Paulo Guedes
Correio Braziliense: "Bolsonaro empurrou o Brasil para o caos", diz ex-diretora do BNDES
Elena Landau afirma que a postura negacionista do presidente da República e as omissões na pandemia do novo coronavírus são motivos mais do que suficientes para o impeachment. Ela se diz pessimista em relação à retomada do crescimento econômico
Vicente Nunes e Rosana Hessel, Correio Braziliense
A economista e advogada Elena Landau, ex-diretora do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e uma das responsáveis pelo Plano Real, não tem dúvidas de que o presidente Jair Bolsonaro precisa ser destituído do poder, porque “ele empurrou o Brasil para o caos, ao cometer uma série de crimes e tornar-se um perigo para a democracia”.
Para ela, dado ao que viu nos dois primeiros anos de governo, é muito difícil ser otimista em relação ao Brasil. O crescimento econômico previsto para este ano, entre 3% e 4%, é, no entender dela, meramente estatístico e, enquanto não houver um compromisso efetivo com reformas estruturais, o país continuará patinando, com aumento da pobreza e das desigualdades sociais.
Elena ressalta que a política liberal vendida com ênfase pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, perdeu-se no caminho e o que se vê, agora, é um arremedo do liberalismo.“A base do liberalismo é clara: reforma do estado, simplificação do sistema tributário, abertura comercial e educação. O governo não tem nada nessas quatro premissas”, afirma. “Bolsonaro nunca foi um liberal”, frisa.
Uma grande preocupação, segundo Elena, são as eleições para as presidências da Câmara e do Senado. O fato de os candidatos favoritos para as duas Casas estarem totalmente alinhados ao Palácio do Planalto “é assustador”, pois indica, em caso de vitória deles, total subserviência ao Executivo e às pautas de costumes, que, se aprovadas, resultarão em um atraso sem precedentes do Brasil.
Por isso, acredita ela, um processo de impeachment, mesmo que desgastante, deve ser levado adiante. Elena afirma que o descaso com o sistema de saúde, o caos em Manaus e a política deliberada do presidente da República contra a vacinação são fatos mais do que suficientes para um afastamento do ocupante do cargo mais alto do país. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio.
O Brasil está em uma situação complicada, com problemas diplomáticos e uma nova ordem global se estabelecendo com a posse de Joe Biden no comando dos Estados Unidos. Como fica o país nesse contexto mundial? O país vai continuar como pária ou Bolsonaro terá de se enquadrar?
O país está colhendo o que plantou durante dois anos, com uma adesão única ao ex-presidente Donald Trump, com a mesma ideologia, com o mesmo negacionismo, com uma espécie de seita que foi derrotada pela covid-19 nos Estados Unidos. Bolsonaro, pelo menos, cumprimentou Biden, o que já é surpreendente. Agora, ele é cínico, porque fala de aliança pelo meio ambiente, mas não vai fazer nenhuma mudança naquilo que é essencial para integrar o Brasil, de novo, ao mundo nas discussões sobre as transições das fontes energéticas, com respeito ao meio ambiente. Pode ser que, neste primeiro momento, ele esteja fazendo uma cortesia diplomática. Mas, se o Ernesto Araújo (ministro das Relações Exteriores) continuar à frente como ideológico dessa política de relacionamento internacional, nada vai mudar.
E qual será o preço que o Brasil pagará por isso?
Isso é uma pergunta muito difícil de responder, porque os investidores ameaçam, dizem que não vão trazer dinheiro para o Brasil. Mas, aí, tem um leilão de saneamento, e o leilão funciona. Eu fico me perguntando quando é que as pessoas vão desistir de vez deste país. Sai capital da Bolsa, depois volta o capital para a Bolsa... Eu não sei qual é o limite e quanto vamos pagar ante a discriminação que o Brasil sofre no resto do mundo. O país virou um deboche internacional. No caso da covid-19, nem os governantes ultradireitistas, populistas-nacionalistas, estão combatendo tanto a ciência quanto Bolsonaro. Todo o mundo está vacinando e apoiando a vacina. Agora, a insistência de Bolsonaro na sua política antivacina pagará um preço. Chegou o momento em que as pessoas vão dizer que ele não é tão confiável. Como é que se pode investir quando o presidente ameaça com um golpe democrático, quando o chefe do Ministério Público fala da antessala do estado de defesa? Há sinais muito graves. E, até então, o pessoal foi deixando acontecer. Mas, o tratamento em relações às mortes da covid-19 e o que aconteceu em Manaus, com a posse de Joe Biden, obviamente, podem ter um efeito maior do que a indignação com a questão ambiental.
A senhora falou que não entende o fato de haver investimento em saneamento ou em qualquer outro projeto de infraestrutura, que acaba entrando dinheiro no país quando há licitação. Isso não ocorre porque envolve projetos de longo prazo e acredita-se que o governo Bolsonaro vai durar apenas quatro anos?
Essa é exatamente a minha interpretação. Os investidores devem estar dizendo: essa pessoa desequilibrada e totalmente inapta para conduzir o país vai durar só mais dois anos. E esse grupo que está com ele, que se entende poderoso e está com as mangas de fora, vai recuar. Mas acho que a questão da covid-19 vai começar a pegar. A falta de humanidade, a falta de respeito pela vida humana, a insistência no uso da cloroquina, a insistência de não usar máscara... Bolsonaro virou uma piada do Trump.
Mas isso tem um custo grande. E a fatura será de mais mortes…
Pois é. Eu acho que, agora, as pessoas começarão a mudar diante da troca de comando nos Estados Unidos e do recrudescimento da pandemia, com a segunda onda da covid-19. E, diante da total falta de organização e de planejamento e gestão do governo para comprar a vacina, e do desprezo pela ciência, Bolsonaro mostra quem realmente é. Ele radicaliza quando insinua um golpe na democracia. Ele ameaça com as Forças Armadas. O procurador-geral da República, Augusto Aras, fala da antessala do estado de defesa. Felizmente, os parlamentares estão sendo pressionados por seus eleitores para tomarem uma posição em relação à avaliação do impeachment. Acho que está mudando. É óbvio que, se a sociedade for mais firme na defesa da democracia, na exigência de um trato humanitário decente, os investidores vão começar a ficar mais ressabiados. Até então, tínhamos a questão do meio ambiente, e alguns investidores ameaçaram sair do país. Mas, tinha uma história de que estava tudo sob controle e as instituições estavam funcionando. Agora, temos um Bolsonaro isolado do mundo. Trump já era uma caricatura. Bolsonaro é uma subcaricatura do Trump. O impeachment está sendo falado de uma maneira mais aberta. A sociedade está reagindo mais. O STF (Supremo Tribunal Federal) reagiu prontamente à fala do Aras. A própria associação dos procuradores reagiu. Ninguém está aceitando mais as maluquices do Bolsonaro.
O Brasil aguentaria um outro impeachment em um espaço tão curto de tempo?
Olha, vou dizer uma coisa: fui contra o impeachment da Dilma Rousseff, porque, com o impeachment, a gente não encerrou o ciclo da Nova Matriz Econômica, da heterodoxia. Eu era a favor que a Dilma governasse até o fim para que seu ciclo se encerrasse. Quando ela saiu dois anos antes, por uma questão muito técnica, que foi a pedalada fiscal — boa parte da população não entende o que é uma pedalada e não sabe diferenciar o que é restos a pagar etc —, Dilma ficou como vítima. E ainda teve aquele desvio completamente inconstitucional do (ministro do STF) Ricardo Lewandowski. Olhando para trás, o governo Temer conseguiu botar o Brasil nos trilhos. E acho que o Brasil aguenta outro impeachment, sim. O Brasil não aguenta é esse presidente. Se lembrarmos, começou-se a se falar de impeachment um pouco antes da covid-19, por causa dos ataques ao STF. Depois, veio aquele vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, e voltou a se falar de impeachment. Contudo, o que se viu foi Bolsonaro sobreviver a essas coisas. Ele se acha um super-homem. Acha que pode fazer qualquer coisa. Vimos o desastre da condução do presidente durante a crise da covid-19, agora, com um ministro absolutamente incompetente, que já devia ter sido demitido, que é o Eduardo Pazuello (Saúde), assim como Ernesto Araújo (Relações Exteriore) e Ricardo Salles (Meio Ambiente). Se pegarmos todo o ministério de Bolsonaro, o conjunto da obra é um dos piores que o Brasil já teve.
Qual seria o argumento que mais sustentaria, do ponto de vista jurídico, um processo de impeachment? O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem mais de 60 pedidos na gaveta e não escolheu nenhum até agora…
Essa coisa de que impeachment é só política, evidentemente, se você não tiver um apoio bem fundamentado para o Congresso poder avaliar, não sai. Mas tem que tentar. A população tem que pressionar. Se não for aberto nenhum processo, porque ele continua com o apoio de uma seita, fica a ideia de que ele pode cometer qualquer crime. Não é possível cometer tantos crimes, como Bolsonaro cometeu, e deixar passar porque acha que não vai ter apoio. Ele cometeu crimes de responsabilidade, de falta de decoro com o cargo… O Rodrigo Maia se arrependeu de não ter feito nada e, agora, está dizendo que o presidente é incapacitado para conduzir a segunda onda da covid-19. Porém, é um pouco tarde para se arrepender. Ele tinha que ter aberto o processo antes.
Com o novo desenho das presidências do Congresso, diante da possível vitória dos candidatos do Planalto, Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no Senado, há espaço para um processo de afastamento andar?
As chances ficarão muito menores. Mas, também, nada garante que Baleia Rossi (MDB-SP) ou a senadora Simone Tebet (MDB-MS) darão andamento se não for feito um pedido bem fundamentado. Hoje, há uma pressão maior pelo impeachment do que tínhamos antes. Tem pressão sobre os deputados, pessoas que votam no PSol pedindo para que a Luiza Erundina retire a candidatura (à Presidência da Câmara) para poder eleger o Baleia Rossi logo de cara e mostrar a fragilidade de Bolsonaro. As pessoas mais engajadas estão olhando as eleições na Câmara e no Senado, exatamente, como a antessala do impeachment. O quadro é muito ruim dentro da perspectiva de uma vitória de Lira. O Baleia continua uma interrogação, mas, pelo menos, a gente sabe o que ele não é.
Quais são riscos de país ter as duas Casas do Congresso presididas por dois candidatos apoiados pelo Planalto?
O presidente interfere, de forma descarada, na eleição da Câmara e do Senado. E temos dois candidatos que declararam apoio absoluto ao presidente. Mas não sabemos o que o Planalto vai propor. Isso é gravíssimo. Do ponto de vista econômico, não faz diferença, porque tivemos um Congresso reformista nesses dois anos. Se o governo quisesse, se o Paulo Guedes (ministro da Economia) quisesse, e se ele tivesse um plano, teria feito reformas. Agora, corremos um risco de ir para um Congresso que pode ser entreguista. Vale lembrar que o governo teve propostas devolvidas, uma coisa raríssima, porque havia coisas de muito baixa qualidade, especialmente, na questão de armamento e de polícia. Com o possível novo comando da Câmara e do Senado, isso não deverá se repetir.
Há o risco de o Congresso priorizar a pauta de costumes?
Com certeza. A submissão do Congresso ao Planalto será a volta da pauta de costumes. Será muito grave essa submissão, porque vai perpetuar o bolsonarismo.
Por que a pauta econômica, de reformas, encalhou?
O Paulo Guedes acha que o Congresso não gostava da pauta dele. Mas ele não tem pauta. Nunca teve. Entregou a PEC Emergencial e foi para casa. Ele não trabalhou pela aprovação da PEC. Agora, o ministro da Economia fala que pode voltar com a nova CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Ele só está esperando o Lira sair vitorioso para voltar com a proposta à Camara. Há uma reforma tributária possível de andar, de discussão e de qualidade. Mas o ministro está esperando o Lira para emplacar a obsessão dele. A pauta do Paulo Guedes é ruim do ponto de vista econômico.
Nesse contexto de crise sanitária, de crise política, o país não cresce. As pessoas estão desesperadas, sem perspectiva. O desemprego é recorde, a pobreza está aumentando, com desigualdade social assustadora. Como reverter esse quadro?
Vou dizer uma coisa: estou muito pessimista com a economia. E esse é um dos motivos que acho que o impeachment tem que ser julgado da mesma forma e com a mesma motivação que ocorreu para tirar a Dilma, que foi a crise econômica. As pessoas se engajaram no impeachment da Dilma porque ela, de fato, estava destruindo o Brasil. Ninguém aguentava mais a situação em que o país estava em 2015. Basta lembrar a conjuntura econômica do Brasil naquele ano. Esses elementos estão ocorrendo com Bolsonaro. Ele não tem ninguém no governo capaz de fazer um projeto de país. Não temos uma reforma administrativa que faça sentido. O governo não tem uma proposta de reforma tributária que pare em pé. Temos uma sequência de ministros da Educação muito ruins. Em um momento mais grave da covid-19, quando o país precisa aumentar a produtividade, não há uma coordenação, o que faz com que o fosso da desigualdade cresça pela falta de acesso à educação e pela falta de conectividade da banda larga. A Telebras, que foi recriada para trazer a banda larga, não faz o que tem que fazer. O governo está parado, esperando acontecer para botar a culpa em alguém. O que fazer é evidente. Esperava-se que o governo fizesse alguma coisa, mas o Paulo Guedes não se mexeu para o que precisava do Congresso. A abertura comercial era esperada desde o início, mas ele não fez. No momento em que o presidente baixa para zero a tarifa de importação para armas e munições, mostra que ele pode baixar a tarifa daquilo que quiser, na hora que quiser. Não precisa nem de estudo técnico para justificar isso. A economia é muito fechada, a indústria automobilística brasileira é a mais atrasada e não preparou suas plantas nem para pessoal nem para uma economia em transição energética. Ainda há impostos elevados, custos trabalhistas elevados... Nada das reformas que se esperava que fizesse veio. E não foi por falta de ajuda. O Temer, quando saiu, deixou tudo pronto. A agenda do Banco Central que está andando e que é muito boa, é continuação do trabalho que o Ilan (Goldfajn) começou.
O fato de o Brasil perder as fábricas da Ford era mais do que esperado? Outras empresas
devem sair do país?
Esse é o retrato da morte anunciada de uma indústria fraca. O Brasil não exporta mais carros para ninguém. O Brasil tem um dos piores carros do ponto de vista tecnológico, com a indústria dependente de subsídios, mas não tem contrapartida. Se você olhar o que faz (Emmanuel) Macron na França e o que fez (Barack) Obama nos Estados Unidos, os apoios dos governos foram para incentivar a transição energética e investimentos em capital humano. Os 5 mil profissionais demitidos da Ford não estão preparados para a nova demanda do mercado de trabalho. Isso é gravíssimo. Não há preocupação com a qualificação, não tem planejamento, não tem como olhar dois anos à frente. Eu sou muito pessimista.
A senhora acredita que o país crescerá neste ano? É possível algo entre 3% e 4%, como prevê o mercado, nesse contexto tão adverso?
A maior parte do crescimento que está se cogitando é estatística. A base de comparação é muito baixa. Com a nova onda da covid-19, sem auxílio emergencial, que segurou a queda do PIB no ano passado, acho que essas previsões vão acabar sendo revistas.
A senhora é a favor da volta do auxílio emergencial?
Não sou contra. Sou a favor da Lei de Responsabilidade Social.
E o que seria isso?
Isso significa que é preciso fazer uma reforma dos benefícios sociais, para focalizar melhor os recursos. A gente viu que, com o auxílio emergencial, que foi uma resposta rápida, veio como tinha de ser feito, mas, depois de dois meses, percebemos que havia sido destinado para muitos que não precisavam e um grupo que precisava acabou ficando de fora. O que precisa ser feito é focalizar os gastos sociais para quem, de fato, precisa e ter uma alternativa para quem está no mercado informal, que tem renda, mas tem volatilidade. A Lei de Responsabilidade Social foi proposta pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) e tem como base um programa desenhado pelo grupo Livre, juntando propostas de um programa elaborado por três maiores dos especialistas em desigualdade. Seria um auxílio permanente, respeitando a restrição fiscal, com foco na criança e na educação, e ainda dá conta do mercado informal.
Com o Orçamento da forma como está e com a dívida pública bruta encostando em 100% do PIB, é possível um programa de renda para os mais pobres?
Sim, pois temos uma crise humanitária. O país, hoje, não consegue voltar a um lockdown a essa altura, porque temos um presidente que não dá exemplo, faz questão de aglomerar, não usa máscara em cerimônias e diz que não é preciso se vacinar. Só é possível, de novo, conseguir decretar um lockdown se tiver apoio para as pessoas ficarem em casa. A situação é muito ruim. A vacina é urgente. Temos uma crise humanitária muito séria e, nesse cenário, o Congresso não deveria estar em recesso. Deveria estar funcionando para discutir exatamente temas como esse. Poderia discutir a Lei de Responsabilidade Social. Mas o Congresso vai querer fazer algo mais populista, que é estender o auxílio emergencial. Não sei de onde virá o dinheiro.
Como a senhora avalia a política liberal com a qual o governo foi eleito?
Primeiro, é preciso qualificar o que é política liberal. Porque essa coisa de dizer que liberalismo é liberdade econômica e ponto, eu não concordo. Isso é só um grupo de pensadores que acham que é só olhar para a liberdade econômica que o resto vem atrás. Não há nada nesse governo que seja liberal. Primeiro, Bolsonaro é aquela imagem acabada de um não-liberal. É o cara da extrema direita que não acredita na ciência, não acredita na sustentabilidade, não respeita os Três Poderes, é a favor da tortura e gosta de exaltar ditadores. Bolsonaro é o oposto da ideia do liberalismo. Guedes entrou no governo porque Bolsonaro foi o único que o aceitou. Ele sabia que Bolsonaro não era liberal e quase estragou a reforma da Previdência. Se não fosse o Congresso e Rodrigo Maia, nem reforma da Previdência o país teria. Temos um problema de um governo não ter vocação para ser liberal com um ministro completamente incompetente, sem nenhuma habilidade política e sem nenhuma visão política. Guedes perdeu, de fato, o prestígio que tinha e, hoje, o que ele quer fazer, Bolsonaro impede. O presidente impede uma focalização dos benefícios sociais, impede uma reestruturação necessária no Banco do Brasil e ninguém pede demissão, como o (Henrique) Mandetta fez. Vão aceitando tudo o que o Bolsonaro faz.
É tudo pelo poder?
Se você não tem nenhuma abertura comercial, se não houve privatização... Outro dia, fiz um levantamento dos dados dos governos Collor, Itamar, Fernando Henrique Cardoso. Todos privatizaram mais de 10 empresas em dois anos. Todos. O Paulo Guedes não consegue fazer. Ele ainda propôs uma reforma administrativa que não vai adiantar nada, porque não tem impacto nenhum a curto prazo. O presidente não quer. O ministro é um sujeito completamente inexpressivo. Não tem como ficar otimista. A base do liberalismo é clara: reforma do estado, simplificação do sistema tributário, abertura comercial e educação. O governo não tem nada nessas quatro premissas.
O que se tem então é o populismo?
Exatamente. Só há populismo e ministros completamente inexpressivos. E alguns atrapalham a agenda liberal, como são os caso do Ernesto Araújo e do Ricardo Salles. O Pazuello já virou piada e um desprestígio para a eficiência dos militares. O resto fica calado para não atrapalhar. E o Paulo Guedes, quando fala, vira meme. Fica dizendo que está segurando o pacote, esperando o novo presidente da Câmara. O país está sem um condutor.
É possível esperar mudanças nesses próximos dois anos de governo? Ainda dá para fazer o que tem que ser feito para o país voltar a crescer e gerar emprego e renda para a população?
Com Bolsonaro, não. Pelo contrário. Acho que Bolsonaro, sentindo-se acuado ou mais forte, vai ser abertamente populista. Ele pode desistir do Paulo Guedes e colocar um desses heterodoxos, alguém da nova teoria humanitária, alguma pessoa que vai achar que investimento público gera crescimento.
E ainda tem a perspectiva de o Banco Central subir juros, o que será um baque neste momento com a economia tão frágil…
Isso é outro agravamento. Com a pressão da inflação, o Banco Central retirou o forward guidance (instrumento que sinalizava manutenção da taxa de juros baixa), com a expectativa de subir os juros. É um cenário muito complexo. E o Brasil é pária do mundo. A sorte é que o setor agrícola é muito forte e está sustentando o país.
A indústria tem, hoje, a menor participação no PIB desde o final dos anos 1940. Como vê isso?
O processo de desindustrialização já estava acontecendo. A própria indústria não se preparou para a mudança tecnológica, e a automobilística, que, no mundo todo, está migrando para carros híbridos, treinando pessoal e mudando suas plantas, no Brasil, não faz nada, porque está acostumada a viver com subsídios. Acho que a responsabilidade é da indústria também. É óbvio que há uma carga tributária e uma burocratização que atrapalham muito, mas há pouca inovação. Onde houve inovação tecnológica foi na agroindústria.
Na sua avaliação, existe a possibilidade de surgir um candidato forte a ponto de bater Bolsonaro em 2022 ou a reeleição dele está dada?
Eu vejo possibilidade sim. Acho que Bolsonaro mostrou que é totalmente incapacitado para conduzir o Brasil. Ele aproveitou a onda anti-PT. Por isso, o candidato para batê-lo não pode ser de esquerda, senão, vai gerar, de novo, uma polarização. Essa polarização a gente não quer. Ela está menor.
Mas, hoje, não tem esse candidato?
Tem candidatos que não se apresentaram abertamente. Hoje, o único que se apresentou foi o João Doria (PSDB-SP). Mas tem o Ciro Gomes (PDT-CE), que é candidato permanente, o Flávio Dino (PC do B-MA), o Luciano Huck, o Eduardo Leite (PSDB-RS), o Fernando Haddad (PT-SP)... Candidatos, teremos. Mas podem aparecer outros nomes, como o Paulo Hartung (MDB-ES), Tasso Jereissati (PSDB-CE). Nomes bons, temos.
Vimos isso em 2018, e Bolsonaro foi eleito…
Pois é. Hoje, estamos falando que poderia ter um médico na Presidência (Geraldo Alckmin/PSDB-SP). Mas, quando o médico falou que precisava fazer um acordo com o Centrão para fazer reforma, perdeu a eleição. Agora, Bolsonaro se aliou ao Centrão e ninguém achou nada demais. Acho que, exatamente pelos erros na eleição de 2018 e com a derrota de Trump e a vitória de Biden, que é um conciliador dentro do Partido Democrata, que não tem propostas radicais, há um ensinamento para nós. Depende da sociedade brasileira encontrar esse nome.
Adriana Fernandes: Jacaré econômico
Placar parcial no Congresso: 100% de apoio ao auxílio emergencial, 0% para o Ministério da Economia
É uma roda de ciranda a coleção de compromissos assumidos na área econômica pelos candidatos à presidência da Câmara e do Senado. Quatro dos quatro principais candidatos (os senadores Rodrigo Pacheco e Simone Tebet e os deputados Baleia Rossi e Arthur Lira) deram declarações de apoio à nova rodada do auxílio emergencial, que o ministro Paulo Guedes resiste em aceitar. Resultado até agora: 100% de apoio para o auxílio contra 0% para o Ministério da Economia.
Guedes, por sua vez, quer uma nova CPMF para financiar a desoneração da folha e aposta na vitória de Lira, que, no ano passado, indicou essa possibilidade “desde que com alíquota baixa” para criar empregos.
Contrário ao novo imposto, Baleia Rossi, que é autor da PEC 45 de reforma tributária, sai a campo e marca posição depois que reportagem do Estadão mostrou que o plano de Guedes para a recriação do imposto não morreu. “Meu adversário é pura metamorfose ambulante. Ele já quis CPMF. Depois, disse que não é bem assim.”
Pisando em ovos e com as redes sociais repercutindo negativamente o risco da volta da CPMF, Lira desconversa, finge esquecer o apoio dado há poucos meses, liga para Guedes e cobra explicações do ministro. O Ministério da Economia diz que “não tem nada disso” e tenta abafar o assunto. A recomendação é ninguém falar nada agora para não atrapalhar a eleição. Mas o tema volta com Pacheco, que afirma que “pode se discutir, criar a CPMF e desonerar a folha, é até aceitável desde que haja desoneração na outra ponta”.
Assim como Baleia não pode fechar as portas totalmente para o imposto sobre transações, porque tem também entre seus apoiadores defensores da desoneração dos salários, Lira tampouco quer afastar aqueles parlamentares que têm ojeriza à CPMF.
Baleia diz que a CPMF representa aumento de carga tributária. Governo e aliados tentam emplacar a narrativa de que a PEC 45, patrocinada pelo arqui-inimigo Rodrigo Maia, é que vai elevar o peso dos impostos. Bolsonaro pega carona e diz: “Se a reforma provocar aumento de tributos, é melhor deixar como está”. Resultado até agora: ninguém ganha, e a reforma tributária, que todos dizem querer 100%, fica ainda mais difícil e distante.
Se há uma pauta que revela como nunca a sinuca de bico desses acordos do plantão eleitoral é o das privatizações. No auge da briga com Maia, Guedes o acusou de bloquear o avanço das privatizações da Casa de Moeda e Eletrobrás, por causa de um acordo que ele teria feito com o PT para se reeleger presidente da Câmara.
Agora, o ministro assiste a Pacheco, o candidato do Planalto, ser apoiado pelo PT e detonar a privatização da Eletrobrás, a principal da lista de Guedes para 2021. A disfuncionalidade da aliança do PT na Câmara com Baleia, muito criticada por Guedes, e no Senado com Pacheco bloqueia os planos do ministro, independentemente do vencedor. Resultado até agora: chances mínimas de a privatização avançar.
Quando o assunto é teto de gastos, a maioria defende a sua manutenção com responsabilidade fiscal, mas só Pacheco pula a cerca e diz: “Teto de gastos não pode ficar intocado”. Indicadores do mercado desabam na mesma hora. Simone Tebet, sua concorrente na eleição, vai ao mercado no dia seguinte e propõe discutir mudanças na metodologia. Tebet, Baleia e Lira sabem que segurar o rojão para manter o teto não será fácil, com o Orçamento apertado para atender a tantos compromissos e à demanda do enfrentamento da covid-19.
Resultado até agora: teto balançando mais e gatilho quase acionado para a renovação do auxílio, com a queda de popularidade de Bolsonaro pelo desastre na condução da pandemia.
A equipe econômica tenta segurar até março a pressão. Mas tem gente graúda que aposta alto que o ministro vai fazer do limão uma limonada e aceitará a nova rodada, com a condicionante de que o Congresso aprove em um mês uma PEC com medidas de ajuste. Até lá, Guedes vai segurando a pressão com a promessa da sua ciranda econômica: antecipação de 13.º salário e abono, liberação de FGTS, adiamento de impostos...
Parlamentares podem até dizer que está tudo normal. Mas tem candidato vendendo como vantagem a promessa eleitoral de que “promessa com ele é cumprida”. Nenhum deles escapa da metamorfose ambulante de Raul Seixas. Tudo isso no caldeirão do impeachment.
Com essa ciranda disforme, será trabalhoso dar rumo para a pauta econômica depois das eleições, porque ninguém sabe direito que bicho sairá dali. Será que é um jacaré?
Claudia Safatle: Um país à deriva
Como se fosse uma sina, aqui faz-se de tudo para dar errado
Há fortes indicações de que a recuperação em V foi curta, durou dois trimestres (terceiro e quarto trimestres de 2020) e perdeu fôlego. Um voo de galinha já bem conhecido dos brasileiros, animado pelo vigoroso programa de auxílio emergencial que beneficiou mais de 70 milhões de pessoas e que se encerrou em dezembro.
Segundo os prognósticos da economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre/FGV, o cenário desenhado para este novo ano é ruim para o primeiro semestre, quando a atividade ainda estará em contração, mas melhora no segundo, de maneira que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) encerraria o exercício em 3,5% - percentual insuficiente para repor a recessão estimada de 4,5% no ano passado. Como o carregamento estatístico responde por cerca de 2,5%, o efetivo crescimento este ano, segundo as previsões do Ibre, deverá ser de apenas 1%.
Tudo vai depender, porém, do sucesso (ou fracasso?) da vacinação contra a covid-19. Quanto mais incerta e demorada for, maior será a perda de PIB (Produto Interno Bruto). Os dados acima foram calculados com base em um processo de vacinação que envolveria grande parte da população no primeiro semestre. A partir do meio do ano, a situação seria de normalidade. As informações de atraso na obtenção do insumo necessário para a preparação das vacinas coloca mais dúvidas sobre o que poderá acontecer com o nível de atividade.
Há, ainda, uma grande heterogeneidade na performance dos diversos setores da economia, sobretudo o de serviços. Os serviços prestados às famílias e os serviços públicos, com o peso de educação e saúde - que respondem por quase um quarto do PIB -, com a pandemia estão contraindo muito em relação a 2019. No último trimestre de 2020, houve uma queda da atividade de 2,8%, segundo as previsões da economista, sobre igual período do ano anterior, com indústria crescendo, mas serviços caindo. Estes estão 25% menores do que eram antes da propagação da covid-19.
“Falta perspectiva de superação da pandemia. Eu esperava uma normalização no segundo semestre, com vacinação em massa, mas agora não sei”, disse ela.
Com o repique da pandemia e a possibilidade de voltarem algumas restrições ao funcionamento das cidades, o mercado de trabalho, que já está péssimo, pode piorar. Empresas que aderiram aos programas de manutenção do emprego podem, agora, optar por demitir caso não vejam perspectivas de recomposição e expansão da demanda.
A confiança de consumidores e empresários está em queda. “Já esperávamos um crescimento muito baixo no início do ano, com o fim do auxílio emergencial e com o mercado de trabalho fraco”, contou ela. A intensificação da doença deixa a economia sujeita a um novo perigo, de o “V” se transformar em um “W”, com o temível duplo mergulho da atividade.
“A vacina é o melhor investimento para a atividade econômica”, ressaltou Silvia. Pena que o presidente Jair Bolsonaro parece ter imensa dificuldade de compreender essa simples correlação.
A triste constatação, diante do bate-cabeças que está o governo, é de que o país não se preparou para um prolongamento da pandemia. Gastou o que tinha e não há mais, no Orçamento, recursos para prover renda para os trabalhadores informais e para os desvalidos; e destratou a China, que é o principal fornecedor do insumo da vacina, o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA).
Silvia acredita que o mercado até compraria um aumento do gasto social se o governo entregar alguma reforma que reduza a despesa obrigatória. Para fazer isso, porém, seria preciso que o país tivesse uma liderança forte, um programa tecnicamente bem feito de renda mínima e um programa de governo apoiado pelas forças políticas do Congresso Nacional.
“Ficar à deriva e com ausência total de liderança em um momento em que o país está em situação frágil é muito difícil. É trágico!”, lamentou.
Um dos sinais de que estamos fazendo escolhas erradas é que os preços das commodities sobem, mas a taxa de câmbio não se valoriza. Isso traz o perigo de desancoragem da inflação e de elevação da taxa de juros.
É curioso que estejamos em situação difícil em um momento em que as condições externas são boas: há enorme liquidez disponível no mundo, as taxas de juros são negativas e os preços das commodities agrícolas e minerais que o Brasil exporta aumentam. Mas, como se fosse uma sina, aqui faz-se de tudo para dar errado.
RPD || André Eduardo Fernandes e André Borges: A questão fiscal e a urgência das reformas
Governo Bolsonaro tem de romper paralisia em relação às reformas inadiáveis, antes que a economia brasileira “derreta". Desde 2014 que o país vive situação permanente de déficit primários e taxa de crescimento medíocre
A questão fiscal sempre foi um dos problemas fundamentais da economia brasileira. Uma análise histórica desde o início da República revela constante desequilíbrio entre as receitas e as despesas nas contas públicas. Na pandemia, causada pelo novo coronavírus, registrou-se uma explosão dos gastos públicos, que ameaça gerar aumento dos déficits primários e da relação dívida/PIB, aproximando-se perigosamente dos 100%. De acordo com o Ministério da Economia, a previsão mais recente (novembro) de déficit primário para este ano é de R$ 844,6 bilhões, vale dizer, a assombrosa cifra de quase 10% do Produto Interno Bruto!
É ilusão supor que essa situação seja somente reflexo da pandemia. Como dito acima, a questão do déficit público é estrutural. A última vez em que se registrou superávit primário (sem considerar as despesas com juros) foi em 2013, com 1,9% do PIB da época. Desde 2014, o Brasil vive situação de permanentes déficit primários, ao mesmo tempo em que exibe taxa de crescimento medíocre. Em 2019, os primeiros dados do PIB já não foram animadores. O cenário, projetado pelos agentes do mercado, considerando os mais otimistas, chegava a apontar para cerca de 2% de crescimento do PIB. Divulgados, no entanto, os indicadores econômicos de 2018, frustraram-se as expectativas em relação ao PIB, e o mercado chegou a reduzir a previsão de crescimento para entre 1,5% e 2%, isso antes mesmo da chegada dessa pandemia ao Brasil.
Urge, portanto, acelerar a discussão sobre reformas estruturais do Estado brasileiro. Isso é apenas emergencial. Não se pode enfrentar a questão somente depois de a pandemia passar. É preciso enfatizar e ter claro que a arrecadação não é suficiente para bancar as despesas obrigatórias do governo, levando ao financiamento por meio de títulos de dívida, com prazos cada vez menores de colocação e riscos de prêmio crescentes. Sem contar que mais de 90% do orçamento brasileiro é destinado a gastos obrigatórios dos mais variados tipos! Esta obrigatoriedade torna a dinâmica da dívida particularmente explosiva em uma situação de queda brusca de arrecadação como a imposta pela pandemia. Isto é insustentável!
O que até o momento impediu o desastre foi a imposição de uma âncora fiscal, o teto de gastos, objeto, porém, do mais virulento ataque de parte das forças populistas. O teto de gastos é o que ainda dá certa credibilidade quanto à solvência do governo federal. Mas não se pode esquecer que um dos pilares da teoria econômica é que não existe almoço de graça. Vale dizer, impõem-se escolhas e sacrifícios para assegurar, a partir de análises objetivas, amparadas por conceitos técnico-científicos, livres, portanto, de narrativas populistas, as prioridades dos investimentos públicos, se se pretende evitar a degeneração dos indicadores macroeconômicos.
O que tem de ser revisto – privilégios do funcionalismo público e subsídios à zona franca de Manaus, por exemplo? Ou os recursos destinados a merendas escolares ou leitos hospitalares? Qual a escala relativa de importância dos gastos estatais no universo do orçamento? Há consciência nos corredores do poder de que a fragilidade da infraestrutura desestimula o investimento produtivo? Que o elevado custo de aquisição de capital compromete a produtividade do trabalho? Que a produtividade, estagnada desde a década de 1980, se reflete na baixíssima taxa de crescimento dos salários?
Em uma palavra, onde investir para assegurar acréscimo de bem-estar para a população brasileira, tanto agora como no futuro?
Crises são oportunidades, desde que se consiga romper a paralisia do atual governo em relação às reformas inadiáveis, antes que a economia brasileira “derreta”. Reformas nas escolhas feitas no orçamento, reformas no sistema tributário, reformas na administração pública, ou seja, o que não faltam são reformas extremamente necessárias que precisam ser feitas com urgência para que a situação fiscal não leve o país à insolvência a uma outra década perdida ou pior.
Cristiano Romero: Encruzilhada fiscal e social
Retomada desigual do PIB e fim do auxílio fomentam crise social
Não é desprezível o risco de o país enfrentar nos próximos meses uma grave crise social. Todos sabemos que 2020 só não foi mais trágico, do ponto de vista econômico, porque o Congresso Nacional e o governo federal agiram rapidamente para instituir novo mecanismo de transferência de renda e, assim, compensar o fato de que, devido à pandemia, milhões de trabalhadores formais e informais perderam subitamente seu ganha-pão
O auxílio emergencial funcionou razoavelmente bem e impediu que a contração da economia fosse muito superior à esperada. Muitos analistas chegaram a projetar queda acima de 9% para o Produto Interno Bruto (PIB) em 2020. Segundo cálculos do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV-Rio, o PIB pode ter caído 4,7% no ano passado e crescerá 3,6% em 2021.
O que evitou um mergulho maior do PIB foram os bilhões de reais transferidos a pouco menos de 70 milhões de brasileiros entre abril e dezembro. Uma parte significativa desse contingente - cerca de 45 milhões de pessoas - é beneficiária do programa Bolsa Família e, por essa razão, continua recebendo o benefício, embora num valor bem inferior ao do auxílio emergencial - aproximadamente, R$ 150 por pessoa, em vez de R$ 600 (quantia paga entre abril a setembro) e R$ 300 (de outubro a dezembro).
O auxílio expirou em 31 de dezembro. Neste mês, ainda há um resíduo a ser transferido, mas, depois disso, acaba. Enquanto isso, assistimos, apreensivos, ao recrudescimento da pandemia no país. Seus efeitos negativos sobre a economia logo aparecerão, comprometendo a recuperação esperada. Grosso modo, 30 milhões de cidadãos viverão doravante sem renda alguma.
A equipe econômica do governo alega que a situação fiscal do país já era claudicante antes da pandemia e tornou-se desesperadora ao longo de 2020. O setor público consolidado, isto é, as contas de União, dos Estados e municípios, registrou déficit primário, nos 12 meses acumulados até novembro, de R$ 664,6 bilhões (8,93% do PIB).
Chama-se esse conceito de “primário” porque não inclui a despesa com juros da dívida. É a diferença entre o que o Estado arrecada por meio de tributos e o que gasta. Desde 2014, essa diferença é negativa. No ano passado, por causa da pandemia, é compreensível que, por causa do enfrentamento da pandemia, o rombo tenha aumentado.
Bem, se o setor público da Ilha de Vera Cruz não consegue arrecadar o suficiente para cobrir as despesas do Estado, como faz para honrar despesas como aposentadoria e pensões de mais de 30 milhões de brasileiros, salários do funcionalismo e gastos obrigatórios com saúde e educação? Ora, endividando-se.
Nos 12 meses até novembro de 2021, o déficit nominal, conceito que inclui o serviço da dívida, isto é, a despesa com juros, alcançou R$ 978,0 bilhões (13,14% do PIB). A Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), que compreende governo federal, INSS e governos estaduais e municipais, alcançou R$ 6,559 trilhões em novembro (88,1% do PIB). Em apenas um ano, cresceu mais de dez pontos percentuais de PIB.
Ninguém em sã consciência dirá que a situação fiscal deste país não é grave. O problema é justificar o fim da ajuda humanitária a quem precisa com o argumento de que, se houver deterioração adicional das finanças públicas, o país quebrará, investidores (nacionais e estrangeiros) fugirão daqui, a cotação do dólar visitará a estratosfera, haverá calote da dívida...
Não se tente convencer um pai de família desempregado a entender esse argumento ou de que sua situação é esta por não ter estudado) ele pode mostrar que, felizardo (porque a maioria não chega tão longe), estudou, sim, em escola pública durante toda a sua vida, ganhou bolsa do Fies para cursar ensino “superior” em faculdades com ação na bolsa e sócio estrangeiro, mas de péssima qualidade, e ainda assim está na miséria, como outros milhões de compatriotas neste momento terrível do país e da humanidade.
Por que não se usa o mesmo argumento fiscal para “convencer” grupos de interesse específico a entregar parte do butim, que faz deste imenso território um lugar rico habitado por uma minoria rica e uma maioria esmagadora, pobre?
“O Brasil chega a 2021 mais enredado do que nunca nas complexidades e contradições de múltiplas expectativas e demandas. É preciso voltar a crescer, mas também há que se responder a uma teia cada vez mais ampla de direitos democráticos em temas como saúde, segurança, transporte de qualidade, meio ambiente, combate ao racismo, empoderamento feminino, reconhecimento de identidades de gênero etc.”, observa Luiz Guilherme Schymura, presidente do Ibre-FGV.
Há uma visão, diz Schymura, segundo a qual, a retomada do crescimento seria suficiente para que os rendimentos do mercado de trabalho preenchessem a lacuna deixada pelo fim do auxílio emergencial. O impacto social, portanto, não seria dramático. O problema é que, talvez, muitos dos que acreditam nessa possibilidade não tenham considerado dois fatores: o aumento exponencial dos casos de covid-19, algo que pode obrigar prefeitos e governadores a reinstituir regras de isolamento social, e o fato, inacreditável, de que o governo Bolsonaro simplesmente não planejou a vacinação dos 210 milhões de viventes que moram neste canto do planeta. Sem vacina e imunização planejada, não teremos recuperação econômica. Teremos, sim, o agravamento da crise sanitária que já ceifou a vida de 210 mil brasileiros.
Há um terceiro problema. A economista-chede do Ibre, Sílvia Matos, conta que a retomada pós choque econômico da pandemia é muito desigual. “Chegou-se a criar a expressão ‘recuperação em k’ para se referir ao fato de que, enquanto a indústria e o comércio saíram na frente, os serviços, mais afetados pelo distanciamento social, ainda dão sinais de fraqueza”, diz Schymura.
Exemplo da heterogeneidade no próprio setor de serviços. Os que são prestados às famílias e que empregam bastante, medidos pela Pesquisa Mensal de Serviços (PMS), estavam em outubro 32% abaixo do nível pré-pandemia, em fevereiro do ano passado. Já os serviços de tecnologia da informação registraram avanço de 12% na mesma comparação, beneficiados pelo trabalho em casa, a comunicação a distância.
“É nessa encruzilhada extremamente difícil que se encontra o país neste início de 2021, e não se deve nutrir a esperança de que a retomada econômica pós covid resolverá os muitos dilemas e impasses. Mais do que nunca, será preciso um grande entendimento nacional para que se encontre um caminho viável que evite simultaneamente crises agudas no campo fiscal e social”, comenta Schymura.
Fernando Exman: Estados cobram novo auxílio emergencial
Plano de vacinação dá horizonte para fim da ajuda social
Mesmo que sob risco de tornar-se ainda mais minoritária na reforma ministerial prevista para depois de fevereiro, a ala fiscalista do governo submergiu. Seria prudente que pelo menos se recolocasse no debate sobre a necessidade de implementação de uma nova fase do auxílio emergencial. A ala política do Executivo está deixando rolar a discussão, que tem permeado os contatos entre os governadores e os candidatos a presidente da Câmara e do Senado. E pode sair fortalecida do recesso do Congresso.
A equipe econômica, por sua vez, corre o risco de chegar à mesa de negociação já com o prato feito e sendo servido. Neste caso, teria pouco a dizer, além de reiterar a premissa de que a conta precisa respeitar o teto de gastos.
A situação no Amazonas, que vive uma segunda onda de covid-19 com consequências tenebrosas, aumentou a preocupação de diversos governadores. O episódio evidenciou a necessidade de o Estado assegurar os meios para se combater o coronavírus e também os efeitos da crise, com a preservação de empregos e da renda do cidadão mais pobre.
“Vamos ter um crescimento do desemprego e da miséria muito grande. É preciso o auxílio direto e também a prorrogação do programa que reduz a jornada e o salário”, ponderou um governador, citando a iniciativa formulada pelo Ministério da Economia que, segundo a pasta, já promoveu a celebração de acordos entre 1,5 milhão de empresas e 9,8 milhões de trabalhadores.
Isso não é pouco. Todas as partes envolvidas fizeram sacrifícios e certamente estariam em piores condições, se a medida não tivesse sido implementada. Outras iniciativas da área econômica foram positivas, mas os governadores querem mais.
“O Brasil gastou muito durante a pandemia, mas o estrago poderia ser muito maior”, resume outra liderança, também influente no Parlamento e entre seus colegas governadores. Para essa fonte, o risco de recrudescimento da crise tem nome e sobrenome: caos social.
Aliás, autoridades do governo federal também citavam esse perigo no início da pandemia, mas a expressão foi caindo em desuso na Esplanada dos Ministérios e no Planalto.
Um outro chefe de Executivo estadual argumenta que parcelas adicionais do auxílio emergencial seriam essenciais para dar tranquilidade até uma retomada mais perceptível da atividade econômica, o que agora se torna mais factível em razão do início da vacinação contra a covid-19. “É fundamental que se restabeleça o auxílio. A vacina é o início do fim, mas é o início. Não é o fim. O governo federal precisa avaliar isso até para que continuemos a preservar a economia, enquanto salvamos vidas.”
O tema está presente nas reuniões de governadores com os candidatos a cargos nas mesas diretoras do Legislativo. Alguns dos postulantes, inclusive, já levantaram a bandeira e prometem colocar em votação proposta de recriação de um novo auxílio financeiro emergencial, de R$ 300 mensais, já a partir de fevereiro.
A portas fechadas, até mesmo os candidatos governistas dizem estar sensíveis aos apelos de que o Parlamento tome a dianteira. Eles sinalizam fidelidade ao presidente Jair Bolsonaro, e não ao ministro da Economia, Paulo Guedes, pois é o presidente da República quem está colocando em jogo seu prestígio político ao entrar na campanha para fazer os sucessores de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Até por isso a equipe econômica deveria estar mais ativa nas negociações, as quais não tiraram férias.
Nesta equação, o início da vacinação se tornou um novo fator a ser considerado. Governadores passaram a argumentar que, como o programa de imunização já começou para valer, uma possível saída seria manter o auxílio até a conclusão da vacinação do grupo prioritário, o que ocorreria em abril. Agora existe, pelo menos, um horizonte.
Eles têm algumas contas na ponta do lápis. Até abril, 25% da população seria vacinada, abrindo espaço para a reabertura de diversas atividades econômicas. Além disso, mais parcelas da população poderiam ser vacinadas rapidamente, se o país tiver todos os insumos necessários e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberar a distribuição dos imunizantes fabricados dentro do país. Isso porque, de saída, a produção nacional de vacinas contra covid-19 poderia chegar a 80 milhões de doses por mês. A conta leva em consideração uma capacidade de produção do Instituto Butantan de 30 milhões de doses por mês, outras 30 milhões de doses pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e ainda 20 milhões de unidades da Sputnik pela União Química.
Enquanto isso, a definição da pauta de votações permanece sendo objeto das negociações. O ano legislativo nem começou para valer e o Palácio do Planalto já sinalizou aos seus aliados no Congresso que não apoiará nenhuma medida que possa prejudicar a camada mais pobre da população. Mesmo que seja alguma iniciativa defendida pela área econômica.
A queda da popularidade do presidente serviu de alerta e tende a fortalecer os argumentos da ala política do governo. Se o atual presidente do Senado tornar-se mesmo ministro depois de emplacar Rodrigo Pacheco (DEM-MG) como seu sucessor, este grupo dentro do Executivo ficará ainda mais forte. Principalmente se o ministro Rogério Marinho, atualmente na pasta do Desenvolvimento Regional, assumir algum cargo de primeiro escalão dentro do Palácio do Planalto.
Quando um país do porte do Brasil precisa pedir socorro a um governo aliado para poder transportar oxigênio a uma unidade da federação, é preciso refletir sobre a eficácia dos esforços de integração nacional e também sobre a falta de aeronaves capazes de executar missões desse tipo. O que ocorreu no Amazonas reforça os argumentos do Ministério da Defesa de que todo corte no orçamento de projetos estratégicos das Forças Armadas envolve riscos à segurança nacional.
Adriana Fernandes: Guedes aposta em vitória de Lira para reapresentar proposta de nova CPMF
À frente nas intenções de voto para a sucessão na Câmara, deputado do PP já disse que colocaria tema em discussão, diferentemente do atual presidente da Casa, Rodrigo Maia; novo imposto compensaria redução de encargos sobre salários
BRASÍLIA - A proximidade das eleições para o comando da Câmara e do Senado, marcadas para 1.º de fevereiro, recolocou de novo a proposta de criação de um tributo sobre transações financeiras, nos moldes da antiga CPMF, na agenda da equipe econômica. Desta vez, com uma alíquota mais baixa.
A expectativa é grande porque o candidato apoiado pelo Palácio do Planalto na Câmara, o deputado Arthur Lira (PP-AL) – que até agora aparece à frente das intenções de voto, segundo placar do Estadão –, já se manifestou no ano passado favorável ao tributo, com a condicionante de que fosse aprovado com uma alíquota menor.
Nos últimos dois anos, a proposta já entrou e saiu diversas vezes da agenda do governo, mas a avaliação da equipe econômica é que o cenário do mercado de trabalho pós-pandemia vai abrir o caminho para que ela ganhe força. Isso porque a promessa é que o novo tributo, que seria cobrado de todas as transações, poderá compensar uma redução nos encargos cobrados das empresas sobre os salários dos funcionários. Na teoria, a redução estimularia a abertura de mais vagas de trabalho, com custo menor.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, deu sinais, nas últimas duas semanas, que pode voltar com a proposta após as eleições do Congresso.
Como mostrou reportagem do Estadão na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro já sinalizou para caciques do Congresso que aceitaria uma alíquota de 0,10% para o novo tributo. Esse porcentual seria cobrado tanto no débito como no crédito, na retirada e no depósito de recursos, ou seja, nas duas pontas.
Quando o apoio dos líderes dos partidos ao novo tributo tinha sido costurado para o anúncio em reunião no Palácio da Alvorada, o presidente, Jair Bolsonaro, chamou os seus líderes na Câmara, Senado e Congresso e abortou a medida. Com uma alíquota de 0,10%, a arrecadação prevista é de R$ 60 bilhões.
Um integrante da equipe econômica, que falou na condição de anonimato, disse que Guedes é persistente e que não desistiu da ideia porque considera a desoneração essencial para avançar com a agenda de aumento em massa do emprego. O foco será mostrar que não se trata de aumento da carga, porque os impostos sobre os salários seriam desonerados. Na visão do governo, uma medida compensaria a outra. Ou, como já disse Guedes, se colocaria um “imposto feio” (a nova CPMF) no lugar de um “horroroso” (a cobrança sobre os salários).
Num cenário de vitória de Arthur Lira, acredita-se que o apoio do presidente será conquistado, já que ele já tinha sinalizado essa possibilidade com alíquota de 0,10%.
O atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sempre se colocou contra a volta da CPMF e chegou a afirmar que, enquanto comandasse a Casa, o novo tributo não seria discutido entre os deputados. Esse foi um dos motivos da desavença entre Guedes e Maia que acabou atravancando a tramitação da proposta de reforma tributária – paralisada no ano passado.
Oposição
Ao Estadão, o principal concorrente de Lira na sucessão de Maia, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), disse que a CPMF é um imposto muito ruim. “Não tem espaço para aumento da carga tributária. A nossa reforma tributária, que é a PEC 45, com ajustes da PEC 110 e o projeto do governo, vai ajudar a geração de empregos e a retomada da economia”, disse Baleia. “Não vejo a CPMF tendo algum impacto positivo na economia, senão aumentar a carga tributária. Não é bom.”
Baleia Rossi lembrou que o Brasil está vivendo um processo de desindustrialização da economia, evidenciado pela saída da Ford do País. “A reforma tributária em discussão na Câmara tem condições de reverter esse processo”, disse Baleia, que é o autor da PEC 45.
A reforma tributária em tramitação na Câmara (PEC 45) substitui cinco tributos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) pelo IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). A alíquota estimada para não alterar a arrecadação é de 20% a 25%. A receita seria compartilhada entre União, Estados e municípios.
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Benito Salomão: Crescer, Estabilizar, Preservar e Distribuir
Este é o meu primeiro artigo de 2021 e também o meu primeiro artigo desta década que se inicia agora. Para mim simbólico porque em 2020 completei 10 anos desde meu primeiro artigo de jornal publicado em 22 de setembro de 2010. Ao contrário do que imaginava quando eu me lancei neste desafio de dialogar com o público sobre os grandes temas nacionais, os desafios do Brasil se ampliaram em muito. Na passagem da década de 2000 para a de 2010, o Brasil não apresentava os agudos problemas fiscais, ou a exacerbação das desigualdades e era a 6ª economia mundial. Era ainda considerado uma potencia ambiental e uma nação capaz de influenciar decisões internacionais como as missões de pacificação no Haiti e as negociações sobre o programa nuclear do Irã.
Dez anos se passaram e o Brasil é hoje a 12ª economia mundial e tem a difícil missão de reverter a trajetória de exacerbação das desigualdades, da pobreza, da miséria e da fome em um contexto de estabilização fiscal. As soluções perpassam por uma conciliação política aparentemente distante de se alcançar sobre a infeliz liderança de Jair Bolsonaro.
O título deste artigo resume bem os desafios a serem enfrentados nesta década que se inicia.
Crescer porque ao longo da década passada a taxa média de crescimento da economia brasileira foi próxima de 0%, o que indica um per capita negativo. O Brasil tem hoje um PIB per capta de igual magnitude ao que tinha em 2007, ou seja, todos (ou quase todos) se tornaram mais pobres. A melhor literatura que estuda o desempenho de longo prazo das economias atribui esta capacidade ao formato institucional. As instituições criam incentivos e os incentivos estimulam os agentes econômicos a pouparem e, portanto, acumularem capital (físico ou humano) e o processo de acumulação de capital dirige, ao lado dos aumentos de produtividade, o desempenho das economias. Para que o país volte a crescer é preciso que volte a poupar e para tanto é preciso de instituições estáveis que deem previsibilidade e segurança às relações econômicas.
Estabilizar porque, antes de mais nada, as instabilidades macroeconômicas desestimulam a poupança e o investimento. O Brasil tinha uma dívida pública de 51% do PIB em dezembro de 2013, em 2020 este endividamento segue para 92% do PIB. Esta trajetória de dívida pública que praticamente dobrou em 7 anos tornam as incertezas quanto a solvência do governo ainda mais fortes. Não se pode vislumbrar um futuro de médio prazo que não contemple volatilidade na taxa de câmbio; pressões inflacionárias; elevações da carga tributária e também da taxa de juros.
Preservar devido às características do capitalismo do século XXI. Por várias razões. Primeiro, os setores industriais de grande produtividade e de fronteira científica são, por definição, sustentáveis. Isto porque são setores relacionados a energias renováveis (baixo carbono, telecomunicações, inteligência artificial, nanotecnologia que dão escala à produção, poupando recursos. Investir em um padrão de desenvolvimento poluente é insistir em uma economia de segunda revolução industrial, de baixa produtividade e alto custo. Se o Brasil não for capaz de abandonar o padrão tradicional de crescimento e adentrar na quarta revolução industrial, conciliando isto com um padrão ambiental rigoroso, não será possível recuperar o crescimento perdido.
Por fim distribuir. Em uma análise retroativa de longo prazo, o padrão de desenvolvimento do milagre econômico (anos 1970) foi calcado no crescimento com concentração de renda. A partir da promulgação da Constituição dita cidadã, o padrão foi deslocado para a distribuição sem crescimento. O desafio desta década é crescer e distribuir simultaneamente. A distribuição aqui precisa assumir uma conotação mais ampla do que a simples mitigação da fome e da pobreza. Para tanto é preciso mais do que políticas de transferência de renda aos moldes do Bolsa Família ou do Auxílio Emergencial, é preciso educar centenas de milhares de brasileiros. É preciso dar a eles a possiblidade de um futuro melhor do presente, com melhores empregos, melhores condições de vida o que só será possível investindo pesadamente em educação de base.
Mas como distribuir em um cenário de insuficiência de recursos públicos por esgarçamento da situação fiscal do país? É preciso rever privilégios, sobre isto, retomo em artigo futuro. No momento desejo a todos um feliz ano novo e uma década nova mais promissora do que a que vivemos até aqui.
*Benito Salomão é economista.
Míriam Leitão: Sobram farrapos da fantasia liberal
Eu conto ou vocês contam ao ministro Paulo Guedes que o projeto dele acabou? Nunca teve viabilidade com o atual presidente, na verdade. Guedes embarcou numa canoa na qual não havia espaço para as ideias liberais. Ele sofre vetos diários às suas propostas e tem engolido em seco. Não privatizou, não reduziu barreiras ao comércio, exceto de armas, não diminuiu o tamanho do Estado.
Seus assessores, ou gestores nomeados por ele, de vez em quando ficam no dilema entre a demissão ou ser humilhado pelo presidente Bolsonaro. Tudo o que conseguir agora será prêmio de consolação. Não interessa mais se o presidente do Banco do Brasil fica ou não. André Brandão já foi informado que não tem qualquer autonomia de gestão, apesar de presidir um banco que tem acionistas privados e que atua num mercado que passa por imensas mudanças e aumento da competição.
A Caixa Econômica Federal, que é inteiramente estatal, virou um braço da propaganda política bolsonarista. Pedro Guimarães, com seus 11 revólveres e seus litros de cloroquina, faz qualquer papel que agrade ao chefe. Virou ajudante de lives e animador de auditório. A última agência que abriu foi por ordem do presidente, e não por ser bom ou não para a Caixa. A intervenção na CEF já ocorreu em outros governos, mas agora virou o quintal da presidência. O presidente do Banco Central tentava ontem à tarde convencer o governo de que era preciso segurar Brandão no cargo. Se ficar, terá perdido qualquer liberdade de ação.
Paulo Guedes dá aos interlocutores sempre a mesma resposta quando é perguntado sobre suas derrotas. “O presidente é que foi eleito, ele é que tem os votos.” O ministro, porém, garantiu que este seria um governo liberal na economia. Para acreditar era preciso ignorar tudo o que Bolsonaro havia dito antes. Bolsonaro disse que o presidente Fernando Henrique merecia ser fuzilado por ter privatizado, só para citar um eloquente sinal. O mercado financeiro comprou a tese de que o ministro dobraria o presidente. Ocorreu o oposto.
A lista da intervenção de Bolsonaro nos assuntos do Ministério da Economia é enorme. Nesses dois anos, Bolsonaro vetou propaganda do Banco do Brasil, revogou um aumento da gasolina, avisou que nem a Ceagesp será privatizada, criou e capitalizou estatais militares, sepultou o projeto de fusão dos programas sociais, demitiu o presidente do BNDES, o secretário da Receita Federal. O secretário da Fazenda teve que sumir para não perder o cargo. A reforma administrativa dormiu na gaveta do presidente até ficar bem aguada, irreconhecível.
Na semana passada, o presidente disse que o Brasil havia quebrado e não podia fazer mais nada. Só isso já deveria ser o suficiente para o ministro, que chegou acusando de incompetentes todos os antecessores, pegar o seu boné. Mas ele, que estava de férias, preferiu sair do seu descanso e, mais uma vez, justificar a declaração do presidente.
O Tesouro terá que rolar mais de R$ 600 bilhões de dívida nos primeiros quatro meses. Se o presidente diz que o país está quebrado, o que os financiadores da dívida podem pensar? O ministro, quando tenta justificar tudo o que o presidente diz, erra. Nesse caso ele disse que Bolsonaro só se referia ao setor público. Piorou a declaração.
No Chile de Pinochet, os Chicago Boys impuseram reformas liberais num projeto ditatorial que deixou milhares de mortos. Liberalismo deveria ser o oposto de autoritarismo, mas muitos que se definem como “liberais” não são necessariamente democratas. O grupo que foi ao poder com Bolsonaro nunca se incomodou com a defesa que ele faz da ditadura e da tortura. Nunca se incomodou que ele disse, quando deputado, que a ditadura deveria ter matado 30 mil. Para eles, o importante é que iriam reduzir o tamanho do Estado, abrir a economia, privatizar, vender imóveis públicos, acabar com os subsídios. No 25º mês da administração, tudo o que têm para mostrar é uma reforma da Previdência que foi feita pelo Congresso e na qual o presidente só entrou para defender vantagens corporativas para a sua clientela.
Paulo Guedes já sabe que não deu. Mas tentará terceirizar a culpa para o Congresso, a oposição, Rodrigo Maia, a imprensa, a social-democracia. Vai fazer vistas grossas para todo o autoritarismo do governo. Inclusive na economia.
Claudia Safatle: Guedes se prepara para voltar às suas propostas
Entre fevereiro e setembro governo quer aprovar reformas
O silêncio da área econômica do governo neste início de ano tem explicação e data para acabar. Trata-se da decisão de preservar a agenda de medidas a serem tomadas ao longo do ano da influência da campanha eleitoral para as mesas diretoras da Câmara e do Senado, que ocorre no início de fevereiro.
A estratégia é, tão logo esteja resolvida a disputa pelo comando das duas Casas, apresentar o que pode ser chamado de um programa de governo para os últimos dois anos de Jair Bolsonaro.
Com foco no emprego e na renda, ele terá o ajuste fiscal como meio e a lei do teto para o gasto como âncora.
Na pauta do Congresso, a pasta da Economia realça a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Emergencial, que cria os gatilhos a serem acionados para garantir o cumprimento da lei que estabelece o teto de gastos; e, também, a PEC da reforma administrativa.
A intenção da área econômica é resgatar todos os assuntos que vêm sendo discutidos desde o primeiro ano desta gestão. Vários deles tiveram, inclusive, a oposição do próprio presidente da República.
Do lado da expansão da oferta de emprego, a ideia do ministro Paulo Guedes é de voltar a defender a desoneração da folha de salários de forma horizontal. Para tal, ele precisará encontrar novas receitas e deverá retomar a proposta de criação de um Imposto sobre Transações destinado a financiar as despesas com a seguridade social. Feita a desoneração, o governo tentaria, de novo, emplacar a Carteira de Trabalho Verde e Amarela, cuja contratação não carregaria os encargos trabalhistas existentes hoje.
A última proposta de que se tem notícia seria cobrar uma alíquota de 0,2% a 1% sobre as transações financeiras em forma de uma escadinha: uma alíquota de 0,2% permitiria reduzir a carga tributária sobre folha de pagamento dos atuais 20% para 13%.
Com 0,4% de alíquota já seria possível eliminar a CSLL, que é a Contribuição Social sobre Lucro Líquido. Com 1%, os governos poderiam abrir mão do IVA, imposto sobre valor agregado que substituiria o ICMS pelas propostas de reforma tributária em discussão no Congresso. A arrecadação prevista seria de cerca de R$ 150 bilhões ao ano. Falta, porém, apoio do Palácio do Planalto para enviar ao Congresso a proposta de criação de novo tributo à imagem e semelhança da velha CPMF.
Para o aumento da renda, depois de encerrado o pagamento do auxílio emergencial, voltará à cena, também, a proposta de unificar os programas sociais, rechaçada por Bolsonaro. Só com uma revisão geral desses programas (abono salarial, seguro-defeso e mais de 20 outros programas existentes) é que seria possível, na ótica dos economistas do governo, melhorar a renda dos mais pobres e vulneráveis mediante uma reformulação e ampliação do Bolsa Família.
Entre as alternativas preparadas pelo Ministério da Economia, no ano passado, para financiar o projeto de criação do Renda Brasil, havia, ainda, a desindexação das aposentadorias e pensões da variação do salário mínimo por dois anos. Com essa iniciativa de congelar os valores dos benefícios por um par de anos o secretário Especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, explicou na ocasião que arranjaria recursos da ordem de R$ 17 bilhões em 2021 e de R$ 41,5 bilhões em 2022 para reforçar o orçamento do novo programa social. Proposta que foi de imediato também enterrada por Bolsonaro.
“Até 2022, o meu governo está proibido de falar a palavra Renda Brasil. Vamos continuar com o Bolsa Família e ponto final”, disse o presidente.
Passadas as eleições municipais e encerrada a disputa pelo comando da Câmara e do Senado acredita-se, na avaliação de fontes da área econômica, que o governo terá um espaço de ação para a tramitação das reformas entre fevereiro e setembro deste ano, período a partir do qual começa a campanha pela sucessão presidencial e Bolsonaro, como candidato à reeleição, não investirá em nada que seja polêmico.
No entendimento dessas mesmas fontes, a oposição de Bolsonaro às medidas propostas pelo ministro da Economia, seria motivada por períodos de campanhas, seja as de prefeito ou as pelo comando das duas Casas. Agora, durante esses oito meses de uma “calmaria” político-eleitoral. será a hora de “botarmos as cartas na mesa e dizer a que viemos”, disse um graduado funcionário da pasta da Economia, esperançoso de que haja apoio político a começar do próprio presidente para tanto.
Não consta dos planos da área econômica a possibilidade de patrocinar um novo decreto de calamidade pública nem de arcar com financiamento de mais parcelas do auxílio emergencial mediante aumento do endividamento. E não se descarta uma insurreição dos desvalidos, que perderam o auxílio, como fonte de pressão para que o Parlamento se mobilize e aprove tais medidas.
Não é desprezível o impacto que a vacina contra a covid-19 poderá trazer para a atividade econômica, ressaltam fontes oficiais que têm visão crítica quanto à forma com que está sendo conduzida a ofensiva contra a pandemia pelo Ministério da Saúde.
“Antes estávamos assistindo à expansão da covid-19 pela TV. Agora estamos vendo a doença dentro das nossas casas”, disse um assessor da área econômica que contou que dois de seus familiares bem próximos pegaram a doença e estão em quarentena.
Dois momentos de relaxamento de condutas de isolamento social marcaram o aumento do contágio: as eleições municipais e as festas de fim de ano.
Agora, o cancelamento dos desfiles de Carnaval e a vacinação são uma boa oportunidade para se fazer um ataque frontal ao aumento do contágio e das mortes.
A vacinação, segundo avaliam fontes oficiais, dará segurança às pessoas e encorpará os índices de confiança das famílias, que são indicadores da demanda por bens e serviços. O consumo deverá ter um baque com o fim do auxilio emergencial. A vacinação pode amenizar um pouco essa queda.
Fernando Exman: Covid renova debate sobre política industrial
Falta de diálogo reforça críticas à extinção do Mdic
Ano novo, vida nova. Nem sempre para melhor. Os primeiros dias de 2021 já impõem desafios ao governo, uma administração que vai criando o hábito de terceirizar responsabilidades e adiar a tomada de decisões que podem evitar o agravamento da crise.
As taxas de contaminação e óbitos por covid-19 crescem, lamentavelmente, a uma velocidade alarmante. Acelerado também é o crescimento da imprevisibilidade quanto ao início do plano nacional de imunização, assim como do receio de que o anúncio da Ford seja apenas o prenúncio de um movimento maior daqueles que não consideram mais o Brasil um bom destino para investir.
Sem vacinação, estima o Ministério da Saúde, o país precisaria manter medidas de isolamento social por até dois anos, para só então conseguir interromper a transmissão da enfermidade sem o colapso do sistema de saúde. Não existe possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro apoiar ideia como essa, a qual também não parece atrair a cúpula da pasta.
A postura do ministro Eduardo Pazuello aumenta os argumentos daqueles que apostam que ele deixará a farda para entrar na política e disputar algum cargo eletivo no próximo pleito. Estes dizem ser prudente acompanhar suas movimentações na região Norte.
Silêncio no Ministério da Economia. A pasta amarrou-se ao desfecho das disputas na Câmara e no Senado, deixando-se levar pela correnteza do debate sobre os efeitos danosos na economia da demora da vacinação e sobre a situação dos milhões de brasileiros que ficarão sem o auxílio emergencial. No Congresso e no setor privado, há também o sentimento de que falta uma ação coordenada do governo no sentido de se assegurar a produção dos equipamentos utilizados no enfrentamento da covid-19 e evitar que mais investidores deixem o país. Se o Parlamento não estivesse em recesso, até mesmo integrantes da base pediriam a palavra para discursar contra a passividade do Executivo ao ver a Ford abandonar o país.
Corre-se o risco de que a disputa política novamente deixe em segundo plano um debate essencial para o desenvolvimento do país.
Desta vez, a discussão sobre os efeitos da crise em relação à indústria nacional e se há alguma lição a ser tirada durante a pandemia para assegurar a saúde de um setor estratégico para qualquer país.
O tema já havia se comprovado relevante quando o Brasil ficou sem respiradores nas unidades de terapia intensiva de diversos hospitais dos mais variados Estados. Ganhou novo impulso com os alertas sobre a possibilidade de faltar agulhas e seringas para a imunização de toda a população contra covid-19 e, ao mesmo tempo, manter os programas de vacinação voltados ao combate de outras doenças.
A notícia envolvendo a Ford acabou dando novamente voz àqueles que dizem sentir saudade da expressão “política industrial” e gostariam de vê-la voltar a ser pronunciada no governo. Atualmente, está praticamente banida nos gabinetes da pasta da Economia.
Isso não quer dizer que a agenda liberal do ministro Paulo Guedes deva ser deixada de lado. Ela tem legitimidade. Saiu vencedora das eleições e, embora seja alvo de críticas até mesmo dentro do governo, está neste momento sendo utilizada por aqueles que antes a desprezavam para justificar a decisão da Ford. Segundo esse discurso, a montadora teria ido para a Argentina por que não obteve aqui os incentivos que outros países estão dispostos a conceder.
Ocorre que política industrial não se faz só com benefícios fiscais e a pandemia mostrou que o processo de desindustrialização não está ocorrendo em todos os lugares do mundo. Há países que, por questões de segurança nacional, mantêm programas de substituições de importações. Mas, não é disso que o Brasil precisa.
Uma das lições que deve ficar deste período é que o país deve possuir determinadas competências para conseguir acelerar o desenvolvimento de sua capacidade produtiva em setores que já domina e, ainda, ter como se aventurar em outros segmentos de forma rápida e eficiente quando for necessário. Isso que se viu, por exemplo, quando algumas empresas fizeram conversões de seus parques produtivos e, em vez de fabricarem vestidos de boneca ou peças de lingerie, passaram a produzir máscaras. Para tanto, é preciso ter equipamento e mão de obra qualificada.
O mesmo se viu em relação à manutenção ou produção de respiradores. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) fizeram uma iniciativa conjunta com as montadoras de automóveis, entre elas a Ford. Isso ocorreu, também, por haver demanda garantida para esses equipamentos.
Espera-se que haja, a partir de agora, uma maior coordenação e interlocução entre o governo e o setor privado para que o Estado use o seu poder de compra, facilite procedimentos regulatórios e sinalize qual é o tipo de insumo estratégico que não pretende ver em falta.
O instrumento de “encomenda tecnológica”, mecanismo moderno e que demanda compreensão dos órgãos de controle sobre os riscos envolvidos em sua adoção, está sendo utilizado durante a pandemia e deve ser incentivado em situações semelhantes. Isso nada ter a ver, necessariamente, com a retomada de políticas que se demonstraram equivocadas no passado, a proteção de fabricantes nacionais ineficientes ou a criação de obstáculos à abertura da economia.
O desafio que se impõe é, ao menos, permitir-se debater como o Brasil pode manter uma indústria forte e diversificada, capaz de reagir em momentos como os atuais, assegurando que ela seja também competitiva e com alta produtividade. Se faltar agulhas e seringas, o tema voltará à mesa. Talvez de forma ainda mais forte, o que dará novo impulso àqueles que criticam a decisão de Bolsonaro de ter extinto o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Isso pode ocorrer num momento em que o Executivo analisa a possibilidade de realizar uma reforma ministerial.
Luiz Carlos Trabuco Cappi: Um ‘gambito’ para 2021
País começará o ano herdando um tabuleiro marcado por lances já realizados
A estratégia desenhada para enfrentar os desafios de 2021 exigirá empenho, soma de esforços e agilidade. O cronômetro do jogo cobra ações imediatas. Neste começo de ano, um tempo de esperança e afeto, compartilho uma ideia. Pense no tabuleiro de xadrez, um jogo que tem muito a nos ensinar. O desenvolvimento cognitivo que ele favorece, assim como os valores que propõe, podem mudar, para melhor, nossa maneira de ver as coisas.
O xadrez vive um novo momento de glória com a popularidade da série O Gambito da Rainha. Nela, a protagonista Elisabeth Harmon é tida, desde a infância, como um prodígio dos tabuleiros. A jovem passa os episódios enfrentando grandes mestres e vencendo quase todos – superando barreiras e preconceitos que a tornam uma figura emblemática da falta de inclusão e diversidade no esporte que também é uma profissão. Uma das falas mais interessantes da personagem, num episódio marcante, é que “o xadrez nem sempre é competitivo; ele pode ser simplesmente lindo”.
Nesse jogo, toda informação que precisamos está plenamente disposta no tabuleiro. O resultado da partida dependerá única e exclusivamente da habilidade de cada um. Não existe o “contar com a sorte”. O que há como diferencial é a preparação, o estudo, o conhecimento.
O xadrez começa sempre polarizado: brancas e pretas caminhando em direção ao centro. A jogada chamada gambito da rainha (ou estratégia da dama) consiste em oferecer um sacrifício que envolve a peça de maior mobilidade dentro do tabuleiro, para se ganhar uma vantagem posicional efetiva. Esse movimento pode ser aceito ou recusado pelo adversário, decisão que definirá o rumo da partida. Curiosamente, os sacrifícios em favor de continuar seguindo em frente foram uma constante ao longo de 2020, tanto na esfera pública quanto na privada.
Sempre existiram muitas associações entre as instituições modernas e o papel que caberia a elas no tabuleiro de xadrez. Os reis certamente seriam os governos; as poderosas rainhas, talvez as grandes corporações; os bispos, a mídia que, mais do que nunca, inspira veneração; o cavalo e a torre seriam os exércitos e as forças de segurança; e, evidentemente, os peões representariam os cidadãos comuns.
Não se pode nunca desfazer um movimento no xadrez, mas é possível se recuperar e fazer com que os próximos lances sejam bem melhores. Em 2021, o País começará o ano herdando um tabuleiro marcado por lances já realizados, como o decreto de calamidade pública e a provisão de créditos extraordinários, entre outros. Assim como pelo recuo em alguns quadrantes importantes, como os das reformas tributária e administrativa.
Um bom estrategista no xadrez da economia consideraria imutáveis algumas regras do jogo, como o respeito à meta fiscal, à regra de ouro e ao teto de gastos. Provavelmente movido por um sentimento experimentado pelos melhores enxadristas de que, “se um jogador acredita em milagres, às vezes ele pode operá-los!”.
O jogo de xadrez celebra a importância da ponderação, da engenhosidade e do estudo de jogadas já realizadas, para que não se repitam no presente os mesmos erros cometidos antes. Igualmente, premia a ação executada dentro de um timing específico. A série valoriza, ainda, a importância de despir-se de vaidade. A certa altura, o personagem Harry Beltik, que fora um adversário vencido por Elisabeth quando ela ainda era criança, torna-se seu mentor. E ao vê-la cheia de vícios na vida adulta, trilhando caminhos errados, sentencia: “É tolice correr o risco de ficar louco por vaidade”. E assim, movido por um bem maior, empenha-se em trazê-la de volta à realidade e dar novo rumo à partida. Sempre em nome da beleza do jogo.
São esses valores que merecem uma reflexão cuidadosa para enfrentarmos os próximos lances de 2021. E, como diria a protagonista, ao final do último episódio: “Let’s play!”.
*PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS