Paulo Guedes

Míriam Leitão: Plano para a economia

A economia brasileira vive uma crise gravíssima. O PIB está tendo a sua maior queda em um ano, o número de pobres aumentou, o desemprego aflige milhões de famílias, a dívida pública se aproxima do insustentável. Não há um plano para enfrentar esses flagelos. O comando da política econômica é errático e alienado. Em que mundo vive a pessoa que diz que a economia está se recuperando em “ritmo alucinante”? Paulo Guedes, quando fala, assusta pelo seu desapego à realidade.

Em um evento na semana passada no Instituto Brasiliense de Direito Público, Guedes discorreu sobre os erros cometidos na colônia, no Império, pelo “Estado hobbesiano” em mais uma daquelas repetitivas dissertações sobre o tudo e o nada. Em dado momento, defende os bancos estaduais que o governo de Fernando Henrique fechou, mas deveria ter deixado abertos, na visão dele. Em qualquer fala, Guedes precisa achar alguma decisão em que os economistas do real teriam errado. Há um quarto de século.

O ponto é: nunca se sabe qual é o ponto do ministro da economia. Em falas randômicas, ele foge para mundos outros, para tempos da história que interpreta de forma duvidosa, quando a sua matéria deveria ser o tempo presente e a sua tarefa dizer como tirar o país do atoleiro. Quando afinal chega ao mundo atual ele de novo descreve inexistências, como o fato de que a economia está no ritmo “alucinante”. Sobre a nova CPMF que pensa criar, ele fez uma acusação séria. “A Febraban é quem mais subsidia e paga todos os economistas brasileiros para dar consultoria contra esse imposto.”

Algumas falas dele seriam perfeitas se definissem a conjuntura. “Uma série de ações performáticas para tentar o equilíbrio macroeconômico quando era um tsunami o que estava acontecendo”. “Os economistas um pouco deslumbrados pela política”. “Continuamos com a fuga do diagnóstico correto”. Falava do passado, mas as frases seriam perfeitas para definir os eventos atuais.

Aqui e agora, o que está acontecendo é que a recuperação tem sido desigual. Seu grande motor é um auxílio insustentável. A alta é na margem. A maioria dos índices sobe em relação ao mês anterior mas é muito negativo em relação a um ano antes. E o que foi 2019? Um ano pífio, depois de outros anos fracos que se seguiram a uma recessão. O que significa que o PIB encolheu, não se recuperou e caiu de novo. Agora sobe um pouco, mas a economia é menor do que há um ano. Como enfrentar essa letargia é um dos desafios. Há outros.

O ministro Paulo Guedes minimizou o problema do desemprego. Disse que nos Estados Unidos perderam-se 30 milhões de empregos e no Brasil pouco mais de um milhão. A economia americana destrói e recria vagas com grande facilidade porque tem um mercado de trabalho extremamente dinâmico. Não dá para comparar. Mas aqui, 10 milhões de pessoas saíram da população ocupada. É a forma mais próxima para se dimensionar o problema. Existem contratos suspensos e salários reduzidos em empresas fragilizadas. O que acontecerá com esses trabalhadores? O que será das famílias que hoje dependem do auxílio emergencial? Há outros temores.

Um fantasma ronda o Brasil. A dívida pública. Alta demais, alimentada por um déficit persistente, a dívida é a espinha dorsal da economia. Se houver uma crise de confiança na capacidade do Tesouro de honrá-la desmancham-se as empresas, os fundos de pensão, as aplicações das famílias, a economia brasileira. É por isso, e não pelo humor do mercado, que o assunto precisa ser encarado com um plano crível, de longo prazo, de equilíbrio nas contas públicas. Um ajuste inteligente. Que reduza as despesas que concentram renda ou sustentem a parte velha da economia. Um pequeno exemplo. Esse ajuste deveria tirar o subsídio ao carvão em vez de cobiçar a verba do Fundeb. Nesse ajuste, a reforma administrativa seria digna do nome e não esse texto pálido que foi para o Congresso, a revisão das renúncias fiscais seria profunda e ampla.

É preciso um plano que restaure a confiança de que no longo prazo o Tesouro vai equilibrar a dívida, o Brasil ficará menos desigual, a economia será sustentável do ponto de vista ambiental e mais integrada ao mundo. Um programa sério que enfrente a crise e aponte para o futuro e não ideias malucas que nos visitam por algumas horas até serem negadas.


RPD || José Luís Oreiro: Não, Bolsonaro não é desenvolvimentista

José Luís Oreiro questiona, em seu artigo, a análise de que o presidente Jair Bolsonaro se converteu ao desenvolvimentismo: “Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica”

Recentemente, devido à polêmica criada pela possibilidade de “flexibilização” do teto de gastos para dar espaço fiscal ao aumento do investimento público, alguns analistas da mídia e do mercado financeiro se apressaram em afirmar que o presidente da República se havia convertido ao (sic) desenvolvimentismo. Na visão desses analistas, o desenvolvimentismo seria sinônimo do velho populismo econômico latino-americano, o qual teve no ex-presidente argentino em Juan Domingo Perón seu maior expoente político. A característica fundamental, assim, do populismo/desenvolvimentismo seria a gastança desenfreada por parte do governo com o objetivo de obter resultados eleitorais de curto prazo, mas com efeitos nocivos sobre o crescimento econômico e a inflação no médio e no longo prazo.

Não tenho procuração ou interesse para defender Perón ou o peronismo de uma comparação estapafúrdia com Bolsonaro; mas, como me incluo entre os economistas desenvolvimentistas brasileiros, tentarei esclarecer, nas linhas abaixo, o que se entende por desenvolvimentismo.

O desenvolvimentismo é um sistema de pensamento econômico surgido na América Latina a partir do famoso Manifesto Latino-Americano, escrito por Raúl Prebisch por ocasião da primeira reunião da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em 1949, em Havana, Cuba. A ideia fundamental por trás do Manifesto é que a divisão internacional do trabalho entre países exportadores de produtos primários (a periferia) e os países exportadores de produtos manufaturados (o centro) gerava padrão de desenvolvimento desigual entre essas regiões. Isso porque os produtos primários apresentavam tendência secular de queda, revertida apenas temporariamente durante os dois conflitos mundiais, ao passo que os produtos manufaturados mantinham seus preços mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa deterioração dos termos de troca impunha restrições externas ao desenvolvimento econômico dos países periféricos, os quais incorriam regularmente em elevado endividamento externo e crise do balanço de pagamentos.

A solução para esse problema estrutural seria, portanto, a industrialização dos países periféricos, a qual se daria, numa primeira etapa, pela substituição de importações, a ser seguida, assim que fosse possível, pela promoção de exportações de produtos manufaturados, ou seja, pela inserção competitiva das economias latino-americanas nos mercados internacionais. O Estado teria papel importante no processo de industrialização, pois os países periféricos estão presos em uma armadilha de pobreza, em que o baixo nível de renda per capita gera, devido a uma série de falhas de mercado, uma baixa taxa de retorno para o investimento privado. Prebisch e a Cepal apoiavam, portanto, um Estado ativo que lançasse mão de todos os instrumentos de política econômica utilizados pelos países exportadores, mas dentro de uma economia de mercado, global e competitiva. Em suma, o aspecto essencial do desenvolvimentismo é a realização de uma profunda mudança na estrutura econômica dos países latino-americanos, o que incluía também reformas na estrutura fundiária, no sistema educacional e no sistema tributário com vistas a reduzir a desigualdade na distribuição de renda. Essa sempre foi vista pelos desenvolvimentistas como um obstáculo à necessária transformação estrutural da América Latina.

Como o leitor já deve ter percebido, o governo Bolsonaro não tem semelhança alguma com o pensamento desenvolvimentista. Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica cuja agenda de “reformas” tem por objetivo destruir o Estado Brasileiro e sua capacidade de ser agente indutor do processo de desenvolvimento econômico. As obras de infraestrutura que a ala militar do governo deseja realizar, por seu turno, estão centradas na construção de ferrovias para facilitar o escoamento da produção de produtos primários para a exportação; ou seja, irão apenas reforçar o caráter periférico e, portanto, dependente da economia brasileira. Não há nenhum projeto minimamente consistente para a reconstrução da indústria nacional, a qual teve sua participação na geração de empregos e no PIB da economia brasileira prematuramente reduzida nos governos tucanos e petistas. Por fim, mas não menos importante, o tratamento que o atual governo dá à área de ciência e tecnologia mostra de forma didática que o desenvolvimento econômico não é prioridade.

O leitor interessado em saber mais sobre Raúl Prebisch e o pensamento desenvolvimentista pode consultar o livro de Edgar Dosman, Raúl Prebisch (1901-1986): A construção da América Latina e do Terceiro Mundo, publicado em 2011 pela Contraponto.

*Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB).


RPD || Gledson Vinícius: O retrato do livro revela o óbvio

Falta de políticas públicas e a deterioração que a educação e a cultura vêm sofrendo em várias esferas governamentais atingem fortemente a relação entre a sociedade e o livro

Na degradante linha do tempo obscurantista que o país tem construído nos últimos anos, somam-se novos dados desanimadores. Segundo o resultado da pesquisa Retratos da Leitura – divulgada recentemente pelo Instituto Pró-Livro (IPL) em parceria com o Itaú Cultural e o Ibope Inteligência –, o país perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019. Podemos ver em números, agora, o resultado de iniciativas esdrúxulas, como por exemplo, a censura promovida pelo prefeito Marcelo Crivella na Bienal do Rio de Janeiro, em 2019, ou a censura de livros clássicos implementada em Rondônia pelo secretário de educação Suamy Vivecanda.

Os atos de censura, nesse contexto, expressam apenas a face visível de um processo de deterioração que a educação e a cultura vêm sofrendo em várias esferas governamentais, em especial no Rio de Janeiro, durante os últimos anos. Entre os muitos exemplos de desmonte, desorganização e desinvestimento que as políticas públicas do livro, da leitura e da literatura sofreram, destaca-se a falta de compromisso com a universalização das bibliotecas escolares que deveria ter sido implementadas até maio de 2020, como proposto na Lei 12.244, de 2010.  

Outro grande golpe no setor foi a interrupção no programa de distribuição de livros (PNBE), em 2015. Antes da interrupção, entre os anos de 2000 e 2014, foram quase 230 milhões de exemplares distribuídos a um custo médio de R$ 3,80/unidade. O investimento nesse período foi de R$ 891 milhões em compras. Ou seja, algo como R$ 68,5 milhões por ano na renovação dos acervos para escolas de todos os ciclos do ensino básico. O esfacelamento não se restringiu apenas no descumprimento de metas ou na redução dos investimentos financeiros. O processo atingiu a fundo o setor ao extirpar grandes nomes de posições decisórias e cruciais. Recordemos a extinção do Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e da Leitura e a redução do número de representantes da sociedade civil no Conselho Diretivo do plano, por iniciativa do presidente Bolsonaro e do ministro da Cidadania, Osmar Terra.

Se, por um lado, os números que a 5º pesquisa realizada pelo Pró-livros – instituição criada e mantida pelas entidades do livro Abrelivros, CBL e SNEL – nos fazem ver que a descontinuidade de políticas públicas, falta de investimento e desmobilização reverberam fortemente na relação entre a sociedade e o livro (ao ponto de mostrar uma perda de 4,6 milhões de leitores), por outro lado essa mesma pesquisa consegue também, por meio dos números, auxiliar no enfrentamento para desmontar os argumentos que a equipe econômica liderada pelo ministro da economia, Paulo Guedes, apresentou para propor a taxação dos livros em 12%.  

Se para o ministro o livro é um item da elite e que essa elite não vai se importar em pagar imposto, a pesquisa aponta que para 22% dos consultados, o preço é decisivo na hora de comprar. Fica claro também que não é apenas a elite que compõe a massa de consumidores de livros. Segundo o retrato da leitura, 27 milhões dos brasileiros identificados na classe C são compradores de livros, e para essa classe é ainda mais sensível a variação de preço que a taxação imporá.  

A pesquisa reforça as convicções de um dos grandes nomes da nossa literatura, o baiano Jorge Amado. Ele, que também teve forte atuação na vida política do país pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), foi responsável pela emenda constitucional que determinava a isenção de impostos sobre o papel, em 1946. Essa isenção, mais tarde, passou a valer para o livro como produto final, e, finalmente, em 1988, essa isenção ganhou garantia constitucional.

Nesse contexto em que a ciência, as pesquisas, os livros são deslegitimados em detrimento de uma visão de mundo curta e tacanha, citar Jorge Amado se mostra imperioso. Por isso, sugiro que o leitor repita em voz alta a célebre frase do pai de tantas personagens marcantes da nossa literatura: “Eu continuo firmemente pensando em modificar o mundo, e acho que a literatura tem uma grande importância”.  

Nossas vozes precisam ser ouvidas.


Fernando Exman: Bolsonaro vai ter que escolher lado da briga

Cisão de pasta deixaria Guedes em situação delicada

As inconfundíveis orelhinhas inchadas sempre foram um indicativo da presença de praticantes de jiu-jitsu. Durante muito tempo, até serviram de alerta visual aos demais presentes: “Melhor manter distância ou se preparar para correr, pois haverá briga”.

Preconceito, claro. O jiu-jitsu ficou estigmatizado por causa do comportamento inadequado de parte de seus adeptos. Hoje, essa situação parece controlada. Mesmo os entusiastas que não ostentam as tais orelhas aplicam com naturalidade os princípios da arte marcial em suas tarefas cotidianas, tanto no trabalho quanto em atividades pessoais, sem medo de eventuais danos à imagem que essa correlação poderia gerar num passado recente. Em Brasília, inclusive.

Provavelmente o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, seja hoje, no centro do poder, o mais famoso praticante da arte marcial desenvolvida pela família Gracie no Brasil e que ganhou o mundo. Fux é bom de briga. Sabe defender seus pontos de vista com os instrumentos e as técnicas que estiverem à disposição, como se tem visto em seus primeiros dias à frente do STF. Entretanto, essa é outra história.

O que poucos sabem é que o jiu-jitsu também passou a inspirar a equipe econômica. E isso explica a mudança adotada pelo Ministério da Economia na sua estratégia de relacionamento com o Legislativo, desde que a pandemia avançou sobre o território brasileiro.

No início, as autoridades da área acharam que conseguiriam emplacar uma agenda dando uma “prensa” no Congresso. Foi o que o ministro Paulo Guedes chegou a defender em novembro de 2018, poucos dias depois de o presidente Jair Bolsonaro ganhar a eleição, evidenciando como seriam conflituosas as relações entre os dois Poderes.

Acreditava-se, no grupo mais próximo a Bolsonaro, que o resultado das urnas daria força suficiente para o Executivo impor seu programa de forma praticamente irrestrita. Esses auxiliares do presidente haviam esquecido, obviamente, que deputados e senadores saíam da campanha eleitoral com a mesma legitimidade e estariam dispostos a medir forças.

O resultado é conhecido. O governo precisou ceder já na reforma da Previdência. Vieram outros embates com o Congresso, muitos dos quais ruidosos, mas Guedes procurou manter seu plano original de derrubar a trajetória futura dos gastos públicos mais descontrolados: Previdência Social, juros e despesas com o funcionalismo.

Realizada a reforma da Previdência, a qual deve impedir que os gastos da área cresçam mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) nos próximos anos, foi a vez de o governo se preocupar com os juros. Na visão de autoridades do Executivo, o governo estava conseguindo melhorar o balanço da União, desalavancar os bancos públicos e reduzir a relação dívida/PIB.

A expectativa, inclusive verbalizada pelo próprio presidente de forma questionável poucos dias antes de uma reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom), era que a Selic continuasse caindo. E isso até poderia ocorrer, se não houvesse uma mudança de percepção no mercado em relação ao compromisso do governo com o teto de gastos.

Enquanto isso, a equipe econômica trabalhava, sem sucesso, com o objetivo de controlar as despesas com o funcionalismo. Este era, afinal, o terceiro pilar da estratégia que ainda está em execução e agora deve se concentrar em ampliar o horizonte de investimentos, principalmente privados.

A primeira tentativa naquele sentido se deu quando o ministério encaminhou ao Planalto uma proposta de reforma administrativa com mecanismos que visavam estancar o crescimento dos salários dos servidores. A ala política, contudo, brecou a iniciativa.

Bolsonaro foi convencido de que emendar uma reforma à outra, ou seja, a previdenciária à administrativa, era politicamente arriscado demais. Sua popularidade seria prejudicada e o governo não demoraria a enfrentar manifestações de rua, argumentavam seus auxiliares do núcleo palaciano.

A segunda tentativa de Guedes foi durante a discussão da Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo, a qual também acabou não avançando no Congresso.

Foi então que a pandemia chegou e, com ela, nas palavras de autoridades da própria pasta, a equipe econômica decidiu se inspirar nos princípios do jiu-jitsu.

Esta é uma arte marcial que utiliza golpes de alavancas, torções e pressões. Aproveita a força e os movimentos dos adversários para - de forma silenciosa - estrangulá-los ou imobilizá-los, independentemente de seu estilo de luta ou porte físico.

Em outras palavras, o Ministério da Economia conseguiu aproveitar a crescente demanda de Estados e municípios por recursos para fazer valer sua própria vontade. Buscou sujeitar o envio de verbas ao compromisso de que o dinheiro não seria usado para aumentar salários. Gastos pontuais e emergenciais não seriam transformados em despesas permanentes e, além disso, os vencimentos do funcionalismo seriam congelados até o fim de 2021.

A ideia enfrentou resistência do Congresso, mas Bolsonaro ficou ao lado de Guedes. Porém, ao fim do segundo ano do governo, agora a equipe econômica se vê envolvida em algo que se assemelha a uma briga de rua.

Enquanto se esforçava para imobilizar os adversários que considerava mais perigosos, ela começou a apanhar por outros lados e, na confusão, pode acabar perdendo alguns pertences - parte do superministério concebido por Guedes, instrumentos de condução da política econômica, cargos e orçamento.

Os críticos da atual estrutura da pasta sugerem desmembrá-la supostamente por questões administrativas ou para abrigar aliados. Mas eles sabem que, se a ideia for levada adiante, a situação da atual equipe pode ficar insustentável. Com ela fragilizada ou até mesmo reformulada, poderia enfim ser criada a oportunidade que muitos esperam para ultrapassar de vez o teto de gastos. Caberá a Bolsonaro mostrar de que lado está da briga.


Míriam Leitão: Erros fiscais criam armadilha

Por Alvaro Gribel (interino)

Muitos economistas têm minimizado a alta da inflação, mas para economista-chefe do Itaú Unibanco, Mário Mesquita, esse é um problema que precisará ser monitorado com atenção daqui para frente. Mesquita estima que o IPCA continuará acelerando nos próximos meses, até 4,5% em maio do ano que vem, para só então começar a cair. O problema é que muita coisa pode dar errado até lá, especialmente na política fiscal. Uma nova disparada do dólar pode deixar o Banco Central pressionado para aumentar os juros em plena recuperação. “O ambiente se tornou mais delicado para a inflação do que era há alguns meses”, explicou.

A inflação vem subindo mesmo na recessão e, por mais que se diga que ela está concentrada nos alimentos, não é boa notícia. O governo sairá desta crise muito endividado, e isso tem provocado aumento na cotação do dólar. Mesmo que o repasse de preços para muitos produtos seja menor, pela ociosidade da economia, isso pode acabar batendo mais fortemente nos índices.

— Podemos ter depreciação sobre depreciação (do real) e aí, mesmo com ociosidade, tudo fica mais intenso. Se o dólar for para R$ 6 no final do ano, o BC pode ter que iniciar o movimento de alta dos juros no início de 2021 para atingir a meta de 3,75% em dezembro. Por ora, as expectativas de inflação continuam “ancoradas”. Mas tudo vai depender do fiscal — explicou.

Esse é mais um ingrediente na discussão do Renda Cidadã. O governo não sabe de onde cortar para viabilizar o programa e qualquer medida que aumente o déficit no ano que vem será mal recebida pelo mercado, com reflexo no câmbio. Acionar o orçamento de guerra para driblar o teto de gastos teria o mesmo efeito negativo, porque vai significar aumento de despesa, de qualquer forma. Mesquita acha que o Banco Central não hesitaria em elevar a Selic, em caso de piora das expectativas.

Sobre o ritmo da recuperação, o Itaú estima que o PIB deste ano cairá 4,5%, para crescer apenas 3,5% no ano que vem. Ele explica que três pontos dessa alta em 2021 já estão assegurados pelo chamado “carregamento estatístico”. Ou seja, o crescimento, de fato, será pequeno.

— Na prática, se a economia não crescer nada no ano que vem ela já garante um crescimento de 3% na média, por efeito estatístico. Então a alta de verdade será pequena, parecida com a que a gente já vinha tendo antes da pandemia — afirmou.

O país ainda está longe de uma recuperação plena na economia. E agora ganhou um complicador a mais, o risco de aumento da inflação e da taxa básica de juros.

Endividamento em alta

A dívida das famílias com o setor financeiro bateu recorde em julho. Segundo dados do Banco Central, ela chegou a 47,45% da renda anual, o maior percentual desde 2005, quando começou a série histórica. Parte da alta no mês foi provocada pelo financiamento imobiliário, que subiu de 27,27% para 27,63%. Durante a pandemia, muitos bancos adiaram o pagamento das prestações, que foram incorporadas ao saldo devedor. Essa tendência de alta do endividamento total, no entanto, já vem desde dezembro de 2017. Assim como o governo federal, as famílias estão com mais dívidas a pagar.

PIB e pandemia

A consultoria Oxford Economics tem cortado as projeções para o PIB mundial do ano que vem. Há uma combinação de fatores: aumento de casos de Covid, fim dos estímulos fiscais e crescimento mais forte no final deste ano, o que aumenta a base de comparação. “Nos últimos meses ficou claro que as medidas de isolamento continuarão necessárias, especialmente em países que não fazem testes e rastreamentos de forma efetiva.” Fica o alerta.


Pablo Ortellado: A normalização de Bolsonaro

Concessões ao establishment podem desmotivar base militante do presidente

Existe um equilíbrio difícil entre o que é necessário para governar e o que é necessário para se eleger, sobretudo com plataforma populista.

A indicação de Kassio Nunes para o STF, o jantar de Bolsonaro com Toffoli e Alcolumbre e a retomada do diálogo entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia são os sinais mais visíveis da normalização de Bolsonaro que abandonou o discurso golpista e fez sucessivas concessões ao establishment.

As duras críticas que recebeu da militância mostra que os movimentos necessários para estabelecer as bases políticas para a governabilidade podem comprometer a disposição e o entusiasmo dos apoiadores. Será que Bolsonaro vai conseguir equilibrar os pratos?

Dois fatores contribuíram para a mudança de atitude do presidente.

O primeiro foi a agressiva reação de Alexandre de Moraes que conduziu com mão dura dois processos que envolviam apoiadores de Bolsonaro —aquele que investigava os atos antidemocráticos e aquele que investigava ataques à corte nas mídias sociais.

O segundo foi a descoberta tardia e fortuita de que boas políticas públicas —sobretudo políticas sociais —rendem votos. Bolsonaro descobriu esse princípio patente por acaso, quando as circunstâncias da pandemia o forçaram a implementar um programa amplo de transferência de renda.
Bolsonaro pode ser bronco e obtuso, mas tem instinto de oportunidade.
Seu compromisso com o radicalismo online veio do reconhecimento de que sua eleição se deveu à agitação de Carlos Bolsonaro no WhatsApp. E sua nova postura parece vir do reconhecimento de que no momento em que a agitação militante foi contida, sua aprovação cresceu com a implementação do auxílio emergencial.

Mas nem tudo o que o ajuda a governar, o ajuda a se reeleger.

Como Bolsonaro bem demonstrou nas eleições de 2018, uma militância entusiasmada e enraizada na sociedade pode derrotar campanhas adversárias com mais recursos. Sua recondução em 2022 depende de uma base motivada e continuamente mobilizada.

Bolsonaro não pode se dar ao luxo de deixar a militância esmorecer. Ele vai precisar fazer como Lula, que enquanto governava com um pragmatismo desavergonhado, distribuía migalhas à militância de esquerda que passou oito anos acreditando que seu governo estava em disputa.

É o que parece que Bolsonaro já começou a fazer com a promessa feita à base evangélica de que, embora não tenha sido dessa vez, sua próxima indicação ao STF será de um ministro, não apenas evangélico, como pastor —e acendeu a fantasia dos fanáticos com a imagem de sessões do Supremo precedidas por uma oração.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia


Murillo de Aragão: O poder e a gastronomia

O caminho do entendimento a partir de uma refeição

Brasília tem sido agitada por uma sucessão de jantares. São encontros recorrentes que ganharam relevância por causa dos desafios impostos pela pandemia e pela política fiscal. Sobre esse assunto, dois aspectos devem ser considerados.

O primeiro é que a sequência de eventos é um bom sinal. Revela que há a vontade de se expor ao diálogo e o reconhecimento de que não existe monopólio de poder. O segundo aspecto é que se trata do processo de construção de consensos. Em torno da mesa se confrontam divergências e se buscam soluções. Não é um fenômeno novo.

Pelo menos desde os anos 80, quando os ventos da democracia voltaram a soprar no Brasil, almoços e jantares sempre foram espaços de entendimento, conspiração, lobby e agendas de poder. Restaurantes de Brasília foram templos de negociação. Ulysses Guimarães, no Piantella, tinha a sua turma do poire, que articulou a derrubada do regime militar nas eleições indiretas de 1985.

Na Constituinte, entre 1986 e 1988, Luís Eduardo Magalhães, filho de ACM e deputado constituinte pelo PFL, e José Genoíno, deputado e líder do PT, dois políticos de campos opostos, atravessaram noites conversando e se entendendo. Ou, pelo menos, reduzindo as diferenças.

O evento que selou a paz entre Rodrigo Maia e Paulo Guedes caracteriza a política da mesa de jantar

Os jantares ocorrem de forma segmentada. Obviamente, os mais importantes servem para debater pautas e conspirações. Mas também para alavancar carreiras. Fábio Ramalho, deputado mineiro conhecido como Fabinho Liderança, durante anos promoveu concorridos encontros semanais em sua casa. Ali, construiu uma rede de apoios que o levou à vice-presidência da Câmara.

Na gestão de Michel Temer, em oposição ao governo fechado de Dilma Rousseff, o Palácio da Alvorada foi muitas vezes tomado por centenas de parlamentares em jantares em que se debatia a agenda de reformas. Muitas resistências foram debeladas a partir das oportunidades de diálogo.

A pandemia feriu de morte alguns dos restaurantes de Brasília. Lamentavelmente, Piantella e Gero fecharam as portas. Eram espaços neutros onde os diversos se encontravam e dialogavam. Ao contrário do que acontece em Washington, nos Estados Unidos, o establishment político nacional nunca privilegiou restaurantes por razões partidárias.

O medo da contaminação deslocou o foco dos eventos para as residências. Com menos gente, mas com pautas ainda intensas. Quase sempre a comida é razoável, a bebida é de qualidade, mas o que interessa mesmo são as articulações. Recentemente, o evento realizado na residência de Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União, que selou a paz entre o presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro da Economia, Paulo Guedes, motivou-me a cunhar a expressão “gastropolitics”, para caracterizar a política em torno da mesa de jantar.

A “gastropolitics”, longe de ser um problema, tampouco é solução. É apenas uma exigência e faz parte do processo civilizatório, promovendo os meios para que se discutam soluções. Lembrando que o fim da política é o começo da barbárie e do conflito. Assim, dialogar nunca é demais.

*Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708


Adriana Fernandes: Renda Cidadã x Renda Brasil

Quem acredita que vai dar tempo para erguer um novo programa social até o fim de novembro?

Para tudo! O presidente Jair Bolsonaro decretou que até as eleições “não se fala mais nisso daí”. O isso daí são as medidas que precisarão ser tomadas para solucionar um problema que está estampado numa reportagem do Estadão desta semana: o fim do auxílio emergencial deve devolver 15 milhões de brasileiros à pobreza no próximo ano. A previsão foi feita pela FGV Social em levantamento coordenado pelo economista Marcelo Neri, que constata: é cristalino que isso vai acontecer.

Para “varrer o PT do Nordeste”, na expressão de um auxiliar do governo, o presidente e aliados promoveram a prorrogação do auxílio emergencial até dezembro. Mas agora é hora dos aliados ganharem a eleição.

Todos contam com a falta de tempo para a solução do problema para empurrá-lo para 2021 quando o cenário político poderá ser outro com um rearranjo de forças. Quando a eleição acabar (o segundo turno está marcado para o dia 29 de novembro), quem acredita que até lá vai dar tempo para erguer o novo programa social? No Palácio do Planalto, espertamente, já se fala em mudanças por meio de dois programas: Renda Cidadã e Renda Brasil.

É por isso que não há confusão de nomes quando o ministro Paulo Guedes prefere usar Renda Brasil ao se referir ao programa social. Muitos viram no uso do nome mais antigo falha ou esquecimento do ministro. Foi proposital.

O Renda Brasil é o programa que a sua equipe trabalha e que estaria tecnicamente pronto, só faltando a coragem dos políticos para fazê-lo. Uma reformulação de 27 programas já existentes. Ao longo da semana, o ministro repetiu esse ponto várias vezes como quem diz: prestem atenção! Não foi confusão.

O Renda Cidadã pode se transformar na ponte até o Renda Brasil. Um Bolsa Família melhorado até que o Renda Brasil chegue mais adiante. Esse, sim, o programa-plataforma para reeleição de Bolsonaro.

Com o impasse do que cortar e a pressão do mercado para manter o teto, essa estratégia pode dar um pouco mais de fôlego para a equipe econômica conseguir apoio às medidas de corte de despesas e, assim, colocar o programa social dentro dos limites do teto.

Diante da urgência que o momento exige com a proximidade do fim do auxílio, porém, ganha força no Congresso a proposta de deixar os recursos extras do novo programa social (além dos R$ 35 bilhões já previstos no Orçamento de 2021) fora do teto de gastos. Uma exceção temporária até que o Congresso aprove medidas de ajuste mais duras e que não têm tempo de avançar até o fim do ano. Para mostrar compromisso com austeridade fiscal mesmo com essa flexibilização do teto de gastos, os recursos do programa fora do teto seriam compensados com aumento da carga tributária, corte de renúncias fiscais ou outras medidas que melhorem a arrecadação.

Funcionaria com um benefício variável temporário para superação da crise com um valor próximo aos R$ 300 dessa terceira e última rodada do auxílio. A vantagem para quem defende a ideia é que essa despesa adicional poderia fugir do conceito de despesa de caráter continuado e permanente, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, exigindo um nível de redução para fins de compensação orçamentária menor.

Esse tipo de saída vai na direção proposta pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em artigo publicado pelo Estadão, FHC sugere que o governo poderia mexer na regra fiscal para, ao mesmo tempo, abrir espaço orçamentário para o gasto e não provocar uma reação muito negativa do mercado. Uma saída organizado desse tipo para o impasse atual ainda encontra resistência dos defensores puristas do teto de gastos no mercado, governo e Congresso, entre eles Paulo Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Maia e Guedes se alinharam na defesa do teto de gastos sem mudanças, que ajudou a diminuir o nervosismo, mas não tirou do radar as incertezas fiscais, que estão colocando o País à beira de uma crise da dívida na sequência da provocada pela pandemia da covid-19.

Políticos e até mesmo economistas experientes do mercado já viram que esse caminho está cada vez mais próximo. A dúvida é saber qual imposto vai subir ou isenção acabar. Se Maia começar a aceitar, vai ser a senha para a mudança. Quando novembro chegar e a eleição acabar, a pressa de dar uma solução deve levar à essa mudança de rota.


Ribamar Oliveira: O calendário político é o que conta

Nem mesmo o mais ingênuo dos analistas vai acreditar que qualquer proposta de reforma poderá ser discutida e votada antes do término das eleições municipais

Aconteceu o que era previsível. O calendário eleitoral deste ano se sobrepôs a todas as demais questões. A partir da próxima semana, deputados e senadores terão olhos e disposição para tratar apenas das eleições municipais. Nem mesmo o mais ingênuo dos analistas vai acreditar que qualquer proposta de reforma poderá ser discutida e votada antes do término do pleito. Entramos no recesso branco, como é chamado o período pré-eleição pelos parlamentares.

Senadores e deputados não conseguiram sequer instalar a Comissão Mista de Orçamento do Congresso, responsável por apreciar e votar a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) para 2021 e a proposta orçamentária. Isso dá uma dimensão da falta de acordo político sobre o cenário fiscal do próximo ano.

Os parlamentares estão preocupados é com a eleição de seus principais cabos eleitorais, que são os prefeitos e os vereadores de suas regiões. Neste momento de grandes disputas políticas locais, o Ministério da Economia queria que o governo encaminhasse proposta ao Congresso primeiro acabando com o abono salarial aos trabalhadores que ganham até dois salários mínimos e com o seguro-defeso, concedido aos pescadores artesanais na época da desova dos peixes. Depois propuseram a suspensão, por dois anos, da correção dos valores dos benefícios previdenciários, o que resultaria em redução, em termos reais, das aposentadorias e pensões.

Obviamente, os líderes partidários que apoiam o governo devem ter mostrado ao presidente Jair Bolsonaro que essas propostas, apresentadas pelo governo às vésperas do pleito eleitoral, significariam um suicídio político, que não estavam dispostos a cometer. Ao apresentar as propostas, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, deu a oportunidade ao presidente de produzir um frase de grande efeito eleitoral: “Não vou tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.

Às vésperas de uma eleição, ou se apresenta propostas populares ou não se apresenta nenhuma. Há obviedades que parecem serem esquecidas, às vezes até mesmo por pessoas inteligentes e experientes. As medidas para o ajuste das contas públicas, que são duras, e para viabilizar o programa Renda Cidadã, que exigirão cortes em outras despesas, ficaram para ser discutidas após as eleições.

Depois do famoso jantar que pacificou as relações entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro Paulo Guedes, duas estratégias foram anunciadas. Em primeiro lugar, o novo programa social do governo terá que caber dentro do teto de gastos da União. Os ministros “fura teto” parece que foram, pelo menos temporariamente, contidos.

Ao mesmo tempo, abriu-se uma janela que já vinha sendo reivindicada pelos políticos desde agosto deste ano. O governo aceitou colocar na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 188, conhecida como PEC do Pacto Federativo, um dispositivo que torna permanente a possibilidade de acionar o chamado “Orçamento de Guerra”, instituído pela emenda constitucional 106 e adotado neste ano para o enfrentamento da pandemia.

Os políticos querem que as regras da emenda constitucional 106 possam ser utilizadas em qualquer situação de calamidade. Fonte do governo explicou ontem que os políticos estão temerosos com a possibilidade de uma segunda onda da pandemia da covid-19 no Brasil, como está ocorrendo atualmente na Europa. E querem se antecipar a essa possibilidade.

O artigo 11 da emenda 106 diz literalmente que a emenda entrará em vigor na data de sua publicação e “ficará automaticamente revogada na data do encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional”. A interpretação de especialistas ouvidos pelo Valor é que, se o atual decreto de calamidade for prorrogado e o Congresso Nacional reconhecer o estado de calamidade, o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações instituído pela emenda 106 continuará em vigor.

De acordo com essa interpretação, não haveria motivo, portanto, para que um novo mecanismo prevendo que o “Orçamento de Guerra” seja incluído na PEC 188, a menos que se queira fazer modificações no texto atual da emenda 106. Para que o “Orçamento de Guerra” continue em vigor, bastaria que o decreto de calamidade pública seja prorrogado e que tal situação seja reconhecida pelo Congresso Nacional.

A vontade dos políticos de incluir o “Orçamento de Guerra” na PEC 188 desperta suspeitas. Pode-se especular que o objetivo seja criar condições para a prorrogação do decreto de calamidade pública, que permitiria ao governo destinar recursos para pagar auxílios emergenciais e adotar outras medidas extraordinárias, à margem do teto de gastos e de regras previstas na lei de responsabilidade fiscal (LRF).

Qualquer que seja a intenção dos políticos em tornar permanente as regras do “orçamento de guerra” para os casos de calamidade, é preciso observar que o estado de calamidade precisará estar devidamente caracterizado, pois, do contrário, o acionamento das regras do regime extraordinário fiscal e financeiro poderá ser interpretado como fraude à Constituição.

Na verdade, o governo pode fazer despesas adicionais em 2021 fora do teto de gastos, mesmo sem a prorrogação do decreto de calamidade pública ou da existência do “Orçamento de Guerra”, desde que elas sejam destinadas a combater os efeitos remanescentes da pandemia. Para isso, o presidente da República poderá editar medida provisória de crédito extraordinário.

O “Orçamento de Guerra” autoriza o governo a segregar as despesas realizadas para o combate aos efeitos da pandemia, permite a adoção de processo simplificado de contratação de pessoal, de obras e de serviços, suspende a vigência de regras da LRF para a criação ou expansão de despesas, desde que destinadas ao enfrentamento da calamidade, e dispensa a União de cumprir a chamada “regra de ouro”, que limita o aumento da dívida pública às despesas de capital (investimentos e amortizações da dívida).


Maria Cristina Fernandes: Quem janta por último em Brasília

Frente a um Congresso que avança sobre o teto de gastos para definir o poder na Casa, Bolsonaro articula Tereza Cristina para comandar a Câmara

A questão não é mais se o Brasil ainda precisará de um regime de exceção fiscal para 2021. Já está claro que sim. Trata-se, agora, de definir quem dará as cartas nesse regime que estenderá parte das regras fiscais da pandemia para o próximo ano. Ou seja, quem define como, quando e para qual finalidade o teto de gastos deve ser rompido.

Foi este o guisado da noite de segunda-feira que reuniu o ministro da Economia e o presidente da Câmara dos Deputados, além de dois outros ministros de Estado, Fábio Faria (Comunicações) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), quatro senadores, Eduardo Braga (MDB-AM), Fernando Bezerra (MDB-PE), Kátia Abreu (MDB-TO) e Renan Calheiros (MDB-AL), um deputado federal, Baleia Rossi (MDB-SP), além de três ministros do Tribunal de Contas da União, José Múcio Monteiro, Vital do Rêgo e Bruno Dantas, o anfitrião.

Uma alternativa é a aprovação de um dispositivo, previsto, desde 2019, na Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo, em tramitação no Senado, que cria o “Conselho Fiscal da República”. Esta instância, formatada para os presidentes dos três Poderes e do TCU, além de três governadores e três prefeitos, pode vir a ser aclimatada aos tempos que correm.

A participação de Paulo Guedes neste Conselho, por exemplo, lhe imporia uma vantagem sobre o ministro do Desenvolvimento Regional, com quem mantém incontida refrega. No jantar, chegou mesmo a testar a hipótese da cadeira de Rogério Marinho vir a ser ocupada pelo deputado federal e ex-ministro das Minas e Energia, Fernando Bezerra Filho (DEM-PE).

Ficou registrado o esforço de Guedes em conquistar a adesão de um dos senadores presentes, pai do cortejado e sabidamente próximo de Marinho, para sua causa. Atiçou ainda o ânimo daqueles que veem nas obras do ministro do Desenvolvimento Regional uma muleta para o poder crescente do PP, partido do senador Ciro Nogueira (PI) e Artur Lira (AL), este último candidatíssimo à cadeira de Rodrigo Maia.

Se para Guedes, a disputa com Marinho ofusca o horizonte, para os presentes o que importa mesmo é a divisão de tarefas na fixação da claraboia dos gastos. Um dos senadores chegou a dizer ao ministro que o aval do presidente da República não basta para Guedes impor suas ideias ao Congresso. Deveria, sim, testar sua viabilidade primeiro com as lideranças partidárias para, aí sim, todos juntos, levar as iniciativas a Jair Bolsonaro, a quem cabe encampá-las. Se fosse possível traduzir num traçado a preleção do senador, o desenho seria o de Guedes sentado no colo das lideranças para a escolinha da política como ela é.

Além do conselho, ideia de difícil operacionalização, o próximo embate para a definição do novo regime fiscal é o da Comissão de Orçamento do Congresso. O presidente e o relator são escolhidos por votação de seus integrantes - 36 deputados e 26 senadores.

É esta disputa que definirá, em grande parte, a sucessão na Câmara dos Deputados, que opõe Lira e Maia. O candidato do primeiro - e do presidente do PL, Valdemar Costa Neto - é a deputada Flávia Arruda (PL-DF). O do segundo - e do presidente do DEM, Antonio Carlos Magalhães Neto - é o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA).

Se as lideranças do Congresso têm a expectativa de que podem colocar Paulo Guedes no colo mediante um pedido de desculpas de Maia, já não têm a mesma desenvoltura em relação ao presidente. Bolsonaro já adquiriu a capacidade de operar os códigos do poder.

Depois do condomínio de lealdades montado para a escolha do juiz Kassio Nunes Marques para o Supremo e da confirmação de seu braço direito, o ministro Jorge Oliveira, para a Corte (TCU) que aquilata com quantas pedaladas se derruba um presidente da República, Bolsonaro mira agora na disputa pela Câmara.

Entre a visita ao ministro Gilmar Mendes, quando selou sua escolha para o STF, e o caloroso almoço na casa do ministro Dias Toffoli, Bolsonaro recebeu um ministro de tribunal superior e pôs na pauta de uma longa conversa o nome de um tertius, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina.

Deputada federal pelo DEM do Mato Grosso do Sul, a ministra, uma das mais bem avaliadas da Esplanada, tem servido de barreira a dois franco-atiradores do governo, os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Encontrar um substituto para a Agricultura, porém, parece ser, ao presidente, uma tarefa menos difícil do que tirar da cartola um novo comando para a Câmara.

Ao pinçar uma correligionária de Rodrigo Maia, Bolsonaro sinalizaria que não quer se indispor com o presidente da Câmara, ainda que se exponha ao risco das imprevisíveis disputas da Casa. Liderança egressa do PSB que se projetou na poderosa bancada ruralista da Câmara, Tereza Cristina ainda teria a capacidade de fazer, no cargo, a transição para a chapa de Bolsonaro em 2022. No PRTB, e fora dele, dá-se por certo que a vaga de vice não voltará a ser ocupada por Hamilton Mourão na eleição de 2022.

A colocação de Tereza Cristina na roda, à revelia da ministra, não é uma demonstração apenas de que o presidente se antecipa ao apetite com o qual o Congresso retomará os trabalhos em fevereiro de 2022. É também sinal de que Bolsonaro pretende assumir, de uma vez por todas, a condição de presidente do sistema, que pretende ser o candidato do centro em 2022. Abraçado pelos tribunais e pelo Congresso, já não precisará tanto assim dos pentecostais, dos reservistas e dos terraplanistas.

Dois termômetros indicam que o comportamento do presidente é pesado e medido. Na aferição da Bites, este movimento de Bolsonaro não trouxe dano à sua base de 38 milhões de seguidores, mas impôs uma perda de 1,2 milhão nas redes sociais do pastor Silas Malafaia. Nas pesquisas qualitativas de Esther Solano (Unifesp), com eleitores bolsonaristas mais pobres, o presidente é visto como uma vítima que precisa buscar alianças para governar.

É um eleitor que avalia ter errado uma vez, com o PT, e resiste a aceitar que possa ter errado de novo. Só vai mudar de ideia se não tiver o que comer. Se conseguir fazer prevalecer o acordão dos tribunais, o instinto de sobrevivência de Bolsonaro estará focado neste eleitor. É ante o apetite do Congresso e o temor do mercado sobre a situação fiscal, que se definirão os rumos do poder - e da fome.


Míriam Leitão: Ruído constante na economia

Com Alvaro Gribel (interino)

Não há um único dia em que investidores e empresários deixem de falar sobre a ampliação do Bolsa Família. O vazamento de ideias é constante e varia conforme a fonte do governo. Se vem da equipe econômica, a sinalização é de que não haverá aumento de gastos. Se vem de ministros ligados à articulação política, prega-se que uma solução será encontrada. Ontem, ao mesmo tempo em que o ministro Paulo Guedes negou a hipótese de prorrogação do auxílio no ano que vem, houve quem defendesse um mecanismo para acionar o orçamento de guerra, o que facilitaria o aumento dos gastos. Limitar supersalários esbarra na independência orçamentária dos poderes.

Em sua carta mensal enviada a clientes, o Verde Asset, do economista Luis Stuhlberger, comparou a atuação do governo na pandemia entre 20 países emergentes. O Brasil, apesar de ser o mais endividado (85%), foi o que mais gastou como proporção do PIB (9%). “Os únicos países emergentes que gastaram parecido com o Brasil são Peru e Chile, ambos com grau de investimento e dívida pública antes da pandemia próximas a 25% do PIB, com muita margem de manobra.” O Brasil está dois degraus abaixo do nível de investimento e no mercado já há preocupações de que um novo rebaixamento possa acontecer no final do ano.

Se o objetivo do presidente é transferir recursos aos mais pobres para manter a sua popularidade, o tiro pode sair pela culatra. O presidente da Abit, Fenando Pimentel, que representa a indústria têxtil, também está preocupado com o fim do auxílio no final do ano, o que pode afetar o consumo e a recuperação do setor. Mas ele lembra que, mesmo que o Bolsa Família dobre de tamanho, nem de longe terá o mesmo impacto do auxílio emergencial.

— O auxílio emergencial custa R$ 50 bilhões por mês. O Bolsa Família é R$ 2,5 bi mensal. Mesmo que o governo consiga dobrar o programa para R$ 5 bi, o efeito sobre o consumo será muito mais limitado do que a ajuda que foi dada na pandemia —afirmou.

A ideia de liberar recursos limitando de fato o teto do funcionalismo parece boa, mas enfrenta problema técnico. Segundo o relator da reforma administrativa na Câmara, deputado Tiago Mitraud (Novo-MG), os orçamentos dos poderes são independentes e o que pertence ao judiciário não poderá ser transferido para um programa social do executivo. “Ainda mais quando for recurso de estados e municípios”, explicou. O balão de ensaio parece que furou novamente.

Cautela automotiva

A Anfavea, que representa as montadoras de veículos, revisou de -45% para -35% a estimativa de queda da produção este ano. O clima ainda é de cautela. Se em setembro houve crescimento de 4,4% sobre agosto, em relação ao mesmo mês do ano passado foram produzidos 11% menos veículos. Olhando para frente, o presidente da entidade, Luiz Carlos Moraes, explica que ainda permanece um cenário de incerteza: “Não dá para desconsiderar que a taxa de desemprego está em 13,8%, que a taxa de juros aos consumidores está em 19%, que estamos tendo aumento de custos acima do esperado, com aço, dólar, IGP-M. Estamos mais cautelosos por enquanto”, explicou.

Ajuda com os vetos

O sucesso no leilão de saneamento em Alagoas, na semana passada, pode ajudar o governo a manter os vetos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro no novo marco regulatório. Bolsonaro vetou a prorrogação de contratos das empresas estaduais, quebrando acordo feito no Senado, mas o resultado do leilão pode fazer com que os senadores insatisfeitos mudem de ideia, segundo o presidente do Trata Brasil, Edison Carlos. “Foram R$ 2 bilhões de outorga, valor muito acima do esperado. Os governadores vão ver o potencial de dinheiro entrando no caixa. O novo marco já está tendo efeito sobre os leilões, e isso pode estimular os senadores a deixarem tudo como está, sem mexer nos vetos”, disse.


Fernando Exman: Guedes continua sob ataque especulativo

Modelo de superministérios é alvo de críticas

Brasília enfrenta por estes dias aquela época do ano marcada pela extenuante transição entre a seca e o início da temporada de chuvas. A estiagem chega ao seu ápice, pelo menos do ponto de vista de quem habita a capital federal construída no meio do cerrado, com taxas de umidade relativa do ar que se aproximam dos 10%. A torcida geral é para que qualquer chuvisco seja o prenúncio de um período mais fértil, mas o tempo é traiçoeiro e pode decepcionar os mais ansiosos. Neste clima insistentemente árido se desenrolou o jantar de segunda-feira promovido para reaproximar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro Paulo Guedes, da Economia.

Para quem desejava ter notícias positivas, até que chuviscou. Gestos públicos foram feitos: o presidente da Câmara desculpou-se por chamar o chefe da equipe econômica de “desequilibrado”. Guedes, por sua vez, reconheceu os trabalhos prestados por Maia desde fevereiro do ano passado para assegurar a aprovação de itens da agenda econômica e outros projetos de interesse do governo.

Poucas horas depois do encontro, não se fala em vencedor ou derrotado. O jantar serviu a ambos, que buscavam um reposicionamento no jogo e podem ter percebido que, juntos, têm mais a ganhar neste momento.

Maia andava afastado da cena por causa da covid-19, enquanto Guedes precisava dar um novo lustre à imagem do governo e se reapresentar como interlocutor privilegiado do Executivo com a cúpula da Câmara. O MDB aproveitou a oportunidade para lançar uma boia em direção ao ministro da Economia, antes que Guedes seja arrastado pela correnteza para o alto mar, ao mesmo tempo em que se mostrou um parceiro estratégico de Maia nesta reta final de gestão à frente da Casa.

A mensagem geral foi a defesa do teto de gastos, hoje a preocupação central dos agentes do mercado e dos políticos que passaram a vincular o respeito a esta regra às perspectivas de permanência do ministro da Economia no governo.

O ambiente era propício. O anfitrião era o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU). Junto com Maia, o dono da casa desempenhou um papel central na confecção da proposta de emenda constitucional do Orçamento de guerra, instrumento que flexibilizou as regras fiscais deste ano para viabilizar, por parte do governo, o combate aos efeitos da crise decorrente da pandemia tanto na economia quanto na vida de milhões de famílias.

Dantas é o relator natural dos assuntos relativos à área econômica no TCU, o que lhe confere ainda maior legitimidade para tratar desses temas em contatos reservados ou pronunciamentos públicos. E ele tem se mostrado um defensor do teto de gastos na Corte de Contas, a despeito do assédio de integrantes do governo favoráveis à flexibilização do dispositivo constitucional que se tornou a principal âncora fiscal do país.

Os demais convivas eram principalmente do MDB, o partido que esteve à frente das articulações para a implementação do teto durante o governo Michel Temer. A sigla relata o Orçamento de 2021, a PEC do Pacto Federativo e não hesitará em ocupar os espaços políticos que a conjuntura lhe oferecer.

Ainda é cedo, contudo, para se ter uma nova previsão do tempo de Brasília.

A permanência do ministro da Economia segue sob ataque especulativo - por parte de alas do próprio governo, segmentos do Congresso e setores do mercado. Seu rigor fiscalista é questionado pela ala desenvolvimentista do Executivo, que escorou o presidente Jair Bolsonaro em seu pior momento e o ajudou a estancar as turbulências institucionais entre os Poderes que poderiam se converter num processo de impeachment.

Cessaram as ameaças ao mandato do presidente e, agora, esses setores insistem na ampliação de seus orçamentos e dos investimentos públicos.

No Congresso, a trégua esboçada durante o jantar só será realmente testada quando o ministro e Maia precisarem se sentar à mesa para discutir os temas que os levaram ao rompimento.

Um deles é a reforma tributária e a intenção do Executivo de instituir um novo imposto sobre transações financeiras. Maia sempre foi contra a recriação de uma contribuição nos moldes da antiga CPMF, mas, conforme revelou o Valor, tinha sido procurado por articuladores que tentavam convencê-lo a retirar os obstáculos à discussão do tema. Em contrapartida, o governo concordaria em levar adiante a proposta de reforma tributária por ele defendida.

Então veio o rompimento, quando o governo decidiu adiar as discussões sobre a reforma tributária para depois das eleições municipais. A estratégia interditou não só os trabalhos da comissão mista que trata do assunto, mas também atrapalhou os planos de Maia para a etapa final de seu mandato à frente da Câmara.

De forma inadvertida ou não, Guedes também acabou se intrometendo na disputa pela sucessão de Maia, ao levantar a suspeita de que o deputado teria fechado um acordo com os partidos da esquerda para se reeleger na última disputa. Em troca dos votos, diz o rumor que é rechaçado pelo grupo de Maia e aliados, haveria o compromisso de bloquear a agenda de privatizações do governo.

Quem ficou ofendido pode contra-argumentar que no início de julho Guedes estabeleceu um prazo de até 90 dias para fazer quatro grandes privatizações, mas depois não voltou mais ao assunto.

O ministro e seus auxiliares precisarão enfrentar as críticas que apontam para a pasta da Economia quando se fala do imobilismo do governo nas últimas semanas. Argumenta-se que ficou explícita a falta de contrapontos dentro da equipe econômica, algo que seria fundamental para uma melhor tomada de decisão do chefe do Executivo.

Esses críticos apontam, também, que a saída de Sergio Moro da Justiça e Segurança Pública teria demonstrado a Bolsonaro que a exoneração de superministros gera problemas pontuais absolutamente contornáveis, diante da popularidade pessoal do presidente. O ministro da Economia terá ainda mais problemas, se começar a pregar no deserto.