Paulo Guedes

Ascânio Seleme: Saúde é o que interessa

Nos Estados Unidos esse debate ocorre em todas as campanhas presidenciais

Como alguém pode defender a suspensão do financiamento público para a assistência à saúde de uma importante parcela da população num debate eleitoral e obter voto com isso? O que você acha que aconteceria no Brasil se um candidato a presidente defendesse o fim do SUS? Outro dia mesmo, o governo Bolsonaro teve de recuar e se retratar menos de 24 horas depois de aventar a possibilidade de privatizar postos de saúde. Imagine o que ocorreria na França se o presidente Emmanuel Macron resolvesse parar de usar recursos da federação para pagar o equivalente a 60% dos custos nacionais com a saúde. Nem a pandemia seguraria as pessoas em casa. Macron seria escorraçado do Palácio do Eliseu e o candidato brasileiro seria varrido da política.

Nos Estados Unidos esse debate ocorre em todas as campanhas presidenciais. Agora mesmo, Donald Trump ataca seu adversário Joe Biden em razão do Obamacare, uma lei promulgada pelo ex-presidente Barack Obama que, se nem de longe se parece com o atendimento universal dado pelo SUS, garante planos de saúde com preços mais acessíveis e financia com recursos públicos o atendimento aos comprovadamente pobres. Trump ataca a lei com o argumento de que seu custo impacta sobre todos os que pagam impostos e chama Biden e os democratas de socialistas radicais em razão desta política. Uma piada.

Estaria frito se fosse aqui. Mesmo os eleitores da direita bolsonarista aprovam a política de proteção social brasileira. Por isso, aliás, o governo quer ampliar o Bolsa Família. Nos EUA, contudo, o argumento dá votos. A pergunta que se faz é como Trump pode atrair eleitores com um discurso que se lido de forma correta significa deixar sem tratamento médico, sem atendimento hospitalar e sem remédios, para morrer em casa, qualquer pessoa que ganhe pouco ou esteja desempregada? O fato de os Estados Unidos serem um país rico não responde nem explica a questão. O país é rico, mas seu povo nem tanto.

Os bolsões de pobreza se espalham por todos os EUA. São 41 milhões de pobres, ou 13% da população, de acordo com pesquisa oficial baseada na renda e nas necessidades nutricionais das pessoas. Todas estas pessoas, absolutamente todas, têm acesso negado por restrições financeiras a médicos e hospitais e não possuem recursos ou reservas que lhes permitam comprar medicamentos. Milhões de outras, com renda superior a US$ 25 mil ano (R$ 145 mil), não conseguem pagar planos de saúde. São inúmeros os casos de americanos que são obrigados a vender suas casas para poder pagar a conta de hospitais. Trata-se de uma tragédia, e toda a nação sabe disso.

Um sexto da população (1,5 milhão de pessoas) de Nova York, a cidade mais rica do mundo, depende da distribuição comunitária de comida para se alimentar, conforme revelou O GLOBO na quinta-feira passada. Neste caso, a pobreza foi acentuada pela pandemia que ceifou empregos urbanos e impediu a comercialização de produtos de milhares de produtores estabelecidos no cinturão agrícola da cidade. Mas uma boa parcela desse contingente não tem qualquer renda e vive às custas de indivíduos e instituições privadas que as recolhem, abrigam e alimentam, com ou sem coronavírus.

Na campanha americana que se encerra terça-feira, Trump tem torpedeado sistematicamente o Obamacare. Ele fez a mesma coisa na campanha de 2016, quando ganhou de Hillary Clinton. Eleito, conseguiu introduzir uma emenda, enfraquecendo a lei. Biden quer ampliar o plano, pagando com dinheiro público os planos de saúde de quem não conseguir arcar com seus custos. O plano obviamente beneficia os mais pobres e as comunidades mais vulneráveis. Segundo o “Politico”, um site americano de notícias, os ataques de Trump ao Obamacare ameaçam essas minorias e as comunidades negras, que já foram desproporcionalmente atingidas pelo coronavírus.

Por isso também o melhor é eleger Joe Biden.

Petrobras 1

Por que a Petrobras se nega a entregar para a defesa de Lula os documentos dos três acordos que fez nos Estados Unidos em razão dos escândalos da era petista? A estatal diz que os dados (mais de 75 milhões de páginas) não tratam de corrupção, mas de apenas falhas contábeis, e que por isso não interessam à defesa do ex-presidente. Quem escarafunchou a papelada diz que não é bem assim, que os documentos enviados ao Departamento de Justiça (DOJ), à SEC, que é a comissão de valores local, e à Justiça de Nova York têm um capítulo inteiro só sobre corrupção. E nele, a petroleira não cita Lula nem o PT, acusando apenas cinco ex-diretores da companhia e dois ex-governadores. As ações foram abertas nos EUA para indenizar investidores que perderam dinheiro com a queda do valor de mercado da estatal em razão do escândalo.

Petrobras 2

No Brasil, a Petrobras participou dos diversos julgamentos da Lava-Jato como assistente da acusação, e assinou as denúncias em que Lula é acusado de chefiar uma organização criminosa, de enriquecimento ilícito, de lavagem de dinheiro y otras cositas más. A incoerência entre o que a Petrobras assinou aqui e os documentos que enviou à Justiça americana, que beneficiaria Lula, só se tornará oficial se os dados forem entregues aos advogados do ex-presidente por ordem judicial. Depois de ter sua petição negada pela primeira instância em Curitiba e pelo STJ, a defesa aguarda agora manifestação final de Edson Fachin. O ministro do STF prestaria um bom serviço à Justiça liberando os documentos.

Petrobras 3

Para não virar ré nos EUA, a Petrobras concordou em pagar US$ 4,8 bilhões (R$ 27,7 bi) em multas. O valor é sete vezes maior do que as sentenças da Lava-Jato devolveram aos cofres da estatal.

Meio paulista meio bolsista

O PT está mal nas eleições municipais mesmo nos locais onde sempre foi grande. No seu berço paulistano, onde controla sindicatos, tem ascendência nas universidades e opera muito bem com o funcionalismo, viu Guilherme Boulos (PSOL) jogar poeira sobre Jilmar Tatto. No Nordeste, onde controlou o eleitorado por mais de uma década com sua política de bolsas, também patina enquanto velhos e novos adversários voam. Só está bem em Porto Alegre, onde manteve por anos uma disputa acirrada com o PDT de Brizola, mas lá aliou-se à Manuela D’Ávila (PCdoB) e abriu mão da cabeça da chapa.

Manuela e Boulos

Resta saber se Manuela e Boulos já entenderam que estão ficando grandes. Se observaram que o farol da esquerda está jogando luz em outra direção. Difícil dizer, mas o mais provável é que o espírito nanico os faça sair dessa eleição ainda incensando o PT.

O disco do João

João Santana, o ex-marqueteiro petista que foi preso por lavagem de dinheiro e hoje cumpre prisão em regime aberto, deu entrevista ao programa Roda Viva na segunda-feira passada, onde aproveitou para lançar um disco que foi para o streaming na mesma noite do encontro na TV Cultura. Você pode até concordar com algumas das histórias contadas por Santana, mas duvido que consiga se alinhar a ele quando a questão é a música e letra, a menos que concorde que “o ouro é o suor do sol e a prata é a lágrima da lua”. Seu disco é uma porcaria.

Off

Ao pedir que ministros não falem em off, Bolsonaro mostrou que não apenas desconhece a alma humana como não tem a menor noção de como se faz comunicação social. Mas, claro, sua assessoria nessa área simplesmente não existe. O que ele tem no Planalto é um grupo despreparado, que se diz ideológico e que só sabe fazer política. Pedir para ministro não falar nunca funcionou, excelência. Outros já tentaram e nenhum jamais conseguiu calar a boca dos fofoqueiros. Não vai ser agora.

Lastro ideológico

Esta é a denominação que se usa para justificar qualquer absurdo ou profanação do bem comum que se cometa na Praça dos Três Poderes ou na Esplanada dos Ministérios. E tem quem acredita na bobagem.

Se virando

O Old Vic Theater, teatro londrino inaugurado em 1818, vendeu 30 mil ingressos em 73 países ao longo da pandemia para peças que encena ao vivo pelo streaming. Considerando que tem 1.067 assentos, o velho teatro fez o equivalente a 28 noites de lotação esgotada. Ou nove fins de semana (de sexta a domingo) de casa cheia. Nada mal.

Blitz

A Airbnb e a Booking.com, duas das maiores plataformas de venda de hospedagem no mundo, foram intimadas pelas autoridades tributárias do Distrito Federal para colaborarem numa operação contra a sonegação. Elas devem informar ao fisco o volume das operações realizadas em 2019, indicando nomes e cpfs de quem vendeu estadias ao longo do ano passado e quanto eles faturaram. A indústria hoteleira considera a atividade como concorrência desleal. A ação tem tudo para fazer barulho.

Humilhação

O pavor de Donald Trump não é perder a eleição e sair da Casa Branca quatro anos antes do planejado. Sua agonia é a vergonha que terá de passar por ser considerado um “loser”, um fracassado. Na história recente, só Jimmy Carter e George Bush pai foram presidentes de um mandato só. Trump se somaria a estes, mas sem a coragem do primeiro e a elegância do segundo.


Reinaldo Azevedo: Memento mori', Guedes! Chamem Dedé

Decreto que punha UBSs no programa de privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó

Oba! Paulo Guedes viveu nesta quinta-feira (29) mais um “patético momento”, com o perdão de Cecília Meireles, em audiência pública no Congresso. Falou a verdade ou só promoveu guerrilha interna ao afirmar que o governo abriga um ministro financiado pela Febraban, a federação de bancos? É claro que se referia a Rogério Marinho.

Sendo verdade, é grave, e o lobista tem de ser demitido. Sendo mentira, demita-se o acusador. O chilique é apanágio de incompetentes. Temos um governo de destrambelhados. A desorientação da gestão de Jair Bolsonaro deixou o terreno do debate administrativo e virou pastelão.

O decreto que punha as Unidades Básicas de Saúde no escopo do programa de concessões e privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, em parceria com o Mussum de porre. Esqueceram de chamar Dedé e Zacarias. Teriam alguma reserva de bom senso: “Melhor não!”.

O texto era assinado por Bolsonaro e pelo próprio Guedes. O chefe não tem noção do que fala e faz. A única coisa que lhe interessa é a rinha política. Para tanto, é preciso manter a adesão de duas frentes: nas redes, a da súcia de sempre; no Congresso, a dos clientes de Luiz Eduardo Ramos, pagador de emendas.

Vai dar errado, antevê o general Rêgo Barros, ex-porta-voz, que adverte Bolsonaro: “Memento mori”. A tradução que circula por aí não é boa: “Lembre-se de que é mortal”, o que seria um convite à humildade. “Memento” é um imperativo no tempo futuro, que não sobreviveu nas línguas neolatinas. “Mori” é verbo no infinitivo.

Deve ser traduzido como predição e vaticínio: “Hás de te lembrar de que vais morrer”. Ou seja: o castigo virá para aquele que se deixa adular por “comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”.

Nesse ambiente nascem decretos que ninguém lê. Nem Guedes conhecia direito a estrovenga. A audiência deixou claro: a sugestão partiu da área de PPI (Programa de Parcerias de Investimento), dirigida pela secretária Martha Seillier, “uma pessoa competente, séria, trabalhadora”, segundo o ministro.

Foi enfático sobre Martha: “Não é uma das pessoas que eu trouxe de fora para privatizar o sistema, para atacar o sistema de saúde brasileiro. Zero”. Entendido. Privatizar bens públicos, segundo o ministro, corresponde a… atacá-los. Nem o PCO seria tão sucinto.

Nesta quinta, apanhou a Febraban. Caso discorde dele, será a Febraqueba (Federação Brasileira dos Querubins Barrocos) na quinta que vem. ​

Notem: essa conversa sobre as UBSs brotou do nada. O resto do governo foi pego de surpresa. É evidente que os valentes tentam se livrar de parte da carga da Saúde —e aí está o problema de fundo. Mas é preciso fazê-lo com método.

Foi tal o barulho que o texto teve de ser revogado. Ao se justificar, escreveu Bolsonaro nas redes: “Temos atualmente mais de 4.000 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 168 Unidades de Pronto Atendimento (UPA) inacabadas. Faltam recursos financeiros para conclusão das obras, aquisição de equipamentos e contratação de pessoal. O espírito do decreto 10.530, já revogado, visava o término dessas obras, bem como permitir aos usuários buscar a rede privada com despesas pagas pela União”.

É mesmo? Se é assim, revogou por quê? Então mantenha o texto e compre a luta política, ora bolas! Acontece que, para tanto, é preciso que exista um diagnóstico de governo, o que, por sua vez, supõe a existência de um… governo.

Guedes aproveitou ainda a audiência pública para atacar o Governo de São Paulo, que já teria recebido muito dinheiro. Também deixou claro que não se fala sobre novo imposto. Não em período eleitoral ao menos. E se disse contrário à vacinação obrigatória: “Eu sou um liberal, acredito que a vacina é uma decisão voluntária de cada um. Se o sujeito preferir ficar trancado em casa seis anos, não ter contato com ninguém e não tomar a vacina, o problema é dele”.

Opa! Ninguém até agora havia pensado na possibilidade de confinar os recalcitrantes. Ainda bem que existe o ministro para iluminar o debate.

Dedé para a Economia. ”Memento mori”, Guedes!


Eliane Cantanhêde: Zorra total

Sem comando e sem rumo, Brasília virou lamentável circo de ‘Marias Fofocas’ e ‘Nhonhos’

O mundo está em polvorosa, os mercados estressados, os investidores arredios, as pessoas perdidas, mas Brasília vive em outro planeta, andando em círculos, movida por intrigas e tititi. Sem comando, cada um fala e age como bem entende, todos batem cabeça e tudo parou. Num presidencialismo forte como o brasileiro, significa balbúrdia e paralisia não só no Executivo, mas também no Legislativo.

Sem rumo e apoio, o ministro Paulo Guedes perdeu as estribeiras e, de uma tacada, atingiu a Febraban, o governo de São Paulo, o Congresso e o ministro do Desenvolvimento. Clara demonstração de desespero, com Bolsas e dólar sacolejando e nenhuma resposta do governo (além da intervenção do BC no câmbio, o bê-á-bá). E o desespero só aumenta, depois de o presidente Jair Bolsonaro, em campanha em Marte, ops!, em Imperatriz (MA), prestar solidariedade ao… ministro do Desenvolvimento.

Nesse enredo e na falta de eleições municipais em Brasília, Ricardo Salles é forte candidato a novo Weintraub, distribuindo bordoadas a torto e a direito, com aval de Bolsonaro. O ministro convive com a maior queimada do Pantanal na história, um pedido de afastamento do cargo na Justiça e uma derrota no STF: a ministra Rosa Weber suspendeu ontem a “boiada” do Conselho do Meio Ambiente contra restingas e manguezais. Mas ele tem costas quentes.

Já chamou o general Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e, com a confusão criada, pediu modestas desculpas “pelo exagero”. Ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que o acusou de “querer destruir o governo”, destinou um irônico “Nhonho” do Chaves. Depois, alegou que tinham invadido seu Twitter e, por fim, apagou a conta na rede.

O próprio Maia, que também anda com os nervos à flor da pele depois da covid e prestes a deixar a presidência da Câmara, vive aos tapas e beijos com Paulo Guedes e ontem bateu de frente com Roberto Campos Neto, do BC. Pelo Twitter (ora, se não…), o acusou de ter vazado uma conversa entre eles, o que “não está à altura de um presidente de Banco Central de um país sério”. Como Salles, também votou atrás, mas a cicatriz fica.

Na “conversa particular” entre os dois, Maia e Campos Neto manifestaram preocupação com a agitação no mercado e a falta de reação de Brasília, quando Maia tascou: a culpa é da base do governo – ou seja, do Centrão –, que não se entende sobre orçamento, PEC emergencial, novo Bolsa Família, lei cambial…

Assim, todos se acusam, todos têm razão e ninguém tem razão. O governo está catatônico, com Bolsonaro em sua realidade paralela e Guedes abandonado, atirando a ermo. O Congresso está imobilizado por disputas de poder na Câmara e a obsessão de Davi Alcolumbre em se reeleger no Senado. E, assim, o ano vai chegando ao fim. Reformas? Privatizações? O pós-ajuda emergencial? Que nada!

Nesse vazio de homens e ideias, Bolsonaro desliza entre um recuo e outro. O último, até a conclusão desta edição, foi sobre remodelação do SUS, o que poderia até fazer sentido, mas foi lançada na hora errada, pelas pessoas erradas. Um decreto sobre o SUS sem assinatura do ministro da Saúde?! Ok, o general Eduardo Pazuello não manda nada, mas mantenhamos ao menos as aparências, senhores! E como lançar a ideia sem negociar com Congresso, entidades de saúde e sociedade, quando a estrela na pandemia é justamente o SUS, o nosso SUS?

Assim, o coronavírus ressurge na Europa e continua contaminando e tirando a vida de pessoas e empresas no Brasil, com um rastro de dor, tristeza, sequelas, fosso fiscal, desemprego e crise social. E quem deveria se unir para combatê-lo e recuperar a economia está atolado nas picuinhas dos muitos “Nhonhos” dignos do seriado Chaves. É para rir ou para chorar

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Bruno Boghossian: Decreto mostra que Bolsonaro prefere assinar primeiro e perguntar depois

Presidente parece não conhecer planos de subordinados ou não tem coragem de bancá-los

Em outubro do ano passado, Jair Bolsonaro editou um decreto que abria caminho para vender a operação da Casa da Moeda. A empresa era uma das prioridades na lista de privatizações do governo, mas o plano não saiu do papel. Depois de assinar a medida, o próprio presidente reclamou da proposta.

“Queriam privatizar a Casa da Moeda. Aí, o pessoal fala, eu interferi”, disse Bolsonaro, há poucas semanas. “Eu achei que não era o caso, tendo em vista informações que eu tive de outros países que privatizaram e depois voltaram atrás.”

Bolsonaro pode até dizer que considera a venda da estatal uma má ideia. Mas ele também poderia explicar por que saíram do gabinete presidencial dois documentos que abriam caminho para a privatização: aquele texto de outubro e uma medida provisória que quebrava o monopólio da empresa, no mês seguinte.

A desordem se repetiu agora, com o decreto do governo que incluiu as unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada. O documento assinado pelo presidente foi publicado na última terça (27) e revogado um dia depois.

Dessa vez, Bolsonaro não criticou a própria decisão. Ele afirmou que aquele não seria um movimento de privatização do SUS e que o objetivo era concluir obras e permitir que os cidadãos fossem atendidos na rede privada. Mas resolveu revogar a medida e prometeu reeditar o decreto “em havendo entendimento futuro dos benefícios propostos”.

O presidente mostrou mais uma vez que prefere assinar primeiro e perguntar depois. Em vez de discutir os tais “benefícios propostos” com gestores do Sistema Único de Saúde, o governo se apressou. Caso ninguém tivesse percebido, o decreto teria continuado de pé.

A equipe econômica entregaria até as emas do Palácio da Alvorada à iniciativa privada, se pudesse. O presidente endossou essa agenda na campanha, mas parece não conhecer os planos de seus subordinados ou não tem coragem de bancá-los. Bolsonaro governa por acidente.


Bernardo Mello Franco: O negócio da saúde

O ensaio de privatização do SUS resumiu, em um episódio, quatro características do governo Bolsonaro: insensibilidade social, autoritarismo, falta de transparência, voracidade para fazer negócios.

Ontem o Diário Oficial trouxe um decreto que dispunha sobre a “qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada”.

Com o palavrório, abriu-se uma porta bilionária para a privatização das unidades básicas de saúde, que atendem até 80% dos problemas dos brasileiros.

Avesso à participação social, o governo não ouviu os conselhos de saúde, as entidades médicas ou os gestores locais. O ministro decorativo da Saúde, Eduardo Pazuello, também foi ignorado. Neste mês, o general admitiu que assumiu a pasta sem saber o que era o SUS. Dias depois, reconheceu que está no cargo para cumprir ordens. “Um manda, o outro obedece”, explicou.

A Constituição define a saúde como “direito de todos e dever do Estado”. Com a canetada de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, o sistema público, universal e gratuito seria rifado a operadores privados. A experiência com as organizações sociais (OSs) dá uma ideia de onde isso poderia parar. No Rio, o modelo produziu escândalos de corrupção, precarização de serviços e calotes em servidores.

Para os empresários da saúde, a privatização seria uma mina de ouro. Além de lucrar com o atendimento, eles receberiam informações coletadas desde o nascimento dos pacientes. Um fabuloso banco de dados para impulsionar novos e velhos negócios.

Num país em que 71,5% da população não conseguem pagar um plano de saúde, as UBSs garantem consultas, exames, remédios e vacinas de graça. Privatizá-las significaria quebrar a espinha do SUS. Apesar de todas as dificuldades, o sistema reafirmou sua importância no combate à pandemia. Isso explica a pressão que obrigou Bolsonaro a revogar o decreto um dia depois de publicá-lo.


Ricardo Noblat: Bolsonaro, um presidente acidental, outra vez dá meia volta volver

Marcha soldado, cabeça de papel

Bolsonaro nada aprendeu em 30 anos de vida pública. Em compensação, nada esqueceu. De duas, uma. A inclusão das unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada era uma boa ideia, e por isso ele assinou o decreto publicado, anteontem, no Diário Oficial. Ou então era uma má ideia, e por isso ele revogou o decreto 24 horas depois.

Algo semelhante aconteceu na semana passada quando Bolsonaro disse que a vacina chinesa contra a Covid-19 jamais seria comprada. Foi uma humilhação para o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, especialista em logística, que anunciara a compra da vacina. Mas, em seguida, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária desautorizou Bolsonaro, e ele calou-se.

O ator Ronald Reagan foi um dos presidentes mais aclamados da história dos Estados Unidos. Detestava pegar no pesado. Não gostava de governar. Entendia de poucas coisas. Soube cercar-se, porém, de auxiliares competentes. Bolsonaro é quase tão ignorante quanto Reagan. Pegar no pesado não é com ele. Gosta do poder, de governar, não. Cercou-se de auxiliares incompetentes.

Onde já se viu assinar um decreto de tal importância, que necessariamente alcançaria larga repercussão como era fácil de prever, sem antes discuti-lo com os mais diretamente interessados e também com representantes do distinto público? Por unanimidade, os secretários estaduais de Saúde rechaçaram o decreto. O distinto público matou-o a pau sem dó nem piedade.

O movimento nas mídias sociais em defesa do Sistema Único de Saúde registrou a maior repercussão negativa via Twitter de uma medida do governo Bolsonaro desde janeiro de 2019. Dados levantados pela consultoria Arquimedes registram que 98,5% das menções feitas sobre o tema foram desfavoráveis ao decreto. A consultoria analisou mais de 150 mil referências.

Se não liga para o que lhe diz o ministro da Saúde, Bolsonaro liga em demasia para o que lê nas redes. Ali, estava acostumado a ver suas decisões aprovadas sem grandes discussões. De uns tempos para cá, parte delas passou a ser rejeitada. Foi o caso da demissão de Sérgio Moro, do seu comportamento na batalha contra o coronavírus e da aliança com o malsinado Centrão.

O mais bizarro: ao anunciar a revogação do polêmico decreto, Bolsonaro afirmou que ele era muito bom, sim senhor, e que poderá mais tarde ser reeditado. É mais fácil concluir que ele simplesmente não sabe direito por que assina certas coisas. Só sabe por que recua depois – mas isso não conta. Recua com medo de não se reeleger. É só o que lhe importa e orienta.


Míriam Leitão: Governo perdido e decreto sem dono

Qual é o pior momento para se juntar a palavra “privado” com a expressão “saúde básica” ? Resposta: no meio de uma pandemia, em que temos um ministro da Saúde convencido de que sua única função é obedecer ao presidente, sendo o presidente a pessoa que diariamente atormenta a área com péssimas ideias: ora um remédio sem comprovação científica, ora a negação da ciência, ora a campanha contra a vacina. O governo Bolsonaro conseguiu. Ele vai entrar no livro “Guinness” como o governo mais capaz de ter ideias ruins e na hora errada. Como, por exemplo, quando quis cobrar imposto de desempregado numa escalada de desemprego.

No final, o decreto que o governo havia baixado incluindo as Unidades Básicas de Saúde no Programa de Parceria de Investimentos (PPI) foi revogado. Esta pandemia nos mostrou o valor de se ter o Sistema Único de Saúde (SUS). Público. É conquista da Constituição que o líder do governo Ricardo Barros diz que tornou o país ingovernável. O que dificulta é uma administração sem rumo, atirando a esmo, e agravando as aflições do país no meio de uma pandemia.

Essa ideia de incluir a porta de entrada do SUS num programa que pode levar à privatização é ruim em qualquer momento, mas no meio da maior crise da saúde do mundo é ainda pior. Imediatamente políticos e especialistas se mobilizaram contra o decreto. Diante da reação, o Planalto lavou as mãos e mandou o Ministério da Economia se explicar. Lígia Bahia, professora de economia da saúde da UFRJ e colunista deste jornal, disse que o ministro Paulo Guedes deveria se preocupar com o desemprego, as empresas quebradas e a redução da renda, e completou: o “Brasil precisa de paz”. E paz é o que não temos tido em nenhuma área, notadamente na saúde.

A lista dos afazeres do ministro Guedes é grande. Inclui a resposta que precisa ser dada contra a crise fiscal que o país enfrenta. Os sinais são cada vez mais preocupantes. Ontem, o dólar encostou em R$ 5,80 e obrigou o Banco Central a vender US$ 1 bilhão à vista. O mercado financeiro, que havia comemorado a volta da bolsa brasileira acima dos 100 mil pontos, viu novamente o índice ter uma forte queda diária, voltando aos 95 mil. O investidor pessoa física que saiu da renda fixa para a bolsa precisa ter nervos de aço diante da oscilação dos últimos meses. Quem entrou no início do ano está vendo seu patrimônio reduzido. O país está sem horizonte na economia. Não há um plano para sair da crise. Há apenas ruídos ocupando o lugar de decisões de governo que deveriam ter sido tomadas. Como essa sandice criada pelo decreto das UBS.

Para o Banco Central, contudo, tudo está bem. No dia em que a bolsa caiu 4,5% ele escreveu no comunicado de ontem que “a moderação na volatilidade dos ativos financeiros segue resultando em um ambiente relativamente favorável para economias emergentes”. A propósito, uma comparação feita pela economista Fernanda Consorte entre moedas de países emergentes mostra que o real brasileiro é, como ela disse, o patinho feio. Desvalorizou-se 42%, enquanto a média em outras 15 moedas foi de 12%.

O BC fez o que todos esperavam. Manteve os juros em 2%. Mas foi otimista ao descrever o ambiente econômico. No dia em que a França e a Alemanha decretam novo lockdown ele diz que “no cenário externo, a forte retomada em alguns setores produtivos parecem sofrer alguma desaceleração”. Admite que “algumas leituras de inflação foram acima do esperado”, mas disse que as diversas medidas estão “compatíveis com o cumprimento da meta no horizonte relevante”. O Banco Central admite que o risco fiscal é elevado, mas avisa que não pretende subir os juros — “reduzir o grau de estímulo monetário” — desde que “condições sejam satisfeitas”. E o comunicado diz que estão satisfeitas essas condições: a inflação está abaixo da meta, “o regime fiscal não foi alterado”, e “as expectativas de inflação permanecem ancoradas”.

Por falar em regime fiscal inalterado, a cada dia o governo concede uma vantagem para um setor. Ontem foi sancionada lei que prorroga incentivos à indústria automobilística até 2025, dias atrás foi reduzido o imposto do setor de games, e na semana passada virou permanente um benefício para multinacionais de bebidas na Zona Franca. Cada um, isoladamente, pode parecer pouco, mas o caminho devia ser exatamente o oposto.


Gledson Vinícius mostra fragilidade do governo para taxar livros em 12%

Em artigo na revista Política Democrática Online de outubro, articulador da Bancada do Livro embasa sua análise dos dados da pesquisa Retratos da Leitura

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Pesquisa Retratos da Leitura, divulgada em setembro pelo IPL (Instituto Pró-Livro) em parceria com o Itaú Cultural e o Ibope Inteligência, mostra que o país perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019. “Essa mesma pesquisa consegue, através dos números, auxiliar no enfrentamento e desmontar os argumentos que a equipe econômica liderada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentou para propor a taxação dos livros em 12%”, afirma o empreendedor cultural e articulador da Bancada do Livro, Gledson Vinícius, em artigo na revista Política Democrática Online de outubro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. O empreendedor diz que, se para o ministro, o livro é um item da elite, que não se importaria em pagar imposto, a pesquisa aponta que, para 22% dos consultados, o preço é decisivo na hora de comprar. “Fica claro também que não é apenas a elite que compõe a massa de consumidores de livros”, observa o autor do artigo.

Segundo a pesquisa, 27 milhões dos brasileiros identificados na classe C são compradores de livros, e, para esse grupo, é ainda mais sensível à variação de preço que a taxação poderá impor. Além disso, de acordo com o autor do artigo da revista Política Democrática Online, o levantamento mostra, ainda, a descontinuidade de políticas públicas, falta de investimento e desmobilização que reverberam fortemente na relação entre a sociedade e o livro

Outro grande golpe no setor, segundo Gledson Vinícius, foi a interrupção no programa de distribuição de livros (PNBE), em 2015. Segundo ele, antes da interrupção, entre os anos de 2000 e 2014, foram quase 230 milhões de exemplares distribuídos a um custo médio de R$ 3,80 por unidade. “O investimento nesse período foi de R$ 891 milhões em compras. Ou seja, algo como R$ 68,5 milhões por ano na renovação dos acervos para escolas de todos os ciclos do ensino básico”, diz ele.

O esfacelamento não se restringiu apenas em descumprir metas ou reduzir os investimentos financeiros, de acordo com o articulador da Bancada do Livro. “O processo atingiu a fundo o setor ao extirpar grandes nomes de posições decisórias e cruciais. Recordemos a extinção do Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e da Leitura e a redução do número de representantes da sociedade civil no Conselho Diretivo do plano, por iniciativa do presidente Bolsonaro e do ministro da Cidadania, Osmar Terra”, afirma.

Leia também:

Desmonte de política ambiental respalda queimadas no país, mostra reportagem

‘Bolsonaro tem comportamento calculado nas eleições municipais’, diz Paulo Baía

Gil Castello Branco critica esvaziamento da Lava Jato no combate à corrupção

Como superar retórica do ódio? João Cezar de Castro Rocha sugere ética do diálogo

Rogério Baptistini Mendes explica o que ‘desgraçou sistema político’ no Brasil

‘Pandemia mostra que cidades não são mundos encapsulados’, diz Alberto Aggio

Por que Bolsonaro cessou política de confronto com Legislativo e Judiciário?

Política Democrática Online mostra falta de transparência no combate à corrupção

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Janio de Freitas: É humilhante que o país continue suportando a vergonheira nos seus Poderes

O Brasil não tem governo e é difícil saber o que lhe resta

Bolsonaro teve uma ideia. Ofertou-a a você, eleitor talvez inseguro entre os possíveis destinos do seu voto. Bolsonaro criou a chave atualizada para o voto justo, consciente e consequente. “Você quer reeleger um cara ou não. Vê o que ele fez durante a pandemia. Vê se você concorda com as medidas que ele tomou, se fez o que você achava que tinha que fazer ou não. E você decide o seu voto.”

É uma chave suficiente para lançar a ambição reeleitoral e o próprio Bolsonaro, e antes alguns prefeitos, na famosa lixeira da história. É ainda a resposta do eleitor a quem o abandona aos piores riscos, se não já à vitimação perversa, à ausência inapagável de familiares. É a resposta necessária para compensar, ao menos no plano individual, o escapismo acovardado e vendilhão dos apelidados de autoridades institucionais. As figuras minúsculas incumbidas de resguardar a população, e seu país, da sanha louca que não os quer sob a proteção nem de incertas vacinas.

Surpreendo-me no dever de dar a João Doria o reconhecimento da única reação adequada ao desaforo feito ao país por Bolsonaro. “Não abrir mão” da sua “autoridade” para cancelar uma providência antipandemia, por politicagem obtusa, não é ato de autoridade. É o que disse Doria em seu momento até agora único: “O presidente da República negar o acesso a uma vacina aprovada pela Anvisa, em meio a uma pandemia que já vitimou 155 mil brasileiros e deixou 5,1 milhões infectados, é criminoso”.

O Brasil não tem governo. E é difícil saber o que lhe resta, inclusive vergonha. Seu nome é posto em acordo de um punhado de ditaduras contra direitos das mulheres. O governo Trump manda a Brasília uma comissão para acordos econômicos. Econômicos? O chefe da delegação foi o secretário de Segurança Nacional dos Estados Unidos. O grupo, na verdade, veio pressionar os generais de Bolsonaro e outros da ativa no Exército contra a China.

Pressão em especial contra a adoção do sistema 5G da Huawei, o mais avançado em prodígios da comunicação (os Estados Unidos estão com anos de atraso nesse campo). No seu disfarce habitual, que é um suborno nunca pago por completo, o governo Trump acenou com US$ 1 bilhão em ajuda, mas para comprar componentes americanos que substituam os da China em uso na telefonia daqui.

A Amazônia e o Pantanal ardem, e os 1.600 combatentes do fogo recebem ordem de voltar às bases, porque não foram disponibilizados R$ 19 milhões que pagassem três meses de salários em atraso. No mesmo dia, Paulo Guedes discursa com pedido de dinheiro a investidores americanos e lhes diz: “Nos ajudem, em vez de só criticar. Toda essa história de matar índios, queimar florestas, é exagero”. Saíam os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais: em setembro foram detectados 32.020 focos na Amazônia, 60% acima de setembro do ano passado. Na mesma comparação mensal, o aumento do fogo no Pantanal chegou a 180%, com o maior quadro de incêndios de sua história.

O cinismo, como o de Paulo Guedes, não pega mais. Nem por isso deixa de crescer. É o idioma desses que se passam por governo, dos que se deixam desmoralizar por Bolsonaro e desmoralizam seu generalato, dos que não podem fazer sessões no Supremo e podem fazer almoços e jantares com Bolsonaro e outros carnavalescos morais. Ao eleitor, é só não esquecer a ideia de Bolsonaro para escolher o voto. Mas é humilhante que o Brasil continue suportando, apenas para proveito do raso segmento de influentes, a vergonheira que se passa nos seus Poderes.


Adriana Fernandes: Coragem para cortar

Há quatro anos, o corte de renúncias fiscais vai e volta do debate econômico, absolutamente sem sucesso

O corte linear das renúncias fiscais concedidas pelo governo voltou à mesa na discussão das medidas de ajuste fiscal para 2021. Com o pouco tempo até o final do ano para decisões difíceis e impopulares, não se fala mais em mexer em apenas um ou outro grupo de isenções e benefícios tributários, mas passar a tesoura em todas elas ao mesmo tempo e na mesma proporção: algo em torno de 12% a 15%.

O alvo passou a ser todas as renúncias para engordar os cofres da União e abrir espaço para novas despesas sem piorar o déficit público. Essa medida se somaria também à discussão de corte das emendas parlamentares e outras ações do lado das despesas para o financiamento do novo programa de transferência de renda aos mais pobres e de investimentos. Frentes de dificílima execução.

O diagnóstico político é que dessa forma é mais fácil vencer as resistências daqueles setores, empresas e pessoas físicas que vão perder com a retirada dos benefícios e incentivos. Um movimento mais rápido e palatável para angariar apoio no Congresso.

Ainda que esteja no topo da agenda econômica do momento, é complicado colocar na conta como uma medida que tem chances reais de avançar em tão pouco tempo. Será preciso um esforço concentrado de convencimento das lideranças. Com a crise da pandemia, ninguém quer ver ser a sua carga tributária aumentar.

Há pelo menos quatro anos, o corte de renúncias vai e volta do debate econômico de Brasília, absolutamente sem sucesso. Tem sido quase um mantra o discurso de autoridades, políticos e economistas de que é preciso reduzir renúncias, pois o País não aguenta mais bancar patamar tão elevado, de 4% do PIB, de perda de arrecadação.

Nos últimos anos, para cada tentativa de aumento de gastos, o tema ressurge como medida compensatória. Mas na hora H não anda. Essa defesa tem sido muito mais da boca para fora.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019 prometia um avanço: o envio de medidas para o atingimento da meta de reduzir os benefícios tributários para 2% do PIB em 10 anos. Nada aconteceu. Pelo contrário, apenas uma lista foi enviada ao Congresso sob sigilo e sem nenhum efeito prático.

Os Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, que propuseram cortes de renúncias para diminuir o déficit em 2021, estão enfrentando fortes resistências. É tão difícil mexer nesse vespeiro que a menção do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de que o Simples precisa ser revisto que a acendeu a luz vermelha das micro e pequenas para o risco. É que a desoneração das empresas pelo regime tributário diferenciado é incluído no cálculo da Receita como renúncia, uma briga antiga do Sebrae com o Fisco. Se a tesoura for linear, o Simples também será atingido num momento em que as micro e pequenas empresas alegam grandes perdas com a pandemia.

Para atropelar o debate, o presidente Jair Bolsonaro acabou de assinar um decreto tornando permanente em 8% o benefício fiscal a concentrados de refrigerante produzidos na Zona Franca de Manaus e que favorece grandes fabricantes, como a Coca-Cola e Ambev.

A redução do benefício havia sido adotada no governo Temer para compensar perdas de arrecadação com medidas voltadas para atender os caminhoneiros, que pararam o País. Foi a única medida de corte de renúncias. Agora, o benefício volta de forma permanente (embora não no mesmo patamar da época que foi reduzido) justamente quando se discute a revisão das renúncias. É mais uma decisão do presidente contrária ao ajuste fiscal.

Um olhar rápido sobre as grandes renúncias em 2021 dá a dimensão da encrenca. A lisa é longo e chata, mas a coluna faz questão de descrevê-la para mostrar a realidade: Simples (R$ 74,3 bilhões); rendimentos isentos e não tributáveis do IRPF (R$ 33,5 bilhões); agricultura e agroindústria (R$ 32,6 bilhões); entidades sem fins lucrativos e imunes (R$ 29,2 bilhões); Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio (R$ 24,2 bilhões); deduções do IRPF (R$ 22,1 bilhões); medicamentos, produtos farmacêuticos e equipamentos médicos (R$ 14,4 bilhões), benefícios do trabalhador (R$ 14,3 bilhões); desenvolvimento regional (R$ 11,8 bilhões); poupança e títulos de crédito - setor imobiliário e do agronegócio (R$ 6,8 bilhões); setor automotivo (R$ 5,9 bilhões); e embarcações e aeronaves (R$ 4,5 bilhões). São números fresquinhos que constam na proposta de orçamento de 2021.

Quem vai ter coragem de cortar? Essa guerra será feroz.


Claudia Safatle: O mercado de trabalho e o temor da crise fiscal

Qualquer ação do governo só virá depois das eleições

Assessores do Ministério da Economia têm conversado com o ministro Paulo Guedes sobre a necessidade de o governo dar sinais claros do que pretende fazer para estimular o mercado de trabalho em 2021. Em dezembro termina o pagamento do auxílio emergencial para 66 milhões de brasileiros. O impacto, sobre a atividade, do fim da transferência desses recursos, com custo mensal próximo a R$ 50 bilhões, não será trivial e tem o poder, inclusive, de frear a retomada da economia.

Das conversas, em princípio, ficou a intenção de Guedes divulgar sua estratégia, diagnóstico e objetivos para o ano que vem tão logo se saiba o resultado das urnas em novembro.

“Temos que bater com o gato morto na cara da sociedade e da classe política”, disse uma fonte oficial. “Não é preciso ser adivinho para saber que estamos tendo uma crise no mercado de trabalho e temos que ter uma política para facilitar o processo de acesso ao emprego”, completou, citando a desoneração da folha de salário das empresas e a sua contrapartida, que é a criação do Imposto sobe Transações, “goste ou não a Faria Lima”, afirmou.

A proposta de desoneração da folha tem como base o diagnóstico de que a oferta de emprego é escassa porque ele é caro. Outra ideia que também se fundamenta nesse diagnóstico é a de segmentar os setores mais vulneráveis, sobretudo os jovens. “Essa população excluída precisa de regras simplificadas de contratação destinadas a ela”, disse, listando, também, a criação da Carteira Verde Amarela como uma rampa de acesso ao mercado livre dos principais encargos trabalhistas. “Não vamos mexer com o restante do mercado de trabalho”, assegurou.

Há, ainda, o programa de qualificação com o microcrédito que começou com as “maquininhas” e que, a partir de agora, deve aumentar de escala. E, por fim, completou: “Temos os marcos regulatórios de concessões que trazem investimentos geradores de empregos que hoje estão presos para atender aos interesses do establishment, que sempre se alimentou de obras públicas”.

É importante que Guedes trace o caminho para a retomada da economia com começo, meio e fim, com foco no mercado de trabalho que é, hoje, uma das principais raízes da iminente crise fiscal. Essa é uma das grandes incertezas que levam os mercados a exigir, a cada dia, mais prêmios para financiar a rolagem da dívida pública interna

Tem havido, nos últimos meses, uma intensa discussão sobre a criação de um programa de renda básica no pós-pandemia da covid-19, para atender às famílias em condições de pobreza ou de extrema pobreza, em função do fim do auxílio emergencial. Seria uma ampliação do Bolsa Família provavelmente com um novo nome para dar ao governo Bolsonaro uma marca do lado social. O presidente ficou entusiasmado com a popularidade adquirida com a criação do auxílio emergencial e quer repetir a dose com um programa de renda permanente.

Parece claro que o programa atenderia apenas uma fração das 66 milhões de pessoas inscritas no auxílio emergencial, por limitações fiscais. A situação de penúria de recursos se complica ainda mais com a aceleração inflacionária recente que deverá pesar sobre as despesas não obrigatórias do Orçamento do próximo exercício.

“A resolução das expectativas em relação a um eventual programa de transferência de renda para os mais pobres adquire urgência pela incerteza fiscal que a atual ambiguidade pode criar, trazendo o risco do atual impulso de retomada da economia vir a se dissipar por conta dessa incerteza”, conforme chamou a atenção o relatório da semana passada do banco Safra.

“Com a proximidade do fim do auxilio emergencial, cuja última parcela será paga em dezembro deste ano, a confiança do consumidor e o apetite dos investidores poderão ser negativamente afetados, até pelo pouco tempo que será deixado para o governo e o Congresso votarem o Orçamento de 2021”, assinalou o relatório.

O tamanho do auxílio emergencial - que começou com três parcelas de R$ 600 que foram prorrogadas por mais dois meses e depois, reduzido para R$ 300 nos três últimos meses do ano - teve papel crucial na expansão da demanda doméstica no terceiro trimestre do ano, com impacto notável sobre a capacidade de enfrentamento da população à pandemia e sobre a atividade econômica, que deve encerrar o execício com uma recessão menor do que a originalmente esperada. Algo em torno de -5%, segundo o boletim Focus, do Banco Central, desta semana, face à projeção de -9,1% feitas no auge da pandemia pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). O FMI reviu seus prognósticos para uma recessão, no Brasil, em torno de 5,8%.

Para ter uma ideia da dimensão e amplitude do auxílio emergencial cujo gasto mensal está em torno de R$ 50 bilhões, o Bolsa Família custa por mês R$ 2,5 bilhões.

O projeto de lei do Orçamento para 2021 tem um espaço para aumento de 18,2% do Bolsa Família, suficiente para elevar o número de famílias assistidas dos atuais 14,2 milhões para pouco mais de 16 milhões. Se for pouco, o governo pode pedir um crédito extraordinário no ano que vem para abrigar mais famílias, nos termos do artigo 167 § 3º da Constituição, sugere um economista que deixou o governo recentemente.

No mercado, há a percepção de que a simples retirada do auxílio à partir de janeiro pode não só frear a recuperação da economia mas levar o país a uma segunda recessão. Razão pela qual há grande expectativa de um posicionamento da área econômica do governo em relação à estratégia que o ministro Paulo Guedes pretende imprimir para o enfrentamento da crise no mercado de trabalho privado e, por que não, para uma revisão dos benefícios do mercado de trabalho do setor público.

A questão do emprego está na gênese de uma temida crise fiscal, que se traduziria na dificuldade do Tesouro Nacional de honrar seus compromissos. É hora de o governo acalmar os mercados.


Ribamar Oliveira: Mais uma renegociação de dívidas a caminho

Projeto substitui e amplia o “Plano Mansueto”

Um projeto de lei complementar que deverá ser colocado em votação na Câmara dos Deputados em novembro vai alterar três leis complementares, três leis ordinárias e uma medida provisória. Ele prevê uma nova renegociação das dívidas estaduais com a União e estabelece condições para que os Estados classificados com capacidade de pagamento “C” pelo Tesouro Nacional possam realizar novas operações de crédito, com aval da União. Atualmente, existem 13 Estados com essa classificação de risco.

O projeto de lei complementar 101/2020 é de autoria do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) e substitui e amplia o escopo do chamado “Plano Mansueto” (PLP 149/2019), que foi encaminhado pelo governo ao Congresso no ano passado, mas que não chegou a ser votado.

O objetivo do plano, que leva o nome do ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, era justamente estabelecer condições para que os Estados classificados como “C” pudessem fazer novas operações de crédito, com aval da União. O PLP 149 terminou sendo transformado, na Câmara dos Deputados, em um seguro-receita aos Estados e municípios, com validade durante a pandemia da covid 19, o que foi rejeitado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e enterrado pelo Senado.

Agora, ele retorna como PLP 101, de autoria do ex-relator do “Plano Mansueto”. O deputado Pedro Paulo disse ao Valor que, passada a pandemia, quando a União transferiu diretamente recursos aos Estados e municípios, é preciso garantir crédito para que os governos estaduais e prefeituras possam realizar investimentos e bancar despesas correntes. “O PLP 101 autoriza novas operações de crédito, condicionadas à adoção de medidas de ajuste fiscal”, explicou.

O projeto de Pedro Paulo, no entanto, é bem mais amplo do que o “Plano Mansueto”. Ele prevê, por exemplo, uma nova renegociação das dívidas estaduais. Mesmo antes da pandemia, vários Estados conseguiram liminares no Supremo Tribunal Federal (STF) para não pagar as suas dívidas com a União.

Pela proposta em análise, os débitos serão incorporados ao saldo devedor e pagos em 240 meses, segundo informou o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), relator do PLP 101. Ele disse que as dívidas do Rio de Janeiro também serão renegociadas, com prazo de pagamento de 20 anos. Apenas durante a vigência do Regime de Recuperação Fiscal, o deputado disse que o Rio acumulou dívidas no montante de R$ 52 bilhões. “Ainda estou fazendo o levantamento do total dos débitos estaduais que serão renegociados”, disse Benevides. “O montante é impressionante”, afirmou.

O PLP 101 muda o Regime de Recuperação Fiscal (instituído pela Lei Complementar 159), com o objetivo de criar condições para que outros Estados, além do Rio de Janeiro, possam aderir ao programa. Para isso, o Estado precisará cumprir, simultaneamente, três exigências: ter sua dívida consolidada maior que a receita corrente líquida, ter o valor de suas obrigações superior às disponibilidades de caixa e gastar com pessoal mais do que 60% de sua receita corrente líquida ou sua despesa corrente ser superior a 95% de sua receita corrente líquida. Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Goiás estão na lista de Estados que poderão aderir ao regime.

Benevides Filho informou também que o projeto vai mudar o prazo de duração do regime, que passará dos atuais seis anos para até oito anos, e as condições de pagamento dos débitos, que começarão a partir do segundo ano da adesão, com 10%, aumentando o percentual progressivamente. Outra alteração importante é que o governo estadual não precisará mais privatizar suas estatais para fazer caixa, podendo vender apenas 49% do capital e, com isso, manter o controle da empresa.

Os Estados com classificação de risco “C” que quiserem fazer novas operações de crédito, com aval na União, terão que pactuar um Plano de Promoção ao Equilíbrio Fiscal (PEF), que será instituído pelo PLP 101. Para isso, eles terão que implementar pelo menos três das sete exigências que constam da LC 159. O PEF terá metas fiscais e compromissos a serem aceitos pelos Estados. Cada um deles terá limite individualizado de endividamento.

“Os Estados terão que sofrer um arrocho para ajustar as suas contas”, advertiu Benevides Filho, em conversa com o Valor. Em seu parecer, ele pretende exigir que os Estados cortem os seus incentivos fiscais em 10% ao ano, durante três anos.

O PLP 101 muda também a Lei Complementar 101, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Umas das alterações está relacionada com a forma de cálculo da despesa com pessoal. A proposta que o parlamentar cearense estuda é incluir na despesa com pessoal os gastos com aposentados, pensionistas e os aportes de fundos feitos pelos Estados para cobrir o déficit previdenciário.

No caso da lei complementar 156, será dado aos Estados um prazo de mais três anos para que eles se enquadrem no teto de gastos, com as despesas podendo crescer apenas pela variação da inflação. Mesmo assim, Benevides pretende estabelecer que os Estados poderão deduzir o “excesso” das vinculações com saúde e educação, para efeito de apuração do teto.

Hoje, governos estaduais são obrigados a destinar 25% de sua receita para educação e 12% para saúde. “Se a receita do Estado subir 10% e a inflação for de 3%, a despesa com saúde e educação vai aumentar mais do que a inflação”, explicou. “Há um excesso que precisa ser excluído para o cálculo do teto.” O relator explicou que a União não tem esse problema pois, desde que adotou o teto de gastos, suas despesas com saúde e educação não estão mais vinculadas à receita. O teto estabelece que o gasto mínimo com saúde e educação é o mesmo do ano anterior, corrigido pela inflação.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), colocou o PLP 101 na lista de prioridades para votação ainda neste ano. Benevides disse ao Valor que o seu parecer estará pronto para ser votado no dia 4 de novembro.

Questionado pelo Valor, o Ministério da Economia não quis dizer se está sendo consultado sobre o PLP 101.