Paulo Guedes

Merval Pereira: O que é, o que é?

O ministro da Economia, Paulo Guedes, volta e meia se arrisca a uma análise política, e quando o faz costuma tecer conceitos elásticos sobre o conjunto ideológico. Ontem, ele disse que “a mesma aliança de centro-direita que ganhou as eleições em 2018 continuou ampliando seu espectro de votos” nas eleições municipais. Quase a mesma análise do pastor Silas Malafaia, que também ontem esteve com o presidente para fazer um balanço do resultado, garantindo que quem perdeu a eleição foi PT e PSDB, Bolsonaro saiu vencedor.

Também o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, festejou a vitória dos partidos do Centrão como sendo do governo. Para combater o que chamam de “narrativa da esquerda”, vários governistas têm insistido nessa outra “narrativa”.

Guedes considera que a “centro-direita” aumentou seu poder, colocando essa avaliação na conta do grupo de apoio ao governo Bolsonaro. O Centrão agradece, e vai cobrar mais espaço no governo, mas PSD já quer ocupar lugar próprio e DEM e MDB saíram do Centrão.

Na campanha de 2018, Guedes insistia em colocar no mesmo balaio PT e PSDB, atribuindo a eles mais de 20 anos de domínio da social-democracia no Brasil, todos governos de esquerda que estariam sendo substituídos por um governo de direita.

Guedes recuperou a imagem de esquerda do PSDB, causando indignação do PT, que passou os últimos anos tentando colocar os tucanos na direita política, tarefa que cabe hoje ao PSOL em São Paulo, ligando Bruno Covas a Bolsonaro, através do governador Dória.

Conforme as forças vão se colocando no tabuleiro político, a definição ideológica obedece mais aos interesses eleitorais do que a análises com bases acadêmicas. Assim como é risível a tentativa de pregar em Fernando Henrique Cardoso ou em José Serra a peja de direitistas, também é um exagero de retórica política dizer que o ex-ministro Sérgio Moro é de extrema-direita pelo simples fato de que aceitou participar do governo Bolsonaro.

No momento, para a esquerda, todos os candidatos opositores são de direita, não se admitindo nem mesmo que haja políticos de centro. No entanto, é o centro político que, no momento, tem mais capacidade de se impor nas composições partidárias que devem frutificar ainda no primeiro semestre de 2021, quando as forças eleitorais terão que começar a se definir. Até mesmo o ex-ministro Ciro Gomes, um quadro da esquerda brasileira, se coloca como de centro-esquerda, e foi nesse papel que tentou chegar ao segundo turno em 2018.

Essa divisão ideológica num país que sempre foi conservador abre a chance de uma série de enganos, e é aí que entra a teoria da Janela de Overton, criada por Joseph P. Overton, um ex-vice presidente do Mackinac Center for Public Policy, um centro de estudos liberal nos Estados Unidos. Overton imaginou uma “janela” onde as teses aceitas pela sociedade naquele momento determinado podem ser defendidas pelos políticos.

Seriam teses “aceitáveis” ou “populares”. Se ideias “impensáveis” ou “radicais” forem defendidas, elas saem da “janela” e o político não ganha votos. Portanto, os políticos defendem as teses “populares”, e não o que realmente pensam. Mas ideias antes “impensáveis” podem se tornar “aceitáveis” para a maioria. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o divórcio. Ou o casamento de homossexuais. Mas há também quem queira alargar a “janela”, criando situações que tornem ideias “radicais” em “aceitáveis”. É o que Boulos tenta fazer na campanha paulista.

Da mesma maneira, as definições ideológicas passam por essa “janela” e podem ser ou não aceitas. Os bolsonaristas consideram inaceitável que Ciro seja considerado de centro, mas muita gente também rejeita as definições de Bolsonaro como um “conservador” ou “liberal”, que o fizeram palatável para muitos eleitores de 2018.

A mudança que pretendem fazer com Bolsonaro, transformando-o em um membro do Centrão moderado, é uma tentativa, possivelmente a ser frustrada, de ampliar seu eleitorado para fora da extrema-direita, onde estão seus apoiadores radicais. Por isso também esses bolsonaristas “de raiz” preferem que o presidente vá para seu próprio partido, ou, pelo menos, para um partido menor do Centrão, onde poderia ter o controle.


Elena Landau: Memória tumultuada

Ministro Guedes marcou sua gestão por tentar adaptar a realidade a seus devaneios

A Controladoria-Geral da União (CGU) organizou um seminário sobre Os Desafios da Desestatização há poucos dias. Uma das estrelas do evento foi Paulo Guedes, que se confessou frustrado por não ter vendido nada, apesar das promessas de campanha. De fato, é inexplicável que um governo eleito com uma pauta de desestatização tão clara e com metas tão ousadas tenha feito tão pouco.

Infelizmente, não ouvimos um mea-culpa. Sem um bom entendimento dos desafios, não se consegue traçar um plano para superá-los. Repetindo a cantilena de sempre, atribui aos acordos políticos no Congresso a responsabilidade da tibieza do programa. Mas não disse em que exatamente nossos parlamentares estão atrapalhando.

Como não há desejo de vender Petrobrás, Caixa ou Banco do Brasil, muito pouco depende de anuência do Legislativo. Só a Eletrobrás está pendente. A lista de intenções do governo chama atenção pela ausência das empresas que não precisam de autorização específica, como EBC, EPL, Infraero ou Valec. Ou mesmo, a liquidação de outras, como Hemobrás.

Enquanto o ministro falava, o Gabinete de Segurança Institucional enviava para publicação no DOU uma resolução recomendando a criação da Alada – Empresa de Projetos Aeroespaciais SA. Já será a segunda estatal criada neste governo.

Se for para achar os inimigos da privatização, Guedes não precisa atravessar a rua, estão todos na Esplanada dos Ministérios. Cabe a ele, como presidente do Conselho do PPI, convencer seus colegas a desapegarem de suas estatais.

Ao final, não faltou, é claro, a promessa de fazer quatro grandes vendas em 2021. Semana que vem, ano que vem, 90 dias, tanto faz. Ninguém dá bola mesmo.

Não fosse o introito, a palestra não teria trazido nenhuma novidade. É ali que Guedes se revela como historiador. Em tom professoral, inicia explicando por que temos um Estado tão grande. A razão é ter sido moldado pelos militares, com objetivo de acelerar o tempo e aprofundar a infraestrutura. E então completa o raciocínio: “A estrutura de Estado foi montada durante um regime politicamente fechado… Era até relativamente sofisticado que em vez de ter um, houve um rodízio de presidentes. Então, ao contrário de alguns lugares onde a gente pode caracterizar claramente como um regime ditatorial, aqui o Congresso ficou funcionando, operando, havia uma eleição indireta”.

Guedes marcou sua gestão por tentar adaptar a realidade aos seus desvarios. São os trilhões das privatizações, os 40 milhões de testes do amigo inglês ou o mundo se surpreendendo com o Brasil. Mas, dessa vez, passou de qualquer limite. Pode fazer a projeção delirante que quiser, mas reescrever a história política do País não dá. É um desrespeito a quem viveu durante o regime militar; a quem perdeu parentes para a tortura; aos que foram exilados; aos inúmeros deputados cassados, assim como ministros do STF; à imprensa que foi calada; aos artistas censurados; à toda sorte de perseguição que sofreram os que ousaram se colocar contra esse regime “relativamente sofisticado”.

Sem falar na herança econômica da hiperinflação, da concentração de renda, da década perdida e das suspeitas de corrupção que envolviam obras faraônicas, como a Transamazônica ou as usinas nucleares de Angra.

Ele pode até ser a favor do golpe e da ditadura, mas não pode fingir que não aconteceu. Impossível ignorar as atrocidades do governo muito sofisticado de Garrastazu Médici.

Diz ele que tinha apenas 13 anos quando foi “instalado” o governo militar, muito jovem para ter percepção ou opinião. Eu nem era nascida quando Getúlio se matou, nem por isso eu posso afirmar que o presidente morreu de causas naturais.

Para quem leu Keynes três vezes no original, deve ser fácil encarar os cinco volumes de Elio Gaspari. Se tiver com preguiça pode ir direto para o A Ditadura Escancarada.

Eu tinha seis anos quando veio o golpe. Com apenas dez, ouvi com meu pai o discurso de Mario Covas e lembro dele dizendo: “Belíssimo, mas vai ser cassado”. Logo depois, veio o AI-5. Quem era um adolescente em 64, já era um homem em 68.

Paradoxalmente, Guedes falou do ato institucional mais de uma vez em seu mandato. A memória volta quando lhe convém. Pode ser ato falho de quem acha melhor governar sem Congresso.

Ao fim da palestra, prometeu o desfazimento do Estado gigante porque “agora temos um governo liberal-democrata”. Com um porta voz desses não é à toa que o liberalismo tem sido tão questionado.

Vade retro.


Um belo resultado dessas eleições e uma boa notícia para os liberais: o aumento da diversidade nas Câmara de Vereadores pelo País.

*Elena Landau, economista e advogada


Reforma administrativa para manter teto de gasto é desprovida de senso, diz José Luis Oreiro

Em artigo que publicou na Política Democrática Online de novembro, professor da UnB analisa proposta em tramitação

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da UnB

O professor do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília) José Luis Oreiro afirma que “a realização de reforma administrativa com o objetivo de preservar o teto de gastos parece ideia desprovida do mínimo senso de realidade”. A análise consta de artigo que ele produziu para a revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!

No debate econômico brasileiro atual é crescente o consenso de que não é possível manter o Teto de Gastos, que, conforme lembra Oreiro, estabelece o congelamento dos gastos primários da União em termos reais até 2036, devido ao crescimento dos gastos com Previdência Social a um ritmo de 3% ao ano, mesmo após a reforma da previdência, realizada em 2019. “O que levará a um esmagamento progressivo das despesas discricionárias como, por exemplo, os gastos com investimento público e com o custeio de Saúde e Educação”, avalia o autor.

No artigo publicado na revista Política Democrática Online de novembro, o professor da UnB observa que o elevado nível de desemprego da força de trabalho combinado com alta ociosidade da capacidade produtiva na indústria exige aumento expressivo da demanda agregada, o que, segundo ele, nas condições atuais, só pode ocorrer por intermédio do investimento público. “O que esbarra nas limitações legais ao aumento de gasto público imposto pela EC 95”, escreve.

De acordo com Oreiro, um dos principais problemas da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 32 é que acaba sendo vazia, já que, ele diz, deixa para regulamentar o essencial posteriormente. Estes são os casos de definição de quais serão as carreiras típicas de Estado, os critérios de avaliação de desempenho e as novas formas de acesso ao serviço público, tanto quanto a política remuneratória e de benefícios percebidos pelos servidores, as regras para a ocupação de cargos de liderança e assessoramento e a progressão e a promoção funcionais que serão tratados por projeto de lei complementar.

“Outro ponto crucial é que a reforma proposta deixa de fora as maiores fontes de distorções no serviço público – os militares, os juízes e membros do Ministério Público, e os parlamentares”, critica, para acrescentar: “No caso dos militares, parece que até obterão ganhos com essa reforma, ao poderem acumular determinados cargos (docência e empregos na saúde, sob certas condições), o que é explicitamente facultado no novo texto”.

Leia também:

‘Trump nega regras democráticas que funcionam há séculos’, afirma Paulo Baía

Nova onda de Covid-19 na Europa divide governadores no Brasil sobre volta às aulas

‘Precisamos de coalizão para enfrentar governança das polícias’, diz Luiz Eduardo Soares

‘Kassio Nunes não é um dos mais notáveis juristas brasileiros’, diz Murilo Gaspardo

Benito Salomão afirma que eleições 2020 podem iniciar fase melhor da vida política

Forças de oposição devem fortalecer leque de alianças para segundo turno das eleições

Rubens Ricupero avalia potencial de eleição de Joe Biden para mudar o mundo

Política Democrática Online destaca coalizão para reforma estrutural nas polícias

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Monica De Bolle: Estupidez brutal

Brutal e renitente. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso

Daqui dos EUA de onde escrevo, a bruma da estupidez, do negacionismo, da incompetência já começou a se dissipar. Sim, Trump ainda é presidente, mas ele e seus asseclas não dominam mais as páginas dos jornais. De um lado, isso acontece porque Trump, apesar de sua frívola judicialização eleitoral, já desistiu de presidir o país dois meses antes da posse de Joe Biden. De outro porque o presidente eleito tem ocupado os espaços com anúncios sobre quem vai compor o seu governo, quais serão as medidas prioritárias, o que fará para combater a terceira e a mais terrível onda da pandemia, e como pretende resguardar a economia. No Brasil, ao contrário do que ocorre ao Norte, a estupidez brutal corre sem rédeas.

Que a estupidez brutal impere não é uma surpresa. Ninguém espera que esse governo que está aí aprenda o que quer que seja, até porque sua incapacidade já se revelou tamanha que todas as máscaras caíram. As eleições municipais deram sinais – ainda tênues, é verdade – de que a população pode estar começando a se cansar das gritarias, dos absurdos, dos desditos.

As pessoas querem políticas públicas, clamam por uma agenda, uma estratégia, um plano, qualquer coisa, enfim, que permita um vislumbre dos rumos do País e da vida de cada um quando 2021 chegar. E 2021 é o ano em que o Brasil estará lidando com desafios simultâneos: o de uma campanha eleitoral precoce para 2022 e o de uma segunda onda da pandemia. A segunda onda da pandemia é tão certa quanto a existência do vírus que a provoca. Ela já está evidente em vários números: o de leitos ocupados nos hospitais, o de novos casos, o de óbitos. Mesmo assim, há quem a negue.

Claro que há quem a negue e é claro, também, que os negacionistas não poderiam estar em outro lugar senão dentro do Ministério da Economia. Há um quê de março no ar. Lembram-se de março? Mais especificamente, do dia 16 de março? Foi há oito meses. Nesse dia, quando a pandemia já estava presente no Brasil, o ministro da Economia veio a público dizer que a economia cresceria mais de 2,5% em 2020. Perto da mesma data, Paulo Guedes também disse que enxotaria o vírus do País jogando sobre o RNA encapsulado uns R$ 5 bilhões. Não se deu conta de que o RNA encapsulado não reage nem às notas, nem às palavras que profere. A única coisa da qual ele precisa é de uma célula hospedeira para parasitar, replicar e se proliferar. Dito e feito, a primeira onda estourou bem na cara do ministro. Com volúpia.

Passada essa experiência, era, se não razoável, justificado imaginar que o Ministério da Economia não iria deixar-se pegar novamente no contrapé, sobretudo porque o vírus nunca deixou o País. Mas as oportunidades de engolir as ondas sucessivas de um RNA encapsulado e obstinado não podem ser desperdiçadas.

Em pleno alvorecer da segunda onda, um dos secretários de Guedes veio a público dizer que não há onda alguma e que os Estados brasileiros estão muito bem, obrigado, porque muitos já obtiveram a imunidade de rebanho. Lembram-se dela? Lembram-se de como teve gente insistindo que era esse o caminho, o modelo da Suécia? “Deixem a infecção natural acontecer, que logo, logo estará todo mundo imune!”, bradou a estupidez brutal.

É curioso porque a Suécia acaba de abandonar o modelo sueco por causa da segunda onda e acaba de abandoná-lo devido à segunda onda porque já está comprovado, inclusive na Suécia, que imunidade de rebanho é conceito inaplicável a uma situação de infecção natural. Como já escrevi neste espaço, o termo usado por epidemiologistas se refere àquelas situações em que existe uma vacina para uma doença infecciosa com eficácia comprovada.

Por exemplo, se a eficácia das vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna forem comprovadas, quando começarem a ser distribuídas e as campanhas de imunização estiverem em andamento, seremos capazes de dizer algo sobre imunidade de rebanho. Mas não agora. E certamente não será pelo secretário de Guedes, que já revelou não entender nem de pandemia, nem de economia. Trata-se do mesmo secretário que inventou conceitos inexistentes na disciplina, como PIB privado. Melhor nem perguntar o que é.

Portanto, a estupidez brutal. Brutal e renitente, como o RNA encapsulado. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Celso Ming: O rombo fiscal e o risco de hiperinflação

Paulo Guedes pode ter exagerado no risco de hiperinflação, mas ministro tem razão a respeito da deterioração das contas públicas do Brasil

O ministro da Economia, Paulo Guedes, pode ter carregado demais nas tintas, mas tem de ser levado a sério na sua advertência de terça-feira de que “o Brasil pode ir para a hiperinflação se não rolar a dívida pública satisfatoriamente”.

À primeira vista, parece fora de propósito falar em risco de hiperinflação quando a evolução do custo de vida nos primeiros dez meses deste ano não passa de 2,22%; quando já se tinha como favas contadas a reversão estrutural da inflação; e quando, apesar da atual recaída, que empurrou a inflação de outubro para 0,86%, o Banco Central mantém os juros básicos (Selic) estacionados nos 2,0% ao ano desde agosto deste ano.

No momento, uma hiperinflação não passa pelas telas dos radares. O próprio ministro tem dito que a recuperação da economia já começou e, com ela, espera aumento da arrecadação. Embora o IGP-M tenha disparado para 18,10% nestes dez primeiros meses e, por isso, tenha complicado o reajuste anual dos aluguéis, em consequência da cavalgada dos preços no atacado e da puxada nas cotações do dólar, a inflação continua sob controle. Como mostra o Boletim Focus, do Banco Central, o mercado continua esperando uma inflação em 2020 de 3,02%, portanto abaixo da meta (que é de 4,0%). E, para 2021, as projeções do mercado são de uma inflação de 3,11% (com meta de 3,75%).

Os próprios assessores do Ministério da Economia se viram na obrigação de negar que esse aviso devesse ser interpretado como “terrorismo fiscal”.

Mas o ministro tem razão quando adverte para a ameaça de que a forte deterioração das contas públicas e de aceleração da dívida pode arrastar rapidamente a economia para uma situação de dominância fiscal, aquela em que o Banco Central não poderá fazer nada para evitar a disparada das cotações do dólar e o avanço da inflação.

A frente fiscal só pode ser enfrentada eficazmente de duas maneiras: por meio de aprovação de um orçamento equilibrado e por meio de rápido andamento dos projetos de reforma administrativa e tributária. Sem isso, a falta de confiança tenderá a empurrar as cotações do dólar para a cumeeira e, a partir daí, será inevitável que a alta dos preços dos importados e dos demais produtos nacionais cotados em dólares (como combustíveis, derivados de soja, de milho e de trigo) seja repassada para os preços em reais.

E, no entanto, os políticos do Congresso se comportam como se a questão fiscal não fosse prioritária. A todo momento, deputados e senadores sugerem que nessa hora de calamidade não se pode ficar ouvindo demais os xiitas da contabilidade, que saúde não tem preço, que o governo precisa parar de sentar em cima do cofre e que “lá na frente, quando der, serão consertadas as contas públicas e a dívida”.

O presidente Bolsonaro não se mostra nem um pouco preocupado com o equilíbrio fiscal. Quer aprovar de uma vez o programa Renda Cidadã, destinado à população de baixa renda, sem ao menos incorporar a ele os inúmeros programas de subsídios e de renúncia tributária, para não “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”. Por essas e outras, a inflação preocupa, sim.


Vinicius Torres Freire: Guedes e as privatizações de Nostradamus

Ministro prevê hiperinflação, que seria culpa sua, e tem nova visão sobre venda de estatais

O “Brasil pode ir para a hiperinflação muito rápido, se não rolar a dívida satisfatoriamente”, disse Paulo Guedes na terça-feira, dia do jorro de abjeções de Jair Bolsonaro. Em uma jornada que teve saudação da morte, culto antivacina, “maricas” e “pólvora”, pouca gente além dos observadores da economia notou a contribuição do ministro para o aumento do desespero amargo das pessoas sensatas do país.

Ainda assim, convém dar o mérito a Guedes. Se por mais não fosse, na mesma terça-feira o ministro escreveu mais uma página de seu livro das “Privatizações de Nostradamus”, aquelas que, não se sabe bem quais, acontecerão em algum dia, não se sabe bem de qual século.

Em julho, Guedes dissera que o Brasil iria “surpreender o mundo” e que “vamos fazer quatro grandes privatizações nos próximos 30, 60, 90 dias”. Como a mente e a conversa de Guedes são confusos, não se sabia se mais uma vez o ministro prometia anúncios ou privatizações. Passados uns 120 dias, nesta semana, Guedes anunciou que “estamos propondo isso para o Congresso nos próximos 30 a 60 dias”, referindo-se à privatização de Eletrobrás, Correios, PPSA (a estatal da gerência dos contratos da partilha do petróleo) e do Porto de Santos, que seriam feitas até 2021. “Estamos propondo”? Em meados de dezembro? Em janeiro, nas férias do Congresso?

Não há projeto de privatização dos Correios. O caso da Eletrobras está parado com o pessoal do centrão. Não há nem estudos iniciais para o Porto de Santos, que tem privatização prevista para 2022, pelo próprio governo, por ora um chute.

O Brasil de fato pode ir para a hiperinflação se o governo federal não rolar a dívida “satisfatoriamente". Não quer dizer nada. Do mesmo modo, se chover pode ficar molhado, quando chover. No entanto, mesmo levando em conta a incompetência econômica do governo, não há risco de hiperinflação no horizonte, embora outros desastres estejam ao alcance da mão ou das patadas bolsonaristas.

Mesmo para causar uma convulsão maior e imediata, o Congresso precisaria, por exemplo, derrubar sem mais o teto de gastos, uma mudança constitucional. Uma hiperinflação “fast food” dependeria ainda de, por exemplo, da revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal e da proibição constitucional de o Banco Central financiar o governo.

No mais, uma derrocada, fulminante ou não, depende fundamentalmente do governo, em termos técnicos e políticos. Se a administração da política econômica continuar essa mixórdia, se não houver projeto fiscal, se continuar a incompetência na negociação política de “reformas”, há risco de interrupção da despiora da economia, de a receita federal minguar, de o déficit crescer, de o dólar ultrapassar a estratosfera e de as taxas de juros longas viajarem além das nuvens poluídas onde foram parar por causa do desgoverno.

Em princípio, poderia haver estagnação no fundo do poço ou até uma recaída na recessão. Neste caso, é possível que até os cúmplices de Bolsonaro o ponham para fora do governo.

Ainda assim, pode ser que essa espiral ruinosa continue. Então, a expectativa de crescimento sem limite da dívida criaria um descontrole grave: a inflação daria uma desgarrada além da meta (não precisa ser hiper) e o BC elevaria a taxa de juros até certo ponto, quando então a conta de juros faria a dívida crescer ainda mais rápido, com o que a política do BC viria a se tornar contraproducente. Então, bau, bau.

Paulo “Nostradamus” Guedes estaria fazendo uma previsão das consequências de sua própria inépcia?


RPD || José Luis Oreiro: Reforma Administrativa ou retorno ao Estado Patrimonialista?

Reforma Administrativa com o objetivo de preservar o teto de gastos parece ideia desprovida do mínimo senso de realidade, avalia José Luis Oreiro em seu artigo

Recentemente, o Ministério da Economia encaminhou proposta de Reforma Administrativa na forma da PEC 32/2020. A proposta parte explicitamente do pressuposto de que existiria uma série de distorções na administração pública que aumentariam o gasto com os salários e benefícios dos servidores públicos a patamares elevados como proporção do PIB na comparação com outros países, além de tornar os serviços públicos de má qualidade. Nesse contexto, a reforma administrativa permitiria reduzir de forma significativa o gasto com o funcionalismo público, liberando espaço no orçamento fiscal para o aumento do investimento público, sem violar a Emenda Constitucional do Teto de Gastos, promulgada em 2016, que estabelece o congelamento do valor real da despesa primária da União por um prazo de 20 anos.

A realização de uma Reforma Administrativa com o objetivo de preservar o teto de gastos parece-me ideia desprovida do mínimo senso de realidade. No debate econômico brasileiro atual é crescente o consenso de que não é possível manter o Teto de Gastos (EC 95), que estabelece o congelamento dos gastos primários da União em termos reais até 2036, devido ao crescimento dos gastos com Previdência Social a um ritmo de 3% a.a, mesmo após a Reforma da Previdência, realizada em 2019. O que levará a um esmagamento progressivo das despesas discricionárias como, por exemplo, os gastos com investimento público e com o custeio de Saúde e Educação.

Além disso, o elevado nível de desemprego da força de trabalho combinado com alta ociosidade da capacidade produtiva na indústria, resultantes dos efeitos combinados da grande recessão de 2014-2016 e da pandemia do coronavírus, exige aumento expressivo da demanda agregada, o que, nas condições atuais, só pode ocorrer por intermédio do investimento público. O que esbarra nas limitações legais ao aumento de gasto público imposto pela EC 95. Para não mencionar que a experiência das reformas administrativas nos países europeus após a crise financeira internacional de 2008 mostra que os ganhos fiscais obtidos são, na melhor das hipóteses, irrisórios.

Um dos principais problemas da PEC 32 é que acaba sendo vazia, uma vez que deixa para regulamentar o essencial posteriormente – como a definição de quais serão as carreiras típicas de Estado, os critérios de avaliação de desempenho e as novas formas de acesso ao serviço público, tanto quanto a política remuneratória e de benefícios percebidos pelos servidores, as regras para a ocupação de cargos de liderança e assessoramento, e a progressão e a promoção funcionais que serão tratados por projeto de lei complementar.

Outro ponto crucial é que a reforma proposta deixa de fora as maiores fontes de distorções no serviço público – os militares, os juízes e membros do Ministério Público, e os parlamentares. No caso dos militares, parece que até obterão ganhos com essa reforma, ao poderem acumular determinados cargos (docência e empregos na saúde, sob certas condições), o que é explicitamente facultado no novo texto.

Presumiu-se que seria inconstitucional o Poder Executivo arbitrar regras para membros de outros poderes. Mas a Reforma do Judiciário promulgada em 2004 foi feita a partir de uma PEC apresentada pelo então deputado Hélio Bicudo, com adendos inclusive do Executivo, com vistas a ampliar as funções da Justiça Federal. Em 2005, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) e declarou a inexistência de qualquer “vício formal” na proposta apresentada por outros Poderes que não o Judiciário.

A reforma cria também novos meios de acesso ao serviço público e tende a reduzir fortemente os cargos com estabilidade. Os concursos públicos e a estabilidade são avanços da Constituição Federal de 1988. Os concursos são processos seletivos democráticos, transparentes, comprovam a qualificação e o conhecimento de maneira impessoal (rompendo a prática de indicações, nepotismo, trocas eleitorais, ou seja, com o velho Estado Patrimonialista). A estabilidade busca dar mais liberdade aos concursados para atuarem tecnicamente, sem a necessidade de consentir com todas as práticas de seus superiores.

E já existe a possibilidade de demissão dos servidores, sendo que desde 2003 foram demitidos 7.766 servidores federais, 566 os quais em 2018, por exemplo. Esse número não está distante de outros países (levando em conta a quantidade de servidores), como é o caso do Canadá, em que houve uma média de 130 demissões ao ano entre 2005 e 2015.
Em suma, a PEC 32, ao fragilizar a estabilidade dos servidores públicos, pode transformar os servidores em funcionários do governo de plantão, ao invés de funcionários do Estado Brasileiro, constituindo-se assim num retrocesso em direção ao velho Estado Patrimonialista.

José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB.


Cristiano Romero: Paulo Guedes, liberal?

Ministro quer a volta da CPMF, o tributo mais antiliberal

Paulo Guedes chegou a Brasília com credencial de liberal formado pela Escola de Chicago. Na prática, o que se vê não se parece nada com o liberalismo de Milton Friedman, maior expoente daquela escola. Com a economia rodando à taxa básica de juros (Selic) em 2% ao ano, o ministro quer recriar a CPMF, tributo que funciona como uma espécie de confisco e do qual o país se viu livre em 2007, por decisão soberana do Congresso.

Por que confisco? Ora, porque a CPMF não taxa diretamente o ganho, a renda, o lucro, o valor agregado nem mesmo o consumo ou a produção, mas, sim, a passagem do dinheiro por uma conta bancária. Basta o sujeito depositar seu dinheiro num banco e já tem que pagar o tributo. É um imposto, na verdade, sobre dinheiro. E, mesmo quem não tem conta, paga indiretamente porque tudo o que compra tem o custo da CPMF embutido no valor.

A CPMF é um tributo regressivo, injusto, pois ricos e pobres pagam proporcionalmente a mesma coisa. Sua incidência em cascata onera toda a cadeia produtiva e, portanto, os preços. Onera, ainda, a formação da taxa de juros.

No momento em que o Banco Central (BC) aproveita a maré de juros historicamente baixos para estimular a competição no sistema de crédito, a CPFM seria mais uma cunha fiscal sobre a intermediação financeira, portanto, um contrassenso.

“Do ponto de vista econômico, a incidência de impostos sobre operações de captação de recursos e concessão de empréstimos constitui uma distorção introduzida pelo governo na livre formação de um preço, a taxa de juros. Por representar um ônus para o tomador, mas não um bônus para o poupador, a tributação desestimula tanto o investimento quanto a poupança”, dizem, no estudo “A Cunha Fiscal sobre a Intermediação Financeira”, Renato Fragelli, do Ibre-FGV, e Sérgio Mikio Koyama, do BC. “Trata-se, portanto, de um entrave à boa alocação inter-temporal de recursos na economia, com consequências de longo prazo sobre o crescimento econômico.”

A cunha fiscal imposta pela CPMF não é sobre o spread bancário, isto é, sobre a diferença entre a taxa de juros dos empréstimos e o custo de captação dos bancos. A CPMF é paga diretamente por quem toma um financiamento e também pelo investidor que compra um CDB emitido pelos bancos, logo, o tributo não está contido no spread.

Observe-se que a margem de lucro dos bancos em operações de crédito está dentro do spread, logo, a CPMF não alcança a rentabilidade das instituições financeiras, como apregoam alguns defensores desse tributo.

No estudo que fizeram para o Banco Central, Fragelli e Koyama identificaram sete impostos recolhidos ao longo da intermediação de recursos entre um poupador e um tomador de empréstimo bancário - isto, sem falar do recolhimento compulsório sobre depósitos à vista, prazo e poupança - hoje, respectivamente, 21%, 17% e 20%, percentuais bem menores do que os exigidos no passado.

“No grupo de impostos que tipicamente constituem uma distorção da atual estrutura tributária estão o PIS, Cofins e CPMF. Trata-se de tributos que não têm relação direta com o valor adicionado das empresas, pois, incidem (em cascata) sobre o faturamento das empresas. No caso da CPMF, a distorção é particularmente grave, pois ela só se faz presente quando a troca entre empresas dá origem a saques de conta corrente”, explicam os dois especialistas no estudo.

O liberalismo do ministro Paulo Guedes entorta também em temas como “o que fazer com o dinheiro levantado na venda de estatais”. Num país em desenvolvimento cuja dívida pública caminha para o equivalente a 100% do Produto Interno Bruto (PIB), Guedes defendeu que o dinheiro arrecadado com privatizações vá para o custeio de programas sociais. A ideia não era ruim antes apenas porque saía da cabeça de economistas de esquerda durante campanhas eleitorais.

Nota do redator: no primeiro mandato (2003-2006), o presidente Lula, entre outras medidas fiscais austeras, aumentou o superávit primário das contas públicas em 0,5% do PIB (num esforço fiscal nunca feito antes na história deste país); antecipou o pagamento da dívida com o FMI - nada mal para quem apregoava a realização de auditoria na dívida e suspensão de seu pagamento -, e aprovou mudanças na Constituição de 1988 para instituir a contribuição de aposentados do setor público à previdência e igualar as regras de aposentadoria do funcionalismo público federal com as do trabalhadores do setor privado.

Ora, a dívida existe e é crescente porque o gasto público não cabe dentro do orçamento, isto é, porque a despesa supera a arrecadação de tributos e impostos. Daí, a necessidade de ajuste fiscal. Digamos que todas as estatais fossem vendidas, e os recursos obtidos fossem destinados ao pagamento de programas sociais. O dinheiro seria suficiente para bancar no máximo um ano, se tanto, dessas despesas. Depois disso, o governo voltaria a se endividar.

Com a dívida voltando a crescer, a despesa com juros também cresce e o custo disso - a taxa de juros exigida pelo mercado para continuar financiando o Tesouro - tende a aumentar exponencialmente. O déficit público escala e, aí, não se tenha dúvida, Brasília, premida a reequilibrar o orçamento, cortará verbas onde é mais fácil fazer isso - dos programas sociais, afinal, pobre - a maioria da população - não tem representante no centro do poder.

De onde Guedes e sua equipe propuseram tirar dinheiro para custear o “Renda Brasil”? Do congelamento, por dois anos, das aposentadorias pagas pelo INSS a 35 milhões de brasileiros, sendo que 70% desse contingente recebe um salário mínimo (R$ 1.045,00) por mês.

A propósito, dinheiro de que privatizações? Desde que assumiu embalado por um discurso liberalizante nunca visto por aqui desde a chegada do navegador espanhol Vicente Pinzón à “Praia do Paraíso” (hoje, Cabo de Santo Agostinho, litoral pernambucano) em 1499, antes, portanto, do português Pedro Álvares Cabral, o atual governo não vendeu uma estatal sequer, para deleite das corporações, de seus fundos de pensão e das empresas privadas que lucram com a ineficiência do Estado.

Ora, a dívida existe e é crescente porque o gasto público não cabe dentro do orçamento, isto é, porque a despesa supera a arrecadação de tributos e impostos. Digamos que todas as estatais fossem vendidas e os recursos obtidos fossem destinados ao pagamento de programas sociais. O dinheiro seria suficiente para bancar no máximo um ano, se tanto, dessas despesas. Depois disso, o governo voltaria a se endividar. A propósito, que privatizações?


Rosângela Bittar: Alma Gêmea

Guedes incorporou o raciocínio confuso, a linguagem agressiva e até os trejeitos do chefe

Noves fora a pandemia, o ministro Paulo Guedes e a economia estão na berlinda e inspiram as previsões de mudanças importantes no governo no início do novo ano. Enfrentar seu jogo é para os fortes, pois tem reflexos no câmbio, na bolsa, na inflação, na dívida. No entanto, para explicar o que acontece com o laureado economista, cujo poder declina, recorre-se apenas a uma anedota: Instrutor infiel aconselhou seu aprendiz de hipnose a fazer, como dever de casa, treinamento com os peixes, diante de um desses imensos aquários de parque turístico. Preocupado com a demora, o professor foi atrás e encontrou-o em transe, olhos fixos, lábios em bico, abrindo e fechando a boca, em estado de respiração mecânica. Em vez de hipnotizar, fora hipnotizado.

Eis a questão. Admitido para ser contraponto e conselheiro técnico do desaparelhado presidente Jair Bolsonaro, Guedes se fundiu a ele e se perdeu junto. O temperamento e a impertinência, já os possuía ao chegar. Em menos de dois anos, porém, incorporou o raciocínio confuso, a linguagem agressiva, a interpretação distorcida da realidade e até os trejeitos do chefe. Tornou-se sua alma gêmea.

Não se está falando só das já folclóricas gafes que tanto poderiam ilustrar a biografia de um como do outro. Quem não se lembra das empregadas domésticas e a Disneylândia? E a dos funcionários públicos, os “parasitas”? Aquelas do uso dos precatórios como orçamento e da taxação do seguro desemprego, deslizes técnicos engavetados, candidatos à ressurreição. Tem a última, a de ter medo de ser derrubado por “lobby da Febraban”. E as penúltimas, dos nazistas, da volta do AI 5, dos insultos à mulher do presidente da França…

Mas há também o traço de caráter, a preferência pelo conflito, a soberba, a falta de disposição e competência para o diálogo com o Congresso Nacional e com o Supremo Tribunal Federal. Bem como dificuldades extremas na relação com os ministros em particular. Tal e qual. Nas instâncias da economia, existia relativa confiança no que poderia fazer Guedes neste governo. Uma certeza é que teria coerência com as ideias liberais que sempre defendeu. Iria impor uma certa visão de necessários privatização e equilíbrio fiscal. Sua capacidade executiva não esteve em dúvida. Saberia, ainda, reunir pessoas adequadas a cada tarefa, suprindo suas fragilidades.

Nada, porém, encontrou no perfil de quem lhe serviu de espelho. A maioria das expectativas restaram frustradas, com duas exceções, uma em equipe, outra em resultados da política econômica: O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e a reforma da Previdência. Campos tem uma agenda própria e a está cumprindo. A reforma da Previdência, Guedes encontrou-a pronta, depois de 20 anos de discussão, e a recebeu resmungando pela ausência da capitalização, uma de suas obsessões à época.

De outra obsessão, a CPMF, imposto mundialmente considerado um lixo, não desiste, embora tenha sido a razão de seu fracasso na reforma tributária. Preparou uma reforma administrativa megalômana, proibitiva para um presidente em permanente campanha de reeleição. Suas propostas na área fiscal foram desprezadas, até o momento. Como Bolsonaro, Guedes faz recuos temporários e estratégicos. Como Bolsonaro, recuos e avanços numa mesma frase: vai ter, não vai ter!

Previstos na lei do teto e da responsabilidade fiscal, os gatilhos empacaram nas divergências internas. O teto é, por sinal, o tema preferencial da disputa interna de poder. Apenas discursiva, sem consequência, pois ninguém sabe o que fazer.

Não há propostas para sair da crise que o governo imaginava fugaz. Aprofundou-se a dívida. Vem aí a segunda fase da pandemia. Bolsonaro vai segurar o teto? Guedes tem solução para não deixá-lo desabar? Até a próxima conferência do ministro. Até o próximo comício do presidente.


Elio Gaspari: A privataria da saúde não toma jeito

Costuraram no escurinho de Brasília um avanço sobre as Unidades Básicas de Saúde do SUS, conseguiram um decreto, que gerou gritaria e acabou sendo retirado

A turma da privataria da saúde desprezou um velho conselho de Tancredo Neves e deu-se mal: “Esperteza quando é muita come o dono”.

Costuraram no escurinho de Brasília um avanço sobre as Unidades Básicas de Saúde do SUS, conseguiram um decreto, provocaram uma gritaria, tomaram um momentâneo contravapor de Bolsonaro e avacalharam o general Eduardo Pazuello. Seu ministério disse que a ideia veio da ekipekonômika. Já o doutor Guedes disse inicialmente que ela veio do ministério do general.

Em 2019, essa turma produziu em segredo um projeto que virava de cabeça para baixo a legislação que rege os planos de saúde. Tinha 89 artigos, nenhum a favor da clientela. A peça havia sido produzida num escritório de advocacia por um consórcio de entidades, seguradoras e operadoras, e a consulta ao seu texto era sigilosa. Divulgada, a armação explodiu e ficou sem pai nem mãe. Covardemente, ninguém saiu em sua defesa, nem os autores.

De lá para cá, veio uma pandemia e roubalheiras público-privadas com a saúde foram expostas em Rio, Amazonas, Pará, Brasília e Santa Catarina. Três secretários de Saúde passaram pela cadeia, e dois governadores estão com o mandato a perigo.

Individualmente, entre os çábios da privataria médica há renomados profissionais, ou respeitados gestores. Coletivamente, eles se misturam com larápios e operadores do escurinho de Brasília, incapazes de botar a cara na vitrine. Se praticassem esse tipo de promiscuidade no tratamento de seus pacientes privados, a medicina brasileira já teria migrado para Miami.

Figueiredo, general de vitrine

Está chegando às livrarias “Me esqueçam: Figueiredo — A biografia de uma presidência”, de Bernardo Braga Pasqualette. Conta o governo do general João Baptista Figueiredo, o último governante do ciclo que foi de 1964 a 1985.

Estourado e vulgar (um lorde nos dias de hoje) deixou a Presidência pedindo para ser esquecido. Conseguiu, mas os tempos estranhos do século XXI pediam que seu caso fosse contado e Pasqualette ralou, entrevistando centenas de sobreviventes do ocaso da ditadura. Figueiredo foi um personagem trágico. É visto como o último presidente da ditadura, mas assinou a anistia de 1979, respeitou as regras do jogo e deixou o palácio por uma porta lateral para não passar a faixa a José Sarney, que assumiu por conta da doença de Tancredo Neves. Seria seu grande momento. Foi o retrato de um temperamental desorientado.

Sua administração foi errática e ruinosa, mas a ele também se deve o fecho da transição para um regime democrático.

Figueiredo era um general de vitrine, tríplice coroado nas escolas militares, fazia o gênero do cavalariano desbocado e atlético. Ali havia um cardiopata inseguro e dissimulado. Muita medalha e pouco mérito. Ele passou mais tempo no palácio do que em comandos de tropa e viveu parte da Segunda Guerra como instrutor da cavalaria na escola de Realengo.

Faixas

Ao tempo do general Figueiredo, o governo tinha mania de condecorações. Ela voltou, com mais um penduricalho: as faixas. Este adereço monárquico exige bons modos e elegância. Quando o uso de faixas era coisa de miss em concurso de beleza, as moças vestiam-nas como rainhas.

Bolsonaro veste suas faixas com tamanha desatenção que elas podem acabar virando cachecóis. Em seu benefício, diga-se que nunca usou faixa com o paletó aberto, coisa que pelo menos um dos seus generais já fez.

Lula caiu na real

Com o PT a pão e água nas pesquisas para a eleição dos prefeitos de Rio, São Paulo e Belo Horizonte, Lula caiu na real.

Em junho ele se recusava a assinar manifestos que julgava poluídos por eventuais adesões como as de Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer.

Nas suas palavras: “Eu não tenho mais idade para ser maria vai com as outras. O PT já tem história neste país, já tem administração exemplar neste país. Eu, sinceramente, não tenho condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas”.

Passaram-se quatro meses e a “metamorfose ambulante” mudou, anunciando que “podemos ter uma ampla coalizão contra o Bolsonaro em 2022”.

Graças a uma costura de Camilo Santana, o governador petista do Ceará, “Nosso Guia” restabeleceu a comunicação com Ciro Gomes, a quem ele e o comissariado petista maltratavam.

Quando os dois se estranhavam, Ciro Gomes disse, com razão, que “o PT se acha dono dos votos” e Lula “se acha o maioral”.

Witzel saudita

O doutor Wilson Witzel (Harvard Fake’ 15) ameaça: “Se perceber que há perseguição política e cooptação das instituições contra mim e a minha família, pretendo pedir asilo político no Canadá”.

Ex-juiz, Witzel deve procurar um advogado ou pensar num outro tipo de fuga. É improvável que a embaixada do Canadá dê asilo político a um cidadão acusado de improbidade que tenha sido afastado do governo num processo público e irretocável.

Isso, fazendo-se de conta que o governador afastado do Estado do Rio defendia os direitos humanos quando dizia que “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”.

O Canadá tem uma tradição humanitária e recebeu dezenas de milhares de refugiados, quase todos do andar de baixo. Talvez Witzel possa tentar a Arábia Saudita, que em 1979 asilou o balofo ugandense Idi Amin Dada, ou Marrocos, onde o larápio general congolês Mobutu terminou seus dias.

Guedes x Marinho

O doutor Paulo Guedes sempre soube que a Febraban opera a serviço dos bancos, até porque já esteve naquele lado do balcão. Como ministro, atacou a guilda acusando-a de financiar “estudos que não têm nada a ver com a atividade de defesa das transações bancárias, financiando ministro gastador para ver se fura o teto, para ver se derruba o outro lado”.

A fala seria trivial, mas seu final ficou críptico. Pode-se deduzir que o “ministro gastador” é Rogério Marinho. Falta explicar o uso da palavra “financiando”.

Pelo nível das cotoveladas que os dois trocam, poderiam ouvir o conselho de Djalma Marinho, avô de Rogério, em 1968, quando o governo armava o bote do AI-5: “Ao rei, tudo, menos a honra”.

O futuro de Salles

A segurança de Ricardo Salles no ministério do Meio Ambiente tornou-se idêntica à de uma jazida em reserva indígena.

Quando o general da reserva Santos Cruz reclamou do “desrespeito geral, por despreparo, inconsequência e boçalidade” que envenenam o ar, não deu nome aos bois, mas passou sua boiada.


Míriam Leitão: O desemprego e a propaganda

O mercado de trabalho enfrenta a maior crise da sua história, mas não espere que a equipe econômica faça análises técnicas e sóbrias sobre o momento atual. O ministro Paulo Guedes e o secretário de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, têm aproveitado as coletivas do Caged para o autoelogio. É normal que se comemore a geração de empregos formais, mas pode ter havido subnotificação das demissões. Além disso, o IBGE conta outra história: desemprego recorde, precarização do trabalho e aumento do desalento. O país vive uma situação inusitada, mas já prevista pelos especialistas: criação de vagas com aumento do desemprego, ao mesmo tempo.

Existem três termômetros para se entender o mercado de trabalho brasileiro. A Pnad Contínua, a Pnad Covid, ambas medidas pelo IBGE, e o Caged, que mede o emprego formal. Isoladamente, nenhum deles é capaz de dizer o que está acontecendo. O ideal é que a equipe econômica fosse capaz de ter uma visão sóbria e ampla para formular políticas de saída da crise. Quem acompanhou a entrevista de quinta-feira com Paulo Guedes e Bruno Bianco teve que ouvir uma sucessão de frases feitas como “o Caged mostra que desde sempre o nosso presidente estava correto”, “o mercado de trabalho comprova recuperação em V” ou “criamos o maior programa de proteção do emprego do mundo”. Bom para palanque, constrangedor em um ministério técnico.

O Caged mostra que o país teve o melhor setembro da história na criação de empregos formais. Esse índice é feito com os avisos das empresas sobre contratações e demissões. Nos últimos três meses, houve mais contratações. Em julho (139 mil), agosto (244 mil) e setembro (313 mil). Ótimas notícias. Mas o que tem chamado atenção nos dados são os registros das demissões. Em plena pandemia, e na maior retração do PIB da história, a Secretaria de Trabalho diz que houve menos desligamentos de janeiro a setembro deste ano (11,17 milhões) do que no mesmo período do ano passado (11,65 milhões). O dado é, no mínimo, estranho.

O economista Daniel Duque, do Ibre/FGV, divulgou um estudo mostrando as “evidências da subnotificação de desligamentos do Caged”. Ele explica que a partir de abril houve uma forte queda no número de empresas que enviaram ao governo informações sobre o seu quadro de funcionários. A suspeita é que muitas delas tenham fechado as portas e deixado de notificar as demissões. Com isso, entraram no índice as vagas criadas pelas empresas em funcionamento, mas não as demissões de empresas quebradas. Para se ter uma ideia, até março havia 850 mil empresas informando seus dados para o Caged. Em maio, o número havia caído para 550 mil e em agosto marcava 610 mil.
— Uma empresa que fechou ou hibernou tem grande chance de ter realizado demissão sem reportar ao governo. O programa de proteção ao emprego, que reduziu jornada e salários sem que se pudesse demitir, também deve ter postergado cortes — explica Duque.

Questionada, a Secretaria diz que o Caged tem defasagens de informações e que as empresas ainda podem enviar os dados nos próximos meses.

Os dados da Pnad divulgada ontem, do trimestre junho-julho-agosto, são de 14,4% de taxa de desemprego. A maior da história. E existem outros dados preocupantes. Em relação ao trimestre anterior, terminado em maio, há 4,3 milhões a menos de pessoas na população ocupada, e 12 milhões a menos sobre o ano passado. Mesmo com esses dados assustadores, Duque enxerga sinais de melhora. Como a pesquisa do IBGE só considera desocupado o trabalhador que tentou achar emprego e não conseguiu, esse indicador não captou o pior momento da crise, quando todos estavam em casa, e agora também não consegue medir a recuperação, com a reabertura da economia. Já se esperava essa contradição de a taxa do desemprego aumentar exatamente quando as pessoas se sentirem mais confiantes a procurar emprego.

— A Pnad tem outro problema, que é o trimestre móvel. O dado de agosto carrega também números de junho e julho que foram piores. Então tirando esse efeito da conta, percebe-se que o mercado de trabalho está melhorando, o que já era esperado, com a queda do isolamento social — explicou.

Os sinais são trocados e difíceis de entender. O mercado de trabalho sofreu um baque na pandemia. Não é fácil medir o tamanho da queda. Há sutilezas nos indicadores que precisam ser olhados com atenção. O pior a fazer é tratar disso com atitude de propaganda. O importante são os fatos. Sempre eles.


Adriana Fernandes: Incompetência e a barreira dos 100%

Com a perspectiva de recorde negativo, País pode enfrentar em 2021 uma crise da dívida

Em dezembro de 2017, o governo anunciava que um dos principais indicadores da sustentabilidade das contas públicas estava perto de atingir um limite perigoso. O Banco Central tinha acabado de projetar que a dívida bruta do País fecharia em valor bem perto de 80% do PIB no ano seguinte.

Chegar a 80% era considerado na época uma espécie de barreira a ser evitada a qualquer custo, a partir da qual, se rompida, a leitura seria imediata: um aumento considerável dos riscos para a execução das políticas monetária e fiscal diante da percepção de uma trajetória explosiva do endividamento público. Agências de classificação de risco entendiam que esse patamar indicava um quadro de descontrole da dívida para economias emergentes com o perfil como o do Brasil.

Pois nessa sexta-feira, o BC anunciou oficialmente que a dívida bruta ultrapassou a barreira de 90% do PIB. E o Ministério da Economia reconheceu, pela primeira vez, que o indicador vai ultrapassar os 100% do PIB nos próximos anos.

Pelas novas projeções, o Brasil fecha 2020 numa combinação perversa: as dívidas bruta e líquida (que desconta as reservas internacionais) chegam ao final do ano em patamares recordes. O pico anterior da dívida líquida, que por muitos anos cumpriu o papel de principal indicador de solvência do Brasil, tinha sido na crise econômica brasileira de 2002.

Naquela época, a dívida líquida havia subido por conta da alta do dólar provocada pelo temor de que Lula, caso eleito presidente da República, daria um calote. Com o compromisso assumido pelo ex-presidente de manter o tripé macroeconômico, o dólar caiu e a dívida líquida também.

Agora, como Brasil tem hoje mais ativos do que passivos em dólar, a queda da moeda norte-americana não reduz o endividamento como aconteceu em 2002. Pelo contrário, pode até piorar se o câmbio recuar. O problema, portanto, passa a ser estrutural.

A perspectiva de duplo recorde negativo da dívida do País reforça a percepção de que o governo flerta com a falta de planejamento e pode enfrentar em 2021 uma crise da dívida. Além do fantasma da segunda onda do coronavírus, que já é realidade na Europa, enquanto o Brasil ainda nem saiu da primeira.

Se o governo precisar injetar mais recursos na economia, como fazem agora os países europeus, a demora e a desorganização para a arrumação da casa trará custos ainda maiores.

Pela fotografia de hoje dos números projetados pelo próprio governo, Bolsonaro entrega para o seu sucessor, mesmo que seja ele próprio no caso de uma reeleição, um quadro muito pior daquele que foi entregue ao ex-presidente Lula.

Impossível não deixar de registrar que, enquanto a espiral negativa cresce, a semana passou com o presidente da República concentrado em reduzir tributo para videogames, renovar incentivos para a indústria automobilística, e acirrar disputas políticas sobre vacinas.

O ministro Paulo Guedes renovou mais uma vez a guerra santa com seu desafeto e colega de Ministério, Rogério Marinho, e de quebra subiu o tom dos ataques à poderosa Febraban, a associação dos grande bancos.

O articulador político do governo, o ministro Luiz Eduardo Ramos, que deveria estar em campo para encaminhar os problemas, se envolveu numa briga de tuítes com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Se não bastasse esse cenário de desgoverno, a ciranda chegou até o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e foi parar no presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Tudo isso numa única semana.

Líderes governistas dizem que tudo estará encaminhado até o final de 2020 e que há uma tentativa de pintar o caos. Talvez seja isso que eles queiram. Deixar passar no Congresso tudo bem rapidinho com aquelas votações relâmpagos de fim de ano - chamadas de fim do mundo - que só se descobre o estrago tempos depois. O caos são eles!