Paulo Guedes
Bruno Boghossian: Remédio do governo para acalmar investidores era só placebo
Desidratação precoce da reforma administrativa reforça esvaziamento de Guedes
Jair Bolsonaro foi à porta do Palácio da Alvorada na terça (1º) e anunciou que finalmente apresentaria uma proposta com novas regras para o serviço público. A ideia era acalmar investidores que estavam em pânico com o caminhão desgovernado pilotado por ele. Faltou dizer, no entanto, que aquele remédio para a ansiedade era só placebo.
O projeto de reforma administrativa que chegará ao Congresso nesta quinta (3) será mais brando do que queria a equipe econômica. As novidades valerão apenas para futuros servidores, o que já era esperado, mas a proposta também não deve mexer agora com os salários ou a estabilidade desses funcionários.
Essas eram ideias centrais no gabinete de Paulo Guedes, mas o ministro foi obrigado a dar um passo atrás. Se ainda havia dúvidas, a desidratação precoce provou que o novo consórcio entre Bolsonaro e os parlamentares do centrão passou a dar as cartas também nessa área.
O governo ainda não quis estabelecer as regras mais sensíveis do plano e resolveu mandar ao Congresso apenas parâmetros gerais. Para que as normas tenham efeito e façam diferença nas contas públicas, como queria Guedes, ainda seria necessário aprovar uma outra lei.
O fatiamento vai exigir uma base parlamentar coesa, algo que o governo ainda não demonstrou ter. O caminho tende a ser mais acidentado por se tratar de um tema que os deputados preferem evitar, já que o funcionalismo é uma ferramenta de poder em suas bases eleitorais. Além disso, a ideia de acabar com a estabilidade enfrenta resistências porque abre caminho para perseguições políticas no serviço público.
O próprio Bolsonaro, que fez carreira como uma espécie de líder sindical de militares, brigou contra a reforma por quase um ano. Em novembro, ele disse que a proposta do governo seria “a mais suave possível” e mandou o projeto original de Guedes para a gaveta. Agora, o presidente até fez um aceno ao fiador de sua política econômica, mas deu a palavra final. Mais suave, impossível.
Vinicius Torres Freire: Desastre do PIB mostra erros de Guedes
Queda inédita era prevista, mas economia já andava muito mal antes de ser infectada pelo vírus
A economia brasileira foi o desastre mais ou menos esperado no segundo trimestre. O que se descobriu agora é que, mesmo antes da calamidade do vírus, o PIB já dava com a cara no chão e quebrava uns dentes, em vez de decolar, como dizia Paulo Guedes, o ministro da Economia.
Segundo a revisão do IBGE, o PIB caiu 2,5% no primeiro trimestre (ante o final de 2019), não apenas 1,5%. Ou seja, estamos em um buraco um pouco mais profundo do que o previsto. Em março, quando o coronavírus já caçava vítimas pelo Brasil e o mundo inteiro fechava as portas, Guedes dizia que o Brasil cresceria 1% em 2020. A previsão mais recente do povo do mercado era de queda de 5,3%, antes de saber dos dados ainda piores do primeiro trimestre.
Guedes agora diz que a economia brasileira vai se recuperar em “V” (ou seja, cai e se levanta tão rapidamente quanto). Tomara. Até agora, não parece.
O desempenho brasileiro foi horrivelmente similar à média das maiores economias do mundo e melhor que o da maioria da Europa ocidental. No segundo trimestre, o PIB dos países da OCDE baixou 9,8% (o do Brasil, 9,7%). A OCDE é um clube de três dúzias dos países com os maiores PIBs do mundo (mas China e Brasil não estão lá).
O resultado brasileiro não foi ainda pior porque:
- o gasto do governo foi relevante, grande na comparação internacional;
- o setor externo ajudou (com uma contribuição de 2,3 ponto percentual para o PIB): as exportações resistiram, as importações caíram
Por falar em auxílio do governo, note-se que por volta de março Guedes também dizia que com “uns R$ 5 bilhões” se resolveria o problema da pandemia (o governo acabará gastando mais de meio trilhão de reais extras) e propunha auxílio emergencial de R$ 200 (é no mínimo de R$ 600).
Guedes acha que o resultado do segundo trimestre é um ruído de um acontecimento que está agora a uma distância astronômica, tão astronômica quanto seus erros de previsão e e desvarios quantitativos, entre outros (o Brasil decolava no início do ano, cresceria 1% neste ano, privatizaria empresas no valor de R$ 1 trilhão, teria déficit zero em 2019 etc.).
O terceiro trimestre decerto está sendo melhor. Sim, saímos do fundo do poço mais recente, mas ainda estamos dentro do buracão e há problemas sérios na recuperação adiante:
- o auxílio emergencial vai ser cortado pela metade, de R$ 600 para R$ 300. A economia vai ter de despiorar muito rápido para criar renda bastante para compensar essa diferença;
- o setor de serviços está muito estropiado e ainda ficará assim por meses, dada a longa duração da epidemia no Brasil;
- o investimento em novas instalações produtivas, casas, máquinas e equipamentos se arrastava antes do vírus; difícil ver como vai sair do chão (na verdade, do buraco) em uma economia ainda mais deprimida e com investimento público ainda mais reduzido.
Nas categorias em que o IBGE divide o PIB, o setor mais desastroso foi “outros serviços”: caiu quase 19,8% em relação ao primeiro trimestre (inclui atividades como alimentação fora de casa, hotéis e similares, serviços pessoais, profissionais liberais, saúde e educação privadas, entretenimento, cultura, esportes). A seguir, veio o setor de transportes, armazenamento e correios, com queda de 19,3%.
Juntos, “outros serviços” e “transportes” fazem quase 29% da economia brasileira. Com o comércio, são 42,4% do PIB.
Os dados mais recentes do setor de serviços indicam uma despiora lenta. Em agosto, as vendas no setor de serviços em geral ainda estavam 46% abaixo do registrado em fevereiro, antes da pandemia (ante alta de 3,2% nas vendas de bens não-duráveis e queda menor, de 4,8%, nas vendas de bens duráveis). Os dados são da Cielo, de despesas com cartão no varejo.
“Nós humanos somos átomos que raciocinam. Economia não é uma ciência exata. Como a velocidade da luz é diferente da velocidade do som, você vê um raio muito cedo e o som chega muito depois. É a mesma coisa com a economia”, discursou Guedes sobre o PIB nesta terça-feira (1º).
Guedes enxerga a luz dos astros antes de nós.
Dados os seus erros de anos-luz de distância e conversas desvairadas assim, parece que o ministro anda vendo coisas. Estrelas, pelo menos.
Míriam Leitão: O raio de abril e outras histórias
Antes de o raio cair em abril, o país já estava despencando. É o que ficou claro nos dados de ontem. No primeiro trimestre, o PIB encolheu 2,5% segundo dado revisto pelo IBGE. Isso é impressionante porque só na segunda quinzena de março o país começou a fechar as portas por causa da pandemia, e mesmo assim houve essa queda forte. Não podem ser só os 15 dias, a economia já vinha mal. Então o que o ministro Paulo Guedes disse ontem — “é o impacto de um raio que caiu em abril” — é verdade, mas há mais informações nos dados. O PIB caiu 9,7% no segundo trimestre, mas sem o auxílio emergencial o PIB poderia ter caído cinco pontos a mais, segundo cálculo da MB Associados. Há unanimidade de que o terceiro trimestre será de recuperação e haverá outra alta, mais leve, no quarto trimestre. Mesmo assim, a crise está longe do fim.
O dado divulgado ontem pelo IBGE é um desses acontecimentos que já nascem históricos. Sempre que olharmos para a série estatística haverá esse colapso do segundo trimestre de 2020 como uma cicatriz. Foi mais penoso pela maneira como o governo lidou com tudo, com o presidente criando conflitos, disparando ameaças às instituições, ofensas à imprensa e ataques aos governadores. Isso não está nos números, mas aumentou a infelicidade do Brasil.
Olhando para os índices é possível ver que há gradações no tombo. Dentro da indústria, o setor de construção caiu 5%, a indústria de transformação, 17%. Os serviços foram puxados para baixo pela queda do consumo das famílias. O agronegócio e o setor exportador tiveram números positivos. Um está ligado ao outro, e ambos ao dólar, que subiu muito, elevando a remuneração das vendas ao exterior. Nosso maior comprador foi a China, que apesar disso ouviu críticas disparadas pela política externa.
A MB Associados alertou para dois fatos importantes. Há mais desigualdade regional e mais pobres no Brasil. A consultoria fez uma conta entre 2015 e 2021, o que já ocorreu e a projeção futura. Ao fim desse período, o Nordeste terá queda de 7,5%, e o Centro-Oeste, alta de 3,2%. “O Nordeste, de novo, será o centro da disputa política regional em 2022.” Brigam pelo coração do Nordeste, mas o país empobreceu e ficou mais desigual. A distribuição de renda está piorando, diz a MB. As classes D e E, as de renda mais baixa, estão aumentando em 11,9 milhões de pessoas. A classe média está encolhendo.
Os economistas ouvidos pela coluna concordam em vários pontos. O número veio um pouco pior no segundo trimestre, mas houve aqui e ali um resultado melhor do que o esperado. Mesmo assim, há muita gente melhorando as projeções do ano. Fernando Honorato, do Bradesco, acha que não muda a visão de recuperação que vinha desde maio. Ele acredita que as projeções continuarão entre –5,5% e -4,5%. A MB refez a previsão, de uma queda de 5,3% para -4,8%. Mas houve também quem piorasse as estimativas.
O presidente Bolsonaro anunciou quase que na mesma hora da má notícia do PIB a extensão do auxílio emergencial até o fim do ano. É um truque antigo para criar uma agenda positiva num dia ruim. Tudo foi feito de tal forma a ser mais um momento do culto à personalidade. Cercado dos seus líderes, o senador Fernando Bezerra (MDB-PE), o deputado Ricardo Barros (PP-PR) e o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), Bolsonaro deu a notícia da extensão do auxílio. Depois, com o olhar parado no horizonte, ouviu os elogios. Paulo Guedes repetiu que “o presidente não deixou ninguém para trás”. Dos parlamentares, alguns velhos conhecidos, o mais eloquente foi Bezerra.
— Todos vão se surpreender com os dados da economia no final do ano, porque o Brasil acertou, o presidente Bolsonaro acertou. Alguns falavam em retração de 10% e será menor que 4,5% — disse Bezerra, acrescentando que depois do auxílio vem o Renda Brasil. “É o presidente Bolsonaro protegendo os mais pobres.”
Para o mercado financeiro também foi enviado um auxílio emergencial: o anúncio de que a reforma administrativa sairá da gaveta do presidente para o Congresso. O ministro Paulo Guedes disse que “as reformas” voltarão à pauta. A bolsa subiu, e o dólar caiu. A proposta só muda a situação para os futuros servidores, avisou Bolsonaro. Isso, segundo a economista Ana Carla Abrão terá impacto imediato zero nas contas públicas. Ela disse que esse é o problema: “não há ganho fiscal nem para o curto, nem para o médio prazos.”
Felipe Salto: A ameaça do populismo fiscal
Discutindo o Renda Brasil superficialmente, pode-se pôr em risco a credibilidade do País
No prefácio do livro que acabo de publicar com Josué Pellegrini, Contas Públicas no Brasil (424 páginas, Editora Saraiva), o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega avalia que os aprimoramentos na institucionalidade fiscal do País “não foram de todo introjetados nas nossas elites, menos ainda na sociedade”. A verdade é que leis e regras ficam incompletas sem o espírito da responsabilidade fiscal. Dívida e déficit não se controlam por obra da lei apenas, mas pelo efetivo saneamento das contas públicas. Por isso a ameaça do populismo fiscal precisa ser barrada, sob pena de pormos a perder a capacidade de resposta do Estado no pós-crise.
A crise nas finanças públicas não chegou ao Brasil com o novo coronavírus, mas ele a exacerbou. O risco, passada a tempestade da covid-19, é mergulharmos fundo no aumento indiscriminado do gasto público. Trata-se das propostas que desconsideram a restrição orçamentária do País. A abordagem do governo no chamado Renda Brasil pode ser um primeiro sintoma.
Em tese, ninguém é contrário à criação de um bom programa de transferência de renda para os mais pobres, sobretudo depois da crise, dada a situação prospectiva de fragilidade social e econômica. Há, contudo, que levar em conta o custo, a forma de financiamento, o objetivo e o desenho da política. A ação do Estado deve estar baseada em evidência empírica. Há muita gente qualificada na academia, na burocracia estatal, no setor privado e no terceiro setor para ser consultada.
Dar continuidade ao programa de auxílio a vulneráveis seria positivo desde que respeitado o compromisso com a responsabilidade fiscal. A motivação do Renda Brasil, como vem sendo chamado, é guarnecer uma parte dos que ficarão órfãos do benefício emergencial pago durante a pandemia e terão dificuldades de encontrar emprego. Mas por ora é apenas uma boa ideia. Enquanto o leitor lê este artigo, provavelmente o Executivo está enviando ao Congresso a proposta para o orçamento público de 2021. Hoje é o prazo final. Até o momento em que terminava de escrever, três dias atrás, não havia nenhuma indicação sobre o desenho do Renda Brasil.
De quanto será esse novo benefício? Quem terá direito a receber? Será um programa permanente?
Do ponto de vista do custo, a incerteza é gigantesca. Nas contas da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, o auxílio a vulneráveis custa R$ 51,5 bilhões ao mês, ou R$ 618 bilhões em termos anualizados. Para ter claro, esse montante equivale a quase todo o gasto do INSS, em 2019, de R$ 626,5 bilhões. Se o Renda Brasil corresponder a 10% disso (R$ 62 bilhões, ou quase o dobro do Bolsa Família), já será um gasto elevado e difícil de ser enquadrado no orçamento e na regra do teto de gastos em 2021.
Considere-se a seguinte hipótese de financiamento: corte de subsídios creditícios (R$ 5 bilhões), corte de gastos tributários (R$ 25 bilhões), redução temporária de jornada no serviço público (R$ 23 bilhões) e redução do abono salarial (R$ 9 bilhões). Haveria tempo hábil para articular essas medidas? A redução de jornada, por exemplo, dependeria de proposta de emenda à Constituição (PEC). As mudanças no abono salarial poderiam ser feitas por lei, mas sua extinção, apenas por PEC. Além disso, o presidente da República já disse ser contrário a mexer no abono, apesar de não ter apresentado alternativa.
E quanto ao teto de gastos? Das fontes acima listadas, a mudança nos gastos tributários não ajudaria no teto, pois essas renúncias de receitas não estão sujeitas à regra. O quadro seria de estouro do limite, lembrando que as projeções da IFI já indicam risco alto de rompimento em 2021, mesmo sem o Renda Brasil. Assim, seriam acionadas as medidas de ajuste previstas na Emenda Constitucional n.º 95, de 2016 (regra do teto).
Tais gatilhos proíbem reajustes salariais, contratações e ações, pelos três Poderes, que impliquem aumento de despesa acima da inflação. Bem aplicados, não configurariam abandono do teto, mas o seu pleno funcionamento. Espanta que o governo não tenha dado encaminhamento célere a essa questão, para que a proposta orçamentária de 2021 já nascesse em contexto de maior previsibilidade. O noticiário econômico mostra que o Ministério da Economia está correndo atrás de uma PEC para dar conta do recado. Parece descartar – não se sabe a razão – a possibilidade de construir uma saída pela própria Emenda 95.
Acionar os gatilhos daria fôlego de um a dois anos para se discutir uma reforma fiscal mais ampla, ajudando a afastar a ameaça de burla das regras fiscais por meio de contabilidade criativa. O populismo fiscal é ardiloso, porque se baseia em promessas atraentes, mas ignora os números, as estimativas e, principalmente, a indicação das fontes de financiamento.
Ao se discutir a criação do Renda Brasil de maneira superficial e sem números, pode-se pôr em risco a credibilidade das contas públicas e do País. Se prevalecer a tese de que não é preciso aumentar receitas e/ou cortar gastos para custear aumentos de novas despesas, terá vencido o populismo fiscal. É tempo de barrar essa ameaça.
*DIRETOR EXECUTIVO DA IFI
Arminio Fraga: Fim do teto. Não se, mas como
Limite sinalizou entendimento contra o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990
A emenda constitucional nº 95 de dezembro de 2016 instituiu o teto de gastos públicos, que congelou em termos reais os gastos do governo federal. O teto sinalizou um bem-vindo entendimento quanto à necessidade de se lidar com o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990.
Foi parte de uma guinada na gestão macroeconômica do país em resposta ao colapso fiscal que ocorreu a partir de 2014. A partir da guinada, as taxas de juros entraram em trajetória de queda, chegando aos inéditos níveis que prevalecem hoje.
Parecia claro desde o primeiro momento que a manutenção do teto por mais do que alguns anos seria difícil sem que se encarasse de frente a absoluta rigidez dos gastos obrigatórios. Um exemplo pode ajudar aqui. Sob as regras da EC 95, se o PIB crescesse a 2,5% por dez anos, o gasto federal cairia de 19% para 15% do PIB. Se todos os gastos públicos ficassem congelados, em termos reais, teríamos uma queda de 35% para 27%. Não faz muito sentido.
Havia esperança de que reformas mais profundas ocorreriam, o que permitiria em algum momento uma flexibilização do teto, sem grandes estresses. Mas não foi o caso. Algo se fez, como a reforma da Previdência aprovada no ano passado, mas não foi o suficiente: o espaço para cortes nos gastos correntes discricionários praticamente se esgotou e o investimento público está próximo de zero, o que é política e economicamente insustentável.
Não surpreende, portanto, que um exame mais detalhado dos fatos sugira que não se exagere o impacto causal do teto sobre as taxas de juros: a Selic (a taxa de curto prazo fixada pelo BC) está em 2% e a taxa dos títulos do Tesouro de dez anos em torno de 7,5%.
Ambas caíram bastante desde 2016. Parece razoável atribuir parte relevante da queda na Selic à enorme recessão que nos assola há sete anos. As taxas de longo prazo embutidas na curva de juros estão em torno de 9%.
Ou seja, o prêmio de risco segue elevado, espelhando juros reais acima de 4% e ainda algum medo de inflação. E isso num período em que as taxas de juros equivalentes para as economias avançadas caíram em cerca de 1,5 p.p..
Conclusão: o futuro macroeconômico do país ainda está longe de ser confiável. Quem vai investir em um país com indicadores tão incertos? O que fazer então com o teto?
Há quem acredite que um caminho seria abandonar o teto e seguir gastando e acumulando dívida (presume-se que por mais algum tempo). Alguns cogitam prorrogar o orçamento de guerra. Outros entendem que, no limite, seria possível reduzir a taxa de juros de curto prazo a zero (se a inflação permitir) e encurtar ainda mais o perfil de vencimento da dívida (na prática, "emitir moeda").
Acreditam também que haveria espaço para abrir novas frentes de investimento público e privado de boa qualidade. Essa opção conta com o atraente apelo de dispensar a definição de prioridades, bem como parece não impor custos.
Seria bom, mas não para de pé. Falta combinar com os russos. Não há confiança na capacidade de o governo executar bons investimentos. Tampouco há confiança interna e externa para financiar tal caminho. E não sem razão. Nas atuais condições, nem se fala. Seria mais crise na certa. Já vimos esse filme. O Brasil não é uma economia avançada. Os reais problemas seguiriam intocados.
Restam então duas alternativas: defender a ferro e fogo o teto ou buscar uma saída mais equilibrada. Não creio que a defesa pura e simples do teto seja uma solução viável por muito mais tempo, pelas razões que expus acima. Melhor planejar o quanto antes uma saída organizada e crível. A operação é muito delicada. Flexibilizar o teto sem uma nova âncora traria consequências dramáticas.
O quadro geral é bastante complexo. O país apresenta déficits primários há sete anos. O Ministério da Economia sinaliza compromisso com o teto. O presidente da República, pensando na reeleição, aposta suas fichas políticas no Renda Brasil e se opõe a cortes em outros benefícios e aumentos de impostos.
A PEC Emergencial, que ganharia algum tempo para o teto, não parece contar com o apoio do Executivo, pela mesma razão. Claramente a conta não fecha. O que fazer?
Tenho defendido uma estratégia de ajuste estrutural que começou com as reformas do BNDES e da Previdência (3 p.p. do PIB) e que ao longo de dez anos liberaria recursos crescentes, que poderiam chegar a mais 8 p.p. do PIB no décimo ano.
Perdoem-me a repetição, mas não vejo saída para o Brasil que não passe por alguma redução simultânea do nível e das distorções de uma parcela relevante do gasto público.
A economia viria da eliminação de subsídios e brechas tributárias regressivas, de ajustes na folha de pagamentos do setor público e de mais ajustes na Previdência. Boa parte dos recursos ficaria livre para gastos e investimentos em áreas de alto retorno social como saúde, assistência social, pesquisa básica, educação e infraestrutura, sempre que possível alavancados por capital privado. Ficaria livre também para reduzir a carga tributária.
Seria fundamental que a economia com o funcionalismo fosse obtida por meio de uma reforma de recursos humanos do Estado, que promovesse um salto na qualidade nos serviços públicos, seu principal objetivo e importante alavanca para o desenvolvimento.
O lobby do funcionalismo se opõe, mas se espera que o entendimento de que há muito privilégio e desperdício a eliminar acabará prevalecendo. O Brasil é um ponto fora da curva global no que tange ao peso do funcionalismo no gasto público. É prerrogativa do Executivo federal encaminhar ao Congresso uma proposta, mas aqui também a reeleição parece atrapalhar.
Parte do resultado da estratégia acima se destinaria à obtenção de um superávit primário capaz de viabilizar uma queda gradual do endividamento público, hoje elevado pelas barbeiragens, emergências e recessões dos últimos sete anos. O ajuste do primário deveria ser gradual, atingindo cerca de 3 p.p. do PIB em três anos.
Notem que o espaço de manobra seria limitado. No curto prazo haveria um (pequeno) aumento real no gasto público e um aumento da carga tributária. Com o correr dos anos, na medida em que as reformas mostrassem resultado, seria possível aumentar os gastos em termos reais, mas reduzi-los como proporção do PIB. O mesmo vale para a carga. Seria uma decisão política.
Como o único caminho que enxergo é gradual e a nossa credibilidade, baixa, me parece de todo essencial que se aprove o quanto antes uma versão da PEC Emergencial que ofereça ao governo as ferramentas necessárias para se desenhar e executar um orçamento plurianual crível.
Esse orçamento deveria indicar com clareza as metas mencionadas acima para o gasto público e o superávit primário. Só assim seria possível uma flexibilização segura do teto.
A bem-vinda discussão em curso sobre uma renda básica universal, que ampliaria e consolidaria os programas de assistência social existentes, teria que obrigatoriamente acontecer no bojo desse orçamento plurianual. Um igualmente desejável reforço do SUS teria que fazer parte do processo, disputando espaço com outras prioridades. A discussão de temas isolados é má prática econômica e política.
O tempo é curto e o espaço de manobra, ainda menor. Mas ainda temos a oportunidade de reduzir privilégios, buscar a saúde fiscal do Estado e perseguir um crescimento inclusivo. Isso requer metas claras e factíveis e um plano integrado como esboçado aqui. Requer também liderança política com visão de longo prazo.
*Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Vinicius Torres Freire: Baderna no Ambiente e no Renda Brasil são sintomas de que país afunda na vala
Brasil vai cair no buracão, pois verba de investimento míngua a cada ano; dinheiro para obra nova praticamente não há
O vice-presidente Hamilton Mourão disse, em outras palavras, que o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) mente ou é incapaz de ler uma planilha do governo. É mais um sintoma da baderna do governo e um exemplo da mixórdia orçamentária, que vão levando o país para o buraco.
Na sexta-feira (28), Salles anunciara o cancelamento dos trabalhos restantes de combate à destruição da Amazônia. Teria sido informado pelo Ministério da Economia de que os ministros-generais do Planalto haviam decidido que ele perdera a verba para apagar incêndios. Mourão disse que não era nada disso, que o ministro criara caso à toa e que mandara Salles pensar no que havia feito, não se sabe se ajoelhando no milho.
Essa turumbamba se deve a uma disputa por R$ 60,7 milhões, a verba que, sabe-se lá, teria sido tirada do Meio Ambiente. Esse dinheiro equivale a 0,004% do Orçamento de R$ 1,48 trilhão do governo federal (excluídos os gastos extraordinários com a pandemia).
Salles foi uma brasinha soprada pelo esquecido Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo. Um dia expoente do Partido Novo, o ministro espalhou-se como um incêndio no Ambiente de Jair Bolsonaro. Generais do Planalto e Mourão, que tutela Salles desde janeiro, querem apagar o fogo dele.
O motivo fundamental da confusão nem é esse. O sururu se deve à falta geral de dinheiro e do desejo de Jair Bolsonaro de criar um Bolsa Família Verde-Amarelo. Assim indicou Mourão, ao tentar explicar de onde teria saído a ideia de que houvera corte no Ambiente. “O governo está buscando recursos para poder pagar o auxílio emergencial, é isso que eu estou chegando à conclusão”, disse o vice-presidente.
Foi o segundo pito ministerial da semana. Bolsonaro passara um sabão público em Paulo Guedes por causa do Renda Brasil. Também na sexta, o ministro da Economia disse, meio brincando, que a bronca bolsonariana foi “um carrinho”, jogada perigosa, quase “dentro da área” (se fosse pênalti, era cartão vermelho?).
Em suma, não há dinheiro para bancar políticas públicas, caso existissem, ou para a política assistencial de Bolsonaro. Todo o mundo deve se lembrar daquelas cenas de estradas interrompidas por crateras, abertas pelos aguaceiros das chuvas de verão. Os temporais vão levar rodovias, e a coisa pode ficar assim, caindo aos pedaços, assim como em hospital, na universidade e na ciência.
O Brasil vai cair no buracão, pois a verba de investimento (em obras, equipamentos etc.) míngua a cada ano. Dinheiro para obra nova praticamente não há.
O investimento, com R$ 43 bilhões previstos para 2020, fica com apenas 2,9% do Orçamento. As maiores obras levam apenas R$ 300 milhões cada uma; 17% do investimento é despesa militar (avião, submarino etc.).
Quase todo o gasto federal vai para benefícios previdenciários, assistenciais e salários. Mas, mesmo com cortes aí, não haverá dinheiro bastante para investimento, ainda menos se houver um Renda Brasil gordo.
O establishment não quer tributar e gastar mais (reformar o teto).
Os reformistas liberais dizem que sobra capital privado no mundo (verdade); que, com boa regulação e bons projetos, haveria dinheiro privado para investimento (mesmo para aqueles com retorno social alto e retorno privado baixo?), que não se precisa do Estado.
Mas o partido reformista está no poder desde 2016 e não fez nada disto: nem bons projetos, nem nova regulação, nem abertura comercial, nem outros liberalismos. Sua grande obra, no momento, é escorar o governo de baderna desaforada de Jair Bolsonaro.
Míriam Leitão: Escolhas trágicas na economia
O tumulto da sexta-feira com o afastamento do governador Wilson Witzel ajudou a afastar a atenção da área econômica, que vivia o constrangimento de um ultimato dado pelo presidente para ter em mãos o novo Renda Brasil. Foi mais uma semana ruim para o ministro Paulo Guedes. No mercado, a dúvida sobre a sua permanência; no Ministério, a corrida atrás do dinheiro para cumprir outra ordem do presidente: ter recursos para as obras dos ministros Tarcísio Freitas e Rogério Marinho. Por isso a verba do combate ao desmatamento e aos incêndios quase foi usada para outros fins.
A pasta do Meio Ambiente, como se sabe, é ocupada por um inimigo do meio ambiente. É do seu feitio sabotar as ações dos órgãos de fiscalização, ou não dar os meios para que as missões se realizem. O Ministério da Economia conseguiu fazer Ricardo Salles parecer um ambientalista. Na sexta-feira, o MMA comunicou que estava suspendendo 100% das ações porque o dinheiro do Ministério fora congelado. Com o susto, o orçamento foi descongelado, e restou ao vice-presidente dizer que Salles havia se precipitado.
Os dias têm sido pesados na área ambiental. Estudos mostram o avanço do desmatamento, e o efeito da queimada na saúde humana. O movimento das empresas e bancos contra essa deterioração tem crescido. No exterior, as notícias confirmam os temores dos investidores. O vice-presidente Hamilton Mourão vinha ouvindo com atenção os empresários, executivos, banqueiros e administradores de fundos. Mas mostrou na quinta-feira que, se ouviu, não entendeu. Segundo ele, os 24 mil focos de incêndio em um mês na Amazônia são “agulha no palheiro”. A notícia de que o Brasil tiraria a verba do combate ao desmatamento e incêndio seria arrasadora.
Há outro complicador. O dinheiro do Fundo Amazônia não está sendo utilizado, mesmo quando há disponibilidade e projeto, por causa do teto de gastos. Lá estão parados hoje R$ 200 milhões, de acordo com o site oficial. O Fundo não consegue executar os projetos contratados e com recursos porque a despesa bate no teto. O dinheiro do MMA quase foi tirado para atender às ordens do presidente que nunca se importou com o futuro da floresta. Ao mesmo tempo, os recursos de um fundo formado por doações de outros países, mesmo quando há projetos aprovados, não podem ser usados. As autoridades já foram avisadas pelo BNDES e pelos doadores, mas não tomaram qualquer providência.
Não faz sentido que o dinheiro de fora do orçamento tenha que enfrentar esse impedimento. “O ente executor, seja o Ibama ou o Ministério da Justiça, em operações de comando e controle, fica no dilema: usar os recursos do Fundo e bater no teto, ou usar recursos próprios e não conseguir utilizar o dinheiro do fundo”, me contou um funcionário que acompanha a kafkiana situação em que a área ambiental está, e da qual estão a par todas as autoridades, inclusive o vice-presidente Hamilton Mourão.
Na Economia, esta foi a semana de anunciar um outro enorme rombo nas contas públicas, de R$ 87 bilhões em julho. Nos sete meses, o buraco é de R$ 505,2 bilhões. O ministro Paulo Guedes tem que administrar esse mar vermelho e ainda engolir os ataques do presidente Jair Bolsonaro. A crítica ao seu projeto foi feita pelo presidente no religamento de um alto-forno da Usiminas, em ato público e demagógico, quando poderia ter sido dita diretamente ao próprio ministro e à sua equipe. Todo mundo entendeu como um ato de fritura que de fato foi. Mas numa reunião do Instituto Aço Brasil, Paulo Guedes mostrou que do presidente tudo suporta.
– Eu falei para o presidente: carrinho fora da área não dá. Se fosse na área era pênalti.
Em rápida passagem pelos microfones da imprensa, Guedes repetiu as palavras do presidente, de que “R$ 200 é pouco”. Mas foi esse o número que a equipe econômica havia apresentado, tanto na primeira versão do auxílio emergencial quanto no valor que cabia no orçamento para o Renda Brasil.
Segundo Guedes, “é perfeitamente legítimo” o presidente querer outro valor. Querer pode. O problema é que há limites fiscais, e cabe ao ministro apresentá-los ao governo. Em vez de conter o ímpeto gastador dos colegas que ele alcunhou de “fura-teto”, o ministro Paulo Guedes mandou a equipe sair procurando dinheiro em outras áreas. Os recursos da proteção da Amazônia quase foram vítimas das escolhas trágicas do Ministério da Economia.
Elio Gaspari: A caótica fritura de Paulo Guedes
Como superministro, ele foi uma invenção marqueteira
O “Posto Ipiranga” entrou num humilhante processo de fritura. Felizmente, essa figura nunca existiu. Se existisse, o perigo seria enorme, pois é impossível fritar um posto de gasolina. Pode-se explodi-lo, mas o quarteirão vai junto. Paulo Guedes como superministro foi uma invenção marqueteira, que jamais ficou em pé. O doutor acumulou poderes sem ter um projeto viável, acreditou na própria lenda, achou que estava chegando ao paraíso, confiou em velhos truques e em menos de dois anos deu-se conta de que é o presidente quem manda.
Quando Bolsonaro mandou ao lixo seu projeto para o Renda Brasil, deu-lhe uma lição: “Não posso tirar dos pobres para dar para paupérrimos”. Na mosca, pois era isso que Guedes propunha, tirar recursos do abono que beneficia 23 milhões de pessoas com renda inferior a dois salários mínimos, para quem não tem nem isso.
Essa foi a boa notícia. A má é que Paulo Guedes vem sendo perseguido por outro fantasma marqueteiro, chamado “Pró-Brasil”. Ele apareceu intitulando-se um “Plano Marshall” para o país. Era coisa de quem não sabia o que foi o plano de recuperação econômica da Europa depois da Segunda Guerra Mundial.
Piorando, é também coisa de quem não sabe o que quer, além do elementar avanço sobre a bolsa da Viúva. Nesse bloco brilha o ministro Rogério Marinho. Quando ele estava na ekipekonômica de Guedes, defendeu a taxação compulsória das pessoas que recebem auxílio-desemprego. Não se tratava de tirar do pobre para dar ao paupérrimo, mas de tirar de quem está sem trabalho para reforçar a caixa do governo.
Promovido a ministro do Desenvolvimento Regional (e candidato ao governo do Rio Grande do Norte), tornou-se um defensor da necessidade de investimentos “no capital humano e na infraestrutura”. Nada mais sensato. Marinho defendeu essa tese na tenebrosa reunião ministerial de 22 de abril. Amparou-se no exemplo da audaciosa e clarividente decisão do chanceler alemão Helmut Kohl para custear a reunificação do país no final do século passado. (Nessa reunião, Jair Bolsonaro fritava seu ex-superministro Sergio Moro.) Marinho poderia ter prosseguido no exemplo alemão: Kohl foi apanhado num escândalo de arrecadação ilegal de dinheiro de campanha, perdeu o cargo, sua mulher matou-se e ele morreu no ostracismo, em 2017.
Guedes acreditou em muitas fantasias. Achou que o mercado lhe dava tanta força que podia advertir o presidente da República. No último dia 11 ele disse o seguinte:
“Os conselheiros do presidente que estão aconselhando a pular a cerca e furar teto e vão levar o presidente para uma zona de incerteza, uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal. E o presidente sabe disso e tem nos apoiado.”
Passaram-se 15 dias e tomou o troco. O “tem nos apoiado” era uma doce ilusão.
A turma que frita Guedes apresenta-se como “ala desenvolvimentista”. Antes fosse. Passou o tempo e tudo voltou ao dia em que disseram ao marechal Castelo Branco que se formava uma aliança contra o “inimigo comum”. Ele perguntou quem seria esse inimigo e disseram-lhe que era ele.
—Eu, não. É o Erário.
Recordar é viver
No século passado, quando o presidente José Sarney fez o Plano Cruzado e pareceu ter acabado com a inflação, o empresário Dilson Funaro tornou-se o ministro da Fazenda mais popular de todos os tempos.
O Cruzado fazia água e falava-se que o ministro popular poderia deixar o governo. No Planalto repetia-se que Funaro só sairia se quisesse.
Um dos ministros mais poderosos do governo avisava:
“Ele vai sair, mas só depois de termos quebrado todos os seus ossinhos.”
Desossado, ele saiu em abril de 1987.
Como salvar uma escola
As coisas boas também acontecem. Com a pandemia e a recessão, milhares de colégios particulares estão lutando pela vida. Em julho, a Escola Espaço Ratimbum de Morungaba, pequena cidade próxima a Campinas, parecia condenada. Sua fundadora, Viviane Catapani, foi buscar ajuda na comunidade. Aos empresários, pediu que adotassem alunos com bolsas de estudo. Ao pais das crianças, ofereceu descontos a quem pudesse adiantar as mensalidades.
Dono de uma fazenda na região, o empresário Fernando Carramaschi ajudou a mobilização da professora e, em menos de dois meses, a comunidade salvou a escola. Seis mães de alunas, o dono do posto Shell e pessoas ligadas às empresas Alpina Têxtil e Agropecuária Purininha salvaram a Ratimbum. A escola recebeu R$ 17 mil, e tem apalavrados outros R$ 41 mil. Dos 52 alunos do colégio, dez terão bolsas de estudo.
Ressaca
Em uma semana a polícia, o Ministério Público e o Superior Tribunal de Justiça mostraram o tamanho de embustes que estavam embutidos na onda moralista de 2018.
A polícia acusa a deputada Flordelis de ter matado o marido-pastor Anderson do Carmo. O Ministério Público acusou o Pastor Everaldo de ter avançado sobre recursos destinados a combater a pandemia e o ministro Benedito Gonçalves mandou-o para a cadeia.
O mesmo ministro afastou o ex-juiz Wilson Witzel do governo do Rio. Eleito em nome da moralidade num estado que teve cinco governadores encarcerados, Witzel dificilmente voltará ao Palácio Guanabara. Benedito Gonçalves poderia ter dado um toque de humor à sua decisão exigindo que o doutor usasse a ridícula faixa azul que mandou confeccionar no dia de sua posse.
Numa trapaça da História, no dia em que o Senado afastou a presidente Dilma Rousseff, o Pastor Everaldo batizava nas águas do Rio Jordão o deputado Jair Bolsonaro. Além do que seria a fé, Bolsonaro e Everaldo conviveram no Partido Social Cristão, presidido pelo pastor.
Biden pelado
Donald Trump passou quatro anos apanhando. No seu discurso aos republicanos, começou a atirar em Joseph Biden, e o candidato americano virará vidraça nos próximos meses.
Noves fora as trapalhadas de seu filho, a turma que lhe dava segurança quando era vice-presidente conta que o ilustre sexagenário tinha o hábito de tomar banho de piscina nu.
Os agentes do Serviço Secreto que protegem o presidente americano e seu vice adoram os republicanos, santificam Ronald Reagan, detestam Jimmy Carter e odeiam Hillary Clinton. Mesmo assim, não falam mal de Barack e Michelle Obama (codinomes “Renegado” e “Renascença”). Ela fazia questão de ser chamada pelo primeiro nome.
Wassef e a JBS
Quem conhece o valor dos honorários de advogados acha que os R$ 9,8 milhões que a JBS pagou ao advogado Frederick Wassef podem até ser razoáveis, desde que estejam vinculados ao êxito nos litígios.
Nos próximos dias o procurador-geral Augusto Aras saberá quais eram os exitosos caminhos de Wassef
Afonso Benites: Paulo Guedes tenta dar as cartas do orçamento enquanto é fritado por Bolsonaro
Críticas públicas do presidente colocam na parede seu último superministro enquanto Governo discute futuro dos programas sociais. Defesa deve capturar recursos que eram do MEC
Se não bastasse a dificuldade em se elaborar uma peça orçamentária que atenda aos interesses de grupos quase antagônicos, como os técnicos liberais do Governo e os políticos do Centrão, o ministro da Economia, Paulo Guedes, passou a ser alvo de uma escalada de críticas vindas de seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A razão da fritura pública foram suas propostas para atender a uma ordem suprema, a de extinguir o programa Bolsa Família, uma marca dos anos do PT, criando o Renda Brasil com um valor de 300 reais mensais para até 20 milhões de famílias. Um aumento de quase 58% no valor destinado para os beneficiários. Tudo isso enquanto o Governo tem que decidir, de maneira intrinsecamente relacionada, que futuro dará ao auxílio emergencial da pandemia, cuja última parcela de 600 reais a 67 milhões de brasileiros começou a ser paga nesta sexta-feira.
Guedes diz que o limite do reajuste seria de 190 reais para 247 reais. E que para isso ocorrer, seria necessário acabar com o abono salarial para quem receber até dois salários mínimos, programa que beneficia 21 milhões de trabalhadores; extinguir o programa Farmácia Popular, que atende 50 milhões de brasileiros com remédios grátis ou subsidiados; deixar de pagar o seguro defeso para 400.000 pescadores e criar um novo imposto sobre movimentações financeiras de 0,2%, similar à malfadada CPMF. Na quarta-feira, Bolsonaro disse que as discussões sobre a criação do Renda Brasil estavam suspensas. “A proposta que a equipe econômica apareceu para mim não será enviada ao Parlamento, não posso tirar de pobres para dar para paupérrimos.”
O presidente deu três dias para Guedes levar uma nova proposta. O prazo encerra-se neste fim de semana. Na segunda-feira, acaba o período para a apresentação da peça orçamentária de 2021 no Congresso Nacional. Se seguir a tradição, Guedes deverá entregar a proposta em mãos para o presidente do Legislativo, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). Ocorre que os senadores estão descontentes com o ministro, desde que ele disse que o senado tinha cometido um “crime contra o país” ao tentarem derrubar um veto presidencial que impedia reajuste salarial ao funcionalismo público no próximo ano.
O que se espera é um documento que contemple muito a Defesa e pouco outras áreas. Entre parlamentares há a expectativa de que os recursos da Defesa saltem de 73 bilhões de reais para 108 bilhões de reais. Enquanto que da Educação sofra uma redução de 103,1 bilhões de reais para 102,9 bilhões de reais.
“Há um déficit muito grande na área militar. Mas estamos em um momento de pós-pandemia, de pós-guerra. É uma discussão que temos de fazer com eles. Mas não é o momento de agradar os militares. É hora de todo mundo dar a sua contribuição”, ponderou o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA). Líder do DEM, esse parlamentar será o presidente da Comissão Mista de Orçamento que ainda será instalada para se debater as finanças de 2021.
Pelo que chegou aos parlamentares, parte dos recursos que engrossaria os cofres das Forças Armadas seria transferida da Educação para a criação de escolas cívico-militares. Algo que não é bem avaliado por especialistas do setor. “É trocar o certo pelo duvidoso. Do ponto de vista educacional, não se tem evidência da efetividade deste gasto. Não está provado que é melhor investir em escolas cívico-militar do que em escola de tempo integral ou qualquer outra iniciativa que conhecemos”, diz Felipe Poyares, assessor de relações governamentais da ONG Todos Pela Educação.
De superministro a enfraquecido
A fritura de Guedes segue um roteiro já visto anteriormente. É parecido com o que ocorreu com seu outro “superministro”, o ex-juiz Sergio Moro, que se demitiu da Justiça por uma suposta tentativa de interferência do presidente na Polícia Federal, ou com Luiz Henrique Mandetta, que foi demitido da Saúde por discordar da postura negacionista do mandatário no enfrentamento da pandemia. A sequência é mais ou menos essa. Bolsonaro primeiro dá demonstrações de apoio quase inconteste ao seu assessor. Depois passa a fazer pequenas críticas. Em dado momento, intensifica esses ataques ―Guedes está neste estágio. A próxima etapa afirma que não lhe deixam governar ou que os resultados não foram o esperado. Por fim, demite ou vê seu ministro pedir demissão.
A gestão financeira de Guedes também esteve no centro de uma disputa política que ganhou os holofotes nesta sexta-feira, quando o Ministério do Meio Ambiente, comandado por Ricardo Salles, comunicou que suspenderia todas as operações de combate às chamas nas florestas brasileiras por falta de dinheiro. A pasta alegou que o Ministério da Economia de Guedes bloqueara a verba para o enfrentamento dos incêndios. Mas o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, acusou Salles de ter se “precipitado” e negou que faltassem verbas. Horas depois, a Ministério do meio Ambiente recuou do anúncio e disse que manteria as operações.
Apesar de não haver a segurança de que Paulo Guedes deixará o Governo, Bolsonaro já começou a receber sugestões de nomes para assumir o caixa da União. Os mais cotados, em caso de queda, são o ministro do Desenvolvimento Social, Rogério Marinho, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
Marinho é um ex-deputado federal pelo PSDB do Rio Grande do Norte. Ele relatou a reforma trabalhista durante o Governo Michel Temer. Sem conseguir se reeleger nas eleições de 2018, tornou-se secretário especial da Previdência e Trabalho no Governo Bolsonaro, um dos braços do Ministério da Economia. Foi o responsável por articular a aprovação da reforma da Previdência no ano passado. Era um dos principais aliados de Guedes até o início deste ano, quando passou a defender mais investimentos públicos para incentivar a economia. Acabou sendo promovido para o Desenvolvimento Regional, que tem como principal função definir onde serão construídas novas obras de infraestrutura de saneamento básico, moradias populares e de logística.
A favor de Marinho pesa o apoio da classe política, que o enxerga como um representante do Parlamento no Governo. Contra uma eventual nomeação de Marinho estão os técnicos que entendem que ele deveria se focar mais na economia do que na política. Ele pretende concorrer ao Governo do Rio Grande do Norte em 2022.
Já Campos Neto seria o substituto ideal para acalmar o mercado financeiro. Apesar de enfraquecido por Bolsonaro, Guedes ainda tem apoio dos investidores, por entenderem que o ministro tem a intenção de incentivar as privatizações de parte das estatais e aprovar as reformas administrativa e tributária. Campos Neto é economista e trabalhou por 18 anos no banco Santander. É defensor da autonomia do Banco Central.
Marco Aurélio Nogueira: Reposicionamento e impasse
O ministério da Economia divulgou em 24 de agosto três programas básicos voltados para a área social: Renda Brasil, Carteira Verde Amarela, Minha Casa Verde Amarela. A convicção é que eles impulsionarão a retomada do crescimento, via monetização da assistência, criação de empregos e financiamento habitacional.
O governo tenta se reposicionar no mercado. Os programas já existem com outras designações e não estão claras as alterações a serem feitas, nem de onde virão os recursos para custear a nova versão. Há o teto de gastos e ainda está para ser equacionada a questão do auxílio emergencial (pago em decorrência da pandemia), que hoje beneficia 64 milhões de pessoas. Não se sabe como se chegará ao Renda Brasil, que terá caráter mais permanente. A equipe econômica fala em extinguir programas sociais e suprimir o abono salarial para obter receita e o presidente diz que não quer “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.
O impasse desgasta, em vez de fortalecer. Aprofundou-se uma rota de colisão que a rigor estava desenhada ainda na campanha de 2018, quando o ultraliberal Paulo Guedes aliou-se a Jair Bolsonaro. A convivência foi mantida enquanto não entrou no radar a disposição eleitoral do presidente, que resolveu antecipar a tentativa de reeleição em 2022. Como observou com precisão o cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, o disparo do radar mostrou que “Guedes quer entregar resultados ao mercado econômico-financeiro e Bolsonaro quer ofertar mercadorias no mercado político-eleitoral”.
Uma pacificação que deixe o barco singrar mansamente até 2022 parece pouco provável, mesmo que os bombeiros entrem em ação e apaguem as labaredas que ardem no relacionamento do presidente com seu ministro. De novo Paulo Fábio: “Se se deseja esse avanço será preciso apelar à inteligência artificial da política. Se o processo correr solto, deixado aos apetites naturais, bolsonarismo político e liberalismo econômico precisarão se separar para viverem suas vidas em liberdade. Cada qual buscando novo par no repertório já testado no campo que lhe é mais estranho”.
Bolsonaro deu um xeque em Paulo Guedes. Suspendeu a criação do Renda Brasil e exigiu que uma nova proposta fosse apresentada a toque de caixa. Chamuscado, o ministro se fingiu de morto e retrucou: “As coisas são assim mesmo: a economia é o cara que faz o papel de mau, e a política é o cara que faz o papel do bom”.
A bagunça fez a tensão crescer no Planalto.
O governo não tem de onde tirar dinheiro, mas quer usar os programas sociais para politizar a relação com a população mais dependente de assistência. De olho nas eleições de 2022, Bolsonaro cobiça o eleitorado do Norte e Nordeste, tido como estratégico. Não pode, por isso, aumentar impostos ao bel-prazer da equipe econômica. Sabe que precisa conter a sangria de votos da classe média, que já é acentuada, ao mesmo tempo em que precisa fidelizar a população mais pobre, o que tem tentado com o auxílio emergencial e os acenos para a repaginação do Bolsa Família. Em ambos os caso, o ultraliberalismo de Guedes é dissonante e não tem serventia.
A trombada do presidente com a equipe econômica deixou mais evidente a ausência de consensos e articulação.
O quadro é agravado pela inconsistência das propostas cozinhadas no Ministério da Economia, que não se apoiam num planejamento estratégico básico e reiteram uma opção fiscalista que colide com a já pesada carga tributária, hoje na casa dos 33% do PIB, além de atritar os planos eleitorais do presidente.
No cenário atual, qualquer proposta do Executivo que chegar à Câmara será modificada e não obedecerá à cartilha governamental. Como disse a deputada Tabata Amaral (PDT-SP), “não haverá adesão” a nenhum programa: “Tenho uma preocupação muito grande de que a criação de um projeto de renda básica não signifique nenhuma perda de direito para a população”. Vindas com as digitais de Paulo Guedes, as propostas encontrarão dificuldades.
Além da conhecida falta de visão social, o ministro da Economia não tem qualidade para atuar como negociador. É um criador de problemas, se não mesmo o próprio problema. Sugere fechar a Farmácia Popular, eliminar deduções do Imposto de Renda, recriar a CPMF e criar novos tributos. Fala muito, mas executa pouco.
O fator Guedes
Paulo Guedes é conhecido na praça. Não foi por acaso que chegou ao governo Bolsonaro. Seu radicalismo neoliberal compôs-se sem dificuldade com o autoritarismo do presidente. O “Posto Ipiranga” deu a Bolsonaro um programa mínimo com que caminhar para além da guerra cultural contra a democracia, os liberais e as esquerdas. Esta contribuição um dia será cobrada, pois não há indícios sólidos de que a política de Guedes fará o País crescer a taxas suficientes para a vida melhorar como um todo. A pandemia é um agravante, mas não explica o fracasso.
O programa de Guedes apoia-se numa visão tosca de mercado e livre concorrência. É hostil aos trabalhadores e a políticas sociais de proteção e distribuição de renda. Caminha de costas para os temas ambientais e não está nem aí para o desmatamento amazônico. É uma forma de autoritarismo econômico, combinado com egoísmo e darwinismo social. Não tem, por isso, dificuldade de conviver com o bolsonarismo.
Tudo isso implica um custo social elevado. Quem pagará a conta das “maldades” antissociais e da inação governamental? Paulo Guedes enviou ao Congresso uma proposta de reforma tributária sugerindo 12% de impostos para os serviços, 6% para os bancos. Igrejas, partidos e fundações — que em tese não exercem atividade econômica – ficariam isentos. Por baixo do pano, para piorar, a ideia é recriar a CPMF, agora com novo nome e voltada taxar “transações eletrônicas”, típicas da vida digital.
Pode-se admitir que as propostas do ministério da Economia carregam no remédio com o propósito de abrir negociação. Depois serão suavizadas. Faz parte do jogo, mas chama atenção a crueldade que está nela embutida. Drenar recursos dos mais pobres e poupar os mais ricos, com a desculpa de transferir recursos para os pobríssimos, via uma rebatizada Bolsa Família, é uma perspectiva perversa e pouco lógica. Os economistas do governo acenam, também, com uma perspectiva de “desoneração da folha”, que já foi vetada pelo presidente meses atrás. Ninguém sabe bem como ficará.
Guedes é desses casos perdidos na política nacional. Não é economista brilhante, fez carreira como operador financeiro e sempre manifestou desprezo pela economia do setor público. Seus olhos brilham quando se apresenta como guardião do mercado. Sua competência, porém, nunca foi verdadeiramente posta à prova. Desde que passou a integrar o governo fala muito em reforma, mas não entregou nada até agora. É um péssimo negociador, mercurial e sem estofo político.
Em busca do eleitor
O governo trata como assentado que a população mais carente está à disposição dos governantes de plantão. Esse tem sido um caminho trilhado por governos anteriores. A “ocupação” político-eleitoral feita pelo PT no Nordeste, por exemplo, não evitou o impeachment de Dilma, nem garantiu sobrevida sólida ao petismo. No caso de Bolsonaro, pode ser ainda mais complicado, levando-se em conta que ele não dispõe de estrutura partidária e se move por meios de redes, que nem sempre são acessíveis à população de menor renda.
O governo deseja disputar o eleitorado nordestino, que pode de fato estar novamente disponível depois da crise do PT. Mas não há certeza de que conseguirá isso, em parte porque o eleitorado pode não ser tão “cativo” quanto se imagina, e em parte porque os estados do Nordeste são, na maioria, governados por partidos que se opõem a Bolsonaro.
As propostas anunciadas pelo ministério da Economia repõem o conflito entre o fiscalismo de Paulo Guedes e o desenvolvimentismo, bandeira ora desfraldada por Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional, que saiu do PSDB e migrou de mala e cuia para o governo Bolsonaro. Colidem também com a movimentação eleitoral do presidente. O Estado está mal das pernas, a tentação de cortar gastos é enorme e a tesoura de Guedes é seletiva e particularmente hostil à situação da maioria da população. O bolsonarismo, e em especial o presidente, não tem um programa claro nem uma “teoria” sobre o País que deseja governar. O impasse, portanto, é gritante.
Precisamente por isso, Bolsonaro tenta se equilibrar em duas canoas, dando sinais contraditórios e sem saber qual estrada seguirá até 2022. Não é propriamente uma demonstração de força. E ele sabe disso.
E a oposição?
Em um ambiente de crise externa e de tensão interna ao governo, seria o caso de dar como certo que as oposições crescerão em protagonismo. Não é, porém, o que se tem.
O jogo não está sob controle delas. Os interesses reunidos no bloco que sustenta Bolsonaro seguem pautando a política. O extremismo ideológico do presidente parece a cada dia mais incomodado com o ultraliberalismo de Guedes, mas algum arranjo poderá acalmar a situação. Pesquisas de opinião, favoráveis ao governo, fornecem oxigênio adicional para o continuísmo. A paralisia domina as forças do centro e da esquerda, com exceção do DEM, graças ao ativismo institucional de Rodrigo Maia. O PT reitera sua permanente disposição de fazer carreira-solo e os demais partidos somente praticam o jogo miúdo. Há pouco esforço de agregação e articulação que comece a pavimentar a pista para 2022.
Não é difícil compreender que, mantidas a disputa e a dispersão no terreno do centro e da esquerda, sem a interpelação da sociedade civil e sem a incorporação dos dissidentes bolsonaristas, 2022 será uma repetição, corrigida aqui e ali, do que houve em 2018.
O diagnóstico de Paulo Fábio Dantas Neto vai ao ponto: “DEM e PT podem delimitar (não centralizar) um campo democrático de grande política. Precisam entender-se sem demora e de modo objetivo, na direção de adubar terreno para futura aliança no segundo turno de um 2022 que há um mês parecia longínquo e hoje já se impõe às agendas dos atores. Esse entendimento entre pontas pode envolver pactos de não agressão e mesmo de cooperação, sem a obsessão paralisante da frente única a qualquer preço. Mesmo que em cada um dos dois eixos o processo se afunile para uma unidade do respectivo campo – e mesmo que esse afunilamento transborde, como é desejável, para abarcar atores outsiders positivos e se conectar a uma nova sociedade civil – sem um realismo programático orientado a uma grande política ainda mais aberta, o horizonte de eventuais candidaturas relevantes tende a ser a disputa para chegar ao segundo turno e ter a primazia de perder por último”.
Esse é o nervo da questão política atual. E é para ele que precisam convergir as atenções e energias dos democratas.
*Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista-UNESP.
Julianna Sofia: Por que não cobrar dos riquíssimos para dar aos paupérrimos?
O 1% mais rico do país tem 30% da renda; os 5% mais pobres ganham R$ 165 por mês
O ministro Paulo Guedes encontra-se numa encruzilhada na busca por recursos para o Renda Brasil, peça de propaganda capaz de pavimentar o caminho para reeleição de Jair Bolsonaro. A situação falimentar das contas públicas e as travas fiscais vigentes, a incompetência do governo em endereçar reformas estruturais, além do voluntarismo do ocupante do Planalto, fizeram da tarefa bufonaria autêntica.
Propostas a esmo para bancar o programa social de Bolsonaro. Guedes já tentou vincular o gasto à criação da nova CPMF —o imposto digital que não tributa só transações digitais. E alertou que um benefício de R$ 300 ao Renda Brasil exigiria o fim das deduções do Imposto de Renda. Planejou ainda cortar o abono salarial, o Farmácia Popular e o seguro defeso para abrir espaço no teto de gastos e, assim, turbinar com R$ 20 bilhões o novo Bolsa Família.
A um só tempo, atirou na classe média —sempre a pagar o pato— e na população de baixa renda. Levou uma pisa de Bolsonaro ("Não posso tirar de pobres para dar para paupérrimos").
Há mérito na discussão sobre a qualidade do gasto público, reavaliando a eficiência de programas sociais e benefícios fiscais. Mas é imprescindível incluir os super-ricos no encontro de contas.
Só na pandemia, mais de 70 bilionários da América Latina e do Caribe aumentaram suas fortunas em US$ 48 bilhões, segundo a Oxfam. A maioria dessa turma está no Brasil. Em 2019, o 1% mais rico do país ganhou R$ 29 mil mensais. O grupo concentra quase 30% da renda total. Os 5% mais pobres receberam R$ 165 por mês.
Tributar lucros e dividendos e tornar mais progressiva a taxação de altos salários são formas de financiar um programa para miseráveis. Ademais, faz-se urgente o empenho do governo para tirar da gaveta a reforma administrativa e dirimir distorções de renda que se perpetuam em polpudos contracheques.
Por que não cobrar dos riquíssimos para dar aos paupérrimos?
Reinaldo Azevedo: Guedes e Bolsonaro são reacionários desiguais e combinados
No idílio passadista do presidente, filho de pobre trabalha e o do rico estuda
Paulo Guedes salta na frigideira porque seu modo de ser reacionário não combina com o de seu chefe, Jair Bolsonaro. O tal "Big Bang" do ministro da Economia —o dito "plano econômico-social"— promove uma redistribuição da pobreza entre os pobres. Seu chefe achou a coisa explícita demais, com potencial eleitoral danoso.
No universo recriado por Guedes, o Brasil continuará a ser o país em que, segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, os 10% mais ricos ficam com 55% da renda. O problema não está aí. Ocorre que o 1% dos ricos de verdade —coisa de 1,4 milhão de adultos— ficam com mais da metade: 28,3%.
Não fiz a conta. Talvez seja o caso de saber quanto detêm do tal bolo aqueles que formam o 0,1%, a "crème de la crème" da concentração de renda. Os liberais de fancaria que andam por aí a vomitar obscenidades logo vociferam: "Ninguém é pobre porque o outro é rico. É preciso esforço!".
Fruto da indolência, quem sabe?, os 50% mais pobres têm de se contentar com 13,9% do conjunto de todos os rendimentos. A seu modo, Guedes até quer fazer alguma correção. Pretende acabar com a dedução no Imposto de Renda dos gastos com saúde e educação. Topa mexer naqueles 10% que concentram 55% da renda, mas nunca no 1% que abocanha 28,3%. Quanto ao 0,1%, bem…
O ministro é um reacionário antipopulista. E é aí que seu modo de fazer o Brasil andar para trás se choca com o do chefe. O "Mito" descobriu o potencial eleitoral do assistencialismo agressivo e precisa do voto de milhões. Ao comandante da Economia, basta o apoio da Faria Lima, com a concordância, é certo!, do presidente.
A questão, por enquanto sem resposta, é como "tirar dos pobres para dar aos paupérrimos" sem que os primeiros reajam nas urnas. Será Bolsonaro, no confronto com Guedes, um pouco mais, digamos, "progressista"? Respondo com um fato. Na terça (25), ao falar na abertura do congresso nacional da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), o presidente lembrou que começou a trabalhar aos dez anos, num boteco, por decisão de seu pai, e fez a defesa aberta do trabalho infantil.
Com gramática sempre peculiar, mandou brasa: "Meu primeiro emprego, sem carteira assinada obviamente, eu tinha dez anos de idade. Foi no bar do seu Ricardo, em Sete Barras, no Vale do Ribeira. (…) E bons tempos, né?, onde (sic) menor podia trabalhar. Hoje ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar um paralelepípedo de crack, sem problema nenhum". Aplausos.
Antes ainda da posse, em dezembro de 2018, Guedes afirmou que os 30 anos de ineficiência da social-democracia seriam interrompidos por ao menos quatro anos de liberalismo associado ao conservadorismo. É mesmo?
Numa democracia, conservadores aceitam o progresso social e buscam conservar o molde institucional. Já os reacionários pretendem fazer o país marchar para trás, conservando não instituições, mas iniquidades —e, se possível, ressuscitando fantasmas. A depender do caso, podem ser disruptivos, golpistas.
No idílio passadista bolsonariano, filho de pobre trabalha e o do rico estuda, reproduzindo, assim, um e outro, o ciclo de desigualdade. Nessa perspectiva, dispensa-se um Estado que possa já nem se diga corrigir as injustiças, mas, ao menos, capacitar um pouco mais a criança pobre para uma disputa de… desiguais.
Ainda que aos trancos e barrancos e, às vezes, recuos, o mundo caminha tendo como norte a justiça social. Logo, toda ação reacionária será sempre contra os desvalidos, os que podem menos, os injustiçados. Existe, sim, o bom conservador. Mas inexiste o reacionário virtuoso.
Bolsonaro cobra de Guedes que coloque uns tostões a mais no bolso dos pobres para que as urnas sustentem seu propósito de resgatar aquele passado idílico, em que filho de pobre trabalha feliz para honrar a sujeição histórica de seu pai. Vivemos o momento glorioso de uma tensão entre reacionarismos distintos e combinados.