos seriam privilegiados; o que expunha um rigor fiscal destinado só aos outros.

O acordo foi fechado; os privilegiados, definidos. Ocorre, porém, que Paulo Guedes chiou. (Mas sem chamar o acerto apoiado pelo presidente de “criminoso”, né?) Para me valer da imagem formulada pelo ministro na famosa reunião de 22 de abril, ou era granada no bolso de todo servidor (“o inimigo”), ou nada feito. Bolsonaro recuou — e disse, traindo o pactuado, que vetaria o parágrafo cuja inclusão endossara. Vetou. Mas não sem demora. Entre o compromisso verbal com o veto e o veto em si, passaram-se 20 dias. Prazo no curso do qual aumentos para policiais pipocaram Brasil adentro; inclusive aquele que o próprio presidente deu à PM do DF.

E então, só então, passada a boiada, vetou. Difícil imaginar que tenha armado essa farra seletiva sem o aval de Guedes. Afinal, na prática, cumpriu a palavra dada ao ministro. Ficaram todos satisfeitos. Como todos satisfeitos ora estão com o efeito saneador da ação de Rodrigo Maia — a quem foram pedir arrego — para reverter, na Câmara, a rebeldia fiscalmente irresponsável (atitude “criminosa”, segundo o seletivo Guedes) do traído Senado.

Bolsonaro é ambíguo. Mas é Bolsonaro; em matéria econômica, mistura de Dilma Rousseff, Paulinho da Força e Ernesto Geisel. Um corporativista, que sentou o Planalto sobre o projeto de reforma administrativa. Um militar formado sob a fé num milagre econômico que faz Brasil Grande, de súbito —dada a circunstância pandêmica — diante da perspectiva de um Bolsa Família para chamar de seu.

Dúbio; mas um peão de bomba fiscal— a quem se deu caneta carregada — com três décadas de potencial atômico demonstrado, à parte o urânio enriquecido pela porteira de oportunidades aberta pela peste. Daí por que só mesmo a perplexidade com agentes do mercado — mui pouco patriotas — surpreendidos pelo risco de a popularidade ascendente do presidente, derivada em boa medida da fluência do auxílio emergencial, consolidar a irresponsabilidade fiscal como tendência.

Não é tendência. (Nunca foi.) Não há impasse; não mais há (se é que houve) disputa dentro do governo. Bolsonaro já fez a escolha. (Há 30 anos.) Vai gastar. É obra. A peleja agora é somente acerca de como bancar a conta. Essa é a missão dada pelo mito; todas as partes, liberal-guedistas e militar-desenvolvimentistas, movendo-se para encontrar a solução pagadora.

A peleja agora também sendo, pois, por quem terá a primazia no acesso à carteira do brasileiro. Que não se tenha dúvida — se ainda não deixei suficientemente claro: Guedes está no páreo; com CPMF, com tudo. Já topou o jogo. Pede alguma discrição, mas aceita aquele desagravo fúnebre à porta do Alvorada quando a rapaziada expuser excessivamente a corrida por custear a campanha do chefe a 2022.

A não ser na fachada, nunca houve competição entre austeridade fiscal e pulsão gastadora. Nunca, fica-teto versus derruba-teto. Não há fura-teto. O debate sobre a derrubada do teto de gastos, hoje, não tem lugar, senão na falácia discursiva por meio da qual Guedes disfarça a fabulosa flexibilidade de sua cervical liberal. “O teto sou eu” — sugere o ministro, definindo, como critério para sua permanência no governo, a improvável implosão da âncora fiscal. Isso enquanto ele próprio cuida de buscar brechas — vide o que tentou embutir no Fundeb — para driblar o teto.

Não é fura-teto. É fica-teto e dribla-teto. Guedes — antes de tudo um minion — sendo a perfeita encarnação do dribla-teto. Esta, a competição que há: entre dribla-tetos; sobre quem melhor oferecerá condições para financiar a reeleição de Bolsonaro.

Guedes quer ser o pai do novo Bolsa Família. Tenta costurar essa marca para si —para se fortalecer ante os militar-desenvolvimentistas, que propõem sustentar a vitória do chefe com obras de infraestrutura e de desenvolvimento regional. Se o auxílio emergencial é a garantia de porção expressiva da popularidade de Bolsonaro, calcula o ministro da Economia, o programa que o substituirá, o Renda Brasil, seria a perenização dessa popularidade. É como Guedes quer bailar. Ou tentar; porque o Ministério da Economia tem sido ruim de projeto.

Para o caso de falhar, e sem muito chororô no mercado, Roberto Campos Neto já está no aquecimento. Vida que segue — dirá o presidente.


Merval Pereira: Reforma necessária

Agora que a reportagem da Rede Globo sobre funcionários fantasmas na Assembléia Legislativa do Rio foi indicada para o Emmy, o maior prêmio internacional da televisão, ao mesmo tempo que a investigação sobre o sistema de “rachadinha” salarial dos funcionários de diversos gabinetes de deputados estaduais, entre eles o hoje senador Flavio Bolsonaro, vai chegando a resultados concretos, é mais que hora de repisar a necessidade de uma revisão da organização dos gabinetes parlamentares em todos os níveis, do federal ao municipal.

Por sua própria natureza, a “rachadinha” demonstra que os parlamentares têm assessores em excesso, cujos salários são também supervalorizados diante do praticado pelo mercado profissional. O assessor Fabricio Queiroz era, segundo está sendo demonstrado nas investigações, o responsável por receber e redistribuir parte dos salários dos funcionários do gabinete de Flavio Bolsonaro.

O valor total da soma dos vencimentos mensais de cada gabinete da Assembléia Legislativa do Rio é de R$ 160 mil, para ser distribuído entre possíveis 40 assessores. Até mesmo auxílio-alimentação é fraudado, segundo denunciou o deputado Luiz Paulo. Segundo ele, seria melhor adotar o ticket-refeição, para evitar o que muitos servidores fazem: devolvem o dinheiro referente ao auxílio-alimentação aos deputados que os empregam, ou para a “caixa” do partido.

A reportagem da Globo mostrou que vários assessores não aparecem para trabalhar, alguns foram flagrados pela reportagem em casa em dia de semana, e uma funcionária mora em Orlando, na Flórida. Depois de a reportagem ser exibida, foram abertas duas investigações, uma da própria Assembléia e outra do Ministério Público estadual, e até agora, oito meses passados, nada foi resolvido. Marli Regina de Souza Costa continua vivendo na Flórida e, mesmo à distância, trocou de deputado, mantendo a mordomia de R$ 23 mil mensais.

Dois dos servidores denunciados aposentaram-se, ganhando mais do que na ativa e com uma vantagem, não precisam mais dar parte de seu salário para ninguém. Na Câmara dos Deputados em Brasília o valor mensal da verba de gabinete é R$ 111.675,59, e cada deputado pode contratar de 5 a 25 secretários parlamentares para “prestar serviços de secretaria, assistência e assessoramento direto e exclusivo nos gabinetes dos deputados, em Brasília ou nos estados”.

Foi num desses cargos que Nathalia Melo, filha de Queiroz foi registrada no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, embora trabalhasse no Rio como personal trainer. No Senado, a questão é mais complicada, um “emaranhado de leis” segundo o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, que impede que se tenha noção clara dos critérios e salários.

A Transparência Brasil dividiu estados e capitais em grupos de maiores e menores PIBs per capita, e confrontou os tamanhos das economias com os gastos parlamentares – que incluem salários, verbas e auxílios diversos a deputados estaduais e vereadores. “O que se revelou foi uma inversão lógica: segundo dados coletados junto a Assembléias e Câmaras, estados mais pobres gastam em média 20% mais do que os ricos; capitais mais pobres, 16% a mais”.

O Pará, por exemplo, que tem um terço do PIB per capita de São Paulo, gasta 30% a mais por deputado estadual. “A irracionalidade é a mesma quando se comparam as capitais: Natal tem a metade do PIB per capita de Curitiba, mas empenha com seus vereadores o dobro da capital paranaense. No entanto, as Câmaras Municipais destas gastam por vereador 16% a mais com salários, auxílios e verbas indenizatórias do que as capitais com os maiores índices de PIB per capita”.

O mesmo ocorre, segundo o relatório da Transparência Brasil, nas Assembleias Legislativas. Enquanto os 12 estados da base seus gastos com salários e verbas são 20% mais altos do que os dos 12 estados do topo.

Na reforma administrativa que se pretende fazer, este seria um tema prioritário, não apenas para impedir que esse sistema de “rachadinha” se perpetue com o desvio do dinheiro público para os partidos políticos ou o bolso do parlamentar. Também como exemplo de que prevalecerá entre os representantes do povo a postura ética que lhes é exigida pelos cargos para os quais foram eleitos.