Paulo Guedes

Eliane Cantanhêde: ‘Não tem de onde tirar’

Num redemoinho, Guedes não agrada a Bolsonaro, ao Congresso, ao mercado e à opinião pública

O ministro Paulo Guedes se debate em mares revoltos, ora emerge, ora afunda, fazendo tudo para sobreviver, numa situação comum em Brasília, quando autoridades entram no redemoinho, sem forças para sair, e raramente chegam a um porto seguro. De superministro, ele agora luta para se manter à tona, com o desafio de cumprir as ordens e fazer as vontades, quase impossíveis, do chefe Jair Bolsonaro.

Com a mesma obsessão com que defende os filhos da PF, do MP, da mídia e da verdade, o presidente agora trata da sua própria campanha e mandou Guedes se virar e arranjar recursos para o “seu” Bolsa Família, com o nome de Renda Cidadã, maior valor e mais abrangência, sem mexer no teto de gastos nem criar novo imposto. Dinheiro, porém, não cai do céu nem dá em árvore – mesmo que desse, as árvores estão virando carvão.

De onde tirar o dinheiro? “Não tem de onde tirar”, responde com clareza o vice Hamilton Mourão. Não tem mesmo e tudo o que os técnicos do Ministério da Economia conseguem produzir são soluções… técnicas. Mas o mundo é político, o ano é de campanha e o presidente está no modo populista-eleitoral e “não vai tirar do pobre para dar a paupérrimo”.

Guedes está num mato sem cachorro. A primeira ideia foi garfar do eleitor aposentado ou pensionista para dar para o eleitor do Bolsa Família. Bolsonaro matou a tiros. A segunda foi impopular e de legalidade duvidosa: sacar dos precatórios, decididos pela Justiça, e do Fundeb, prorrogado a duras penas e sob a resistência do Planalto. Aí quem atirou foi o próprio Guedes. Mas foi também um tiro no pé.

Perdendo aval de Bolsonaro e atraindo desconfiança no mercado e na opinião pública, o ministro-âncora do governo está como um náufrago de apoios. Perdeu o chão quando a pandemia contaminou e derrotou a prioridade fiscal – sua especialidade –, exigindo gastos. Frágil, atraiu a cobiça de ministros, ressuscitou a alma estatizante dos militares, encolheu. Depois de derrotas internas, críticas externas e sucessivas evidências de não estar agradando, a gota d’água foi o tal “cartão vermelho”. Não foi coisa de Rogério Marinho, de Tarcísio de Freitas, e sim do presidente.

Foi aí que Paulo Guedes aprendeu que superministro não existe e convocou uma imersão, ou retiro espiritual, para ensinar o básico do poder à sua equipe: quem foi eleito, tem voto, entende de política e manda é o presidente. O que ele quer e diz é uma ordem. Ponto. E Guedes ressurgiu das cinzas decidido a recuperar prestígio e liderança na onda do Centrão. Durou pouco.

No primeiro grande lance desse “recomeço”, Guedes deu com os burros n’água. Na segunda-feira, ele participou da reunião e do anúncio, com o presidente, ministros, assessores e líderes do governo (ou seja, do Centrão) da proposta de tirar dos precatórios e do Fundeb para dar para os paupérrimos do Bolsa Família. Na quarta, o mesmo Guedes foi a público negar tudo e descartar o uso de precatórios. Tirou o corpo fora. O dito pelo não dito.

Assim como a procuradora Lindôra Araújo denunciou e “desdenunciou” o deputado Arthur Lira, nome do Planalto à presidência da Câmara em 2021, Guedes assumiu e depois renegou o uso dos precatórios, que havia afetado câmbio e Bolsa e agitado o mundo jurídico – afinal, esse dinheiro não é do governo, é dos credores do governo. A ideia é (era) dar calote?

E, assim como Bolsonaro culpa os governadores pelos seus erros absurdos na pandemia, Guedes tenta arranjar um culpado para a falta de privatizações, reformas, recursos, ações e soluções: Rodrigo Maia, que chamou o ministro de “desequilibrado”. Maia sai da presidência da Câmara em fevereiro. E Guedes, até quando fica no Ministério da Economia? Abraço de afogados.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Zeina Latif: Melhor não despertar a ira dos investidores

Precisamos, desde já, de um plano de contenção de despesas obrigatórias

Disciplina fiscal significa um país não gerar indefinidamente rombos orçamentários e aumento da dívida pública como proporção do PIB. Caso contrário, cedo ou tarde, vai enfrentar o revide dos credores: inicialmente demandando taxas de juros crescentes e, no limite, desistindo de financiar o governo, por medo de calote. Irão buscar investimentos mais seguros, inclusive fora do País. O resultado é o aumento da inflação.

O espaço para governos esticarem a corda depende da crença dos investidores quanto à sua capacidade e disposição de fazer o ajuste das contas públicas, em algum momento futuro. Dois fatores são chave para essa expectativa: a capacidade do país de crescer de forma sustentada, o que é um selo de qualidade da ação estatal, e a credibilidade do governo, construída pelo respeito a compromissos feitos.

Países ricos conseguem se endividar mais. A dívida pública das economias avançadas estava na média em 104% do PIB em 2018 ante 50% nos emergentes. Em 2000, essas cifras eram 83% e 45%, respectivamente.

Para ajudar na construção de credibilidade, muitos governos adotam regras fiscais para reger as contas públicas. São compromissos com a disciplina fiscal previstos em lei. É comum em países com meta de inflação, pois são regras que se reforçam mutuamente.

As regras precisam ser duradouras para cumprirem seu papel. Não podem ser facilmente contornadas ou alteradas. Já se observam no mercado financeiro as consequências do flerte com a flexibilização da regra do teto, aprovada há menos de quatro anos. A elevada volatilidade de preços de ativos, inclusive da taxa de câmbio, ameaça a recuperação da economia. Além disso, ocorre um encurtamento do perfil da dívida pública, tornando o ambiente mais propenso à saída de recursos.

As regras não podem ser frouxas, deixando de fora muitos itens de despesa, como alguns propõem – a regra do teto já exclui o Fundeb e a capitalização de estatais não dependentes do Tesouro. Por outro lado, precisam ser críveis ou factíveis. Alguns analistas apontam que, por conta da pandemia, a regra do teto tornou-se impraticável diante das demandas por gastos com saúde e socorro de pessoas e empresas, sendo necessário ajustá-la. Vejamos.

A regra já embute uma “cláusula de escape” para o período de calamidade pública, liberando as despesas associadas ao combate dos efeitos da covid-19. Seria então o caso de estendê-lo por mais alguns meses, para autorizar despesas transitórias? O cuidado aqui é haver justificativa forte o suficiente para os créditos extraordinários e a garantia de seu bom uso. Além disso, convém esgotar outras possibilidades, como criar espaço no Orçamento pela redução temporária da folha do funcionalismo, conforme proposto na PEC emergencial, abandonada.

Uma flexibilização do teto para aumentar despesas permanentes seria mais arriscado. Mesmo medidas meritórias, como a Renda Cidadã, deveriam substituir as muitas políticas públicas equivocadas. Nesse contexto, é indefensável a tímida proposta de reforma administrativa, que além de excluir importantes carreiras do funcionalismo, não afeta os atuais servidores. O mesmo vale para a contrariedade do presidente com o remanejamento de recursos de outras políticas sociais proposto pelo time econômico.

A pandemia aumentou a necessidade de reformas. O teto, mesmo se respeitado, não eliminará o rombo fiscal por muitos anos. Flexibilizá-lo significaria cutucar o investidor, já desconfiado, com vara curta. Dilma fez isso em 2015. Deu no que deu.

Na melhor das hipóteses, o governo estaria aumentando a probabilidade de um ajuste forçado das contas públicas por meio de sensível elevação da carga tributária. Um cenário “volta ao passado” penalizaria ainda mais a frágil economia.

Os investidores poderão financiar a dívida pública elevada e crescente, e será possível evitar maior carga tributária e instabilidade econômica. Mas desde que haja plano consistente de contenção de despesas obrigatórias de forma a não apagar a chama já tão fraca da disciplina fiscal.


Míriam Leitão: Recados, indiretas e novos improvisos

Por Alvaro Gribel (interino)

Se a palavra do ministro Paulo Guedes ainda vale pelo governo, o programa Renda Cidadã voltou à casa zero. O ministro da Economia mudou sua agenda em cima da hora ontem à tarde para participar da divulgação dos dados do Caged, mas sobre o mercado de trabalho pouco falou e terceirizou para a área técnica. Ele aproveitou o espaço para disparar recados a aliados e ao próprio presidente Bolsonaro e ainda alimentou bate-boca com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Disse que havia rumores de que Maia interditara as privatizações após acordo com partidos de esquerda e que o novo programa social não pode ser financiado por “puxadinhos”.

Guedes se recusou a chamar o programa pelo nome Renda Cidadã e por três vezes falou em Renda Brasil, que havia sido proibido por Bolsonaro. Ao dizer que ele precisa ser a unificação de 27 projetos sociais, o ministro voltou à ideia inicial para o seu financiamento, que na visão do presidente significa tirar do pobre para dar ao paupérrimo. No mercado financeiro, a interpretação foi de que o ministro elevou o tom para demonstrar que não vai compactuar com pedaladas e contabilidade criativa. Para muitos investidores, a fala foi bem recebida, e houve quem entendesse que se o governo seguir por esse caminho Guedes deixará o cargo.

O ministro reconheceu que houve estudo sobre os gastos com precatórios, mas porque, segundo ele, esse tipo de despesa tem crescido muito nos últimos anos. Afirmou que em momento algum o governo “deixará de honrar” seus compromissos, muito menos uma dívida que já transitou em julgado. Em outras palavras, disse que a medida seria um calote, rebatendo o relator da proposta, senador Márcio Bittar (MDB-AC), que chamou de “hipócritas” todos os que pensavam dessa forma.

Em seguida, Rodrigo Maia disse que Guedes está desequilibrado. No dia anterior, ele próprio acusara o ministro de interditar o andamento da reforma tributária. Sobre as privatizações, os fatos parecem estar a favor do deputado, já que o veto maior ao programa vem do próprio presidente Bolsonaro, que desde a campanha eleitoral excluiu as maiores estatais da lista de empresas vendáveis.

Ao fim e ao cabo, o novo programa social não tem nome, fonte de custeio, e o governo continua como sempre esteve: perdido em suas brigas internas.

O valor do auxílio

O gráfico mostra o impacto da crise sobre os rendimentos do trabalho. Pelos dados divulgados ontem pelo IBGE, e compilados pelo Iedi, houve uma queda de 13,3% em julho, sobre o mesmo mês do ano passado. “Tomados os rendimentos efetivamente recebidos, que refletem melhor o choque provocado pela pandemia, a massa de R$ 185,6 bilhões é a menor da série histórica da Pnad Contínua, iniciada em 2012”, disse o Iedi. Esse dado exclui o que foi pago pelo governo no auxílio emergencial, e reforça a importância do benefício para garantir o consumo de muitas famílias.

Dois lados do emprego

Os economistas Bruno Ottoni e Tiago Barreira, do Ibre/FGV, juntaram três séries de desemprego e concluíram que a taxa de desocupação do país em julho foi a maior desde 1992, ou seja, em quase 30 anos. A Pnad Contínua, como se sabe, começou em 2012, mas os economistas adaptaram os dados à Pnad Anual e também à PME, que possuem séries mais antigas. “É uma constatação preocupante, e a tendência ainda é o desemprego aumentar nos próximos meses, porque muita gente que perdeu trabalho ainda não voltou a procurar”, disse Ottoni. No mercado formal, houve criação de quase 250 mil vagas em agosto, segundo o Caged. O governo comemorou e, na visão de Ottoni, o Programa de Manutenção do Emprego ajudou de fato a evitar um quadro pior. “Ainda assim, estamos com uma perda de mais de 800 mil vagas de carteira assinada desde o início da crise”, lembrou.


Vinicius Torres Freire: CPMF de Guedes e pedalada param Congresso e ameaçam povo com mais fome

Está uma zorra total e não vai haver Carnaval. A pedalada do Renda Cidadã subiu no telhado ou, pelo menos, o governo tenta dourar a pílula da moratória dos precatórios, que o povo do mercado e quase todo mundo cuspiu. Na Câmara, há estranhamento entre parte dos parlamentares de DEM, MDB e PSDB e outros que querem tocar a reforma tributária e o centrão, que assumiu de vez o comando parlamentar do governo. Graças ao sururu causado pela CPMF, mas não apenas, a mudança dos impostos está indo para o vinagre. O resto do ano no Congresso fica cada vez mais curto.

Paulo Guedes tenta sair de fininho do vexame do plano pedalada. Além do mais, se estranha cada vez mais com Rodrigo Maia, até agora condestável das reformas, cada vez mais desafiado pelo centrão, se por mais não fosse porque começou a disputa pela presidência da Câmara em 2021.

Segundo o padrão bolsonarista de disseminar “fakes” e tirar o corpo fora, Guedes disse nesta quarta-feira que “há boatos” de que Maia e a esquerda fizeram acordo para barrar privatizações”, aquelas que, no entanto, o governo não consegue organizar ou mandar para o Congresso.

Maia respondeu que Guedes está “desequilibrado” e recomendou que o ministro da Economia veja “A Queda”. Hum.

Trata-se do filme que deu origem àquela série de memes com paródias da cena do chilique de Hitler. Narra a vida no bunker nazista em Berlim, sob fogo dos soviéticos. A interpretação mais benevolente da dica de Maia é que Guedes poderia aprender algo com a história de um bando de psicopatas assassinos à beira do fim, ainda mais alheados da realidade, presos a uma bolha física e mental.

Os líderes do governo no Congresso ainda querem tocar o Renda Cidadã tal como anunciado, com moratória de precatório, com Fundeb, com pedalada, com tudo. Gente do Planalto e mesmo Guedes tentam adoçar o remédio e dizem que o plano do governo “não é bem assim”.

Hum. É ou era.

“É um prazer, uma honra e uma satisfação, presidente, poder anunciar o teu programa”, discursou o senador Márcio Bittar MDB-AC) antes de explicar de onde viria o dinheiro do Renda Cidadã. Depois de assim cumprimentar Jair Bolsonaro, Bittar contou que o programa seria financiado com moratória de precatórios e com parte de recursos federais para a educação básica.

Isso foi na segunda-feira de tarde. Na quarta-feira, Guedes chamou a ideia de “puxadinho”, entre outras desqualificações. O ministro estava no palanque do anúncio do Renda Cidadã e então nada disse a respeito. Já era contra o plano? No Planalto, há quem diga que o ministro não gostara mesmo da ideia; há quem o acuse de querer pular fora do barco que furou.

Também no dia do anúncio, Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara, disse que Guedes foi consultado e que Bolsonaro “validou” o que ele e Bittar chamaram de “solução final” para o Renda Cidadã. Como dizia o surfista da caricatura dos anos 1980, “ó u auê aí, ó”: olha a confusão.

Guedes afirmou também nesta quarta-feira que o Renda Cidadã terá dinheiro da fusão de vários programas sociais, 27 deles, segundo o ministro, embora Bolsonaro seja contra “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”. Seja lá como for, todas as “soluções finais” aventadas até agora dependem da aprovação de alguma mudança na Constituição, caso se queira conseguir um dinheiro bom para ampliar o Bolsa Família.

Dá tempo? Daqui a três meses, acabam de vez os auxílios emergenciais. Algo vai acontecer: mais fome, sururu no mercado ou “tirar de pobres para paupérrimos”.


Ribamar Oliveira: A impressão é de um governo perdido

Bolsonaro não aceita sugestões apresentadas por seu ministro da Economia, e há um bate cabeça da área técnica com os líderes políticos que apoiam o governo

Na segunda-feira passada, na presença do presidente Jair Bolsonaro, do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da proposta orçamentária para 2021, anunciou a criação do novo programa social do governo, que chamou de Renda Cidadã. Ele informou que o governo iria limitar o pagamento de precatórios judiciais e, com os recursos que sobrariam, financiar o programa. Ontem, o ministro Paulo Guedes surpreendeu o país ao afirmar que nada daquilo valeu. Chegou a sugerir que nunca se pensou em tal coisa.

O anúncio de Bittar, no Palácio do Planalto, está gravado e pode ser facilmente acessado na internet. O mais impressionante é que, no dia seguinte, o próprio Bittar e o líder Ricardo Barros reafirmaram a decisão e negaram que o governo pudesse recuar de sua proposta, mesmo com a forte reação contrária dos mercados.

A avaliação unânime dos analistas foi de que o governo estava propondo uma “pedalada fiscal”, com a postergação do pagamento dos precatórios. Iria transferir uma dívida, que todo ano a Justiça manda pagar, para ser quitada pelas futuras gerações.

Guedes aproveitou ontem a entrevista de divulgação dos dados do Caged, que mostraram uma forte criação de empregos com carteira assinada em agosto, para alterar inteiramente o discurso oficial sobre os precatórios. “Sabemos que precatórios são dívidas líquidas e certas, transitadas em julgado. Ninguém vai botar em risco a liquidação de dívidas do governo. Vamos pagar tudo”, disse, demonstrando uma certa exaltação. “Estamos aqui para honrar compromissos. Compromisso fiscal, de dívida”, acrescentou.

O ministro afirmou que sua preocupação era com o “crescimento explosivo” da despesa com o pagamento de precatórios nos últimos anos. Segundo informou, esse gasto era de R$ 10 bilhões a R$ 12 bilhões no governo Dilma Rousseff e a projeção para 2021 é de R$ 55,5 bilhões. “Estamos examinando [os precatórios] estritamente com foco em controle das despesas.”

Guedes reafirmou, no entanto, sua intenção de apresentar um novo programa social para amparar os “invisíveis”, que foram descobertos pelo governo com o auxílio emergencial. Segundo ele, são 40 milhões de pessoas que precisam de ajuda a partir de janeiro, quando o auxílio emergencial acabar. Guedes voltou a afirmar que é preciso promover uma aterrissagem suave, quando isso ocorrer.

Ele disse que nunca pensou em utilizar parte do dinheiro que seria usado para pagar os precatórios para financiar o Renda Brasil. Foi com esse nome que o ministro se referiu ao novo programa social do governo Bolsonaro, e não Renda Cidadã, empregado por Bittar. “Uma despesa permanente precisa ser financiada com uma receita permanente. Não pode ser financiada por um puxadinho, por um ajuste”, afirmou.

O problema, portanto, está do mesmo tamanho. Ou seja, como o novo programa do governo, qualquer que seja o seu nome, será financiado a partir de janeiro do próximo ano?

É importante relembrar que todas as sugestões apresentadas pela área econômica foram vetadas pelo presidente Bolsonaro. A ideia inicial, com a qual a equipe de Guedes trabalhou desde o início, era eliminar os programas sociais considerados ineficientes, ou seja, que não estão atingindo as pessoas mais necessitadas da sociedade, e direcionar os recursos para os mais carentes e para os trabalhadores informais.

A primeira proposta levada ao presidente foi a de acabar com o abono salarial, que concede até um salário mínimo por ano para o trabalhador que ganha até dois pisos por mês. Bolsonaro rejeitou a proposta publicamente, dizendo que não iria tirar dos pobres para dar para os paupérrimos. Aquele foi um banho de água fria na equipe de Guedes, pois o fim do abono abriria um espaço de R$ 20 bilhões para turbinar o Renda Brasil.

Depois, o presidente rejeitou também o fim do seguro-defeso, que é concedido aos pescadores artesanais no período da desova dos peixes. O secretário da Pesca, Jorge Seif Junior, ao lado de Bolsonaro em sua live semanal, chegou a dizer que o fim do seguro-defeso era “fake news”.

Em seguida foi a vez de o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, ser desautorizado pelo presidente da República. Em entrevista ao Valor, Waldery defendeu a desindexação de benefício previdenciários, ou seja, suspender pelo prazo de dois anos a correção monetária do valor das aposentadorias e pensões. O secretário estimou que a medida reduziria as despesas da União em R$ 17 bilhões em 2021 e em R$ 41,5 bilhões em 2022.

Com a repercussão das palavras de Waldery, o presidente usou as redes sociais para dizer que uma proposta como aquela só podia ser feita por alguém que não tem coração e anunciou que daria “cartão vermelho” para quem insistisse no assunto. Bolsonaro disse também que não queria ouvir falar em Renda Brasil até 2022. Ele mudou de ideia no dia seguinte, ao autorizar o relator das PEC Emergencial e do Pacto Federativo, senador Marcio Bittar, a incluir em seu substitutivo a criação de um novo programa social.

Depois da forte reação dos mercados e da própria sociedade à “pedalada fiscal” dos precatórios, o ministro Guedes informou ontem que o governo não vai financiar o Renda Brasil com parte dos recursos que seriam utilizado para pagar precatórios. O ministro disse, no entanto, que o programa será criado para fazer a “aterrissagem suave” do auxílio emergencial.

A impressão que está passando ao público é de um governo perdido. Com um presidente que não aceita as sugestões apresentadas por seu ministro da Economia e um bate cabeça da área técnica com os líderes políticos que apoiam o governo. Há também as intrigas entre ministros. Ontem, por exemplo, Guedes afirmou que tinha gente dentro do governo querendo “estourar o teto de gastos em R$ 60 bilhões a R$ 70 bilhões”. E que sua intenção é não deixar que isso aconteça.


Luiz Carlos Azedo: Aonde Guedes quer chegar?

A troca de acusações entre Guedes e Maia é sinal de que a relação entre ambos se deteriorou de tal forma que o diálogo será quase inviável. Quem mais perde com isso é a sociedade

Ontem foi um dia de mais confusão na área econômica. O ministro da Economia, Paulo Guedes, rechaçou a proposta de utilização dos recursos destinados aos precatórios para viabilizar o programa Renda Cidadã, muito criticada pelos especialistas, como se nada tivesse a ver com ela. A medida foi anunciada pelo relator da PEC Emergencial, senador Márcio Bittar (MDB-AC), depois de ter sido aprovada pelo presidente Jair Bolsonaro e, pasmem, o próprio Guedes. O ministro da Economia também estava com Bolsonaro e os líderes do governo no Congresso quando a proposta foi anunciada.

“Um projeto dessa magnitude jamais seria apresentado se não tivesse o conhecimento e a aprovação do presidente da nação e o carimbo de OK do ministro da Economia”, disse Bittar, segundo o qual Guedes havia dado uma demonstração cabal de que concorda com a proposta, durante a sua reunião com Bolsonaro. Na manhã de ontem, porém, Guedes disse que o gasto com precatório estava sendo examinado com foco no controle de despesas e que não era “uma fonte saudável, limpa, permanente, previsível” para financiar a nova política de transferência de renda do governo. Ou seja, detonou a proposta de Bittar. Na terça-feira, apesar das críticas, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, também havia anunciado que o Palácio do Planalto não recuaria da proposta.

A grande interrogação é se a postura de Guedes teve aval do presidente Jair Bolsonaro, que gosta desse faz que vai mas não vai, ou o ministro da Economia se encheu de brios e resolveu marcar posição mais responsável sobre a questão fiscal. A primeira hipótese é mais provável, porém, outra declaração polêmica de Guedes levanta suspeitas de que pode ser a segunda. O ministro da Economia acusou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de ter feito um acordo com a esquerda para não aprovar as privatizações.

“Não há razão para interditar as privatizações. Há boatos de que haveria acordo entre o presidente da Câmara e a esquerda para não pautar as privatizações. Precisamos retomar as privatizações, temos que seguir com as reformas e temos que pautar toda essa transformação que queremos fazer. A retomada do crescimento vem pela aceleração de investimentos em cabotagem, infraestrutura, logística, setor elétrico, das privatizações, Eletrobrás, Correios… Estamos esperando”, disparou Guedes, que aproveitou a divulgação de dados do Caged sobre geração de empregos para provocar o presidente da Câmara, com quem vive às turras. Em resposta, Maia disse que Guedes “está desequilibrado” e sugeriu ao ministro que assistisse ao filme A Queda, que narra os últimos dias de Adolf Hitler e do Terceiro Reich.

Jogada de risco
É surreal o que está acontecendo, às vésperas da discussão no Congresso de uma proposta que é considerada a principal bandeira social do presidente Jair Bolsonaro para sua campanha de reeleição. Além disso, o governo precisa aprovar uma série de medidas para enfrentar a recessão e também mitigar outros efeitos da pandemia, a maioria na área do ministro da Economia. A troca de acusações entre Guedes e Maia é sinal de que a relação entre ambos se deteriorou de tal forma que o diálogo será quase inviável. Quem mais perde com isso é a sociedade. O governo precisa aprovar um Orçamento de 2021 exequível, para evitar a degringolada da economia.

Não faz sentido o ataque de Guedes a Maia. O presidente da Câmara é um político liberal, nunca foi de esquerda. Para ele, porém, dialogar com a esquerda é tão importante quanto ter o apoio do Centrão para o bom funcionamento da Casa, isso possibilita acordos que garantem as votações e o avanço do trabalho legislativo. Maia foi o grande artífice da reforma da Previdência. Dispõe-se a ter mesmo papel nas reformas tributária e administrativa, mas há divergências de fundo entre o presidente da Câmara e Guedes, principalmente sobre o novo imposto sobre operações financeiras, que Maia não aceita. Com o bate-boca de ontem, um dos dois terá de recuar para o processo andar.

Entretanto, pode-se imaginar que Guedes aguarda o fim do mandato de Maia e aposta num presidente da Câmara alinhado com Bolsonaro: Arthur Lyra (PP-AL), por exemplo, o líder do Centrão mais alinhado com o governo. Mas essa é uma jogada de alto risco, porque o governo perde tempo, e nada garante que o sucessor de Maia será um pau mandado do presidente da República. A outra possibilidade, já aventamos aqui: Guedes está se movimentando como quem pretende marcar posição e sair do cargo em grande estilo. O desgaste do ministro da Economia só aumenta junto aos agentes econômicos, seu prestígio com os políticos nunca esteve tão por baixo. Ambos farejaram o cheiro de animal ferido na floresta. Guedes, o superministro, era o Posto Ipiranga de Bolsonaro. Não é mais.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-aonde-guedes-quer-chegar/

Vinicius Torres Freire: Pedalada de Bolsonaro acelera a piora das condições financeira do país

Não foi um bom mês em mercados financeiros relevantes do mundo, mas aqui foi pior

A Bolsa de São Paulo subia pouco antes de o governo anunciar seu projeto ciclístico, na segunda-feira. Desde que se soube da pedalada Bolsonaro-Guedes, a virada do Ibovespa foi de mais 5%. Desde o pico recente de 29 de julho, o principal índice de ações da bolsa perdeu mais de 11%.

E daí? O preço das ações depende também das taxas de juros, em alta desde inícios de setembro e que deram um salto desde o anúncio da pedalada do Renda Cidadã (a moratória dos precatórios e a mão grande no dinheiro do Fundeb). Deram um salto e continuam penduradas no galho. Até as taxas de prazos mais curtos, de um ano, ficaram salgadas.

Em geral, o preço das ações em baixa é um desestímulo para empresas que pensam em vender mais ações ou abrir capital (grosso modo, ninguém quer partilhar sua expectativa de lucros a preço de banana). É a manifestação de um sintoma mais extenso de cautela ou de retranca mesmo. Capital mais caro, é óbvio, desestimula investimentos, expansão dos negócios.

Claro que esses indicadores podem mudar em minutos, para baixo ou para cima. Um dia ou uma semana de remelexos ou mesmo de paniquitos do mercado financeiro não dizem grande coisa. No entanto, uns dois ou três meses de aperto das condições financeiras bastam para começar a engrossar o caldo da economia. “Condições financeiras”: juros, Bolsa, dólar, risco país etc.

Faz um mês que a situação anda malparada. Não foi um bom mês em mercados financeiros relevantes do mundo, mas aqui foi pior. Quanto mais durar o passeio ciclístico da dívida proposto pelo governismo, mais o caldo engrossa. Como se não bastasse a pedalada, o governo também criou encrenca na reforma tributária. Talvez se desperdice o resto escasso de tempo parlamentar deste ano, que será encurtado em um mês pela eleição, em novembro.

Até a noite desta terça-feira, o governismo (Bolsonaro, Guedes e centrão) estava decidido a tocar a ideia de financiar o Renda Cidadã com a moratória de precatórios, embora já tentassem inventar algum outro malabarismo, o que põe mais lenha no fogão. Dada a rejeição da CPMF de Paulo Guedes, Bolsonaro resolveu melar o jogo da reforma tributária até praticamente dezembro (embora, decidido e organizado como seja, possa mudar de ideia amanhã).

A pedalada e a cera na reforma tributária criaram e criarão mais conflitos na Câmara, que é a única entidade que toca de fato as “reformas”.

É evidente, portanto, o risco de que tenhamos mais dois meses de tensão ou paralisia decisória, se não coisa pior. No que diz respeito às “condições financeiras” tanto faz se a gente é adepta ou adversária das “reformas”. Esse rebuliço ignaro do governo sempre lasca algum crescimento econômico.

As reviravoltas políticas e inépcias do governo em geral balançam excessivamente o barco. O preço do dólar depende um bom tanto de jogatina ou de especulações, mas a tensão das peripécias birutas contribui para a volatilidade. O dólar foi a quase R$ 5,90 em maio, baixou a R$ 4,82 no início de junho e está de volta à casa dos R$ 5,60, variações próximas da ordem de 20% em semanas. Isso não presta.

Taxas de juros de longo prazo mais altas prejudicam o financiamento da dívida do governo, que tem de pagar mais o encurtar o prazo, o que está acontecendo de modo preocupante. Pode até parecer que não esteja acontecendo algo de especialmente grave, para as pessoas normais, que não se ocupam disso no dia a dia. Mas esses problemas são veneno em dose pequena e constante: em um certo momento, iremos para o hospital.


Merval Pereira: Paulo Guedes em seu labirinto

Aquela cena em que o ministro da Economia Paulo Guedes foi gentilmente retirado de uma entrevista pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos e pelo líder do governo Ricardo Barros revelou, por imperícia dos dois primeiros, a desavença interna entre os assessores mais próximos do presidente Bolsonaro.

Sem se preocupar com as aparências, o líder Ricardo Barros explicitou dias depois, durante a apresentação do desastrado arranjo feito para bancar o Renda Cidadã, como se desenrola o processo de decisão no governo hoje. O ministro Paulo Guedes representa a opinião da Economia, já não a do governo, perdendo formalmente a qualidade de superministro.

Barros e o ministro Ramos negociam com os partidos da base em nome do governo, levando em conta variáveis além da visão econômica. O consenso político é então levado para o presidente Bolsonaro, que bate o martelo. Foi assim que se deu a decisão sobre usar os precatórios e o Fundeb para financiar o Renda Cidadã, e a confusão foi geral.

A perda de prestígio interno de Paulo Guedes é tamanha que foi Ricardo Barros quem conversou com representantes do mercado financeiro para tentar acalmá-los. Não deu certo, claro, porque não há como explicar que truques contábeis não são truques para especialistas em contas. Um dos participantes resumiu a situação trágica: “O líder do governo parece não ter noção da gravidade da situação”.

Nem Barros, nem Bolsonaro, que abriram mão do Posto Ipiranga para assumir uma negociação que não pode ser meramente política, pois envolve o equilíbrio fiscal do país, já sob o escrutínio dos investidores, nacionais e internacionais. A desavença interna no governo foi explicitada ontem pelo secretário do Tesouro Bruno Funchal, que advertiu que a reação do mercado financeiro à proposta de rolar precatórios para financiar o Renda Cidadã é um “alerta” que deve ser considerado na discussão da medida.

Espantoso que já não tivesse sido antes. Para Funchal, a reação dos agentes econômicos em geral à “solução política apresentada” demonstra que será preciso “mostrar o que significa isso, qual é a repercussão que tem”. Uma maneira sutil, mas contundente, de dizer que a solução foi “política”, não econômica, e que a repercussão negativa precisa ser levada em conta no debate.

Já há alternativas sendo consideradas, uma delas seria redirecionar os recursos dos fundos públicos que foram extintos, cerca de R$ 220 bilhões, para o financiamento do Renda Cidadã, e não para o abatimento da dívida pública, como estava previsto. Essa solução também parece não oferecer segurança aos investidores.

Primeiro, porque vai deixar de abater a dívida pública para financiar outro tipo de dívida, de caráter permanente. O governo continuará sem ter uma renda permanente no Orçamento para custear a nova despesa, como manda a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Como todas as fontes de recursos são eventuais, a única saída do governo seria criar o Renda Cidadã por um período, e tentar renová-lo periodicamente. Seria, no entanto, uma manobra arriscada, pois é praticamente impossível extinguir um programa social desse porte.

O que o governo precisa fazer é uma reforma verdadeira na sua administração para encontrar espaço para financiar programas sociais e investimentos que gerem empregos e renda. Quando o presidente Bolsonaro teve aquele ataque, e foi para as redes sociais dizer que não queria mais ouvir sobre a Renda Brasil, proibindo que a proposta do ministro Guedes de desindexar a economia fosse discutida, perdeu o que parece ser a única saída para a falta de caixa.

O objetivo da desindexação é romper o engessamento do Orçamento de mais de 2/3 dos gastos que são obrigatórios. O debate tendo sido interditado por Bolsonaro, a busca de dinheiro para o novo programa social entra em um labirinto em que Paulo Guedes está perdido, sem o fio de Ariadne.


Ricardo Noblat: Calote e tunga para furar a lei do teto de gastos

De volta ao tempo das pedaladas

Reforma Tributária? Só no próximo ano, e mesmo assim ali pelo fim, será votada no Congresso com grandes chances de não passar ao gosto do governo federal. Reforma Administrativa, ou o remendo a que se deu esse nome? Também só no próximo ano.

Quanto ao programa Renda Cidadã que deveria substituir o programa Bolsa Família… Já nasceu morto. É uma pedalada para furar a lei do teto de gastos capaz de deixar boquiaberto malandro carioca e maloqueiro paulista.

Quem melhor o definiu a trolha até agora foi o economista Gustavo Franco, um dos criadores do Plano Real e ex-presidente do Banco Central: “Precatório é quando a Justiça manda pagar um calote. Calotear um calote é uma reincidência”.

Para financiar o Renda Cidadã, o governo pretende deixar de pagar R$ 39,4 bilhões dos R$ 55,2 bilhões de precatórios e sentenças judiciais devidos e previstos no Orçamento de 2021. É calote no calote dado antes. Empurrar dívida com a barriga engorda dívida.

Quer tomar com a mão grande R$ 980 milhões do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. Dinheiro para Estados e municípios gastarem com a educação. Isso é tunga.

Em tempo de queimadas naturais, acidentais ou criminosas, o mercado financeiro ardeu com a engenharia pilantra montada para sustentar o programa dos sonhos de um candidato à reeleição que só recentemente descobriu seu amor pelos pobres.

A Bolsa de Valores caiu, o dólar foi às alturas e o investidor estrangeiro preparou-se para tirar mais um pouco do que pôs aqui. Mais uma realização de Paulo Guedes, uma vez que é ele que entende de economia. Bolsonaro entende de rachadinhas.

O olho gordo do clã Bolsonaro

Vai rolar muita grana

Negócios são negócios, e alguns deles, por bilionários, desafiadores e atraentes. Adrenalina na veia. Por esses, vale correr riscos.

Enquanto distraem o distinto público com suas rachadinhas, bizarrices e fake news, os Bolsonaro investem em pelo menos três áreas que prometem prosperidade aos eleitos pela sorte: armas (há empresas israelenses no páreo), cassinos (empresas americanas) e telecomunicações, mais especificamente o 5-G que aumentará a velocidade da internet.

Sob a supervisão atenta do pai, presidente da República, os Zeros Um e Três (senador Flávio Bolsonaro e deputado federal Eduardo Bolsonaro) estão muito operantes e à vontade. Garotos ousados e espertos.


José Roberto Campos: Não está bom, mas pode piorar

61,5% dos municípios gastaram mais que o piso obrigatório para educação, e 97,4% mais que o piso para saúde

Apesar de pisos constitucionais definidos e obrigatoriedade de gastos, o desempenho da saúde e da educação estão ainda muito longe do aceitável. O ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu a unificação dos dois limites, ficando a cargo de Estados e municípios decidirem em qual área aplicar mais ou menos. O senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC do Pacto Federativo e do orçamento de 2021, sugeriu ir além: acabar com a vinculação de ambas, o que também não desagradaria Guedes, que coleciona discursos sobres os três Ds (desvincular, desindexar, descentralizar).

Dois setores vitais para a população e o futuro, saúde e educação não deveriam ficar à mercê de ideias improvisadas em um ambiente nefasto de corte de gastos e penúria de recursos. Os pisos constitucionais foram uma forma encontrada para tentar resolver duas carências históricas do país. É preciso colocar algo melhor no lugar, e com calma.

A fusão dos pisos de gastos colocaria mais em risco a educação, do que a saúde, conclui estudo recém-publicado do Ipea1. O trabalho, porém, surpreende ao mostrar que municípios e Estados gastam bem mais nas duas áreas do que o mínimo obrigatório constitucional (15% com saúde, 25% com educação).
E não se trata de uma meia dúzia de exceções, mas da grande maioria. “Dos 5.480 municípios do país, 3.368 (61,5%) tiveram aplicação em educação no período 2015-2018 superior a 26,25% (5% a mais do que o piso), sendo 5.334 os que aplicaram acima de 15,75% (também 5% acima do piso) em saúde (97,4%)”, registra o estudo. De maneira geral, as despesas acima do mínimo obrigatório foram maiores em saúde do que em educação nos municípios, e maiores para a educação no caso de Estados e União.

Os economistas do Ipea foram examinar de perto a argumentação para unificar os dois pisos, que se resume ao fato dela permitir maior eficiência no gasto. Os 25% de despesas obrigatórias com educação seriam uma camisa de força e um desperdício nos locais com menos crianças e jovens. “Se tal hipótese fosse verdadeira, uma análise das aplicações dos municípios em MDE deveria revelar aplicação muito próxima à aplicação mínima (25%). Mas não é isso o que se verifica”, concluem.

Os números mostraram que a fatia dedicada à educação no orçamento dos municípios se situou até 3 pontos percentuais acima do mínimo e os de saúde, de 5 a 7 pontos percentuais acima. Mesmo no Norte e Nordeste houve diferenças de 3 pontos percentuais acima do piso obrigatório para ambas as áreas.

O trabalho constatou que houve fatia “não desprezível” de municípios que aplicaram 30% em saúde e 30% em educação, caso dos que têm até 500 mil habitantes e dos localizados do Nordeste, Sudeste e Sul. “Em síntese, a grande maioria dos municípios analisados (4.480 em 5.480, 81,8%) tem percentual de aplicação superior a 26,25% em educação (piso + 5%). Assim, não parece razoável que tenham aplicado mais do que o mínimo obrigatório em educação se não precisassem realizar despesas adicionais ao piso constitucional”.

Aonde estaria então o maior risco de perdas para os orçamentos de educação e para os da saúde, na fusão dos pisos? Os gastos com saúde são mais inelásticos que os da educação, logo mais resistentes à diminuição de seu papel em políticas públicas e mais visíveis do ponto de vista político-eleitoral. Mesmo assim, embora em menor escala, reduções nesta área podem acontecer.

Para avaliar o grau de risco, os autores separaram os municípios em que haveria maior possibilidade de queda nos gastos com educação - aqueles em que a diferença entre o gasto feito e o mínimo obrigatório é de até 0,7 ponto percentual e as despesas com saúde ultrapassam folgadamente o piso. Usaram critério idêntico para a saúde, com outros percentuais (0,4 e 4,3 pontos percentuais, respectivamente).

Possíveis perdas para a educação com a fusão de pisos ameaçariam 951 de 5.480 municípios, com população de 51,9 milhões de pessoas - 25% da população do país em 2018. Sul e Sudeste somam quase metade dos municípios em questão (455), seguidos pelo Nordeste (342). 41% das cidades nesse caso tem mais de 500 mil habitantes e 32% entre 100 mil e 500 mil habitantes.

Os riscos de diminuição dos gastos com saúde afetariam 97 municípios, mais concentrados no Norte e Nordeste e uma população de 2,24 milhões. Seriam mais atingidas áreas municipais com 20 mil a 50 mil habitantes, que já têm pouca infraestrutura para o atendimento.

As maiores despesas com saúde e educação não significam que seu montante seja suficiente para atender as necessidades. Argentina e Chile gastam quase o dobro per capita do que o Brasil, cujas despesas com educação estão abaixo dos da maioria dos membros da OCDE. Mas é inegável que uma melhoria da gestão nesse quadro de recursos produziria muito mais resultados, como advogam os especialistas.

  1. Gastos em saúde e educação no Brasil: impacto da unificação dos pisos constitucionais. Fabiola Sulpino Vieira, Luciana Mendes Santos Servo, Rodrigo Pucci de Sá e Benevides, Sérgio Francisco Piola e Rodrigo Octávio Orair. Texto para discussão 2596.

*José Roberto Campos é editor executivo do Valor.


Vinicius Torres Freire: Pedalada de Bolsonaro e Guedes bota fogo nos mercados do Brasil dos incêndios

Governo quer dar calote, furar o teto e passar a conta dessa mutreta para o Congresso

A gente esperava que o governo inventasse uma gambiarra a fim de arrumar dinheiro para o Renda Cidadã. Isto é, uma malandragem qualquer para furar o teto de gastos e tentar fingir que não aconteceu nada. Mas a cara de pau foi grande. O governo quer fazer uns R$ 40 bilhões de dívida extra, 0,5% do PIB, fingindo que não. É pedalada.

A esperteza é que Jair Bolsonaro quer pôr essa mutreta na conta do Congresso. Não quis cortar o abono salarial ou congelar os benefícios do INSS, necessário para fazer o Renda Cidadão e manter o teto de gastos. Também não teve coragem e capacidade de propor uma reforma séria do teto. O que sugere então? Calote e mão grande.

Quase todo mundo percebeu a picaretagem, principalmente os colegas de profissão de Paulo Guedes, negociantes de dinheiro. Com o anúncio do novo “plano infalível”, as taxas de juros de longo prazo foram às alturas do pânico da pandemia, em abril. O povo do mercado fugiu da Bolsa e comprou dólar. Enfim, do que se trata?

O governo pretende deixar de pagar R$ 39,4 bilhões dos R$ 55,2 bilhões de precatórios e sentenças judiciais devidos e previstos no pré-Orçamento de 2021. É dinheiro que o governo deve, por decisão da Justiça, para gente que recebe do INSS (43% do total dessas dívidas), para servidores (19% do total) e débitos diversos.

Com esse calote, quer pagar os benefícios de um Bolsa Família encorpado, o Renda Cidadã. Nos planos vagos do governo, o programa chegaria a 24,3 milhões de famílias, que receberiam R$ 260 por mês (ante R$ 191 do Bolsa Família de antes da pandemia).

Na prática, o governo quer fazer uma dívida extra sem dizer que é dívida extra: fazer dívida “escondida” para bancar gastos além do permitido pelo teto. O dinheiro viria dos precatórios que deixam de ser pagos. Essa é a gambiarra: esse empréstimo forçado, arrancado de quem tem dinheiro a receber do governo por sentença judicial. É moratória ou “reestruturação forçada” de dívida.

Para o Renda Cidadã, o governo também vai pegar parte do dinheiro que é obrigado a transferir para estados e municípios gastarem em educação. Quer tomar 5% do Fundeb, o que dá mais R$ 980 milhões, em 2021. O gasto no Fundeb não está sob o limite do teto. O governo vai, pois, gastar um dinheiro em despesas que estão sob o teto (como o Bolsa Família), mas fingindo que não está fazendo tal coisa. É pedalada.

“Tecnicamente”, o governo quer se limitar a pagar precatórios no valor equivalente a 2% da receita corrente líquida da União, o que dá R$ 16,09 bilhões em 2021. O restante dos precatórios devidos fica para ser pago “um dia”, a perder de vista. Vira mais dívida.

Como lembra Josué Pellegrini, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), precatórios não pagos são contados na dívida consolidada, diz a Lei de Responsabilidade Fiscal.

A IFI é um órgão independente de acompanhamento e avaliação das contas públicas, ligado formalmente ao Senado. Felipe Salto, diretor-executivo da instituição, observa ainda que tirar dinheiro do Fundeb é tentativa de driblar o teto de gastos e que o governo se furtou a cortar gastos para arrumar fundos para o Renda Cidadã.

É legítimo querer mudar o teto constitucional de gastos. Dada a situação do governo e do país, no entanto, fazer tal mudança exige grande capacidade técnica e política de modo que a emenda não saia pior do que o soneto. Exige um acordo nacional. Bolsonaro está propondo apenas maracutaia fiscal. Para os donos do dinheiro, é um sintoma de que o governo pode aprontar inclusive para cima deles.

A pressão da sociedade e o Congresso criaram o auxílio emergencial de R$ 600, o que evitou fome, convulsão social e recessão ainda maior. Foi um presente para Bolsonaro. O que ele faz agora? Tumulto picareta, que dá em tensão financeira, que prejudica uma retomada econômica que já seria difícil.

Queima a Amazônia, queima o Pantanal, queima a educação, tem morticínio, tem insulto de humilhados e ofendidos. Agora queima também o mercado. Isto é o Brasil de Bolsonaro.​


Merval Pereira: Truques contábeis

O temor de todos se confirmou: o governo não tem de onde tirar dinheiro para o Renda Cidadã, a não ser que desrespeite o teto de gastos. As medidas anunciadas ontem nada mais são que truques contábeis que não enganam mais ninguém, ainda mais quando quem tem que explicar a trapalhada é um representante do Centrão, especialista em truques, mas jejuno em legalidade.

Aproveitar a verba do Fundo de Educação Básica (Fundeb), que está fora do teto de gastos, para dar um drible na legislação, revela a postura de fura-teto do governo e sua propensão a não dar prioridade para a educação. O presidente que não queria tirar dos pobres para dar aos paupérrimos não se incomoda de tirar dos cidadãos uma perspectiva de futuro melhor através da educação.

Já houve tentativa de usar os recursos do Fundeb, aprovado contra o desejo do governo, para financiar programas sociais, e o governo perdeu. Na negociação ficou acertado que 5% da verba do Fundeb iria para a educação infantil. O governo vale-se disso agora para alegar que os recursos serão usados para colocar as crianças nas escolas no novo programa social Renda Cidadã. Mais uma falácia da linguagem oficial.

A parte dos precatórios é mais difícil ainda de explicar, e quebra mais regras jurídicas. Já houve tentativas, por emenda constitucional, de ampliar o prazo para entes federativos - estados, municípios - que estavam inadimplentes, mas o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional.

O que assusta o mercado financeiro na anunciada redução do pagamento dos precatórios é que ela cheira a um calote na dívida do governo, sinalizando uma posição retrógrada, pois o governo vem pagando por ano cerca de R$ 50 bilhões em dívidas reconhecidas pela Justiça.

A maioria dessas dívidas é de pessoas físicas, geralmente disputas sobre salários de servidores públicos, benefícios previdenciários, pensões, os chamados precatórios de natureza alimentar, que têm prioridade para o recebimento. Quer dizer, o presidente tanto se preocupou em poupar os “paupérrimos” que vai pegar muitos deles pelo calote nos precatórios.

A grande dificuldade do governo sempre foi encontrar dinheiro dentro do orçamento sem mexer em privilégios chamados de “direito adquirido”. A desindexação geral da economia, que é muito engessada, seria uma medida importante, pois permitiria ao governo usar o dinheiro do orçamento com mais flexibilidade.

O governo sempre tentou fazer essas reformas sem provocar protestos e reações corporativas, e acabou mexendo num vespeiro com a redução do pagamento dos precatórios. Uma solução precária, pois a cada ano a dívida aumentará. Seria uma medida de pouco impacto, pensavam os políticos do Centrão, porque atinge pessoas variadas, e não pagar precatórios não é uma situação nova. Não criaria grandes problemas, que mexessem com a popularidade do presidente.

É verdade quanto à popularidade, mas não quanto ao impacto, pois haverá muita disputa na Justiça, e mais uma vez o Supremo terá que arbitrar. A troca do novo imposto digital pela desoneração geral da folha de pagamento das empresas é uma boa negociação, que acabou emperrada dentro da reforma tributária, que não tem consenso no Centrão.

A desoneração acabará surtindo efeito, porque vai permitir o aumento do emprego e a recuperação da economia, que não está crescendo como se esperava. Se o centrão apoiar, pode passar. E o presidente da Câmara Rodrigo Maia, que sempre foi contra a CPMF digital, poderia até reconsiderar, mas com a crise política que as fontes para o Renda Cidadã vai gerar, dificilmente esse assunto ganhara prioridade.

Maia já disse que é preciso regulamentar o teto de gastos, justamente para evitar tentativas de dribles. Quando o Centrão é que tem que explicar para o mercado financeiro a solução encontrada, é sinal de que o ministro Paulo Guedes perdeu o controle das propostas econômicas, e que dificilmente o líder do governo, Ricardo Barros, convencerá os investidores de que está tudo bem.

O tempo é curto, o governo precisa correr para aprovar o Renda Cidadã, pois em janeiro o dinheiro já tem que estar sendo distribuído. Em dezembro acaba o auxílio emergencial.