Paulo Guedes
Elio Gaspari: Bolsonaro criou uma crise do nada
Houve presidentes que amansavam a onça da crise; Jair Bolsonaro e Paulo Guedes inovaram: eles criam a crise do nada
Houve presidentes que amansavam a onça da crise. Ela entrava rosnando no Planalto e saía miando. Foi assim com Michel Temer (salvo quando ele conversava com Joesley Batista no Jaburu) e com Fernando Henrique. Com Dilma Rousseff, ela entrava miando e saia rosnando. Jair Bolsonaro e Paulo Guedes inovaram: eles criam a crise do nada.
No domingo passado, o secretário especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, deu uma entrevista ao repórter Alexandro Martello propondo uma girafa: congelar por dois anos os benefícios da Previdência Social.
Ela foi para a rede no fim da tarde. Sabe-se lá o que estavam fazendo os doutores, mas ninguém se lembrou de jogar água fria no assunto. Era uma ideia ruim, nada mais que isso. Era também mais um balão de ensaio da ekipekonômika. Tratando-se de matéria que exigiria emenda constitucional, suas chances eram nulas.
Passou a segunda-feira, e nada. Alguém, inclusive o doutor Waldery, poderia ter colocado os pingos nos is. Na terça de manhã, com a fúria de Zeus, Bolsonaro foi para as redes sociais com um vídeo e matou a proposta, mandou ao arquivo qualquer conversa sobre o programa Renda Brasil e ameaçou botar na rua quem lhe trouxer o assunto. Sendo presidente da República, poderia ter usado o aparelho do governo para cuidar do assunto.
Sendo um animador de vídeos, poderia ter argumentado com mais simplicidade e elegância. Preferiu se apresentar como defensor dos pobres e dos paupérrimos, impondo mais uma humilhação ao çuperministro Paulo Guedes e colocando a prêmio a cabeça do doutor Waldery. Logo ele, cujo governo tentou, e continua tentando, tungar o Benefício de Prestação Continuada dos miseráveis e quis taxar o seguro dos desempregados.
Bastariam dois telefonemas e uma frase para que o governo derrubasse a girafa do doutor Waldery, que além de ser apenas um plano, era inexequível. Sobrou para o burocrata a quem Guedes deu poderes excepcionais, pois sua secretaria é aquilo que outrora foi o Ministério da Fazenda. (Isso foi parte do projeto de concentração teórica de poderes do çuperministro. Na prática, está dando no que se vê.)
Waldery Rodrigues é um burocrata eficiente que na cadeira se tornou também onisciente. Olhando para a macroeconomia, achou boa ideia avançar no orçamento dos segurados do INSS. Olhando para a microeconomia da geladeira do doutor Rodrigues, ele foi outro. Como servidor qualificado do Senado Federal, ganhava R$ 35 mil mensais. Aceitou uma secretaria especial que rendia apenas R$ 10,3 mil. Os costumes de Brasília permitiram que fosse para os conselhos do Banco do Brasil e do BNDES e, tchan, passou a receber mais R$ 14 mil. (Como ele, outros 333 servidores civis e 12 militares estão agraciados pela velha prebenda dos conselhos.)
Bolsonaro disse que não quer mais ouvir falar em Renda Brasil e passou a iniciativa para o Congresso. Ganha uma visita a uma fábrica de cloroquina quem apostar que daí sairá a próxima crise.
O Guedes de Machado
Miguel (“Migalhas”) Matos, estudioso da obra de Machado de Assis, achou um Guedes no mundo do Bruxo. Ele apareceu numa crônica de julho de 1885.
Machado contou que “há trinta anos, ou quase, que o Guedes espreita um trimestre de popularidade, um bimestre, um mestre que fosse, para falar a própria linguagem dele. Ultimamente, lá se contentava com uma semana, um dia, e até uma hora, uma só hora de popularidade, de andar falado por salas e esquinas.”
“Se realmente quer popularidade, abra mão de planos complicados.”
Machado apontava um caminho para que Guedes conseguisse a popularidade:
“A gente não tem remédio senão recorrer à única cultura em que não há concorrência de boa vontade, que é plantar batatas.”
Matos trabalha num livro sobre as relações de Machado de Assis com o Direito. Lateralmente, cuidará da paternidade do Bentinho do conto “Dom Casmurro”. Segundo uma fofoca secular, Machado de Assis seria o pai de Mário, filho de Georgiana Cochrane, mulher do romancista José de Alencar.
Problema fabricado
A humilhação a que o INSS vem submetendo centenas de milhares de pessoas que precisam de perícias médicas para receber os benefícios a que têm direito era pedra cantada.
No ano passado os çábios transferiram os médicos do quadro de funcionários do INSS para um órgão exclusivo, chamado Perícia Médica Federal. Com a mudança, os servidores foram dispensados do registro eletrônico de presença.
Em março, quando a pandemia chegou ao Brasil, o INSS anunciou “novas medidas em função da pandemia do coronavírus no Brasil.”
As coisas ficariam assim:
“A partir de agora, o INSS, em conjunto com a Perícia Médica Federal, dispensará o segurado da necessidade de comparecer em uma agência para a perícia médica presencial. Dessa forma, os segurados que fizerem requerimentos de auxílio-doença e Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoa com deficiência devem enviar o atestado médico pelo Meu INSS, aplicativo ou internet. A medida tem por objetivo assegurar a saúde dos cidadãos, em especial a dos idosos.”
Contem outra, doutores.
O ativismo de Bolsonaro
Nos últimos dias de sua campanha pela Presidência, Jair Bolsonaro fez a mais apocalíptica de suas promessas: “Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil.”
Estimulou duas novas formas de ativismo. De um lado deu espaço aos agrotrogloditas com seus incêndios. Em agosto do ano passado, eles criaram o Dia do Fogo, com 478 queimadas. De cada dez incendiários, menos de seis foram autuados.
A esse ativismo correspondeu outro, contrário. Os três maiores bancos brasileiros se afastaram dos desmatadores. Um documento assinado por 230 empresas e organizações ambientais pediram-lhe que controle os agrotrogloditas. Entre as empresas estão a Klabin, a Maggi e a Unilever. Além disso, os governos de Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Dinamarca, Holanda, Noruega, Reino Unido e Bélgica mandaram uma carta ao governo dizendo que a piromania atrapalha até mesmo os negócios.
Não chore, Rio
No Rio de cinco governadores levados ao cárcere, outro afastado e substituído por um vice filmado ao chegar com uma mochila para um encontro com um larápio confesso, o prefeito Marcelo Crivella é protegido por milicianos e se ligou perigosamente a uma quadrilha que garfava o carnaval.
Se tudo isso fosse pouco, vem aí a eleição para prefeito. Um dos candidatos é Eduardo Paes, que esteve na cadeira de 2009 a 2016. Ele seria o novo. Na sua equipe brilhava o marqueteiro Marcello Faulhaber.
O Ministério Público descobriu que, entre junho de 2017 e agosto de 2018, o doutor trocou 11,2 mil mensagens com Rafael Alves, poderoso operador de Crivella no mundo do samba. Nas suas palavras:
“Quem manda sou eu e ponto. A caneta é minha, não é de A ou B, e sim só minha”.
Adriana Fernandes: Cansaço
O Renda Brasil não sai sem medidas duras que terão de ser aprovadas pelo Congresso
O Renda Brasil se transformou no estranho caso do programa que nem mesmo nasceu, morreu e ressuscitou no dia seguinte. O disse me disse desta semana em torno do Renda Brasil do presidente Bolsonaro revelou a dificuldade que é colocar de pé um programa social com mais dinheiro e beneficiários, sem uma afinação entre as área econômicas e social, o Palácio do Planalto, líderes partidários e os parlamentares.
O cansaço do debate está visível, como reclamou a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Simone Tebet. As semanas começam e terminam no mesmo ponto. Não há avanço concreto. Em alguns casos, retrocesso. E já estamos no final de setembro com o fim do auxílio emergencial chegando junto com o aumento da fome.
É um erro achar que agora, com o apoio do Centrão, tudo poderá ser aprovado. O Centrão vai até aonde a corda estica. O imbróglio em torno da desindexação dos benefícios previdenciários, medida já tentada no passado e sempre abortada, mostrou o deslocamento entre o desejo antigo da equipe econômica e a realidade.
Do jeito que está hoje o arranjo da política fiscal e o teto de gastos, o programa não sai sem medidas duras que terão que ser apresentadas pelo Congresso e aprovadas.
Bolsonaro quer que os parlamentares aprovem o novo programa sem patrocinar nenhuma delas: nem para tirar dos “pobres para os paupérrimos” e nem para tirar dos “ricos e privilegiados para os pobres e paupérrimos”. Não tem jogo, embora a segunda opção esteja sendo cobrada pela sociedade e a maioria dos políticos continue cega para essa demanda.
Tem muito negociador político que parece não entender esse ponto ou está de má-fé empurrando com a barriga a confusão para ver quem cai primeiro.
A sucessão no início de 2021 do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM RJ), que abraçou a pauta econômica de Guedes e do mercado, deve ser o ponto final da inflexão de política econômica que começou com a pandemia. Quando fevereiro chegar lá, veremos o time mudar de campo de vez. Essa é o cálculo político de quem está embaralhando as cartas. Se nada mudar, provavelmente ficaremos nesse rame-rame até lá.
Ganha força agora a ideia de aprovar o Renda Brasil no Orçamento com despesas condicionantes. A estratégia já foi usada na “regra de ouro” (que impede o governo de fazer dívida para pagar despesas correntes).
Funciona assim: a fonte de financiamento fica carimbada no Orçamento com a condicionante de aprovação de uma determinada medida. O gasto só pode ser feito se a medida de corte de despesa for aprovada. Ou seja, o Renda Brasil aumenta além dos recursos destinados ao Bolsa Família em 2021 – R$ 35 bilhões – se as medidas forem votadas.
Se for esse o caminho para arrumar mais dinheiro para a para a área social e os investimentos necessários à retomada, o Congresso deveria aproveitar o impasse fiscal em torno da criação do programa social para aprovar o projeto de revisão periódica de gastos. Resolveria de cara um problema recorrente: planejamento.
É bom esclarecer que revisão de gastos não é o mesmo que avaliação da eficiência dos programas governamentais.
A revisão (spending reviews, em inglês) tem como produto a obrigatoriedade de cortar os gastos, explica o economista do Senado Leonardo Ribeiro, que estuda o tema há quatro anos. Ribeiro ressalta que essa prática institucionalizada como regra passou a ser adotada por vários países depois da crise financeira internacional de 2008.
Antes da crise, alguns países da Europa, como Dinamarca, Finlândia, Reino Unido, e a Austrália, já usavam esse modelo. Mas foi depois do terremoto financeiro que a maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) passou a adotar a revisão. Historicamente, o Brasil tem dificuldade em cortar despesas e renúncias fiscais. Um ponto de partida importante foi essa semana inclusão da necessidade de uma revisão periódica de gastos no relatório da Comissão Mista do Congresso da covid-19. Pode ser um começo. Ou recomeço.
El País: Por Trump, Bolsonaro ignorou aposta de Paulo Guedes para presidência do BID
Documentos mostram que Economia chegou a defender nome brasileiro para o banco em cartas a países caribenhos. Secretário de Estado Mike Pompeo visita o Brasil nesta sexta
Para manter seu alinhamento automático ao Governo Donald Trump, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro ignorou a aposta feita pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para o comando do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a instituição multilateral de crédito mais influente do continente. Ao contrário do que o Governo Bolsonaro vem afirmando, o Brasil teve, sim, um candidato ao posto, o economista Rodrigo Xavier, indicado por Guedes. O nome de Xavier chegou a ser sugerido a países caribenhos em documentos oficiais enviados pela pasta da Economia, mostram papéis obtidos pelo partido oposicionista PSOL aos quais a reportagem teve acesso. Na reta final da campanha pelo BID, Bolsonaro acabou decidindo ouvir os conselhos do chanceler Ernesto Araújo e concordou com a indicação do norte-americano Maurício Claver-Carone, que ganharia o posto em 12 de setembro.
A eleição do candidato de Donald Trump para o órgão quebrou um pacto firmado desde a criação do BID, há 61 anos, de que os Estados Unidos não indicariam o presidente da entidade como uma maneira de prestigiar os parceiros latino-americanos. Agora, quando seria justamente a vez de o Brasil nomear o chefe da instituição, o Itamaraty resolveu seguir a Casa Branca, em mais uma demonstração da guinada histórica pró-EUA da diplomacia brasileira que, na opinião de especialistas em política externa, neste momento tem rendido frutos mais à campanha de reeleição de Trump do que aos interesses de Brasília.
A falta de sintonia entre Guedes e Araújo ficou clara em dois documentos oficiais que os ministérios da Economia e das Relações Exteriores enviaram à Câmara dos Deputados como resposta a requerimentos de informação formulados pela bancada do PSOL. As duas pastas foram questionadas sobre a razões de o Brasil ter apoiado o nome do americano Claver-Carone para a presidência do BID ao invés de insistir na candidatura de Xavier, que havia sido sugerido pelo ministro da Economia em maio.
Nas repostas enviadas ao Legislativo, os ministérios afirmam que o nome de Xavier não chegou a ser formalizado. Mas a Economia se contradisse e apresentou cópias de cartas que foram enviadas a ministros de cinco países caribenhos nas quais apresentam o nome do candidato de Guedes e pede o apoio a ele. Já o Itamaraty se baseou nas exceções previstas na lei de acesso à informação para classificar como reservadas as informações que constavam em dez comunicações feitas com representantes de governos estrangeiros. Quando esse tipo de sigilo é decretado sobre um documento público, o teor oficial dele só é possível ser descoberto após um período de cinco anos. Ao menos dois desses sigilos foram decretados após o questionamento oficial da bancada do PSOL, o que gerou desconfiança até entre membros de três representações diplomáticas ouvidos pela reportagem. O partido opositor a Bolsonaro fez uma representação no Ministério Público Federal contra Araújo por conta disso.
“Não é comum ter segredo em comunicações tão simples”, disse um dos diplomatas latino americanos ouvidos pelo EL PAÍS. Outro afirmou que, desde o início, os movimentos de Araújo pareciam ir em direção oposta ao de Guedes. “Enquanto representantes da Economia diziam para votarmos no Xavier, no Itamaraty o sinal era para esperarmos uma orientação americana”. Guedes só suspendeu a campanha por seu indicado no dia 15 de junho, depois de conversar por telefone com representantes do Governo americano. No dia 16, os Estados Unidos anunciaram a indicação de Claver-Carone, que acabou eleito com os votos de 30 dos 48 países que integram o BID. A Argentina de Alberto Fernández puxou a campanha pela abstenção.
Com sede em Washington, nos Estados Unidos, o BID tem como principal papel financiar de forma multilateral ações públicas e privadas que tenham como objetivo reduzir da pobreza e os problemas sociais na América Latina e no Caribe. Por isso, a importância de ter alguém da região no comando, e não um representante de outros sócios do banco, como EUA, Japão, Reino Unido, Alemanha ou China. Só no ano passado, o banco aprovou 11,3 bilhões de dólares em 106 operações. Entre seus clientes, estão órgãos públicos e privados. Seu atual presidente, cujo mandato se encerra neste ano é o colombiano Luís Alberto Moreno. Ele está no cargo desde 2005.
O alinhamento automático com a Casa Branca
O desfecho do BID se une a outras questões onde, desde que Bolsonaro assumiu a presidência, o Palácio do Planalto tem se alinhado automaticamente às pautas internacionais do Governo Trump. O elo se intensificou no último mês, exatamente no momento em que Trump passou a aumentar seus eventos de campanha e a sua mobilização para tentar se reeleger. No período, o Brasil, além de atender aos interesses norte-americanos ao abrir mão de uma candidatura própria para a presidência do BID para apoiar o nome apoiado por Trump, contrariou os interesses de produtores brasileiros aceitando ampliar por mais três meses o prazo de importação de etanol americano com tarifas mais baratas e não se opôs ao anúncio de Washington de que cortaria 80% da importação do aço brasileiro. No comunicado em que citou esse último o Governo americano ainda agradeceu ao “diálogo produtivo” estabelecido com o chanceler Ernesto Araújo.
Antes, o Brasil já havia concordado em liberar da entrada de americanos em território brasileiro sem a necessidade de vistos ―ainda que não houvesse uma reciprocidade americana― e concordou em se retirar do pacto global de migrações. “Todos os movimentos feitos pelo Governo Trump têm de levar em conta a sua campanha à reeleição. Não é diferente em sua relação com o Brasil”, alerta a diretora de programas da ONG Conectas, Camila Asano. Nos três casos mais recentes, Bolsonaro foi orientado por Guedes a seguir caminho distinto do que tomou. Mas o ignorou solenemente.
Premiação simbólica
Nesta sexta-feira, como uma espécie de reconhecimento aos trabalhos de Araújo, o ministro se reunirá com o Secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, em Boa Vista (RR). É a segunda visita de Pompeo ao Brasil. Ele esteve em Brasília na posse presidencial em janeiro do ano passado. No encontro de agora, o secretário fará uma espécie de ato político contra o regime do venezuelano de Nicolás Maduro. Ele ainda passará por cidades da Colômbia, Suriname e Guiana, países que também se opõe ao governante da Venezuela. O pano de fundo é o apoio da comunidade latina dos Estados Unidos no pleito de 3 de novembro. Em sua conta no Twitter, o secretário afirmou que a visita seria para celebrar a democracia e a “liberdade” no hemisfério ocidental.
Em Roraima, Pompeo visitará ao lado de Araújo os centros de atendimento humanitário de venezuelano da operação Acolhida. O curioso, neste caso, é que desde março o Brasil não recebe novos migrantes venezuelanos por causa da pandemia de covid-19. Há a expectativa de que os dois chanceleres ainda discutam o leilão da internet 5G e as concessões do etanol que o Brasil tem feito aos EUA. “Estamos diante de uma política externa contraproducente. Ela rompe tradições e não traz nenhum ganho, nem econômico, nem de soft power”, diz Camila Asano.
Para outros analistas, o Brasil corre o risco de se isolar, caso o republicano Trump perca a eleição para o democrata Joe Biden. “Se a política brasileira dos últimos dois anos nos ensinou alguma coisa é que nunca podemos subestimar o presidente da República", escreveu o colunista do EL PAÍS e professor de relações internacionais, Oliver Stuenkel. O professor diz que seria uma excelente notícia se Bolsonaro conseguisse adotar uma postura pragmática caso o democrata fosse eleito. "Porém, diante do histórico da política externa bolsonarista até agora, é preciso se preparar para uma crise na relação com os EUA ― e o crescente isolamento do Brasil no Ocidente.”
Maria Cristina Fernandes: O discurso de Guedes aos intocáveis do Executivo
Ao dizer que os salários da alta administração são baixos, o ministro da Economia dá discurso a categorias aquinhoadas que aprofundam a desigualdade no serviço público
“Os salários da alta administração são baixos. Vejo aqui o ministro Bruno Dantas, que em qualquer banco pode ganhar US$ 4 milhões por ano. Vai ser difícil convencê-lo a ficar no TCU [Tribunal de Contas da União]. Ele vai receber muitas propostas. Já levaram o [Nelson] Jobim [ex-ministro do STF, hoje diretor do BTG Pactual]. Vão levar todo mundo…. Estou vendo aqui Ana Carla Abrão, que tentei manter mas foi abduzida pelo Santander. Tá ganhando cinco vezes mais do que ganharia aqui, certo?”.
Errado. Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman, corrigiu educadamente o ministro da Economia. Paulo Guedes entrou e saiu tão de supetão numa “live” promovida na semana passada pelo Instituto de Direito Público (IDP), do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que confundiu Ana Carla com Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro e hoje economista-chefe do Santander.
O ministro da Economia, que não ouviu a preleção de nenhum dos outros participantes da “live”, nem ficou para o debate depois que acabou de falar, chegou mesmo a dizer que o funcionalismo tinha uma distribuição salarial “quase socialista”. Nos últimos meses, o ministro perdeu vários colaboradores, como o ex-secretário do Tesouro Mansueto de Almeida, hoje economista-chefe do BTG, e o ex-diretor da Secretaria Especial do Ministério da Economia Caio Megale, hoje economista-chefe da XP. A mágoa parece ter enviesado sua visão sobre o tema.
Mal Guedes desapareceu da tela, Ana Carla, uma das economistas de mais longeva militância pela reforma administrativa no país, tomou a palavra e analisou os males da desigualdade no serviço público que o ministro demostrara ali firme disposição em aumentar.
Ana Carla citou pesquisa do economista Ricardo Paes de Barros que, baseado em dados de salários públicos e privados entre 2001 e 2015, concluiu que o coeficiente de Gini (índice de concentração de renda) do setor privado havia caído 0,44 para 0,37. No mesmo período, o Gini do setor público permanecera quase estagnado, passando de 0,48 para 0,46.
O descasamento entre a desigualdade do setor privado e a do setor público aconteceu, principalmente, ao longo dos governos petistas, quando houve a recomposição salarial de carreiras, inclusive na elite do funcionalismo, como a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Receita Federal. Esse divórcio, que começou na administração Lula, foi preservado na gestão Temer e encontrou porto mais do que seguro sob Jair Bolsonaro.
O governo que acaba de enviar uma proposta de reforma administrativa com a qual pretende cortar R$ 300 bilhões da máquina pública em dez anos é o mesmo que mandou para o Congresso a regulamentação do bônus de produtividade da Receita e resistiu a limitar o da AGU e da PGFN ao teto constitucional.
Aprovado pelo Congresso no limbo entre os ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer, o bônus da Receita foi abraçado pelo ministro Paulo Guedes a despeito de contestações por todos os lados. O bônus já foi contestado pelo Tribunal de Contas da União tanto pela inexistência de previsão orçamentária quanto pela extensão a aposentados, condição em que, por óbvio, o funcionário deixa de ser produtivo para a instituição.
O acórdão do TCU não impediu o governo de enviar para o Congresso uma medida provisória (899) em que embutiu a regulamentação do bônus. A MP foi aprovada pela Câmara e, no Senado, ficou sem o jabuti sob a justificativa de que o bônus poderia levar a um acréscimo de até 80% nos vencimentos de mais de 15 mil funcionários. Salários de R$ 30 mil poderiam vir a ser acrescidos de mais R$ 21 mil, o que estoura o teto constitucional de R$ 39 mil
Enquanto não é regulamentado, os funcionários da Receita continuam a receber “apenas” R$ 3 mil de acréscimo. Desde que começou a ser pago, em 2018, o bônus tem levado a questionamentos sobre a procedência das autuações da Receita, uma vez que, quanto maior o valor cobrado, maior seria a vantagem auferida pelo auditor.
Com o discurso da meritocracia com o qual defende a reforma administrativa, Paulo Guedes pretende aliar o bônus por eficiência da Receita à sua visão de Estado. Sugere convergência ao que é, sobretudo, uma concessão a servidores cujas greves, como a de 2018, paralisou a arrecadação e implantou o caos nas aduanas.
O mesmo se aplica aos honorários de sucumbência que, previstos desde a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 2016, acrescentaram, por mês, a mais de 12 mil advogados da União e procuradores da Fazenda, uma média de R$ 6 mil a salários que chegam a R$ 27 mil.
Os honorários reproduzem, para o serviço público, a lógica inerente à advocacia privada, que cobra percentuais sobre causas ganhas. O benefício é de mão única. Não se aplica, com supressão de vencimentos, quando a União perde a causa e é obrigada a pagar à parte que a acionou na Justiça.
No ano passado, uma emenda do Novo à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) fez com que os honorários advocatícios se somassem aos vencimentos dos funcionários para efeito de aplicação do teto constitucional. O presidente Jair Bolsonaro resistiu, mas o Congresso driblou a indisposição do governo e o dispositivo limitante passou a valer a partir de janeiro. Como a LDO só tem validade de um ano, porém, a limitação acaba em dezembro.
Os penduricalhos dessas categorias foram instituídos numa época de baixo desemprego e forte valorização das carreiras públicas nos governos petistas, quando muitos servidores deixaram seus cargos atraídos por uma vaga no Ministério Público ou no Judiciário. A paralisação dos concursos públicos, o congelamento de salários e, principalmente, a crise no mercado de trabalho fez sumir as circunstâncias que, um dia, serviram de justicativa para os penduricalhos.
A proposta do governo os contorna, bem como deixa de lado os vencimentos de carreiras sobre as quais o Executivo pode legislar mas não o faz, como o Ministério Público - graças, em grande parte, ao crédito que o Procurador-Geral da República tem hoje no Palácio do Planalto - e a magistratura.
O argumento de que o Executivo não pode se debruçar sobre essas carreiras não se sustenta. O governo não teve o mesmo “pudor”, diz o consultor legislativo e professor da FGV, Luiz Alberto dos Santos, quando enviou a reforma da Previdência que alterou direitos previdenciários de servidores e magistrados, embora tenha preservado - e ampliado - as prerrogativas dos militares.
Foi por pressão de procuradores e magistrados que o Congresso congelou a proposta que tramita desde 2016 e regulamenta a submissão de todos os servidores públicos do país, de todos os Poderes e entes da Federação, ao teto constitucional dos vencimentos dos ministros do Supremo.
Já há, no entanto, gestões, no entorno do presidente, para que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, coloque em pauta o projeto que acaba com os penduricalhos gerais da nação. A iniciativa tende a indispor o governo e o Congresso com corporações poderosas. No Judiciário, por exemplo, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Luiz Fux, um dos dois únicos ministros da Corte que percorreu toda a carreira da magistratura (a outra é a ministra Rosa Weber), foi um baluarte na defesa do auxílio-moradia.
A magistratura, de acordo com Ana Carla Abrão, já rompeu o limite de gastos estabelecidos pelo Orçamento para o Judiciário e, apesar de ter salários médios que ultrapassam o dos ministros do Supremo, não sinaliza disposição de abrir mão de seus benefícios extra-teto.
Nem mesmo os ministros sem vínculos com a corporação, como Dias Toffoli, são capazes de impor uma agenda de enxugamento. No apagar das luzes de sua gestão no colegiado, Toffoli presidiu a sessão que aprovou um benefício equivalente a um terço dos vencimentos dos juízes para aqueles que forem responsáveis por mais de uma comarca. De acordo com o CNJ, a remuneração média dos magistrados brasileiros é de R$ 50 mil, 28% a mais do que o teto constitucional.
Relatora da comissão por onde tramitou a proposta que poda os benefícios extra-teto, a senadora Katia Abreu (MDB-TO) atribui a criação de penduricalhos à fixação de um salário alto para o ingresso em algumas carreiras públicas. A rápida progressão faria com que os funcionários atinjam o topo da remuneração com muitos anos de serviço pela frente, estimulando a busca por indenizações extraordinárias..
Se a desigualdade no serviço público é ainda maior do que aquela do setor privado, os penduricalhos puxam ainda mais o desequilíbrio na Federação. Nas contas de Katia Abreu, dos 11,4 milhões de servidores públicos do país, 57% (6,5 milhões) estão nos municípios, 32% (3,6 milhões) estão nos Estados e 11% (1,1 milhão) estão na União.
Esses servidores consomem R$ 928 bilhões em recursos, sendo que cada instância da Federação abocanha, grosso modo, um terço desse valor. Nas contas da senadora, os servidores municipais têm salários equivalentes aos da iniciativa privada. Os estaduais ganham de 35% a 40% a mais e aqueles da União têm vencimentos 98% superiores aos daquelas funções exercidas no mercado privado.
Todos, a princípio, concordam com a submissão ao teto constitucional, mas unicamente para consumo externo. Se presidente, equipe econômica e Congresso estivessem, de fato, empenhados em "não tirar dos mais pobres para dar para os paupérrimos" já teriam encarado a trama dos privilégios e prerrogativas das carreiras mais aquinhoadas da República.
Ribamar Oliveira: Bolsonaro disse não a Guedes duas vezes
Resta a questão de saber por que o ministro voltou a insistir na proposta dos 3 Ds, mesmo depois de ela ter sido vetada pelo presidente
A decisão do presidente Jair Bolsonaro de não aceitar a proposta de deixar sem correção os benefícios previdenciários e assistenciais, manifestada de forma agressiva em rede social na terça-feira, terá consequências importantes na política fiscal do governo. Bolsonaro rejeitou, pela segunda vez em menos de um ano, a proposta dos 3 Ds do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, que deseja fazer a desindexação das despesas orçamentárias, a desvinculação das receitas e desobrigar o governo a realizar gasto.
Em novembro de 2019, o governo encaminhou ao Congresso Nacional o que chamou de Plano Mais Brasil, constituído de duas PECs que tratam de novas regras fiscais. Guedes tentou incluir nelas a desindexação do salário mínimo e dos benefícios previdenciários e assistenciais. O piso salarial e os benefícios não teriam correção por dois anos, o que abriria espaço no teto de gastos da União para mais investimentos públicos.
Bolsonaro foi contra a medida, como o próprio ministro da Economia revelou na época. Por isso, os textos da PEC Emergencial (186/2019) e da PEC do Pacto Federativo (188/2019) estabelecem, explicitamente, que será preservado o poder aquisitivo do salário mínimo.
Agora, o ministro e sua equipe voltaram a insistir na tese dos 3 Ds, negociando diretamente com o relator da PEC 188, senador Márcio Bittar (MDB-AC), para incluir na proposta a desindexação dos benefícios previdenciários, pelo mesmo prazo de dois anos, que tinha sido apresentada ao presidente Bolsonaro em novembro do ano passado e rejeitada.
A diferença é que, na nova versão dos 3 Ds, a desindexação dos benefícios previdenciários foi apresentada como uma maneira de garantir espaço no teto de gastos para o novo programa social do governo Bolsonaro, chamado de Renda Brasil - uma espécie de Bolsa Família turbinado.
É impressionante que uma autoridade do Ministério da Economia tenha proposto a criação de uma nova despesa obrigatória de caráter continuado (o Renda Brasil) mesmo com o governo tendo que reduzir, todo ano, os investimentos públicos para manter o teto de gastos em pé, pois as despesas obrigatórias não param de aumentar.
Originalmente, o objetivo dos 3 Ds era abrir espaço no Orçamento da União para ampliar os investimentos e sustentar o teto de gastos por mais alguns anos. Fazer a desindexação dos benefícios previdenciários para criar nova despesa obrigatória é uma contradição em si.
Resta a questão de saber por que o ministro Paulo Guedes voltou a insistir na proposta dos 3 Ds, mesmo depois de ela ter sido vetada pelo presidente Bolsonaro no ano passado. A explicação mais plausível é que o ministro da Economia não vê ganhos de espaço no teto de gastos apenas com as medidas de ajuste fiscal que estão definidas na PEC 188. Elas recaem, basicamente, sobre os servidores públicos.
Se as despesas obrigatórias ultrapassarem 95% do total das despesas primárias do ano (não incluem o pagamento de juros e as amortizações da dívida), nenhum dos poderes da República poderá conceder aumento de salário, reajuste ou qualquer tipo de vantagem aos servidores, criar cargos, alterar estrutura de carreira, realizar concurso público, criar ou majorar auxílio e criar qualquer despesa obrigatória, entre outras medidas, de acordo com a PEC 188.
Dito de forma mais direta, os representantes do Judiciário teriam que adotar as medidas de ajuste da PEC 188, pois o teto de gasto é individualizado por Poder e por órgão. As medidas restritivas, como a não concessão de reajuste ou qualquer outra vantagem se aplicariam também a juízes, procuradores e militares. Ou seja, não apenas os servidores civis dos três Poderes seriam penalizados. É fácil entender a dificuldade política para a aprovação da PEC.
A decisão de Bolsonaro ao rejeitar a ideia de não corrigir os benefícios previdenciários terá, portanto, impacto direto sobre o teto de gastos. Aprovada a PEC 188, com o seu texto original, o presidente terá que impor sacrifícios aos servidores, incluindo os militares, se quiser preservar o teto de gastos. As medidas terão que ser tomadas com urgência, pois, pelos cálculos de quase todos os analistas, para manter o teto de gastos já em 2022 as despesas discricionárias (investimento e custeio da máquina administrativa) terão que ser cortadas ao nível de paralisia dos serviços públicos.
Há pessoas otimistas acreditando que, mesmo com a oposição de Bolsonaro, o Congresso poderá manter a proposta da desindexação dos benefícios previdenciários no novo texto da PEC 188, que deverá ser apresentado pelo relator Márcio Bittar. É difícil acreditar que os senadores e deputados possam ser mais realistas do que o rei, ou seja, que aceitem o ônus de uma medida impopular, mesmo contrariando o presidente da República. Tudo isso, às vésperas das eleições municipais.
De olho na inflação
O Ministério da Economia alterou algumas de suas previsões para a economia neste ano. De acordo com o Boletim MacroFiscal, da Secretaria de Política Econômica (SPE), a previsão para a inflação medida pelo INPC subiu de 2,09% para 2,35%. Este dado é de grande relevância para as despesas públicas, pois o INPC corrige o salário mínimo, que é a base dos benefícios previdenciários e assistenciais. Corrige também os benefícios previdenciários acima do piso.
O anexo de riscos fiscais do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2021 estima que para cada aumento de 0,1 ponto percentual do INPC, a despesa da União sobe R$ 768,3 milhões. Como a previsão da SPE para o INPC subiu 0,26 ponto percentual, a despesa da União no próximo ano foi elevada em mais de R$ 1,9 bilhão.
É um acréscimo significativo, principalmente porque as despesas orçamentárias para 2021 estão no limite do teto. Isto significa que, se a previsão da SPE se confirmar, o Congresso terá que cortar ainda mais o investimento e o custeio programado no Orçamento do próximo ano para manter as despesas dentro do teto.
Míriam Leitão: Fingir não ver o que propõe
A surpresa do presidente Bolsonaro com as propostas da política econômica é falsa ou ele nunca entendeu coisa alguma do que sua equipe vem prometendo desde a campanha. Quando o ministro Paulo Guedes fala em desindexar as despesas do orçamento, o que é? É não corrigir pela inflação os gastos, entre eles, as pensões e aposentadorias. Em outras palavras, congelar. Este governo fez várias propostas polêmicas. Sugeriu adiar o BPC, reduzir acesso ao abono, cobrar imposto de desempregado e até o emprego sem salário. Onde estava Bolsonaro em seu próprio governo que nada viu?
Ele sempre soube o que estava sendo proposto, tanto que ontem autorizou o senador Márcio Bittar a continuar os estudos para um programa social amplo. Bittar está tentando encaixar no orçamento ou na PEC do Pacto Federativo. Entre as medidas que estuda está o congelamento do salário mínimo para financiar o Renda Brasil, conforme o próprio senador revelou ao repórter Marcello Corrêa de O GLOBO. Ou seja, tirar do pobre para o paupérrimo.
Todas as ideias que o governo tem apresentado têm essa característica que o presidente demagogicamente atribuiu à “gente que não tem coração”. Tudo em seu governo possui essa marca. Na proposta original da reforma da Previdência estava a ideia de que o beneficiário do BPC — idoso muito pobre ou deficiente — ao chegar aos 65 anos recebesse apenas R$ 400 em vez de salário mínimo. E só aos 70 anos tivesse direito ao valor integral. O Congresso derrubou. Propôs também reduzir de dois para um salário mínimo a renda dos que recebem abono salarial. O Congresso derrubou.
Depois o projeto enviado era o de criar um programa chamado de “emprego verde e amarelo” que seria financiado por um imposto cobrado de quem ficasse desempregado e recebesse o seguro-desemprego. Essa forma esdrúxula de financiar o programa acabou caindo também. Não foi a única ideia ruim. Em geral elas são abatidas pela reação da opinião pública, dos políticos ou da Justiça. Em março, o governo baixou uma MP que permitia a suspensão do salário por quatro meses. Depois das críticas, revogou a própria MP.
O Ministério da Economia quer “quebrar o piso” dos gastos públicos. Há muito tempo o país precisa sim flexibilizar o Orçamento, mas antes é preciso perguntar de onde tirar. Se acontecer o que o governo propõe, naquele projeto dos três Ds, desindexar, desvincular e desobrigar, todos os percentuais fixos para áreas como saúde e educação poderão cair. O problema é onde serão realocadas as despesas. Nesse governo é certo que serão mais afetados os gastos mais necessários. Enquanto se fala em desvincular as outras despesas, o Ministério da Defesa tenta vincular a sua. Quer 2% do PIB anual.
Esse governo chegou a propor que no ano de 2021 não houvesse o Fundeb, o que provocaria uma tragédia na educação brasileira. Pensou em adiar o Censo para transferir os recursos para o Ministério da Defesa. Antes da pandemia havia sido reduzido em mais de um milhão o número de beneficiários do Bolsa Família, 60% deles moradores dos estados do Nordeste. Os governadores da região tiveram que ir ao Supremo contra isso.
Sensibilidade social não há no atual governo. Mesmo quando eles têm razão em parte, o método é errado. A tese sobre o abono salarial é que jovens da classe média acabam recebendo quando estão no início da carreira. Por que então não introduzir um recorte de renda familiar como exigência para receber o benefício? No caso do BPC, o que se diz é que há gente recebendo que não teria direito, porque tem renda acima do que a lei estabelece. Isso se resolve com fiscalização e cruzamento de dados. Aliás, esse acompanhamento tem que ser constante nas políticas públicas.
No ajuste fiscal quais são as despesas que se deve atacar? É fundamental saber escolher, ter um projeto e comunicá-lo de forma clara e transparente. Na democracia todas as despesas têm defensores, mesmo as mais injustas, como acaba de se ver na ambiguidade presidencial em relação aos gastos tributários com as igrejas.
Bolsonaro manipula os fatos com o objetivo de enganar. Quer que os outros fiquem com os ônus de qualquer medida impopular do governo, para que ele fique apenas com o bônus. Finge não ver inclusive o que ele mesmo assinou e propôs.
William Waack: Desentendimento ao quadrado
Sufoco fiscal está levando o governo a um notável bate-cabeça
Como indivíduo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, está provando ao mercado que resiste mais a pancadas do que inicialmente se supunha. Mas o que importa para agentes econômicos – a confiança na reputação – foi bastante danificada.
Nem tanto por um presidente errático que só pensa naquilo (reeleição) – isto estava, como se diz em economês, “precificado”. Mas, sobretudo, pela rápida e imprevisível mudança dos dados da realidade que impuseram ao governo uma radical alteração de rumo para adaptar assistencialismo (imperativo imediato político e humanitário) à catástrofe fiscal que o próprio Guedes anunciou (problema que vem de longa data).
Se é que existia anteriormente um rumo claramente definido e sendo implementado. Parece que não havia, além de um conjunto de diagnósticos sobre causas de um país estagnado aliado a frases fortes de efeito eleitoral prometendo “mudar tudo que está aí”. O que se evidencia agora, porém, é a ausência de plano para além da contingência.
Bolsonaro entrou numa armadilha nem um pouco original: obrigado a gastar o que não tem. Está, de fato, tolhido por um orçamento engessado que a falta de vontade e articulação políticas contribuíram para deixar no lugar. Sufocado por uma crise fiscal cujo tratamento depende (sim, é repetitivo) de eficaz movimentação POLÍTICA para superar obstáculos rumo a reformas essenciais, como a tributária e a administrativa.
E pressionado pelo calendário eleitoral dos deputados, já voltados para as eleições municipais, e o dele mesmo, o da reeleição. Nesse ambiente, Bolsonaro se rebela com seus característicos arroubos (“cartão vermelho para quem falar em Renda Brasil”) como quem de repente é confrontado com uma realidade profundamente desagradável: a da situação para a qual não existem saídas mágicas.
Foi essa singela constatação que o levou a esbravejar contra a própria equipe econômica, da qual ele obviamente desconfia que lhe prometeu mais do que seria capaz de entregar. Quer continuar prestando ajuda emergencial, que proporciona excelentes dividendos políticos? Então vai ter de cortar em algum outro lugar. Quer criar um benefício social permanente, para chamar de seu? Então precisa rever outros.
Não se sabe exatamente quanto Bolsonaro ouve do tanto que Guedes fala, mas até aqui o mantra tem sido repetido com ênfase: não haverá furo no teto de gastos. Pode-se chamar investidores internacionais ou detentores de títulos brasileiros de míopes ou abutres (palavra preferida por argentinos, por exemplo), mas é fato que eles estão com a atenção concentrada num só aspecto, que é a questão fiscal.
Vem daí – do acompanhamento da evolução da dívida bruta do País em relação ao PIB, e como a política trata disso – uma outra constatação relevante para a equipe econômica: o principal fiador de sua credibilidade hoje lá fora já não é tanto Paulo Guedes, mas, sim, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. É a supremacia da questão fiscal escrita com letras garrafais.
Como se sabe fartamente, não é um problema técnico, mas de natureza essencialmente política. No sentido de que o governo é obrigado a fazer escolhas, não vai conseguir agradar a todos, e essas escolhas são condicionadas por fatores políticos e acarretam consequências idem. E o principal problema de Bolsonaro parece ser o de ter de tomar decisões.
No espetáculo público que seguiu à decepção do presidente com a ausência de fórmulas mágicas, Bolsonaro e Guedes assumiram, contou Guedes, que um não entende de economia e outro não entende de política. É o tipo de observação engraçada numa conversa de boteco, mas que leva os agentes econômicos, que não acham graça em perder tempo ou dinheiro, a uma conclusão cínica: juntar dois maus entendedores não resulta, eventualmente, em um meio entendedor.
Acaba em desentendimento ao quadrado. Ou se chama rápido o Centrão, que é o que está acontecendo.
*Jornalista e apresentador do jornal da CNN
Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro joga para substituir o PT e isolar ministro da Economia
Não se trata mais de mitigar o benefício que ele criou por conta da pandemia, mas de manter o programa petista, de preferência com um aumento no valor ou um alargamento da base de beneficiários
Ao rifar o Renda Brasil, dizer que vai manter o Bolsa Família e descartar o congelamento de aposentadorias ou salário mínimo, o presidente da República, numa jogada, deslocou dois de seus obstáculos. Goste-se ou não, marcou em cima do lance. O primeiro é o desgaste advindo da redução do auxílio emergencial de R$ 600 para R$ 300 até janeiro e de quanto mais ainda não se sabe a partir de janeiro. Ao manter o Bolsa Família, Jair Bolsonaro dribla essa redução.
Não se trata mais de mitigar o benefício que ele criou por causa da pandemia, mas de manter o programa petista, de preferência com um aumento no valor ou um alargamento de sua base de beneficiários. Hoje o valor médio pago ao Bolsa Família é de R$ 190, um programa melhor e mais bem desenhado que o Renda Brasil. Mantê-lo, portanto, é uma decisão acertada. Ao tomá-la, o presidente converge com recomendações insuspeitas como a da Frente Brasileira pela Renda Básica. Mas ao manter o programa Bolsonaro vai além.
Sinaliza que seu objetivo não é mais competir com o PT, mas substituir o partido numa disputa que ele parece acreditar que vai se acirrar mais com adversários centristas. A segunda jogada decorre da primeira. Para ser capaz de substituir o PT como a opção preferencial dos mais pobres, a Bolsonaro não resta outra saída senão desautorizar as gestões do Ministério da Economia em suas gestões para manter o teto furando o piso.
Era isso que estava escrito nas manchetes de jornal lidas pelo presidente no vídeo divulgado em suas redes sociais na manhã desta terça-feira: congelamento de aposentadorias e do salário mínimo, além da redução do Benefício de Prestação Continuada.
O presidente repetiu aquilo que já havia dito quando a mesma equipe econômica sugeriu o fim do abono salarial. Não pretende tirar dos pobres para dar para os miseráveis. Ninguém sabe ainda como o presidente vai fazer caber tudo isso no Orçamento sem furar o teto de gastos, especialmente se quiser superar o PT com um Bolsa Família mais encorpado.
O que ficou claro com o vídeo do presidente foi sua estratégia clara de sair da encruzilhada em que se encontra plantando nela o ministro Paulo Guedes e o maior partido de oposição do país. Pretende sair dela se livrando das convicções do ministro e abraçando bandeiras do partido contra o qual ascendeu à Presidência. Guedes e o PT certamente tomarão rumos distintos, mas, no momento, estão paralisados pelo enxadrista que hoje ocupa o Palácio do Planalto.
Vera Magalhães: Segundo cartão amarelo
Guedes diz que cartão vermelho não foi para ele, mas está ‘pendurado’
Se o governo Jair Bolsonaro fosse uma partida de futebol seria uma pelada de várzea. Dito isso, vamos explorar a metáfora futebolística (nem para isso a imaginação pobre desse presidente incidental consegue superar o lulismo que disse que iria sepultar) usada pelo presidente.
Bolsonaro mais uma vez preferiu causar nas redes a governar. Em vez de reunir Paulo Guedes e seus subordinados na equipe econômica, cobrar um posicionamento a respeito dos estudos para o Renda Brasil, dizer o que aceita e o que não permite, pedir prazos e metas, algo que seria o mínimo que qualquer gestor com noção do próprio trabalho faria, Bolsonaro resolveu gravar um vídeo, uma das poucas coisas que sabe fazer (e ainda assim com a ajuda do filho 02, Carluxo, ou algum assessor do gabinete do ódio).
Estava na versão pistola, não naquele simulacro de paz e amor que andou encenando nos últimos tempos. Disse que não aceitava tirar dinheiro dos paupérrimos para dar aos pobres, que não permitiria a crueldade de se congelar pensões e aposentadorias e que se alguém insistisse nisso levaria um cartão vermelho.
Capitão do time da equipe econômica – que Bolsonaro fez questão de escalar como uma espécie de adversário do que chamou de “governo”, e não integrantes do mesmo escrete –, Paulo Guedes fez que não era com ele para não levar o tal cartão.
Só não se deu conta de que o expediente é inútil, o enfraquece ainda mais e tira dele a aura de craque que tinha na fase de preparação do campeonato, antes de começar essa pelada de quinta categoria que é este governo. Se não levou vermelho, ainda, Guedes já acumula dois amarelos em pouco tempo do árbitro Bolsonaro, e não adianta pedir VAR (com a escusa do meu amigo Octávio Guedes para fazer menção à sua comparação de ontem na TV).
O primeiro amarelo veio quando Bolsonaro mandou Guedes refazer o projeto do natimorto Renda Brasil. O fez em público, com direito a humilhação. O ex-posto Ipiranga pediu desculpa e seguiu o jogo. Agora o presidente deu um passa-moleque no antes intocável ministro da Economia e pareceu pouco ligar se ele achasse isso intolerável e pedisse demissão.
Só que Guedes tolerou mais essa. E por ora vai ficando. Em nome de quê, ambicionando exatamente o quê e com qual expectativa é impossível dizer. Num misto de atordoamento e ingenuidade, o ministro prefere negar a realidade posta diante de seu nariz, de que está sendo submetido pelo “capitão” (aqui não do time, mas reformado e expulso do Exército) ao mesmo corredor polonês em que foram colocados nomes como Gustavo Bebianno, Osmar Terra (que vergou e continua lá, puxando o saco), Onyx Lorenzoni (idem), general Santos Cruz, Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta e até o puxa-saco mor e clown do bolsonarismo Abraham Weintraub.
Não há gratidão, empatia, modéstia de reconhecer que não entende do assunto das pastas e delegar aos especialistas, planejamento, educação, bom senso ou sequer estratégia na maneira como Bolsonaro lida com pessoas. E aqui entra qualquer pessoa que não seja do seu sangue (mulheres vêm e vão, e estão sujeitas ao mesmo pelourinho, vide o que ocorreu quando ele pôs o filho Carlos, aos 17 anos, para derrotar a mãe, Rogéria).
Guedes só era imprescindível para Bolsonaro para vencer a eleição. Foi o cavalo de Troia no qual os corporativistas, rachadeiros, milicianos, reacionários e despreparados Bolsonaro et caterva entraram para adentrar a cidadela do mercado e do eleitor com “nojinho” do PT.
Cruzado o portão, a prioridade é se manter lá dentro. Se Guedes passa a ser visto como estorvo para isso, que queime na fogueira em que já arderam as reputações dos citados acima. Cartão vermelho para ele, sem choro nem vela.
Míriam Leitão: Antes do próximo cartão vermelho
O ministro Paulo Guedes atacou a imprensa, ou seres incorpóreos, pela confusão que ele mesmo criou. Como sempre, deu uma interpretação do comportamento do presidente que o absolve de tudo e culpa outros. Falou de fatos que ninguém está discutindo. “Você, com 51 milhões de desempregados, quer dar aumento de 20%, 30% do salário mínimo?” perguntou Guedes sem ninguém entender a que ele se referia. Disse que o cartão vermelho não é para ele. Aí quem ficou com a cabeça pendurada foi o secretário Waldery Rodrigues. Esse é o método Paulo Guedes de fugir da frigideira: terceiriza a culpa, apresenta uma interpretação própria dos eventos, faz uma declaração sem sentido, apresenta um número absurdo.
Os fatos: desde que a equipe econômica decidiu criar o Renda Brasil, os economistas do governo saíram à procura de receita para a proposta. Anunciaram o programa antes de formatá-lo. Depois saíram enfileirando ideias. Algumas, muito ruins. O que não está na mesa do Ministério já foi despachado para o Congresso para ver se cola nos relatórios que o senador Márcio Bittar (MDB-AC) está preparando. O grande problema é que tudo é falado como se o plano estivesse consolidado, e a discussão, amadurecida internamente. Várias vezes pessoas da equipe disseram que uma das propostas era usar o dinheiro do abono salarial. Depois que Bolsonaro fulminou a tese, dizendo que não se pode “tirar dos pobres para dar para os paupérrimos”, não apareceu o pai da ideia.
Ontem os jornais trouxeram dois estudos que estavam, sim, sendo discutidos: congelar as aposentadorias e pensões e reduzir o gasto com o Benefício de Prestação Continuada (BPC). O presidente atacou os dois, disse que de nada sabia, e que daria cartão vermelho a quem dissesse. O que fez Paulo Guedes? Culpou a imprensa. Disse que os jornalistas estavam fazendo ilações, ligando pontos desconexos. “Como a primeira página de todos os jornais diziam que ia tirar dinheiro dos idosos, dos frágeis e vulneráveis, ele repetiu o que disse antes”. E mais adiante: “Não é possível que você abra os jornais e todas as manchetes são de que querem tirar o dinheiro dos pobres, querem assaltar os pobres para dar aos mais pobres ainda”. Primeiro, as manchetes não foram essas e sim as medidas que de fato estavam sendo estudadas. Segundo, essa é a frase do presidente.
Era uma vez um superministro. Paulo Guedes perde diariamente uma batalha porque serve não a um projeto econômico, mas sim a um projeto político que tem três elementos: a reeleição, o populismo e o autoritarismo. Por isso, a área econômica vem se enfraquecendo. Ontem foi apenas mais um dia em que o presidente em vez de demonstrar sua discordância em discussões internas levou-as a público queimando seus auxiliares e se fazendo de bonzinho. “É gente que não tem um mínimo de coração ou entendimento de como vivem os aposentados no Brasil”, disse Bolsonaro, presidente de um governo que fez a reforma da previdência preservando privilégios das categorias que ele protege.
A área de Guedes vem sendo comida pelas bordas. Foi o que se viu na briga do arroz na semana passada. O intervencionismo do ministro da Justiça, André Mendonça, teve o apoio do presidente, que disse ter autorizado a notificação aos supermercados. A reação do Ministério da Economia foi entregue a um dos secretários.
Semanas atrás, ministros, como Rogério Marinho e Tarcísio de Freitas, defenderam diretamente junto ao presidente o aumento de gastos para obras, como se esse assunto pudesse ser decidido sem aprovação do Ministério da Economia. Ministros militares também vão diretamente ao presidente ou ao Congresso. Agora passarão a ser maioria na Junta Orçamentária, e eles têm várias demandas e projetos que significam aumento de despesas. Quando o presidente é constrangido a seguir o ministro da Economia, como no veto ao perdão às igrejas, para evitar “um quase certo processo de impeachment”, Bolsonaro em seguida pede que derrubem o veto e diz que vai mandar um projeto para ampliar a isenção tributária delas.
Paulo Guedes está pensando em ideias que também vão dar confusão, como não corrigir os gastos com educação e saúde. “Indexação não protege ninguém”, disse ele. Só que é prudente que ele explique melhor o efeito prático de “desindexar, desvincular e desobrigar”, antes do próximo cartão vermelho.
Vinicius Torres Freire: Sem fura-teto, miseráveis vão à breca
Bolsonaro cancelou debate que permitiria estender auxílio sem derrubar teto de gastos
Jair Bolsonaro não quer “tirar nada dos pobres para dar aos paupérrimos” nem diminuir salários dos servidores públicos. Ainda que quisesse e que o Congresso aprovasse tais planos, algum dinheiro para aumentar o Bolsa Família ou coisa que o valha começaria a aparecer apenas em meados do ano que vem.
Logo, a alternativa prática para estender o efeito do auxílio emergencial é uma gambiarra que burle o teto de gastos federais. Se não houver prorrogação do auxílio ou um esquema qualquer a fim de engordar o Bolsa Família e leva-lo a mais gente, milhões voltarão à miséria total a partir de janeiro.
Essa é a primeira consequência prática fundamental do faniquito presidencial da manhã desta terça-feira (15), preparado e gravado —não foi uma daquelas explosões de saidinha do Alvorada. Como se sabe, Bolsonaro ameaçou expulsar do governo aqueles que queiram congelar o valor de aposentadorias e do salário mínimo ou arrochar outros benefícios sociais. Congelar: não reajustar nem pela inflação. Quer dizer: reduzir, em termos reais.
Além do veto à transferência de renda de “pobres para paupérrimos” e do enterro provisório do Renda Brasil, Bolsonaro disse ao ministro Paulo Guedes (Economia) que quer um programa de criação rápida de empregos. Para Guedes, isso significa reduzir impostos sobre a folha de pagamentos das empresas, o que em tese exige a criação de uma CPMF.
Logo, a segunda consequência prática do veto de Bolsonaro ao Renda Brasil é a volta da discussão prática dessa CPMF de Guedes.
No ambiente brasiliense, de muita política politiqueira, se discutia se Bolsonaro pediu a cabeça de Waldery Rodrigues, secretário de Fazenda, uma espécie de vice-ministro de Guedes, que propôs o congelamento (redução real) de benefícios sociais. No Planalto, dizia-se que Bolsonaro acha melhor que Rodrigues peça para sair; em público, o presidente tratou o Ministério da Economia como uma espécie de serviço de consultoria externa, que toma atitudes e enuncia planos que nada têm a ver com o governo.
Mas é fácil perceber que isso é meio irrelevante. Caso Bolsonaro não mude de ideia, não haverá Renda Brasil ou similar a não ser com fura-teto, ressalte-se. Ainda que o povo do mercado comece a admitir que a gambiarra talvez seja inevitável, haverá algum sururu e Guedes continuará no mínimo a ser refogado na banha da desmoralização.
Essas são as questões sociais, econômicas e políticas relevantes, a não ser que, por milagre, o desemprego e a renda do início de 2021 voltem ao nível em que estavam no início de 2020, pré-pandemia.
Ou, então, que parte do povo padeça ou morra calada e outro tanto ache que está tudo bem. Neste Brasil terminal, quem sabe seja ainda mais possível.
Ainda não se presta atenção suficiente à gravidade das decisões que a manutenção do teto de gastos exige, situação crítica que deve explodir para algum lado já em 2021. Como era de esperar, confrontado pela primeira vez com a necessidade de tomar uma decisão de governo (não de desgoverno ou destruição ativa), Bolsonaro não decidiu nada.
Quanto à redução de impostos sobre a folha salarial, casada com a CPMF, haverá mais problema. Primeiro, vai ter pelo menos rolo no Congresso (até agora, Rodrigo Maia diz que o imposto só passa sobre o cadáver político dele). Segundo, não há evidência nenhuma que imposto menor cria emprego, menos ainda em uma economia deprimida.
Afora milagres ou uma contravolta de Bolsonaro, estão armadas bombas para explodir no colo de alguém. Provavelmente dos paupérrimos.
Elio Gaspari: A demofobia da ekipekonômika
Bolsonaro recolocou Waldery no seu quadrado
Em menos de 24 horas Jair Bolsonaro impôs mais um vexame aos çábios de sua ekipekonômika.
Na segunda-feira o secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, saiu-se com mais um lance de demofobia. Ele queria congelar por dois anos as aposentadorias e benefícios da Previdência Social e defendia a ideia com um argumento que poderia ter saído de um camelódromo:
“A desindexação que apoiamos diretamente é a dos benefícios previdenciários para quem ganha um salário mínimo e acima de um salário mínimo. (…) O benefício hoje sendo de R$ 1.300, no ano que vem, ao invés de ser corrigido pelo INPC, ele seria mantido em R$ 1.300. Não haveria redução, haveria manutenção.”
Na manhã de terça Bolsonaro recolocou-o no seu quadrado: “Eu já disse há poucas semanas que jamais vou tirar dinheiro dos pobres para dar para os paupérrimos. Quem porventura vier propor a mim uma medida como essa, eu só posso dar um cartão vermelho para essa pessoa”.
Na essência, Bolsonaro lida com um velho problema da condução da política econômica. Os çábios pensam que mandam e tentam atropelar o Planalto com entrevistas capazes de criar fatos consumados. Foi assim com o vazamento do primeiro plano do Renda Brasil, mandado ao lixo pelo capitão. O doutor Waldery repetiu a receita e deu-se mal.
A ekipekonômica quer tirar dinheiro de quem não o tem porque não quer ir ao bolso de quem o tem. No projeto original de reforma da Previdência tungavam-se os miseráveis que vivem com o Benefício de Prestação Continuada. Depois tentaram taxar quem recebe o seguro-desemprego.
O raciocínio do doutor Waldery era indigente.
É sabido que a inflação bate com mais força no andar de baixo. Num exemplo extremo, se um cidadão comprava cinco quilos de arroz por R$ 15 e hoje paga mais de R$ 30, o valor de seu benefício pode ser mantido, mas sua capacidade de comprar arroz será reduzida.
A tunga dos aposentados dependia da aprovação de uma emenda constitucional. Suas chances de aprovação eram menores que as da existência de uma Brasília em Vênus. Ela tinha a barbicha, as quatro patas e o mau cheiro dos bodes. A proposta surgiu no mesmo dia em que reapareceu problema da falta de atendimento nas agências do INSS. Num caso havia uma má ideia. No outro, serviço malfeito.
A adesão de Bolsonaro à eficiência do programa Bolsa Família expôs o primitivismo das ideias de sua ekipekonômika. Todos, inclusive ele, demonizavam o programa petista, mas, na hora do vamos ver, não tinham coisa melhor para botar no lugar. Com a pandemia, jogaram bilhões para custear o necessário benefício emergencial. Como é coisa de emergência, não exige contrapartida, enquanto o Bolsa Família estimula a busca por educação e saúde.
O doutor Paulo Guedes e seus çábios estão presos numa armadilha. Venderam um programa liberal a um capitão intervencionista e insistem em morder o andar de baixo. Tudo isso para deixar a coisas como estão e, se possível, fazê-las andar para trás.
O atraso tem um preço. O economista Thomas Piketty disse tudo quando falou com Luciano Huck. “O Brasil é hoje desigual demais para conseguir se desenvolver.”
Isso começou há muito tempo, no século XIX o Visconde de Sinimbu informava: “A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo”.
Deu no que deu.