Paulo Guedes
Celso Ming: Os fatores que evitaram o maior desastre em 2020
São quatro as razões que evitaram a queda de dois dígitos do PIB brasileiro
E o pior não aconteceu. No segundo trimestre, em plena pandemia, as projeções para o desempenho da economia do Brasil foram terríveis. Algumas chegavam a indicar um mergulho do Produto Interno Bruto (PIB) de quase 10% para todo o ano.
As novas previsões falam de uma queda de 4,4% (veja o gráfico). Essa é a última projeção do Banco Central, que coincide com a do mercado, como consta no Boletim Focus desta semana.
São quatro as explicações para esse tombo menos acentuado.
A primeira delas é a de que o Tesouro despejou R$ 322 bilhões em auxílios emergenciais para a população (66 milhões de pessoas), recursos que permitiram uma sustentação da demanda de bens essenciais – especialmente alimentos, medicamentos e moradia – durante o isolamento social necessário para combater a covid-19. Foi uma demanda que permitiu que a atividade econômica não entrasse em colapso. O efeito colateral foi o avanço inesperado da inflação, que, no entanto, tende a ser limitado.
O segundo grande fator de sustentação da economia foi o excelente desempenho do agronegócio. Como mostram as últimas projeções do IBGE e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção física de grãos na safra de 2020/21 deverá ter um aumento de 3,5%, para alguma coisa em torno dos 266 milhões de toneladas. Os preços também ajudaram, seja pelo aumento da demanda interna de alimentos, como mencionado acima, seja pela forte importação da China.
A alta do dólar em reais também trabalhou na mesma direção. O impacto desses resultados no PIB ainda é relativamente baixo porque a agropecuária pesa apenas 5,6% na renda nacional.
O maior estrago aconteceu no setor de serviços (mais de 70% do PIB), especialmente nas viagens, no turismo, nos grandes eventos, no ensino, na saúde, no ramo dos bares e restaurantes e em grande parte no comércio varejista. Salvaram-se as vendas pela internet e os escritórios, graças aos serviços prestados em casa, o home office.
As avarias macroeconômicas foram enormes: investimentos adiados, obras paralisadas, um desemprego de 14,3% da força de trabalho e de outros 5,5% no desalento (desistiram de procurar emprego) e, mais que tudo, o alastramento do rombo fiscal e o avanço da dívida pública. Até agora, o governo não mostrou como vai enfrentar as exigências da lei do teto dos gastos nem como vai reequilibrar as contas públicas em 2021. Nem mesmo o Orçamento de 2021 foi aprovado.
As apostas se concentram agora na recuperação da atividade econômica, que já começou a mostrar as caras no último trimestre deste ano. O maior trunfo está na aplicação da vacina.
Cinco instituições internacionais já mostraram que superaram a terceira e decisiva fase de testes. O Instituto Butantã espera começar a vacinar ainda em janeiro e a Fiocruz tem planos para iniciar a aplicação das doses no fim de fevereiro. É provável que, já no primeiro semestre de 2021, boa parcela da população tenha sido atendida. Mas não será preciso esperar até que a maior parte da população tenha sido imunizada contra o novo coronavírus para contar com avanços na economia.
E há, também, sinais de excelente recuperação da economia mundial, especialmente da China e da Europa, também fortemente influenciados pela distribuição das vacinas. São fatores que indicam bons resultados na balança comercial do Brasil, especialmente ancorados pelo novo recorde de produção de commodities agrícolas.
A perspectiva de que a vacina esteja próxima e o afastamento da ameaça de novas ondas da pandemia, no Brasil e no resto do mundo, podem mudar corações e mentes. E esse novo ânimo tende a ser a melhor energia para revitalizar a atividade econômica.
Zeina Latif: Governo em quarentena
A inoperância do governo federal transborda e agrava o sofrimento social. Alguns ministérios cuja ação seria essencial pegaram a covid-19 e estão em isolamento por tempo indeterminado
Repetitivo lembrar que o plano nacional de imunização não tem vacinas ou mesmo seringas. E ainda aguardamos as deliberações do comitê de crise, sob comando da Casa Civil.
Do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, nada se ouve falar, apesar do estresse vivido pelas famílias por conta da crise no mercado de trabalho, do confinamento social em moradias precárias, dos problemas de saúde e das escolas fechadas.
Não podemos nos enganar com os números de queda expressiva na violência doméstica (-27%), na ameaça contra a mulher (-33%) e na violência contra vulneráveis (-50%), entre março e maio em relação ao ano passado. Há grande subnotificação de casos por conta do isolamento social combinado à falta de acesso digital aos canais de denúncia.
Provavelmente, o problema é maior no Brasil, a julgar pela experiência mundial. Por exemplo, a Colômbia, com boletins semanais, registrou aumento de 92% nas chamadas de denúncia de violência contra a mulher entre abril e início de dezembro. Na Argentina, o aumento foi de 25% entre abril e outubro. A propósito, o cuidado em coletar e divulgar as estatísticas atualizadas já diz muito dos governos.
A elevada subnotificação aqui revela não apenas problemas de exclusão digital, mas certamente a falta de empenho para ampliar os canais de denúncia, como fizeram outros países. Os canais criados para encontrar os “invisíveis” e conceder o auxílio emergencial poderiam ter sido utilizados também para esse fim.
Os países lidaram com o problema do aumento da violência contra mulheres e vulneráveis, durante a pandemia, ampliando tempestivamente os serviços públicos em várias frentes, como o reforço no disque-denúncia, atendimento pelo WhatsApp em tempo integral, garantia de renda para mulheres em vulnerabilidade, campanhas de conscientização, ampliação de vagas em abrigo e parcerias com a sociedade civil. Argentina, Uruguai, Colômbia e Chile adotaram políticas dessa natureza. Não faltou esforço. Na Argentina, onde já começou a vacinação, foi feito o programa Barbijo Rojo, em que atendentes de farmácias, ao ouvirem o pedido por “máscara vermelha”, ajudam a vítima, colocando-a em contato com o disque-ajuda.
Não faltaram alertas de especialistas e recursos financeiros. Mesmo assim, o MMFDH é inoperante. A lista de medidas é extensa, mas inócua. O silêncio da ministra em meio aos casos recentes de feminicídio diz tudo.
Na Educação, o ministro Milton Ribeiro se exime de qualquer responsabilidade pelo desastre do ano letivo perdido, que, para ele, é assunto de Estados e municípios. Em entrevista ao Estadão, afirmou que a pasta deve apenas repassar recursos e divulgar protocolo de segurança. Se a família não tem acesso à internet, isso é “para um outro departamento”.
A crise na educação amplia o abismo entre os estudantes pobres e ricos, enquanto a interrupção de atividades que dependem de fluxo de pessoas aumentou a desigualdade, por conta do desemprego dos trabalhadores pouco qualificados, principalmente os jovens que têm nessas atividades a porta de entrada no mercado de trabalho.
Mesmo passada a pandemia, haverá provavelmente aumento da evasão escolar, com graves consequências no desenvolvimento e empregabilidade desses indivíduos. Pode-se esperar também um aumento do número de jovens “nem-nem” (nem trabalha, nem estuda). Eram 22% das pessoas entre 15 e 29 anos em 2019; 32% para mulheres pretas ou pardas. Quase 72% deste grupo estavam nos 40% mais pobre da população.
A falta de perspectivas dos jovens alimenta a maternidade prematura e a entrada no mundo do crime. O desalento de jovens não parece preocupar Ribeiro e Damares.
Uma triste lição desta crise é que a máquina pública, com poucas e importantes exceções, funcionou mal. A estabilidade do funcionalismo não blindou o País do governo inepto e omisso.
Vamos encarar nossas fraquezas para construirmos um futuro melhor.
*Consultora e doutora em economia pela USP
Cristiano Romero: Por que o Brasil não é uma nação?
Fim do auxílio é demonstração de que não há contrato social
O jornalista e escritor Nelson Rodrigues escreveu que o Fla-Flu, o clássico dos clássicos, começou 40 minutos antes do nada. A hipérbole rodrigueana, usada para definir o caráter épico da rivalidade entre dois times de futebol, acabou sendo incorporada como síntese do antagonismo de ideias que caracteriza o debate dos problemas nacionais. Se a discussão de um tema relevante vira um Fla-Flu, é porque não há racionalidade, ou melhor, honestidade intelectual de uma ou das duas partes, uma forma de impedir mudanças que reduzam ou eliminem seus privilégios.
Numa sociedade profundamente desigual, marcada pela prática da escravidão (oficial, fator de acumulação de capital durante quase 400 anos, e dissimulada desde a abolição, em 1888), há poucos consensos, logo, não existe contrato social. Não há pacto social num país onde a maioria negra (56% da população) é discriminada pela minoria não negra.
Não há entendimento social se pouco menos de um quarto da população (50 milhões de pessoas) vive abaixo da linha de pobreza (com menos de dois dólares por dia), e todos conhecemos essa realidade há pelo menos quase 20 anos, afinal, graças a um dos poucos consensos de nossa história, criou-se nesse período um programa de transferência de renda para lidar com o problema - o Bolsa Família é excelente, cuida das consequências de políticas equivocadas que seguem provocando tanta miséria e desequilíbrio entre nós, brasileiros.
Não se pode falar em contrato social se metade dos adolescentes está fora do ensino secundário. Tampouco, é razoável afirmar que estejamos sob uma sociedade pactuada, uma vez que que 35 milhões de pessoas não possuem acesso à água tratada e 100 milhões (de uma população de 210 milhões) não têm coleta de esgotos. O pior: os números, compilados pelo Instituto Trata Brasil a partir de dados oficiais, referem-se apenas às cem maiores cidades.
Sem saneamento básico, não há saúde. Sem saúde, não há cidadania. Junte-se esta precariedade à outra (a baixa qualidade do ensino fundamental público), o que temos? Que futuro aguarda o país com a 5ª população do planeta, habitante do 4º maior território em terras contínuas?
Formadores de opinião espantam-se com a facilidade com que outras nações, não apenas as ricas, respondem prontamente a situações de emergência, como a enfrentada nesta pandemia. "Por que não conseguimos resolver rapidamente questões simples que afligem milhões de nossos compatriotas?", indagam-se os cidadãos de bem.
Não é preciso pensar muito para concluir que nossa dificuldade está no fato de o Brasil não ser uma nação - como a palavra "brasil" não significa coisa alguma (foi tirada de pau-brasil), seu significado depende da construção de uma nação, daí, a insistência do titular desta coluna em chamar este país de Ilha de Vera Cruz, a primeira denominação dada pelos invasores portugueses.
Numa nação, a distância entre ricos e pobres é muito menor, todos (ou quase todos) têm acesso às mesmas oportunidades, a maioria dos cidadãos compartilha dos mesmos valores culturais e aspirações, independentemente de sua renda e origem étnica.
Um exemplo do quão distante este território povoado por 210 milhões de viventes está de ser uma nação: o auxílio emergencial criado em abril para assegurar a sobrevivência de mais de 60 milhões de brasileiros, surpreendidos repentinamente pela parada súbita de seu ganha-pão nesta crise sanitária, expira em 31 de dezembro.
Amanhã, alguns milhões de brasileiros vão brindar a chegada de 2021 e da segunda década do século XXI com champagne e espumante, enquanto outros milhões dormirão sem saber como cuidar da família ou de si próprios no ano "novo". Para estes, 2020 não acaba nessa quinta-feira. Ademais, a segunda onda da covid-19, apesar do silêncio negligente das autoridades, já é uma realidade, cujos efeitos econômicos serão iguais ou piores que os do primeiro surto - não custa lembrar: por causa da pandemia, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro deve recuar algo em torno de 4,5%, segundo previsão da maioria dos analistas consultados pelo Banco Central.
Ora, virar o ano sem resolver esse grave problema é a prova inequívoca de que não só a classe política mas toda a sociedade não se importam com a crise humanitária que se avizinha. Onde estão os intelectuais das universidades públicas e fora dela, os sindicatos, as centrais sindicais sempre dispostas a parar o país em defesa os trabalhadores, as elites empresariais pensantes (das que só vivem às custas do Estado não se deve esperar nem cumprimento de “bom dia”), as lucrativas instituições financeiras que se "comoveram" tanto com o primeiro capítulo da tragédia pandêmica, os artistas que se mobilizaram para cuidar de seus pares em situação menos favorável, uma vez que o isolamento social lhes tirou a possibilidade de trabalhar? Cadê os manifestantes que foram às ruas em 2013 exigir educação e saúde públicas de qualidade?
No país onde não há carência de problemas a serem resolvidos, o tema mais controverso, o que inflama discursos, provoca cizânia, separa amigos de infância e resulta até em divórcio, não é o racismo estrutural, esta infâmia, ou a situação dos cidadãos sem-auxílio emergencial a partir de 1º de janeiro, mas a privatização, a venda de empresas estatais ao setor privado. Por que a classe média brasileira é tão suscetível à proposta de redução do Estado como produtor de bens e serviços?
Quando estourou o mega-escândalo de corrupção na Petrobras, em 2014, não demorou para que se promovesse um “abraço” na sede da estatal, no Rio. Não houve protesto contra as malfeitorias realizadas, responsáveis por desvio de recursos estimado em R$ 20 bilhões. Não houve sequer mobilização para que o acionista majoritário que nos representa na companhia - a União - melhorasse a governança da maior empresa do país. Por isso, leitor, duvide da palavra "estratégica" quando alguém defender as estatais.
Fernando Schüler: Sem orçamento, sem renda mínima, sem reformas - O ano que não acabou
Responsabilidade social e fiscal são duas faces da mesma moeda
“Topo ser babá, cozinheira, auxiliar de cozinha, faço de tudo um pouco”, leio em uma das tantas reportagens sobre como as pessoas irão se virar quando acabar o auxílio emergencial. É na semana que vem.
Dá para ter uma ideia do que vai acontecer. O economista Vinícius Botelho, da FGV, calcula que cerca de 7 milhões de pessoas caíram abaixo da linha de pobreza (R$ 5,5/dia) com a redução do auxílio e que o número deverá ir a perto de 17 milhões com o fim do benefício.
Alguns dirão que é de mau gosto pensar nessas coisas no dia do Natal. Ontem mesmo, quando rascunhava o artigo, comentei com alguém que me recriminou. “Tinha que falar de coisas mais positivas, celebrar a esperança”. Concordei, mas segui em frente. Fiquei até com a consciência meio pesada, mas não tem jeito. Sou colono, não consigo desligar.
A situação é clara. Os infectologistas alertam que janeiro pode ser um mês trágico na pandemia, pelas razões sabidas. O fim do auxilio colocará lenha nessa fogueira. Mais pessoas irão em busca de trabalho, e o risco de contágio e morte aumentará. Em especial entre os mais pobres.
Na prática vamos reforçar o que já vem ocorrendo. Relatório da Fiocruz mostrou como os bairros com alta concentração de favelas, no Rio de Janeiro, apresentam o dobro de letalidade dos bairros “sem favelas”. As razões são as de sempre (falta de diagnóstico e acesso aos serviços de saúde). O fim do auxílio irá agravar isso tudo.
Há aí um evidente risco político para o governo. A reprovação de Bolsonaro entre os mais pobres caiu de 44% para 27%, entre junho e dezembro deste ano, segundo o Datafolha. Não é crível imaginar que isso irá se manter com o fim do auxílio e o agravamento da questão social em 2021.
Se isso acontecer, não será surpresa. A responsabilidade primeira sobre esse processo é do Executivo, que nunca apresentou um plano de combate à pobreza ou transferência de renda consistente e nunca levou à frente um projeto de reforma estrutural do setor público capaz de financiar uma política social mais robusta.
Vale o mesmo para o Congresso. Há bons projetos sobre transferência de renda tramitando por lá que quase nada avançaram. O Senado aprovou uma LDO “mais do mesmo”, como lembrou Marcos Mendes, reforçando o espaço para as emendas parlamentares, e o ano legislativo terminou melancólico, deixando para 2021 qualquer medida de ajuste estrutural.
A verdade é que o país ficou enredado em um debate sobre o desenho ideal de um programa de transferência de renda e as fontes para o seu financiamento. Nenhuma das duas discussões deu em nada. Sobre seu custeio, uma das visões defendia a unificação de programas sociais como o abono salarial e o salário-família. Bolsonaro vetou com a ideia de que não era aceitável “tirar dos pobres para os paupérrimos”.
De outro lado, havia a tese de “retirar do andar de cima”. A coisa mais próxima disso teria sido avançar na PEC dos penduricalhos, do deputado Pedro Cunha Lima, e fazer valer na prática o teto remuneratório do setor público já inscrito na Constituição.
No fim do dia a conta será paga pelos muito pobres, que não têm organicidade e peso nenhum no mundo político.
Vejo tudo isso como uma enorme irresponsabilidade. Não tenho ilusão de que o país irá eliminar a pobreza com programas de transferência de renda. Para fazer isso é preciso uma combinação bastante complexa de crescimento continuado, boa educação e instituições inclusivas.
Mas é temerário permitir que, em um quadro de desemprego crescente, retomada da pandemia e incerteza quanto à recuperação econômica, alguns milhões de brasileiros (36% dos que receberam o auxílio, segundo o Datafolha) percam de um dia para o outro a única fonte de renda dos últimos meses.
Não quero ser estraga prazeres, mas o melhor mesmo é cancelar o recesso parlamentar, votar o Orçamento 2021, a PEC Emergencial e os ajustes necessários para viabilizar uma alternativa fiscalmente sustentável de renda mínima para o período difícil que temos à frente.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: Para além da emergência políticas de renda básica serão necessárias
Tendo perdido a hora de ficar mais justa, a nação deverá se preparar para conviver com a pobreza por muito tempo
O fim do ano chegou sem que o governo fosse capaz de propor qualquer coisa que se parecesse com uma política para enfrentar o rebote da epidemia —em boa parte resultante, por sinal, da sua negação da gravidade da doença. O Planalto tampouco apresentou um plano claro de vacinação: só chutes a esmo sobre as vacinas que ainda não temos, nem as datas, a todo momento alteradas, do início da imunização.
Decerto esgotado pela enormidade que deixou de fazer, o ministro da Fazenda tirou férias (logo canceladas pelo presidente) sem resolver a situação da massa de brasileiros que sobreviveram até aqui graças às transferências que terminam no fim do mês. O número dos que ficarão a descoberto é impressionante. Por trás dele há pessoas de carne e osso vivendo em total insegurança, sem saber como pagarão as contas a partir de janeiro.
A pandemia colocou o Brasil face a face com a precariedade na qual estão imersos dezenas de milhões de habitantes que, vivendo sempre à beira da linha de pobreza, podem cruzá-la ao primeiro soluço da atividade econômica. A chegada da Covid-19 agravou uma situação preexistente, que os governos comprometidos com a redução da iniquidade não foram capazes de alterar estruturalmente, ainda quando proporcionaram alguma mobilidade social.
Da mesma forma, os abissais desníveis de renda provavelmente persistirão até bem depois da volta à normalidade. Tendo perdido a hora de ficar mais justa, lá pelos anos 1950 ou 60, a nação deverá se preparar para conviver por muito tempo —mais do que a vista alcança— com um imenso contingente de pessoas vivendo da mão à boca. Tem mais: caso a revolução tecnológica trazida pela internet das coisas, inteligência artificial, robótica e 5G produza apenas uma parte dos impactos sobre o emprego já previstos por especialistas, incontáveis brasileiros pobres, de baixa escolaridade e vivendo em precária pobreza se tornarão supérfluos.
Assim, qualquer sistema de proteção social que possa surgir deste que temos hoje —quando dispusermos de governos que voltem a pensar no país— não poderá dispensar o alicerce de um programa de renda básica robusto e permanente. Nesse sentido, o projeto de Lei de Responsabilidade Social apresentado pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), embora modesto nos valores que propõe, é promissor. Inova na concepção —combinando garantia de renda e seguro— e permite pensar para além da pandemia. Desde que seja entendido como firme e necessária fundação de um conjunto mais amplo de políticas sociais, focalizadas em saúde, educação e previdência.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Pedro Fernando Nery: Frente ampla
2021 pode registrar maior nível de desigualdade de renda vivido sob atual Constituição
Completaram 18 anos da aprovação, no Senado, do projeto de renda básica de Eduardo Suplicy. A versão aprovada foi na verdade um substitutivo de um senador do DEM – ainda PFL. É um dos casos pouco conhecidos da atuação do partido na política social, cujo resgate é interessante à medida que o partido ganha protagonismo e a natureza de sua plataforma é mais debatida.
O DEM foi o partido que mais conquistou prefeituras nas eleições municipais que acabam de se encerrar, e na semana passada ajudou a consolidar um esforço de frente ampla reunindo diversos partidos de esquerda. Ao Estadão neste mês, o prefeito eleito Eduardo Paes – no DEM – argumentou que o espectro do partido seria bem amplo, se colocando como alguém mais à esquerda do que o seu conjunto.
No parecer do ex-senador Francelino Pereira favorável à renda básica, argumentou-se que o crescimento econômico sozinho é um caminho lento para a superação da miséria no Brasil. A pobreza seria mais sensível à desigualdade do que ao PIB. A nova transferência de renda iria ao encontro do propósito de que nenhum brasileiro tivesse vergonha de aparecer em público, parafraseando uma definição da Adam Smith sobre privação em A Riqueza das Nações.
Outra proposta do antigo PFL naqueles tempos era a de inserir na Constituição um fundo para a erradicação da pobreza, financiado por um imposto sobre grandes fortunas. De autoria de Antonio Carlos Magalhães, veio a se tornar a Emenda Constitucional nº 31, de 2000. O fundo chegou a ser utilizado, mas o imposto que seria a principal fonte de recursos nunca foi instituído.
A proposta original previa ainda uma nova contribuição social progressiva e aumentos de impostos sobre bens e serviços de luxo: “A desigualdade na distribuição de renda no Brasil é a matriz dos problemas que assolam nossa sociedade” justificou ACM. Havia provavelmente um componente regional nas iniciativas: nessa legislatura do fundo baseado em grandes fortunas e da renda básica o PFL tinha 15 senadores apenas do Nordeste e do Norte.
Antes, em 98, no documento “Uma Política Social para o Brasil: A Proposta Liberal”, o Partido defendera que a criação de um programa de renda mínima deveria ser prioridade do governo. Naquele ano eleitoral, Eliane Cantanhêde registrou a competição entre PT e PFL pela paternidade das ideias que seriam precursores do Bolsa Escola (2001) e do Bolsa Família (2004). O PT operava nos anos 90 o Bolsa-Escola do Distrito Federal, e o PFL o Bolsa-Cidadã da Bahia (menos abrangente e com foco em crianças em áreas de sisal).
Ainda naqueles anos antes do governo Lula, conforme lembra o cientista político Murilo Medeiros, parlamentares do antigo DEM relataram a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas, que implementa o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e pessoas com deficiência na pobreza) e o Fundef (o antecessor do Fundeb).
Mais recentemente, o novo Fundeb, deste ano, foi relatado por uma deputada demista. Em 2019, parlamentares do partido voltaram ao tema da renda básica, propondo benefícios universais a crianças (benefício universal infantil) ou a idosos e portadores de doenças graves (RBU) – durante a tramitação da reforma da Previdência.
No final do ano passado, esta coluna se chamou Natal na miséria: contrastava o otimismo que havia para 2020 com os parcos ganhos econômicos para os mais pobres nos anos recentes. O ano foi virado de cabeça pra baixo: a economia em recessão pela covid e a pobreza em queda pelo auxílio emergencial. Com o seu fim em 31 de dezembro, a mesma preocupação da coluna do último Natal permanece e se acentua: o Bolsa Família só não é suficiente.
Dados compilados por Rozane Siqueira (UFPE), veiculados recentemente por Armínio Fraga, mostram tanto que o desafio brasileiro não é tão diferente do de outros países como que melhorar é possível. Diversos países europeus, incluindo até Alemanha e Finlândia, teriam uma desigualdade de renda quase brasileira não fosse a atuação do Estado tributando e distribuindo. O Brasil se distingue não só pelos níveis mais altos de desigualdade, mas por pouco mudar quando o Estado entra na jogada – se comparado ao que acontece nesses países.
O fim do auxílio e a continuada propagação do vírus podem nos levar em 2021 ao maior nível de desigualdade de renda vivido sob a atual Constituição. Uma frente ampla para aprofundar aquele pacto de 88 será bem-vinda e é esperançoso perceber que nas últimas décadas ideias para combater a desigualdade e reformar o Estado vieram da esquerda e da direita. Vale toda torcida.
* Doutor em Economia
Pablo Ortellado: Se não agirmos, teremos 20 milhões de novos pobres
Fim do auxílio emergencial pode produzir catástrofe social; projetos de lei no Congresso apontam saída
Nesta semana acontecem os últimos pagamentos do auxílio emergencial. O benefício deixará de ser pago a 41 milhões de brasileiros, 15 milhões dos quais têm no auxílio a única fonte de renda. A expectativa é que 20 milhões de pessoas passem a viver abaixo da linha de pobreza.
Apesar da catástrofe social iminente, o governo Bolsonaro ainda não apresentou um programa social que possa conter essa drástica expansão da pobreza que vai engolir 10% da população brasileira.
A saída mais rápida, a renovação do auxílio emergencial, parece enterrada, tanto pelo governo Bolsonaro, como por Rodrigo Maia, ainda que o TCU tenha indicado que os restos a pagar do orçamento de guerra pudessem ser utilizados para essa finalidade sem o rompimento do teto de gastos em 2021.
No Congresso tramitam duas propostas para reformar as políticas de transferência de renda.
Na Câmara tramita o PL 6072/19 de autoria da deputada Tabata Amaral que reforma o Bolsa Família. O projeto recebeu há pouco um substitutivo do deputado Eduardo Barbosa que estabelece duas linhas de cortes, uma para pobreza (R$ 260 per capita) e outra para extrema pobreza (R$ 130 per capita) e pretende, com o valor base, tirar todas as famílias da extrema pobreza.
Além disso, o substitutivo cria valores adicionais por filho, sem limite por família, corrigindo uma notória deficiência do Bolsa Família. Seriam R$ 100 para cada criança até 5 anos e R$ 50 para cada criança ou adolescente entre 6 e 17 anos. A proposta busca investir na infância, sobretudo na primeira infância, equilibrando os esforços sociais que hoje estão concentrados nos cidadãos mais velhos. O substitutivo também prorroga o auxílio emergencial por nove meses com redução gradual do valor até equiparar com o valor desse novo bolsa família.
No Senado, tramita o PL 5343/20 de autoria do senador Tasso Jereissati a partir de proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas. O projeto também estabelece cortes de pobreza (R$ 250 per capita) e extrema pobreza (R$ 120 per capita) e reforma o Bolsa Família, estabelecendo um valor base mais simples orientado a acabar com a pobreza extrema.
Além disso cria dois outros benefícios que funcionam como uma poupança: um orientado a compensar as flutuações de renda dos informais e outro voltado aos estudantes, que poderiam sacar após a conclusão do ensino médio. O projeto estabelece fontes dos recursos (remanejadas do Bolsa Família, abono salarial e seguro defeso) e cria metas sociais de redução da pobreza que, se não forem cumpridas, podem suspender desonerações.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Luiz Carlos Mendonça de Barros: Chegamos ao fim de 2020
O controle da pandemia abrirá condições para promover as mudanças no funcionamento da nossa economia
Certamente 2020 entrará para a história como um dos anos mais difíceis vividos pela humanidade com o aparecimento de um vírus mortal que colocou em cheque parte do conhecimento acumulado nas últimas décadas. Este seu status deriva não apenas do número de mortes causadas pela covid-19 em todo o mundo, mas também por mudanças importantes do protocolo de funcionamento das economias nacionais. A chamada globalização, que era considerada o modelo mais eficiente para a economia mundial, terá que ser repensada em função dos riscos que a ultra mobilidade entre os mercados nacionais revelou agora.
Mas, nesta última coluna do ano, prefiro restringir minhas reflexões na evolução da economia brasileira neste período e, principalmente, o que esperar para 2021. A partir do momento em que foi possível entender a natureza da crise econômica provocada pela covid procurei centrar minha atenção nos seus aspectos estruturais de mais longo prazo, deixando a conjuntura para outros profissionais. Aprendi, ao longo da carreira profissional, que em momentos de crise grave é esta postura a mais adequada para fugir das armadilhas e ruídos do curto prazo. Relendo minhas colunas deste ano foi possível fazer uma linha do tempo da evolução de meu entendimento do que iríamos enfrentar.
Assim, propus na coluna de abril “Olhar com otimismo para 2021” em função das decisões tomadas rapidamente por governos e bancos centrais para enfrentar o pânico que atingiu investidores e instituições financeiras no mundo todo. A lição de 2008 foi aprendida e, desta vez, as ações previstas foram rapidamente aplicadas, e mesmo expandidas por outras medidas ainda mais heterodoxas. Em pouco tempo construía-se um protocolo de natureza keynesiana para enfrentar a recessão que se seguiria. O mesmo ocorreu aqui no Brasil, com um dos mais exitosos e eficientes entre os que foram acionados por países emergentes e mesmo os desenvolvidos.
Já em 15 de junho na coluna “Um segundo pacote fiscal“ ponderei que seria necessário a definição de um segundo pacote de estímulos fiscais de cunho keynesiano para fortalecer a recuperação da atividade econômica na parte final de 2020 e principalmente durante 2021. Mesmo no Brasil, com todas as dificuldades de lidar ainda com a fase de estabilização da pandemia, o governo Bolsonaro e o Congresso precisavam iniciar um debate sobre a questão de novos estímulos para enfrentar 2021. Esta questão continua presente mesmo depois que a recuperação mais rápida da economia em 2020 tenha ocorrido, reduzindo o escopo das medidas a serem tomadas.
Em julho, meu otimismo sobre o futuro estava descrito na coluna “A destruição criativa no pós pandemia”. Citei as ideias do economista Joseph Schumpeter em seu livro, “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, quando definiu o termo “destruição criativa” como um impulso fundamental para o motor do desenvolvimento econômico no mundo capitalista via inovações tecnológicas e de gestão das empresas”.
Em outras palavras, Schumpeter queria dizer que o sistema capitalista não acaba porque sempre se reinventa. Mas, para entender é preciso ter vivido algumas das crises que já ocorreram e ter sobrevivido a elas.
Hoje temos uma visão mais clara do que significa a expressão “destruição criativa” na crise atual com reflexões de vários analistas sobre o “boom” econômico que pode acontecer em função do choque positivo que terá a implantação de novas tecnologias a partir de 2021. Cito aqui artigo recente de Martin Wolf do Financial Times no qual aponta que a covid-19 acelerou o mundo rumo ao futuro. Este movimento será liderado por duas forças principais que já estavam em ação, mas que se intensificaram durante a pandemia: tecnologia e desglobalização,
Na coluna de novembro “O vírus contra-ataca” consolidei minha visão de que “a volta da atividade econômica no Brasil foi conseguida principalmente em função de uma expansão vigorosa - e eficiente - dos gastos do governo em um momento em que a arrecadação corrente de tributos era reduzida pela recessão. Portanto era natural - e necessário - que seu déficit fiscal tivesse um grande aumento no período mais agudo da crise. Somente com o retorno do crescimento econômico sustentado a partir de 2022 é que o governo poderá buscar uma situação orçamentária de superávits primários que estabilize a curva da dívida pública no futuro.
O objetivo destas minhas reflexões era o de enfrentar os argumentos dos economistas mais ortodoxos que pediam quase histericamente movimentos radicais para reduzir os déficits fiscais do setor público. Implícito nestas mensagens estavam as ameaças de um chamado “abismo fiscal” eminente e o colapso da rolagem da dívida pública. Hoje com a calma de volta aos leilões dos títulos públicos pela ação eficiente do Tesouro e Banco Central podemos esperar a volta do crescimento econômico para definir uma ação mais estruturada de medidas fiscais de controle da expansão dos gastos públicos.
Finalmente, agora com a definição pelo governo de um programa de vacinação racional e sem os preconceitos anteriores, temos a certeza de que o controle da pandemia abrirá condições para olharmos para a frente, cuidar das feridas da batalha e promover as mudanças no protocolo de funcionamento da nossa economia. Isto em um mundo que deve entrar em um período de crescimento mais forte puxado pela China e outros países da Ásia e as maiores economias ocidentais.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
Bruno Carazza: Saúde, paz, união...e reforma tributária
Reforma tributária não vai sair se todos não cederem
Se acreditassem em Papai Noel, certamente a maioria dos empresários brasileiros desejaria o fim da pandemia e uma reforma tributária em 2021.
Enquanto escrevo este texto, às 16:39h de domingo (20/12), o Impostômetro calculado pela Associação Comercial de São Paulo indicava 1,987 trilhão de reais em tributos pagos neste ano - o que indica que provavelmente ao longo desta semana ultrapassaremos a marca de R$ 2 trilhões arrecadados pelos governos de todos os brasileiros. Trata-se de apenas um de vários indicadores de nossas distorções neste campo.
Pode-se criticar a metodologia de rankings de ambiente de negócios como o Doing Business, do Banco Mundial, ou o índice de competitividade do Fórum Econômico Mundial, mas ninguém discorda que o Brasil seja um dos países que demanda mais tempo e recursos humanos para o cumprimento de todas as exigências tributárias da União, 27 Estados e mais de 5 mil municípios.
Essa complexidade traz consigo uma alta litigiosidade, que congestiona o nosso Judiciário. De acordo com o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, apenas no ano de 2019 foram iniciados 5.168.177 novos processos envolvendo impostos, taxas e contribuições - um número que dá a medida da insegurança jurídica no país gerada pelo nosso sistema tributário.
Estimativas de especialistas indicam que em torno de 66% do PIB é alvo do contencioso tributário em nível administrativo (no âmbito das receitas dos três níveis federativos e conselhos de contribuintes) e judicial. São dois terços da produção anual do país que ficam empoçados enquanto não se decide se devem entrar nos cofres do governo ou serem liberados para investimento das empresas.
Qualquer pesquisa que se realize com empresários aponta uma concordância quase unânime de que é necessário reformar todo o sistema, buscando sua simplificação, desburocratização e aumento da competitividade e da transparência - além da redução da carga tributária, é claro.
O problema é que na cartinha para Papai Noel ou nos desejos de Ano Novo do empresariado brasileiro sobram pedidos e faltam compromissos.
Desde 19 de fevereiro uma Comissão Mista do Congresso Nacional discute as propostas na mesa: a PEC nº 45/2019 (“proposta Appy”), a PEC nº 110/2019 (baseada no trabalho do ex-deputado Luiz Carlos Hauly) e o PL nº 3.887/2020, encaminhado pelo ministro da Economia Paulo Guedes.
Ao longo dos últimos meses dezenas de audiências públicas foram realizadas e, a se contar pelas manifestações dos representantes dos principais setores da economia, os consensos se resumem aos seus objetivos gerais. Quando se desce às medidas concretas, é cada um por si e o diabo (que mora nos detalhes) por todos.
Todos querem simplificação de impostos, mas quando se trata de unificar as alíquotas, querem tratamento especial. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), por exemplo, defende alíquotas diferenciadas por atividades e produtos, assim como a manutenção do sistema cumulativo como opcional para empresas que trabalham com lucro presumido e prestadoras de serviços. Ora, se for assim, é claro que nosso carnaval tributário vai continuar.
A Confederação Nacional dos Transportes (CNT) pretende fazer rabanadas sem quebrar ovos. No documento “Pilares para a Reforma Tributária”, ele exige que a reforma tributária não apenas mantenha a carga tributária global da economia, como também se comprometa a não elevá-la em nível setorial. Na sua lista de presentes para o bom velhinho há o abatimento de seus gastos com insumos e folha salarial no valor imposto agregado devido, mas tratamento diferenciado na tributação dos negócios em transportes e infraestrutura. Impostos seletivos? Só se forem para não onerar as transportadoras - um dos setores mais poluidores de nossa matriz econômica.
Ideais de justiça e igualdade são valorizados nas mensagens de final de ano, mas quando se trata de reformar o sistema, meu interesse vem primeiro. Em carta aberta enviada ao relator da Comissão de Reforma Tributária, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), 45 associações de produtores rurais listaram os pleitos do agronegócio brasileiro. Entre elas, a manutenção da desoneração da cesta básica, a imposição de alíquota zero para os insumos agropecuários, tratamento especial para as cooperativas e exclusão dos produtores rurais inscritos como pessoa física.
As entidades filantrópicas, por sua vez, querem continuar a fazer o bem com o chapéu alheio. Um grupo de onze organizações representativas de entidades religiosas, de educação e saúde que se beneficiam de isenções fiscais lançou um manifesto contra a “taxação da solidariedade”. As intenções são as melhores possíveis, mas nenhuma palavra se vê sobre a necessidade de se separar o joio do trigo e dar o tratamento correto a atividades lucrativas travestidas de assistencialismo.
Numa velha tirinha do cartunista Bill Watterson, o garoto Calvin, de 6 anos, se pergunta como o Papai Noel consegue pagar os duendes e os brinquedos que ele distribui. Seu tigre de estimação, Haroldo, arrisca uma responda: endividando-se. O lobby em prol da desoneração da folha de pagamentos, que une setores tão díspares quanto a construção civil e a indústria de tecnologia da informação e o varejo, recebeu seu presente de Natal antecipado em novembro. “O problema é que, mais cedo ou mais tarde, a farra acaba e aí como é que eu fico?”, pergunta Calvin diante da perspectiva de ficar sem presentes no futuro.
Para terminar este texto pré-natalino com um pouco de poesia, fica a dica de Drummond para o empresariado brasileiro (e para cada um de nós): “Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo. Eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Almir Pazzianotto Pinto: O ministro, a economia e o desemprego
Sem reduzir a miséria e recuperar o mercado de trabalho Bolsonaro terá poucas chances em 2022
Dentro de alguns dias o governo Bolsonaro completará dois anos. Metade do mandato foi consumida com providências mal alinhavadas para a retomada do crescimento. Incorrigíveis otimistas falam em recuperação da economia, embora admitam que os resultados são inconvincentes. É o que mostram as estatísticas sobre desemprego.
Há contradição em termos quando se fala em crescimento do produto interno bruto (PIB) se índices oficiais revelam que o desemprego atingiu no último trimestre 14,6% e pode chegar a 17% em 2021. Afinal, ninguém ignora que o mercado de trabalho é o espelho da economia.
As maiores taxas de desocupação registram-se na Bahia, 20%, em Sergipe, 19,8%, Alagoas, 17,8%, Amazonas, 16,5%, e Rio de Janeiro, 16,4%. São Paulo, o Estado mais populoso e desenvolvido, segundo o IBGE tem 13,6% de desempregados. Os menores índices pertencem a Santa Catarina, 6,9%, Paraná, 9,6%, e Rio Grande do Sul, 9,4%. Segundo as mesmas pesquisas temos 5,9 milhões de desalentados, que abandonaram a ideia de recolocação.
A responsabilidade pela crise não pode ser atribuída apenas ao presidente Jair Bolsonaro. É indesmentível, porém, que se aprofundou, turbinada pelo ambiente político e pela pandemia de covid-19, cujas extensão e gravidade não consegue entender. Em 1.º/1/2019, quando tomou posse, o Brasil já se achava em situação pré-falimentar. A presidente Dilma Rousseff foi deposta pelo descalabro da economia, com inevitáveis repercussões nas contas públicas e privadas. Não o foi pelas pedaladas. Incapacidade administrativa, embora em elevado grau, não bastaria para despojá-la de mandato obtido nas urnas em eleições democráticas. O País, todavia, já não se conformava com a inépcia governamental. Embora incompetência não seja crime, o despreparo de Dilma, motivo geral de chacotas, combinada com forte dose de arrogância, colaborou de forma decisiva para enquadrá-la no artigo 85, V, da Constituição.
Jair Bolsonaro, capitão de Artilharia e deputado federal com vários mandatos, passou a ser olhado como tábua de salvação. Para a vitória sobre Fernando Haddad contribuíram o temor ao Partido dos Trabalhadores, a inconsistência dos adversários e a punhalada em Juiz de Fora, impedindo o debate revelador do viés autoritário e a demonstração de precária base política e intelectual.
Dentro da situação caótica em que se encontrava o País, o presidente Bolsonaro buscou economista de renome para responder pelo Ministério da Economia, ao qual incorporou o arruinado Ministério do Trabalho. Após alguns meses de prestígio, o ministro Paulo Guedes se enfraqueceu por se revelar incapaz de revigorar a economia e de enfrentar as questões sociais. Permanece empenhado em conseguir o equilíbrio das contas públicas, meta inalcançável em período de pandemia. O primeiro parágrafo de editorial do Estado é certeiro e definitivo: “O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá” (25/11, A3).
Afinal, dirá alguém, o que tem que ver o ministro Paulo Guedes com o mercado de trabalho? Tudo. Geração de empregos é problema econômico que não se resolve ao sabor do acaso. Depende de pesados investimentos públicos e privados, internos e vindos do exterior. Exige meticuloso planejamento em médio e longo prazos, ainda que ao preço de alterações nas legislações trabalhista e tributária e da Constituição federal. O Ministério da Economia é fundamental para a geração de desenvolvimento e emprego. Mal conduzido leva o País à ruína, como mais de uma vez aconteceu.
É impossível a rápida abertura de vagas para 15 milhões de desesperados e 6 milhões de desalentados, que desistiram de gastar dinheiro à procura de serviço. Se conseguirmos superávit anual de 2 milhões, meta difícil de ser atingida em clima de pandemia, levaríamos uma década para reduzir o desemprego a índices civilizados.
O que nos aguarda em 2021? Se houver vacina eficaz no volume necessário e o presidente abandonar a postura negacionista, menos mal. Até lá, porém, medidas obrigatórias de isolamento social retardarão a retomada das atividades econômicas e manterão o desemprego em níveis elevados.
O período natalino está às portas. Como celebrarão as festas de Natal e de ano-novo os desempregados, os desalentados, os empresários quebrados e a classe média empobrecida? O comércio aguarda avidamente consumidores com o dinheiro do 13.º salário para gastar. Encerradas as compras de final de ano, não se sabe como reagirá a economia no primeiro trimestre de 2021, com o andamento dos meses de recesso.
Sem reduzir a miséria e recuperar o mercado de trabalho o presidente Jair Bolsonaro terá poucas chances de se reeleger. Às oposições compete valer-se das experiências deixadas pela fragmentação partidária. Se desejarem vencer em 2022, devem construir frente única em torno de candidato honesto, experiente, viável e com perfil popular, capaz de derrotar o sectarismo bolsonarista e a máquina governamental.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
Affonso Celso Pastore: O grau de incerteza na economia
Coube ao presidente do BC dizer que a vacina custa menos do que a ajuda emergencial
Não basta que existam vacinas com eficácia comprovada. Para salvar vidas e restabelecer a normalidade da economia, é preciso vacinar 100% da população no prazo mais curto possível, como já está ocorrendo na Europa e nos EUA. Infelizmente, em vez de agir com rapidez e eficiência, reduzindo o número de mortes e a incerteza, o governo se comporta como se o problema não existisse. É surpreendente, mas coube ao presidente do Banco Central, e não ao presidente da República, explicar que “a vacina custa menos do que uma ajuda emergencial”.
De fato, além de prolongar a crise sanitária a ausência de um plano eficiente de vacinação expõe a economia a nova desaceleração, aumentando a pressão para que ocorram mais gastos e aumente o desemprego, fechando-se um círculo vicioso que precisaria ser rompido. Mas meu propósito neste artigo não é expressar mais uma vez minha indignação pelo desrespeito do governo com a vida humana, e, sim, abordar como a elevada incerteza retarda a recuperação econômica.
A FGV constrói um índice de incerteza da economia. Quando ele está abaixo de 100, o grau de incerteza é baixo, o que significa que há uma elevada previsibilidade que é essencial para planejar os investimentos em capital fixo, que contribuem para o crescimento econômico. Observa-se que nas três recessões que precederam a “recessão da covid” sempre ocorreu uma forte queda da taxa de investimentos associada a elevações do índice de incerteza da economia para próximo de 130 pontos.
Na recessão de 2002, por exemplo, o risco de que o governo Lula não manteria o compromisso assumido por FHC, de gerar superávits primários suficientemente elevados para reduzir a relação dívida/PIB, provocou o aumento do índice de incerteza ao lado de uma queda da taxa de investimento de 18% para 16% do PIB. Porém, a rápida adesão do governo às metas de superávits primários derrubou o índice de incerteza abaixo de 100, ocorrendo uma elevação de dois pontos porcentuais na taxa de investimento e uma rápida recuperação da economia. Na crise de 2008, o índice de incerteza também se elevou acima de 130, e a taxa de investimentos caiu de 20% do PIB para 18%. Foi uma recessão curta que também se encerrou com a rápida recuperação dos investimentos associada à queda do índice de incerteza abaixo de 100.
Precedida pela malfadada experiência da “nova matiz macroeconômica”, em 2014 iniciou-se uma recessão que durou até o final de 2016. Embora desta vez o pico do índice de incerteza também tenha atingido em torno de 130, manteve-se persistentemente elevado – acima de 110 pontos – até o final de 2019 e, como não poderia ser diferente, a taxa de investimentos manteve-se em nível histórico de baixa. Contrariamente às duas recessões anteriores, cuja recuperação foi liderada pelo aumento da formação bruta de capital fixo, desta vez ela foi liderada pelo consumo, que não tem a mesma força propulsora, ou o mesmo “efeito multiplicador”, dos investimentos em capital fixo. Foram três anos consecutivos de crescimento do PIB a uma taxa média de apenas 1% ao ano, pouco acima da taxa de crescimento populacional, de 0,8% ao ano, mantendo deprimida a renda per capita.
Logo que a covid atingiu o Brasil, o índice de incerteza da economia saltou para 210 pontos, recorde absoluto da série. Recuou em seguida, mas vem se mantendo em 150 pontos, que é bem superior aos valores máximos anteriormente atingidos por este indicador. Com tal nível de incerteza, é literalmente impossível admitir que a retomada dos investimentos em capital fixo será uma força motriz da recuperação da economia em 2021. A exemplo do ocorrido na saída da longa recessão iniciada em 2014, teremos de nos beneficiar da recuperação do consumo, que além da esperança nos efeitos de uma suposta e questionável “desova” da assim chamada “poupança precaucional” terá de enfrentar os freios impostos pelo fim da ajuda emergencial a 66 milhões de pessoas, e uma elevada taxa de desemprego.
Os dados mais recentes confirmam que a “recessão da covid” foi bem menor do que se temia, já que não se imaginava tamanho estímulo fiscal, provocando “apenas” uma contração entre 4% e 4,2% do PIB. Mas para crescer acima de 4% em 2021, que é apenas o efeito estatístico herdado de 2020, é preciso reduzir o grau de incerteza da economia, o que exigiria vacinação rápida da população e o delineamento de uma estratégia de crescimento. Com este governo, há pouca ou nenhuma esperança que isto ocorra.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
Carlos Melo: Saldo ainda mais negativo…
O saldo dos dois anos do governo Bolsonaro é trágico: da economia à política, da cultura aos exemplos que os líderes precisam expressar, quase nada do que se fez ou foi prometido pode ser aproveitado. Só não é pior porque muito do que se pretendeu fazer agravaria ainda mais a situação caso fosse efetivado, são os exemplos da pauta de costumes ou da agenda de Segurança Pública, compromissos do presidente com sua base mais fundamentalista e radical. Contudo, é claro, nada do que disse este parágrafo é consenso; e uma questão importante é compreender o porquê.
O presidente e seus aliados argumentam que o saldo negativo deve ser debitado da conta da oposição – que não existiu –, do espantalho de um “globalismo-comunista” (de ficção), da pandemia que paralisou o mundo em 2020. De fato, o ano foi marcante em todo planeta, em virtude da covid-19. Naturalmente, desse choque decorreram crises econômicas e sociais, tornando esse o período mais dramático desde a segunda guerra mundial, pelo menos. Mas, no Brasil, por inacreditável que pudesse parecer, o presidente e os seus conseguiram agravar a situação.
Acelerando o processo, a pandemia escancarou a miséria política nacional e revelou que o Brasil é um país que não apenas não tem governo, como há um grupo que imagina governá-lo, tornando o ambiente ainda mais caótico; fazendo das múltiplas crises questões de difícil superação, como que acreditando que para sair de um buraco é necessário cavar mais fundo. Um grupo que investe na desconstrução do país, sem saber o que edificar para proveito de uma sociedade mais ampla e moderna que seus acólitos.
Assim, o saldo de dois anos de governo revela com crueza algo muito pior do que promessas não cumpridas: 2020 encerra uma década perdida, uma década de desatinos e retrocessos, que chegou ao seu final com o país dirigido por um presidente da República incapaz, que, por conta do desconforto dessa situação, tem sido tratado pelas elites e pelas instituições como inimputável; um parente incômodo e desagradável que não pode ser colocado para fora da festa da família, pois, afinal, existem laços (políticos) que não se quer (ou não se pode) desatar. E que laços seriam esses?
A verdade é que Bolsonaro não está só. Embora evidente, o saldo negativo é tido por uma parcela (delirante) da sociedade brasileira como positivo, e assim o saúda e o defende, sendo irredutível no apoio ao desastre. São setores multifacetados: uns, vítimas da 4ª. Revolução, ressentidos com o Estado, com a democracia e a política que de fato os esqueceu ou os pune, na irredutibilidade da crise econômica, na precariedade do próprio Estado, na ineficiência dos serviços essenciais e das políticas públicas.
Outros que, por índole pessoal e cultural, trazem o gosto de sangue na boca e acreditam nas soluções fáceis e brutas, defendendo o uso irracional da força a partir de um mítico messias gestado no ventre da barbárie social e política. E ainda outros, enfeitiçados pelo canto do ultraliberalismo oco e improdutivo, quando confrontado com os desafios do século 21.
É preciso encarar os fatos, o levantamento mais profundo – que cruza desempenho governamental com dados de pesquisas de aprovação ao governo — demonstra que o saldo desses dois anos é ainda mais negativo do que a evidência das promessas não realizadas. Ele revela o desconforto de um nó político: Bolsonaro não demonstra desempenho administrativo, econômico, social e político que justifique a despesa dos cofres públicos consigo, seu grupo e sua família. Mas, expressando o caos e vocalizando o vazio, é representativo de uma década em que o país se perdeu e que custa a se reencontrar em vista fragmentação e do esfacelamento das demais forças políticas. E isso torna a todos responsáveis.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.