Paulo Guedes
Correio Braziliense: 'Auxílio é importante, mas com responsabilidade', defende diretor da IFI
Felipe Salto admite a importância da criação de um benefício emergencial para os mais vulneráveis, de preferência, fora do Bolsa Família e de forma temporária. Ele também considera a vacinação essencial para a retomada econômica
Vicente Nunes e Rosana Hessel, Correio Braziliense
O economista Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, demonstra preocupação com o excesso das propostas na lista de 35 prioridades apresentadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso. Para ele, a inclusão de pautas de costumes atrapalha o andamento dos trabalhos do Legislativo, pois as reais prioridades do país são a saúde e a economia. Nesse sentido, ele considera a vacinação em massa e o auxílio emergencial, que não provoque desequilíbrio fiscal elevado, os assuntos mais urgentes. “É preciso que o governo acelere essa questão da vacinação contra a covid-19 para que a economia possa ter uma recuperação, ainda que pequena, mas garantida, neste ano, porque ainda não está”, afirma.
Em relação ao auxílio, Salto acredita que o melhor formato seria fora do Bolsa Família, usando um modelo temporário e mais focado. Especialista em contas públicas, ele reconhece que o fato de o governo ter avançado pouco nas reformas limita uma ação mais contundente para socorrer os mais vulneráveis. No entender dele, os problemas estruturais do país continuam os mesmos e precisam ser encarados, pois a dívida pública está muito elevada e continuará crescendo por um longo período.
Pelas projeções da IFI, o país permanecerá com as contas no vermelho por pelo menos até 2030, num cenário conservador. Com isso, é mínimo o espaço para a criação de um novo auxílio emergencial sem comprometer o Orçamento e o teto de gastos — emenda constitucional que limita o crescimento das despesas pela inflação do ano anterior. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Salto ao Correio.
As reformas vão andar agora? Em uma lista de 35 itens, nada é prioritário.
Pois é. Reformas, nesse sentido genérico, não resolvem muito o problema. Precisamos saber mais claramente quais são as prioridades de verdade. A PEC Emergencial, por exemplo, dependendo do desenho, pode ajudar numa questão importante, que é o teto de gastos. A emenda 95, aprovada em 2016, prevê os chamados gatilhos, que seriam as medidas automáticas de ajuste. Mas a interpretação majoritária é de que seria necessária uma mudança de um trecho dessa emenda para poder acionar os gatilhos. O diabo mora nos detalhes. Não sabemos, ainda, qual será a proposta. E as outras reformas são relevantes, como a tributária e a administrativa, que estão na mesa. Contudo, é preciso saber exatamente quais são as propostas que o governo tem. No modelo brasileiro de presidencialismo de coalizão, a Presidência tem um papel fundamental e o Ministério da Economia, também. Eles são os definidores da agenda.
Nos últimos dois anos, não vimos um papel ativo do Planalto e do Ministério da Economia. A reforma da Previdência, por exemplo, só foi aprovada graças ao esforço do Congresso. Desta vez, o empenho vai ser maior? Por quê?
A reforma da Previdência tem um mérito importante do governo Michel Temer, que definiu essa pauta como prioritária e trabalhou muito por ela. Pelas razões políticas que sabemos, atrasou. Mas ele amadureceu a discussão. Fazia tricô com quatro agulhas. O governo atual conseguiu terminar, então, mérito dele. Agora, nas outras agendas, está tudo muito confuso. O Ministério da Economia, por exemplo, vive falando do imposto de transações financeiras. E, ao mesmo tempo, mandou uma proposta de reforma tributária para o Congresso prevendo a unificação do PIS e da Cofins. Em paralelo, o Congresso tem duas PECs sobre reforma tributária, a 45 (na Câmara) e a 110 (no Senado), que tratam de outro tema mais abrangente, que é o IVA nacional ou o IVA dual — um, para o governo federal e, outro, para estados e municípios. Esses temas precisam ser mais bem detalhados, porque não está claro.
E ainda há a covid...
No meio disso tudo, há as medidas que são ainda mais prioritárias. É preciso que o governo acelere a vacinação para que a economia possa ter uma recuperação, ainda que pequena, mas garantida, neste ano – porque ainda não está. Há uma incerteza muito grande, e isso tem a ver com a dificuldade de se ter um plano mais coeso e bem executado para a vacinação. Com isso, a pauta econômica e fiscal também se funde com a da saúde. E o Orçamento que abrange tudo isso está em aberto. Achei positivo o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, anunciar que a CMO (Comissão Mista de Orçamento) deve ser instalada nesta terça-feira. A Comissão vai ser o local para a discussão de muitas coisas, inclusive, o auxílio emergencial, e outras questões envolvendo gastos com saúde, como comportar tudo no Orçamento, que está sem margem alguma.
Será possível recriar o auxílio emergencial?
O auxílio emergencial é muito importante, porque, no ano passado, a população ocupada no mercado de trabalho diminuiu bastante, e, neste ano, vai se recuperar menos do que caiu. Então, haverá um contingente de pessoas que estão à margem de qualquer tipo de recebimento de renda formal ou mesmo no mercado informal. E a pandemia continua evoluindo. Algum auxílio, aparentemente, pelo que avaliamos, é possível que seja necessário. A questão é como fazer isso com responsabilidade fiscal.
Mas tem espaço no Orçamento?
Se olharmos a LDO para 2021, a despesa discricionária está em R$ 83,9 bilhões, sem contar os
R$ 16,3 bilhões de emendas parlamentares, que são impositivas. Esse é o menor nível de despesa discricionária da série. O risco de romper o teto é elevado porque a despesa discricionária, que é a variável de ajuste, está bastante exaurida. Para resolver essa questão, existem dois caminhos. O governo deveria eleger uma série de despesas que poderiam ser cortadas ou contingenciadas, inclusive, gastos obrigatórios. Claro que tudo isso tem um custo político. Se o governo for mexer em subsídio creditício, que é uma despesa que está sujeita ao teto, ele vai enfrentar aqueles que defendem cada um dos programas que estão lá nessa rubrica. Tem também mais de 50 mil cargos a título de reposição de aposentadorias de servidores previstos no PLOA. Só isso já tem um efeito de R$ 2,4 bilhões. O que seria importante é verificar despesas que podem ser cortadas para mostrar que está havendo um esforço fiscal. O outro caminho é via crédito extraordinário, que está previsto na Constituição para situações de imprevisibilidade e de urgência e, claro, que tem que ter critérios. Seria importante o governo sinalizar medidas compensatórias e não partir direto para uma coisa extrateto. Essas são as duas possibilidades.
É melhor retomar o auxílio ou ampliar o Bolsa Família?
O Bolsa Família é um programa de sucesso e bem avaliado, inclusive, pela academia. Ele beneficia muita gente com um valor orçamentário anual, em torno de R$ 35 bilhões, que é relativamente baixo para o benefício que ele produz (na economia). São discussões diferentes. A reformulação dos programas sociais seria importante, com melhor focalização, porque temos Benefício de Prestação Continuada (BPC), Bolsa Família, abono salarial, tudo para públicos diferenciados. Agora, a discussão do auxílio é mais imediata. É uma transferência que precisar ser feita, temporariamente, para resolver algo que não estava previsto, que foi a crise da covid-19 que se abateu sobre nós. O benefício pode ser resolvido pelo Bolsa Família. Mas o ideal é ter uma ação concreta direcionada para essa finalidade e, em paralelo, discutir a eficiência dos programas sociais, como melhor focalizar.
O Brasil precisa de um programa de renda mínima?
Nós já temos o Bolsa Família, que é um programa importante nesse sentido. Ele poderia ser ampliado. Agora, qualquer discussão a respeito de um novo programa precisaria ser pensada também do ponto de vista do equilíbrio fiscal. A dívida pública bruta, no ano passado, encerrou em 89,3% do PIB. Foi mais baixo em relação ao que se projetava, mas houve um efeito do PIB, que ficou mais alto por causa da inflação. Quando comparada à evolução da dívida, foram 15 pontos percentuais do PIB de aumento em relação aos 74,3% de dezembro de 2019. É uma dívida gigantesca, que vai continuar crescendo ainda por algum tempo. Por isso, o governo precisa anunciar um plano de médio prazo para mostrar quando essa relação dívida-PIB voltará a ficar sustentável. Essa falta de um horizonte para as contas públicas me preocupa até mais do que as questões de curtíssimo prazo. O momento é de exceção, que exige medidas excepcionais.
As propostas apontadas pelo governo são paliativas?
A PEC Emergencial é uma tentativa de dar uma sobrevida ao teto de gastos, permitindo acionar os gatilhos da regra. É claro que o teto, nas condições atuais do cenário base, não vai aguentar até o 10º ano, quando está previsto na emenda a alteração do indexador. Não podemos perder de vista que os problemas estruturais continuam, infelizmente, sendo os mesmos de 10 anos atrás: uma despesa obrigatória grande e crescente e um espaço para investimento cada vez menor. O Estado vem perdendo capacidade para investir e está aumentando, cada vez mais, a pressão das despesas. Claro que parte dessas despesas também tem a ver com a melhora de vida das pessoas, porque tem saúde e gastos sociais, mas será preciso uma reestruturação muito mais complexa do que apenas a discussão da PEC Emergencial.
Mas a PEC Emergencial ainda está em pé? Ela foi enviada ao Congresso no fim de 2019.
Quando o governo enviou ao Congresso essa PEC Emergencial em 2019, ele prometia que ela seria aprovada até dezembro daquele ano. Então, está muito atrasada essa previsão que o governo tinha.
Arthur Lira e Rodrigo Pacheco disseram que a reforma tributária pode ser aprovada em até oito meses. Acredita nisso?
A questão tributária é a mais complexa de todas, porque envolve várias trincheiras de batalha. Tem a trincheira dos estados e municípios contra a União, porque, nessa situação em que todo mundo está, o desejo dos entes federativos é ter mais receita e não menos. E tem, também, a questão da autonomia, porque, com a criação do IVA, estados e municípios perderiam o ICMS e o ISS. Não é uma questão trivial, ainda que as compensações fossem feitas e fosse criado o mecanismo automático para a distribuição das receitas que seriam arrecadadas centralmente. Mas essa é a primeira trincheira. A segunda é a setorial. O setor de serviços ainda não engoliu essa questão de ter aumento de tributação. Não se fala muito que esse segmento é subtributado. Só que é difícil sair de um equilíbrio ruim para um equilíbrio melhor, em que a indústria seria menos tributada com o IVA e o setor de serviços, que não tem uma cadeia de produção tão longa, tem dificuldade de acumular crédito. E, como vai tudo para o destino, obviamente, vai ter um aumento de tributação. E tem a terceira frente de batalha que é o fato de a União e o Ministério da Economia quererem aumentar a receita. O próprio ministro Paulo Guedes vive falando no imposto de transações financeiras, ou seja, está implícito aí um ajuste pelo lado da receita também. Isso é muito complicado. Acho positivo que as novas lideranças do Congresso indiquem que isso é uma prioridade, mas não vai ser fácil. Há pouco tempo para conseguir avançar nesse tema tão complicado.
Passados dois anos, é possível considerar que o governo Bolsonaro é reformista ou é mais discurso?
Eu acho que não é um governo reformista. O Ministério da Economia, sob a liderança do Paulo Guedes, tem essa intenção. Começou com aquela história das privatizações, de reduzir o tamanho do Estado, de fazer um enxugamento de gastos... Ele até prometeu zerar o deficit primário em um ano, mas percebeu que era impossível. Na verdade, o discurso da área econômica vai numa direção mais liberalizante, mas, na prática, o governo vai em outra direção. Até agora, com mais da metade do mandato, além da reforma da Previdência, não teve mais nada de relevância aprovado. O que podemos constatar é que as agendas que foram consideradas prioritárias, em algum momento, ainda não avançaram.
O presidente Bolsonaro já deixou claro como quer que a pauta de costumes ande, como excludente de ilicitude, ampliação ao acesso ao porte de armas... Isso é prioridade quando o país está atrasado na vacinação e ainda não tem Orçamento aprovado? Há riscos dessa agenda de costumes se sobrepor a das reformas?
A agenda de costumes que está refletida na lista de prioridades do governo é uma coisa que já se sabia que era intenção do presidente. E, claro, ela ocupa espaço e tempo no Congresso. Mas o que mais me preocupa na lista de 35 prioridades é que são muitos itens e não se sabe, ao certo, qual é a pauta prioritária e o que virá primeiro. Agora, as agendas de saúde e de economia deveriam ser prioritárias.
O cenário básico da IFI prevê deficit primário até 2030. É possível que fique pior?
O nosso cenário atual prevê que o deficit público diminuirá aos poucos até 2030, quando ainda estará negativo, em torno de 0,8% do PIB. Nos próximos anos, o quadro vai melhorando, porque a receita aumentará com algum crescimento do PIB, de 2% a 2,5% na média da década. E, do lado da despesa, nossa previsão não considera nenhuma, digamos assim, estripulia. O nosso cenário é bastante conservador. E, ainda assim, não é suficiente para vermos o superavit primário voltar em um período mais curto. Isso só acontecerá depois de 2030.
Fernando Gabeira: Roteiro para tempos difíceis
O Congresso caiu nas mãos de Bolsonaro. É o fato da semana.
Um bolsonarista escreveu no Instagram que me ver chorar na TV não tinha preço. Usava o termo chorar em sentido figurado. Certamente expressei tristeza com a vitória de Arthur Lira, coroada com uma festa para 300 pessoas, sem máscaras, numa mansão do Lago.
Mas se, como no poema, o bolsonarista nunca conheceu quem tivesse levado porrada, muito prazer, me apresento.
Situações difíceis não devem nos intimidar, embora seja assustador pensar na continuidade de um governo que mata as pessoas com seu obscurantismo e destrói vorazmente os recursos naturais de um dos mais belos países do mundo.
Muita gente acha que Bolsonaro tornou-se mais forte em 22, porque controla o Congresso. Temer controlava, mas jamais foi uma alternativa eleitoral viável.
As coisas não passam por aí. Pelo contrário, as relações de toma lá dá cá, as diárias afirmações de que é dando que se recebe, apenas reforçam a aura de decadência que envolve a política no Brasil.
A ideia de uma frente não se esvai porque alguns setores saltaram do barco. O que a fortalece, de fato, não são as letrinhas que designam partidos, nem necessariamente o número de deputados e senadores que a compõem.
O importante para uma oposição é compreender essa nova relação de forças no Congresso e olhar mais para fora, buscar o apoio da sociedade, batendo em alguns pontos essenciais. Um deles é denunciar o estelionato eleitoral de Bolsonaro, separando-o das pessoas que acreditaram em seu discurso.
Os outros estão claros na própria conjuntura: apoio emergencial para milhões de necessitados, defesa da ciência na condução da política contra a pandemia e luta para que todos se vacinem de forma eficaz e segura.
Esse encontro com a sociedade poderá ser mais amplo ainda na medida em que a vacinação avance. Muitos discutem as eleições de 22, quem será candidato, quem vai vencer.
É um tema inescapável. No entanto, daqui até lá, há muita luta, muitas peripécias. Os nomes devem surgir desse processo. Não creio em candidaturas que ficam abrigadas da tempestade e aparecem apenas no momento eleitoral.
Bolsonaro, Witzel e outras figuras se elegeram num momento de decadência da política. Nas próximas eleições, possivelmente viveremos um clima em que não só a política, mas também as novidades radicais decaíram. Daí a importância do que sobrou de resistência, de como se mostrará no processo, sua habilidade para unir, coragem para encarar o governo de frente.
Grande parte dos analistas descarta o impeachment quando um governo passa a dominar o Congresso. É razoável. Mas não se pode ver o Congresso como um bloco impermeável à pressão popular.
É preciso trabalhar com todos os cenários, sabendo que são tempos quase tão difíceis como no período da ditadura. É verdade que agora existe liberdade de imprensa, mas, no entanto, desapareceu um clima mais fraterno entre os opositores.
E isso não apenas porque a história moderna do Brasil colocou em campos opostos os que lutaram pelas eleições diretas.
O debate político não é mais mediado exclusivamente pela imprensa profissional. Ele vive noutras plataformas, deformado por fake news e num clima de agressividade verbal sem precedentes.
Um agradável lugar-comum que sempre vale a pena repetir: a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.
É urgente evitar mortes e, simultaneamente, desenvolver as lutas que possam fortalecer uma vontade de tirar o Brasil dessa condição de pária sanitário e ambiental, dominado pelo obscurantismo.
Perdemos o Congresso, é verdade. Mas algum o dia o tivemos? Por enquanto, a parte que nos toca é uma modesta minoria. Vamos com ela, com o que sobrar, pois resistir ainda é melhor do que tudo.
Monica de Bolle: Índia, Rússia e China reinventaram a economia com foco na saúde pública para a covid-19
Cabe pensar como os países devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece
Nesses primeiros dias de fevereiro a Anvisa suspendeu a exigência de que ensaios clínicos de fase III sejam conduzidos no país para qualquer empresa farmacêutica que queira solicitar o uso emergencial de vacinas. Diferentemente do que circulou, a agência não deixou de exigir os ensaios de fase III, que nos fornecem as informações sobre a segurança e a eficácia das vacinas, sendo, portanto, críticos. O que a Anvisa fez foi remover a exigência de que eles sejam feitos em território nacional. A decisão produz efeitos de pronto. Abre espaço para que o Governo negocie a compra de mais doses de outras vacinas, ampliando o leque de imunizantes disponível à população.
O Ministério da Saúde, por exemplo, está em vias de negociar a compra de doses da vacina Sputnik V, produzida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia, e da Covaxin, produzida pelo laboratório Bharat Biotech, da Índia. A Sputnik V jáestá sendo usada em cerca de 16 países, embora os ensaios de fase III ainda estejam na fase final de conclusão. A Índia, por sua vez, começou a vacinar sua população com a Covaxin, vacina de vírus inativado (como a Coronavac), mesmo sem os dados dos ensaios clínicos. Caso a Anvisa venha a aprovar o uso dessas vacinas —e espero que os faça tendo disponíveis os dados dos ensaios de fase III—, o Brasil passará a usar vacinas de três países emergentes com os quais compunha os BRICs: China, Índia, Rússia.
Tenho pensado muito na importância desses três países nas campanhas de vacinação dos países emergentes, que não tiveram acesso às vacinas gênicas, as da Pfizer e da Moderna, ou mesmo a outros imunizantes. É fato documentado, inclusive por mim e coautores em artigo recém-publicado pelo Peterson Institute for International Economics, que os países ricos adotaram a estratégia de comprar o máximo de doses que podiam de tais imunizantes, sem dar muita atenção à necessidade de cooperação global. Nesse contexto, países como Rússia, China e Índia perceberam a saúde pública como eixo reconfigurante da economia e viram nessa reconfiguração a oportunidade de serem fornecedores de vacinas para o resto do mundo, em que a escassez vacinal é a realidade.
O movimento dos três países suscita outras inquietações. A pergunta que todos se fazem é: quando a pandemia irá acabar? Penso, no entanto, que a pergunta é equivocada. Não temos resposta para ela, o que ficou ainda mais evidente com o surgimento de variantes virais preocupantes, as chamadas VOCs (Variants of Concern). O SARS-CoV-2, o vírus causador da covid-19, é ardiloso. O mais provável é que tenhamos de lidar com ele por tempo prolongado, atualizando vacinas à medida que ele encontre novas formas de escapar às nossas respostas imunológicas. Desse ponto de vista, podemos passar de uma pandemia aguda para uma pandemia crônica, ou seja, talvez tenhamos de aprender a conviver com o vírus e suas inevitáveis novas formas. Foi assim com outro vírus causador de doença distinta, a aids. Embora muitos não pensem tanto no assunto hoje em dia, a aids ainda é uma pandemia de acordo com as definições da Organização Mundial da Saúde (OMS). A diferença é que passamos de uma pandemia aguda para uma crônica.
Sendo esse o cenário adiante de nós, cabe pensar como as economias devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece. Porque, sim, há muitas oportunidades nesse cenário, como mostram no presente as ações da Rússia, da China, da Índia.
Como disse, os três países reorganizaram sua economia com centro na saúde pública, e isso faz sentido por motivos diversos: da segurança nacional à proteção social, da ordenação dos gastos públicos ao meio ambiente. No caso do meio ambiente, ter a saúde pública como eixo de políticas públicas significa garantir a existência de uma rede abrangente de saneamento básico, reduzir a poluição do ar, as emissões de carbono, preservar as reservas naturais para, inclusive, evitar o contato com novos vírus zoonóticos, aqueles capazes de pular espécies chegando a nós.
No caso do Brasil, não faltam vantagens comparativas para uma reorganização da economia nesses moldes. Temos um sistema de saúde público bem montado, dispomos de recursos naturais, possuímos alguma capacitação tecnológica. Nossas competências e experiências sanitárias sobram, já tendo sido motivo de orgulho nacional. A reorientação da nossa economia para a saúde pública sob o pano de fundo de uma pandemia crônica possibilitaria o renascimento da nossa indústria farmacêutica, voltada para as necessidades domésticas e para o abastecimento do mercado internacional, como têm feito a Rússia, a Índia, a China.
Novos empregos seriam criados, assim, na indústria e se abririam chances reais de inserção no comércio internacional, nas cadeias de valor ligadas à saúde. Tal inserção, por sua vez, ajudar-nos-ia a ampliar as possibilidades de saltos tecnológicos, que hoje inexistem. Economias voltadas para a saúde necessitam de serviços diversos, que vão de cuidadores e acompanhantes a profissionais de alta qualificação. O setor de serviços, tão abalado pela pandemia, teria a oportunidade de se reerguer a partir desse eixo, sobretudo com as necessidades que já surgem. São muitas as pessoas afetadas por sequelas de covid-19 e a elas muitas mais se somarão. Essas pessoas precisarão de atendimentos diversos.
Deixaríamos de fazer as reformas necessárias para o país? Pelo contrário. Faríamos essas reformas, agora com objetivo claro: sustentar e aprimorar o eixo central da saúde pública. O objetivo da reforma administrativa? A saúde pública. O objetivo da reforma tributária? A saúde pública. O objetivo de outras reformas fiscais? A saúde pública.
A pandemia nos tem apresentado muitas tragédias, dificuldades, dilemas, conflitos. Em meio à gestão de uma crise humanitária aguda, não é fácil elaborar o que sobrevirá. Mas é muito importante começar a fazê-lo, e isso implica abrir mão dessa espécie de pensamento mágico de que a pandemia vai acabar. A pandemia aguda, sem dúvida, acabará. Mas dela virá a pandemia crônica, essa que nos oferece o desafio e a oportunidade de uma transformação real da economia brasileira. A economia do cuidado é aquela que tem na saúde pública o eixo central e que se desenha explorando a reconfiguração do mundo que o vírus nos está apresentando. É claro que não acredito que o Brasil irá trilhar esse caminho nos próximos dois anos, com um Governo antibrasileiro. É mais provável que o país seja testemunha do que outros farão para pôr a saúde pública no centro das suas políticas. Mas quem sabe se os assistindo dessa vez, pela primeira vez, nós não nos articulamos para aproveitar a oportunidade visível, mesmo que tardiamente.
Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics.
Monica de Bolle: A política econômica de Guedes e a Covid-19
O que significa “responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma parte da população brasileira neste momento?
“Quer criar auxílio de novo? Tem de ter muito cuidado, pensar bastante. Se fizer isso, não pode ter aumento automático de verbas para a educação e segurança pública porque a prioridade passou a ser a guerra (contra a Covid). Pega as guerras aí para ver se tinha aumento de salário, se tinha dinheiro para a saúde e educação. Não tem, é dinheiro para a guerra.” Essas palavras são de Paulo Guedes em recente matéria da Folha de S.Paulo.
É bom lembrar que a metáfora da guerra é inadequada para a pandemia, uma crise sanitária com desdobramentos singulares na economia. O ministro deveria saber disto: na guerra, o capitalismo implica a produção intensiva de certos bens. Mas a fala também deixa ver a ideia que Guedes tem do capitalismo. Ela tem relação com um fenômeno que fez Arendt afirmar, sobre o imperialismo em suas Origens do totalitarismo, que “a expansão não era uma fuga apenas para o capital supérfluo. Mais importante do que isso, a expansão protegia os donos do capital contra a ameaça de se manterem, eles próprios, completamente supérfluos e parasitários”. Arendt, tão citada por liberais, era uma crítica da centralidade da economia na política, da política econômica como uma forma de administração da vida. Se cabe alguma analogia entre a pandemia no Brasil e a guerra é que o governo que Guedes integra e ao qual dá racionalidade administra a morte.
Desde o início da pandemia, a política econômica de Guedes contextualiza a epidemia no Brasil e aponta as escolhas que devem ser administradas em tal situação.
Auxílio ou saúde?
Auxílio ou segurança pública?
Auxílio ou educação?
A descontinuidade e os contrassensos deveriam ser visíveis, mas muitos se esforçam para fazer vista grossa. Não há antagonismo entre saúde e auxílio, por exemplo. Se o governo de fato quisesse tomar medidas para proteger a população e frear as cadeias de transmissão — agora mais do que necessário, com a presença de novas variantes do vírus — estaríamos impondo quarentenas e cordões sanitários em várias partes do país. Para tanto, necessitaríamos do auxílio emergencial e, claro, de mais recursos para o SUS e para os hospitais colapsados em vários estados, sem oxigênio.
Mas a política econômica de Guedes nunca enxergou a saúde pública e a sustentação da economia como aspectos intrínsecos do problema e positivamente relacionados. Depois de passarmos alguns meses no início da pandemia argumentando que não havia antagonismo entre saúde e economia, o negacionismo prevaleceu. Muitos já comentaram o ocorrido, inclusive eu. Foi há pouco, apenas em novembro de 2020, que um dos principais assessores de Guedes no Ministério da Economia negou a presença de nova onda pandêmica no país, citando “estudos epidemiológicos” feitos pela equipe de economistas. Àquela altura, as variantes detectadas no Reino Unido e na África do Sul já alarmavam os cientistas. E, pouco depois, tomaríamos conhecimento da variante P.1 do vírus, a que surgiu em Manaus. À época, ainda dava tempo de prorrogar o decreto de calamidade, permitindo que o auxílio fosse renovado e que mais recursos fossem destinados para a saúde. Mas o mesmo assessor de Guedes declarou que a renovação do auxílio seria ruim para os mais pobres pois contribuiria para elevar a dívida brasileira, o que poderia criar condições para uma crise fiscal futura.
Parte do mercado, do empresariado e da imprensa abraçou a visão de Guedes e de seus assessores não nominalmente, mas pela insistência na “responsabilidade fiscal”, nas reformas, na integridade do teto de gastos em plena pandemia. Tudo em nome da “expansão”, do crescimento econômico a que Arendt se refere e que, no contexto atual, produz seres supérfluos, à semelhança do processo que ela analisa. Ao fazer essa opção ante uma epidemia descontrolada, tornam-se parasitas de todo o sistema político e econômico. Tornam-se, também, parasitas dessas vidas que se foram. São palavras duras. Mas considerem: O que significa “responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma parte da população brasileira neste momento? Não no futuro, no presente, agora. Enquanto escrevo penso nas mortes que ocorreram nestes minutos. É disso que se trata.
Responsabilidade fiscal? É óbvio que esse tema é importante. Contudo, é mais importante do que salvar vidas em meio a uma crise humanitária? Estamos todos cegos, ou simplesmente permitimos que nos manipulassem para que víssemos no cenário de absoluta tragédia que nos cerca algo de normalidade dos tempos? Bolsonaro não é o único responsável pelo calvário brasileiro. Seus ministros são responsáveis. Guedes é responsável. A política econômica de Guedes é responsável. E, como tal, ela é indefensável. Que isso fique bem claro para quem ainda queira defendê-la.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Maria Cristina Fernandes: Fim do auxílio congestiona miséria
Pesquisador vê o surgimento de novos pobres, egressos da classe média, que, sem emprego ou vacina, pressionam pela retomada do benefício governamental
Em dois domingos consecutivos de janeiro, o historiador Raphael Ruvenal, de 31 anos, saiu de casa, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, às 5h45 para, depois de três horas de trem, ônibus e barca, chegar a um colégio estadual em Niterói, a mais de 50 km dali, onde foi fiscal do Enem. Apesar de as provas só terem início às 13h30, todos os fiscais deveriam se apresentar às 8h45. Liberado às 19h, Raphael chegou em casa às 22h.
Por cada um dos dias do Enem, recebeu R$ 90. Descontado o transporte, sobraram R$ 73. Se as provas tivessem acontecido dez dias depois, seus vencimentos teriam sido 25,5% menores por causa do reajuste no transporte metropolitano já confirmado para o início de fevereiro. O ganho líquido só não foi mais reduzido porque a direção da escola ofereceu lanche para a jornada de 16 horas.
Para ser selecionado como fiscal, ele teve que se submeter a um curso on-line de 20 horas e a uma avaliação. Formado, com a ajuda do Prouni, e pós-graduado em história, roteirista e escritor, Raphael está desempregado há mais de um ano e tem penado para dar aulas particulares remotamente. Os R$ 146 que lhe renderam o Enem foram sua única renda ao longo de janeiro.
Falante, articulado e lido, Raphael resume numa frase a pedreira que enfrentou como fiscal do Enem: “Recusa trabalho quem pode”. Filho de uma diarista e de um agente administrativo do Ministério da Saúde, com renda de R$ 3,5 mil, Raphael não entrou para a fila da miséria porque vive com os pais. Beneficiário do auxílio emergencial até dezembro, o historiador da Baixada Fluminense é parte das mudanças no perfil da pobreza que emergiram com o fim do benefício.
Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole na USP e estudioso de desigualdade social, Rogério Barbosa apenas começou a mapeá-los, mas já descobriu que os novos empobrecidos pelo fim do auxílio estão no meio da distribuição de renda. Em sua maioria, são egressos do mercado formal que ainda não se recuperou e tinham, antes da pandemia, uma renda domiciliar per capita média de R$ 859. O pesquisador vê os pobres apenas de volta ao assento de baixo de uma gangorra da qual não saem desde 2015. Quem grudou no chão com o fim do auxílio, e não sabem como nem quando poderão sair, foram os mais remediados.
Morador do Chapéu Mangueira, comunidade da zona sul do Rio, Eduardo Henrique Baptista levava uma vida de classe média até o início do ano passado. Tocava, junto com a mulher, o bar do sogro, de onde a família tirava, por mês, uma renda de até R$ 4 mil. Com a pandemia, resolveu fechá-lo. Quem se manteve aberto continua faturando na comunidade, mas ele não quis ter o vírus por sócio.
Eduardo só continuou a vender água para dar conta do aluguel do imóvel de R$ 600. Para pagar o da casa em que mora, de R$ 800, se valeu mesmo foi do auxílio emergencial que ele e a mulher receberam. Em janeiro, não entrou mais nada. Para dar conta dos três filhos de 16, 11 e 8 anos, faz bicos no gerenciamento de redes sociais e na produção de eventos da pandemia, como “lives” e “streamings”, enquanto a mulher vende produtos de bronzeamento e faz sobrancelhas no Chapéu Mangueira. Mesmo com os bicos, o casal não consegue chegar na renda de R$ 1,2 mil que lhes garantia o auxílio.
Nas planilhas de Rogério Barbosa, o ano de 2020, sem auxílio emergencial, poderia ter deixado 28% das famílias com um rendimento aquém de um terço do salário mínimo per capita, que é a linha de pobreza no Brasil. E é a este patamar de miséria que o Brasil pode chegar sem a renovação do benefício, o que é mais do que o dobro da média de famílias abaixo da linha de pobreza registrada ao longo de 2020.
Como nas crises brasileiras sempre se descobre que dá para cavar mais o fundo o poço, Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, foi atrás e encontrou um alçapão: a perda dupla do auxílio e do Bolsa Família. Com a calamidade pública foi suspensa a exigência da atualização cadastral do BF para a renovação bienal do benefício. Finda a calamidade, o bloqueio de beneficiários que não se recadastrarem passará a ser automático. A exclusão de dezenas de milhares de famílias do cadastro do Bolsa Família engordaria ainda mais a fila do programa, que já passa de 1,5 milhão.
No auge do auxílio emergencial, quando o programa incluía 68 milhões de pessoas, o valor injetado diretamente na veia dos consumidores passou de R$ 50 bilhões mensais. Em janeiro, ainda há beneficiários de parcelas em atraso. A partir de fevereiro, porém, essa transferência de renda mensal totalizará apenas R$ 2,7 bilhões. Por esse despenhadeiro, rola muito mais gente do que os beneficiários do auxílio. Foi na sua vigência, por exemplo, que a indústria de alimentos, construção civil e varejo tiveram o melhor ano da história.
Em meio à renda que despenca, o secretário de Fazenda de Alagoas, George Santoro, encontrou uma caverna. O fisco alagoano já foi impactado negativamente pela arrecadação do ICMS, mas o baque definitivo só é esperado para abril. Santoro calcula que, do saldo positivo de mais de R$ 166 bilhões em contas de poupança, R$ 100 bilhões tenham vindo da poupança digital aberta pela Caixa Econômica Federal, ao longo de 2020, para cada beneficiário do auxílio emergencial. Até abril os beneficiários que tiverem feito poupança vão queimá-la. Depois disso, acabou.
Gestores públicos, parlamentares, acadêmicos e os próprios beneficiários tendem a concordar, reservadamente, que teria sido preferível um auxílio de valor mais baixo e duração mais alargada. Santoro lamenta que tenha sido perdida a oportunidade de se aproveitar esse momento da pandemia para oferecer treinamento em larga escala para melhorar a empregabilidade dos beneficiários do auxílio para o pós-pandemia.
A volta do emprego sempre foi o maior escudo do Ministério da Economia contra a renovação do auxílio emergencial. As evidências de que essas expectativas não se confirmarão, no entanto, já arrefece a rejeição ao benefício. Ao longo da pandemia Rogério Barbosa passou a confiar tanto nos dados do Caged, cadastro informado pelos empregadores, quanto numa nota de 30. Prefere se guiar pelos dados da Pnad Contínua. E aposta até um lobo-guará numa onda de demissões em massa com o fim dos acordos de redução de jornada e salário a partir da caducidade da regra no fim de 2020. O que suas planilhas mostram é desolador: uma pobreza que caminha para repetir a da crise dos anos 1980.
No Congresso, dos quatro principais postulantes, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Simone Tebet (MDB-MS), no Senado, e Baleia Rossi (MDB-SP) e Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, apenas este último se mostrava resistente ao auxílio. Temia afugentar, precocemente, o apoio que tem hoje no mercado financeiro, mas passou a aceitá-lo e a catequizar suas plateias bem postas a fazer o mesmo.
A chave virou depois que cresceu a ameaça do impeachment. É uma conta de padaria. Sem o auxílio, cresce a insatisfação e a chance de ter povo na rua. O Datafolha (22/01) registrou queda de dez pontos percentuais entre aqueles que deixaram de receber o benefício. Com 40% de rejeição na primeira grande pesquisa de 2021, Bolsonaro só perde para Fernando Collor de Mello como o presidente de pior avaliação, desde a redemocratização, no início do segundo biênio do mandato. A mesma pesquisa mostrou que sete em cada dez brasileiros não têm uma renda alternativa ao auxílio.
O impeachment, que ainda não tem apoio majoritário entre os entrevistados, passa a ser um desfecho provável se a imagem do governo Bolsonaro continuar a se deteriorar pelo duplo desgaste do fim do auxílio e da demora na vacina. É tudo o que Lira não quer. Os dois impeachments de presidente da República registrados na história nacional, o de Fernando Collor de Mello (1992) e de Dilma Rousseff (2016), foram seguidos da cassação dos presidentes da Câmara, Ibsen Pinheiro (1994) e Eduardo Cunha (2016), que comandaram a degola dos chefes da nação. Para não ser o próximo da lista, corre para evitar a todo custo o impeachment. Nem que, para isso, Arthur Lira tenha que dar um cavalo de pau no ministro da Economia, Paulo Guedes. É este o cálculo político que faz com que a chance de renovação do auxílio emergencial já estivesse mais longe.
No outro lado do balcão, de quem vive sob o cerco das planilhas fiscais, a conta não fecha. O país hoje tem um perfil de dívida mais alongado a taxas mais baixas, mas o endividamento causado pela renovação do auxílio apavora as expectativas de aceleração da espiral de juro, inflação e (mais) desemprego. O resto do discurso já se conhece. O de que se dá com uma mão e se tira com a outra, embora beneficiários e prejudicados não sejam necessariamente os mesmos.
A renovação do auxílio também mantém de prontidão a guarda sobre os deslizes fiscais do governo. Uma nova calamidade pública autorizaria a abertura de novos créditos extraordinários, mas a gestão do “Orçamento de Guerra” em 2020 mostrou que as brechas fiscais dependem do tamanho da lupa que se use - e da chuva que caia sobre o teto. No limite, a despeito dos pavores do mercado e dos riscos fiscais, o auxílio é a alternativa que resta para o presidente ganhar tempo.
A PEC Emergencial, que corta gastos do governo, volta ao noticiário como tábua de salvação para possibilitar a adoção do auxílio sem apavorar os fiscalistas. Pouco têm importado as evidências de que, quanto mais enrolado fica o presidente, mais difícil é cortar gasto público. É neste pandemônio que o auxílio emergencial ensaia sua volta. Não pela consciência de que a fome não pode ganhar a macabra corrida contra o vírus, mas pela sobrevivência política de quem está no comando do espetáculo.
Míriam Leitão: Mundo paralelo da equipe econômica
No ano passado o mercado de trabalho encolheu, fortemente. É até óbvio. Aqui e no mundo a pandemia foi devastadora para o emprego. A equipe econômica de Jair Bolsonaro quer fazer crer que houve criação de emprego e que ao fim do ano o país tinha 142.690 de vagas a mais com carteira assinada do que em 2019. No mesmo dia, no mesmo governo, a informação do IBGE é que no trimestre terminado em novembro havia 3,5 milhões de trabalhadores a menos com carteira assinada em relação a 2019. No mercado como um todo, a queda é de 8,8 milhões de pessoas ocupadas.
O Caged, divulgado pelo Ministério da Economia, registra as demissões e contratações do mercado formal. O IBGE faz a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Eles medem coisas diferentes, mas quando o IBGE diz que são empregados com carteira está, teoricamente, medindo a mesma parcela do mercado de trabalho que o Caged. Em algum momento, deveriam convergir, mas estão discrepantes.
O ministro Paulo Guedes anunciou o número do Caged, que registrava perda de emprego, 67 mil em dezembro, mas que terminava o ano com o saldo positivo. E o fez repetindo discurso político com comparações com o pior período petista.
Uma perda de tempo, porque ele poderia até contar uma boa história comparando esse ano singular que foi 2020 com o que poderia ter sido. As medidas do governo de fato atenuaram as demissões e a recessão. O PIB deve ter uma queda em torno de 4,5%. As previsões iniciais eram bem piores. Mas não há como negar que foi um ano terrível para o mercado de trabalho.
O economista Daniel Duque, do Ibre/FGV, que foi um dos primeiros a alertar para a diferença que estava acontecendo entre o Caged e o IBGE, tinha no começo duas hipóteses para a discrepância: subnotificação e metodologia.
— A subnotificacão aconteceu mais no meio da pandemia, lá para abril a junho — explicou.
O Caged é feito a partir da informação das empresas. Muitas fecharam as portas e nada informaram. Houve dificuldade de registro também por causa de mudança na metodologia que houve em janeiro do ano passado. Emprego intermitente antes não era obrigado a informar. Agora no novo Caged é. Há outras alterações que parecem confusas até para os especialistas.
— A questão toda é que quando a gente tem uma série é preciso ter referência sobre como ela se comporta. O Caged sempre teve correspondência boa com o PIB e nível de atividade. Quando acelera, tem emprego e vice-versa. O novo Caged a gente não sabe mais a referência. Num ano de queda do PIB, há geração líquida de 142 mil vagas — diz Daniel Duque.
E o IBGE, o que disse ontem? A Pnad mostra dados trimestrais. De setembro a novembro o Brasil chegou a uma taxa de 14,1% de desocupação, ligeiramente menor do que no trimestre anterior terminado em agosto. Mas representando 14 milhões de pessoas desempregadas, ou seja, procuraram emprego e não encontraram. Com a pandemia, a necessidade de distanciamento social, as medidas restritivas mais severas, muita gente nem procura emprego. Então não entra na estatística. Os desalentados, que nem pensam em procurar, são 5,7 milhões. Há uma grande tragédia no mercado de trabalho. Não adianta agarrar-se a um dado que deu positivo para elogiar-se e atacar o adversário político. Ademais, Ministério da Economia deveria ser técnico, e não ficar todo o dia atravessando a rua para brigar do outro lado.
Daniel Duque ajuda a entender essa complexidade que está sendo medir o que acontece no mercado de trabalho no meio da pandemia:
— Pnad e Caged contam histórias muito diferentes. Desde o início da pandemia, o Caged mostrava uma queda muito menor do emprego, e depois passou a mostrar uma recuperação mais forte do que o dado da Pnad para o emprego formal. O IBGE, quando mostra a recuperação do emprego, é principalmente do informal. Eu tendo a acreditar mais na Pnad Contínua por vários motivos. Um deles é que tem maior correspondência com a atividade econômica.
Equipe econômica que se agarra a um número parcial positivo e não vê o todo não ajuda muito a enfrentar a crise. Até porque nós estamos em novo agravamento do número de mortes e contágios, e há muita incerteza na economia. O país tem um outro ano duro pela frente em que a capacidade de formulação de políticas para atenuar os problemas será novamente exigida.
Ribamar Oliveira: A urgência da reforma do PIS/Cofins
Compensações tributárias reduzem a receita da União
No ano passado, os contribuintes brasileiros fizeram compensações tributárias no montante de R$ 167,7 bilhões, uma elevação de R$ 62,1 bilhões em relação a 2019, de acordo com dados da Receita Federal. Esta foi, juntamente com a não quitação integral de tributos federais que tiveram prazos de pagamento adiados (diferimento), a principal explicação para a queda, em termos reais, de 6,91% da receita tributária da União em 2020, na comparação com o ano anterior.
Dito de uma forma mais direta: não foi o impacto negativo da pandemia da covid-19 na atividade econômica, em virtude do isolamento social, que jogou a arrecadação na lona. A atividade caiu muito nos primeiros meses da pandemia, mas depois houve uma recuperação rápida e, no fim de 2020, a economia estava bastante aquecida.
Foram as compensações tributárias e o diferimento de tributos que mais pesaram no resultado. “Sem esses fatores, não haveria queda da arrecadação”, disse o secretário da Receita Federal, José Tostes Neto, em entrevista ao Valor. “Teria mudado o cenário completamente e o resultado teria sido positivo”, observou.
A compensação ocorre quando o contribuinte possui um crédito contra o fisco, seja porque pagou a mais um determinado tributo, seja em decorrência de decisão judicial, e o usa para quitar os seus impostos. Há toda uma legislação que regula essa matéria. Esta semana, ao divulgar a arrecadação da União em 2020, a Receita Federal disponibilizou informações mais detalhadas sobre a compensação tributária, especificando os tipos de créditos que foram utilizados pelos contribuintes.
Só por conta de pagamentos indevidos ou a maior que realizaram, os contribuintes usaram crédito no total de R$ 11,8 bilhões para quitar suas obrigações tributárias no ano passado. Os créditos previdenciários atingiram R$ 7,1 bilhões. Mas o maior volume de compensações decorreu de ações judiciais.
Por conta de ações ganhas na Justiça, os contribuintes utilizaram créditos no valor de R$ 63,6 bilhões para quitar suas obrigações, ou seja, 37,9% do valor total das compensações. Foi um aumento de R$ 40,4 bilhões na comparação com o ocorrido em 2019. O secretário Tostes estima que cerca de 70% dessas ações contestam a inclusão do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na base de cálculo para a incidência das contribuições do PIS e da Cofins.
Em março de 2017, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, acolheram a tese de que o PIS e a Cofins não podem ser cobrados sobre o valor da mercadoria ou do serviço já tributado pelo ICMS. Em julho de 2017, a União entrou com embargos de declaração junto ao STF pedindo que os ministros modulassem a decisão, ou seja, definissem a partir de quando a tese passaria a valer.
Desde julho de 2019, o recurso da União está pronto para ser julgado pelo Supremo. De lá para cá, a matéria entrou várias vezes na pauta de votação, mas, em seguida, foi retirada. Aparentemente, como estão cientes do efeito extremamente negativo da decisão sobre a receita da União, os ministros aguardam que o governo e o Congresso Nacional tomem a iniciativa de mudar a legislação do PIS e da Cofins para, desta forma, evitar maiores estragos aos cofres públicos.
Em meados do ano passado, o governo encaminhou o projeto de lei 3.887/2020 ao Congresso, unificando o PIS/Pasep e a Cofins, que darão origem à Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). A nova contribuição não incidirá sobre o faturamento, mas sobre o valor agregado. Ela elimina vários regimes especiais. O projeto diz, explicitamente, que o ICMS e o Imposto sobre Serviços (ISS) não integram a base de cálculo da nova contribuição. E nem mesmo a CBS, o que dará fim à chamada cobrança “por dentro”, quando o próprio tributo integra a sua base de cálculo.
Por conta dessas alterações e para evitar que elas resultem em perda de receita da União, o governo propôs uma alíquota de 12% para a nova contribuição, com a ampliação da utilização de créditos. O que provocou uma reação muito forte do setor de serviços, que possui muito pouco crédito a compensar.
O projeto lei 3.887/2020 não começou sequer a ser analisado pelos deputados, pois aguarda uma definição sobre os rumos da reforma tributária. A tese que predominou até agora é que o projeto terá que ser apreciado no âmbito de uma proposta mais abrangente de reforma, que também não andou. Existem duas propostas de mudança ampla do sistema tributário brasileiro, as propostas de emenda constitucional 110/2019 e 45/2019.
A nova realidade, que os parlamentares precisam avaliar, é que os juízes estão dando ganho de causa aos contribuintes que ingressam com ações na Justiça questionando a inclusão do ICMS na base de cálculo de incidência do PIS e da Cofins, mesmo antes de uma decisão final do Supremo Tribunal. Ou seja, a demora dos ministros do Supremo em apreciar a matéria não está mais ajudando a União, pois a perda de receita com os dois produtos está se materializando sob a forma de compensação tributária.
Para agravar a situação, o Supremo está julgando o Recurso Extraordinário 592616, que questiona também a constitucionalidade da inclusão do ISS na base de cálculo do PIS e da Cofins. O ministro Celso de Melo, antes da aposentadoria, votou pela tese de que o valor correspondente ao ISS não integra a base de cálculo das contribuições do PIS e da Cofins. Depois do voto de Celso de Mello, o julgamento foi interrompido com um pedido de vistas. Mas no dia 1º de dezembro, os autos foram devolvidos para julgamento.
A perda de receita da União em decorrência das ações judiciais relacionadas com o PIS e a Cofins torna urgente a mudança na legislação desses dois tributos. Os parlamentares precisam concluir com rapidez a reforma tributária e, se não houver acordo para a aprovação de um projeto mais amplo, que substitua um grande número de impostos por um tributo sobre o valor agregado (IVA), como é a proposta das duas PECs em tramitação, pelo menos que eles enfrentem as distorções do PIS e da Cofins.
Míriam Leitão: O confuso caso da vacina particular
As empresas que não quiseram participar da compra das vacinas ficaram preocupadas com o preço. Se aceitassem seguir com a ideia, iriam inflacionar o produto, porque ele custa cinco vezes mais do que o valor pelo qual a AstraZeneca está negociando. O outro motivo do racha é que algumas companhias queriam doar integralmente. O objetivo era ajudar o SUS neste momento de crise de suprimento. E existem problemas legais.
Há outras divisões, segundo empresários. A iniciativa corre o risco de ficar governista demais, até porque o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, quer tomar a frente.
— O Skaf está totalmente alinhado com o governo, que politizou muito essa questão e nosso interesse era ajudar o Brasil — me disse um deles, falando do seu desconforto.
Ontem, depois que o plano deu sinais de fracasso, Skaf disse que as empresas só comprariam o que não fosse oferecido ao governo. O fato é que existem outros movimentos de empresários agindo de forma mais discreta e com mais interesse público neste momento de crise aguda. O objetivo é ter todos os grupos prioritários vacinados até agosto. Mas gostariam de duas coisas.
— Não queremos entrar na briga política e não queremos passar a ideia de que estamos fazendo isso para proteger apenas nossos funcionários, numa espécie de grande fura-fila. O preço complicou ainda mais porque estaríamos inflacionando a vacina e legitimando intermediários que desconhecemos. Além disso, a Europa está tendo problemas para receber essas vacinas — disse um dos executivos cuja empresa saiu do grupo.
Um empresário que participou das discussões disse que foi surpreendido ontem quando o presidente Bolsonaro, antes que houvesse concordância no setor privado sobre o que fazer, tomou partido de um dos lados, exatamente o que queria entregar ao governo apenas metade das doses compradas. Num encontro do Credit Suisse, Bolsonaro anunciou que já havia concordado com essa compra de 33 milhões de doses.
Os empresários quando decidiram se mobilizar para a compra de vacinas tinham esperança de ajudar, como têm feito desde o começo desta pandemia com as suas doações.
Uma parte da elite empresarial está convencida de que o país tem que se proteger como um todo. Outro grupo quer vacinar seus funcionários e contribuir com o governo, doando metade das doses importadas. Está errado esse segundo grupo. Não se salva uma parte da população — no caso trabalhadores do setor formal da economia — quando está havendo uma tragédia deste tamanho. A única atitude coerente seria adquirir para doar. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse em dezembro que não poderia haver “vacinação paralela” no país, mas o governo avisa que enviou carta à AstraZeneca liberando a compra. Já a farmacêutica nega estar negociando com companhias brasileiras.
Do ponto de vista legal, a compra pelas empresas é controversa. Daniel Wang, professor de Direito do Ibre/FGV e especialista em direito da saúde, diz que a vacina emergencial é regulada por uma Resolução de Diretoria Colegiada da Anvisa e que a preferência é do governo federal. Dessa forma, não haveria proibição se o governo abrisse mão da compra. Mas admite que o tema poderia ser judicializado. O epidemiologista José Cássio de Moraes, professor da faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, entende que se a vacina é aprovada apenas para uso emergencial ela tem que ser destinada ao setor público, especialmente em contexto de escassez de doses em uma pandemia. Mas diz que o principal entrave, na sua visão, não é legal, mas ético e até mesmo político.
— É um absurdo que se faça concorrência com o setor público e as empresas contribuam para aumentar o preço da vacina. Não acho que isso vá adiante, porque o laboratório poderia ser processado por outros países que financiaram as pesquisas e agora correm o risco de sofrer atraso na entrega das doses, como acontece na Europa — afirmou.
Esse capítulo do setor privado na compra de vacinas é apenas um no meio de uma grande confusão feita por Bolsonaro na gestão da trágica crise que infelicita o Brasil. O presidente da República subestimou a pandemia, sabotou os esforços pela vacina, nomeou um ministro da Saúde para lhe bater continência. O general Pazuello deve sim ter sua gestão investigada, mas o presidente é o primeiro responsável por todos os erros do governo que elevaram o número de mortes de brasileiros
Cristiano Romero: No reino das estatais
Com tantos assuntos mais prementes, é difícil entender por que as privatizações são o tema que gera as discussões mais acaloradas
Não há tema que provoque discussões mais acaloradas neste país do que o das privatizações. É difícil entender o porquê, uma vez que existem dezenas de assuntos muito mais prementes. Aliás, basta fazer esta afirmação para que o interlocutor imediatamente nos acuse de ter interesses escusos.
Seria desnecessário citar as mazelas nacionais que demandam enfrentamento urgente, uma vez que todos as conhecemos, afinal, elas integram a paisagem nacional desde sempre - entre outras, o racismo estrutural, a extrema violência decorrente dessa chaga secular, a desigualdade de renda, a discriminação contra mulheres, LGBT, indígenas, pobres, nordestinos e imigrantes de países não europeus, a concentração de renda, a baixíssima qualidade do ensino básico e fundamental prestado por escolas públicas, a apropriação do orçamento público por grupos de interesse específico e a falta de saneamento básico para a maioria da população.
Empresas estatais parecem povoar o "inconsciente coletivo" do brasileiro, tamanha é a sensibilidade da discussão sobre o status quo nessa área. No entanto, sabemos que é falsa a ideia de que a maioria dos 210 milhões de brasileiros seja favorável à manutenção do modelo estatal que começou a ser erigido na década de 1930 e atingiu o ápice na década de 1970, decaiu depois em consequência da falência do modelo estatizante evidenciada pela crise da dívida em 1982 e voltou a crescer durante os dois governos do PT (de 2003 a 2016).
Como a Ilha de Vera Cruz é repleta de contradições, Dilma Rousseff (PT), presidente mais afeita ao estatismo desde a redemocratização, privatizou os maiores aeroportos, em meio a protestos de sindicatos ligados a seu partido e à estatal Infraero. Registre-se, também, que a presidente teve coragem de levar ao Congresso e aprovar o projeto de lei que criou o Funpresp, o fundo de pensão dos funcionários públicos federais, iniciativa que, finalmente, regulamentou a reforma da Previdência aprovada em 2003, destinada a igualar as regras de aposentadoria do funcionalismo com as do INSS.
O que a reforma da Previdência tem a ver com privatização? Os dois tópicos vão na direção de desafogar o Estado brasileiro de compromissos injustificáveis como bancar a aposentadoria integral de funcionários públicos e construir e administrar coisas como aeroportos, algo que pode ser feito de maneira eficiente pelo setor privado, sob a regulação do setor público. A criação do Funpresp e a concessão de aeroportos ocorreram no primeiro mandato de Dilma (2010-2014) e isso não impediu sua reeleição.
A resistência às privatizações vem de setores das classes média e alta que pautam ou interditam o debate nacional. Curiosamente, a força do discurso contrário à desestatização aparece, inclusive, na agenda de movimentos sociais que tratam de temas prementes mencionados aqui. É como se o sucesso de itens dessa agenda, como a luta para que o Estado brasileiro torne o combate ao racismo o item número 1 de sua atuação, dependesse da manutenção da Petrobras, da Eletrobras e do Banco do Brasil como empresas estatais. Isso não faz o menor sentido. Não é com estatais que se enfrentam ignomínias como o racismo, mas, sim, com um Estado forte e implacável na defesa e na implantação dos direitos e garantias fundamentais, inscritos na Constituição de 1988 como cláusulas pétreas.
A Ilha de Vera Cruz não foi estatizante desde tempos imemoriais. Até 1930, as empresas que administravam a maioria dos serviços públicos eram privadas e de capital estrangeiro. Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, isso começou a mudar. Floresceu, então, o discurso nacionalista, embora Vargas procurasse conciliar, de forma pragmática, interesses nacionais e estrangeiros, de forma que os investimentos, principalmente em infraestrutura, fossem realizados. O nacionalismo, porém, prevaleceu.
Em 1930, segundo dados oficiais, o país tinha 17 estatais. Nas décadas de 1950 e 1960, o nacionalismo ganhou força em meio à Guerra Fria. Instigados por lideranças civis, os militares derrubaram em 1964 o presidente João Goulart e promoveram uma série de reformas econômicas de cunho liberal. Isso não alterou a marcha estatizante iniciada com a criação da Petrobras em 1954.
No fim dos anos 60, havia pouco mais de cem estatais no país. No fim da década seguinte, por causa do modelo de substituição de importações, o número subiu para 300. Em 1980, com as finanças públicas já colapsadas e inadimplente com os credores externos, a Ilha de Vera Cruz ampliou a carteira de estatais para 382.
Nos anos seguintes, diante da insustentabilidade de empresas que se tornaram cabides de emprego, instrumento de uso político em favor de poucos e fontes de corrupção, o primeiro governo civil depois de 21 anos de ditadura e, na sequência, os três primeiros presidentes eleitos começaram a vender e fechar estatais. Mas, haja contradição: na Guerra Fria, o país a que chamamos de Brasil estava alinhado aos Estados Unidos; seu regime econômico, todavia, assemelhava-se ao do bloco soviético-comunista. Isso fez com que, mesmo depois de 31 anos da derrubada do Muro de Berlim e de oficialmente nunca ter deixado de ser um país “capitalista”, este canto do planeta seja o terceiro mais estatizante (ver tabela acima). Esta coluna voltará ao tema nas próximas semanas.
Fernando Exman: Obstáculos à proposta de autonomia do BC
Agenda liberal terá novo desafio a partir de fevereiro
A agenda liberal da equipe econômica passará em fevereiro por um novo teste de estresse, para usar um termo familiar aos agentes do mercado e também ao Banco Central - interessado direto no assunto.
Tão logo seja definida a sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara dos Deputados, haverá mais clareza em relação ao futuro do projeto que dá autonomia formal ao BC. Ele é visto como prioridade pela equipe econômica e o próprio presidente Jair Bolsonaro apoiou em público a iniciativa quando seu mandato chegou ao centésimo dia. Na ocasião, inclusive, enviou seu próprio projeto à Câmara. Era um tempo em que a ala liberal do governo tinha mais prestígio.
O problema é que a proposta nunca foi popular na ala desenvolvimentista, que vem dando sinais diários de força, e ela acabará sendo debatida em meio a um cenário de possível alta de juros. Isso coloca um novo ingrediente na discussão, que corre o risco de se tornar mais passional. O ambiente já está acirrado. No Brasil de hoje, enquanto os efeitos devastadores da crise continuam presentes no dia a dia do cidadão, as forças políticas têm preferido usar até seringas e vacinas para inocular o vírus da politização e dividir a população.
Num contexto como este, ganha sempre aquele que prefere interditar o diálogo. A visita de um presidente do BC ao Palácio do Planalto em dia de reunião do Copom pode acabar gerando críticas à autoridade monetária, embora esse tipo de encontro tenha ocorrido em outras gestões da mesmíssima maneira.
A tramitação da proposta se dará ao ritmo da batuta do novo presidente da Casa, o grande responsável pela definição da pauta, mas não terá como avançar se o governo não incentivá-la com assertividade.
Antes mesmo das eleições municipais, dizia-se no Palácio do Planalto que essa deveria ser uma das prioridades da agenda legislativa na Câmara. O projeto era citado na companhia do marco regulatório da cabotagem e do programa Casa Verde e Amarela. Ambos foram aprovados pelos deputados. O projeto de autonomia do BC, no entanto, ficou de fora da pauta.
Um acordo entre a Câmara e o Senado, com apoio do governo, delegou aos senadores a missão de aprová-lo primeiro. E ela foi cumprida em novembro.
Naquele momento, uma obstrução travava os trabalhos da Câmara. A disputa pela presidência da Casa já atrapalhava a produção legislativa. Ademais, Maia defendia que havia outras questões mais urgentes a serem atacadas, como projetos relativos ao combate da pandemia e seus efeitos socioeconômicos e a reforma do sistema tributário nacional.
Justo. Mais do que compreensível. Agora, contudo, o horizonte ficou mais incerto.
Seus aliados, aliás, acreditam que foi cometido um erro tático, o qual pode acabar tirando o país do radar de investidores estrangeiros num momento de liquidez no mercado internacional.
Esta não é a única notícia negativa. O ano começou com o governo interferindo no Banco do Brasil e gerando dúvidas em relação à política de reajuste dos preços dos combustíveis conduzida pela Petrobras. Na sequência, aumentaram os questionamentos quanto ao compromisso do Executivo com o programa de privatizações defendido há mais de dois anos pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe.
A mudança do presidente da Eletrobras não traz, até este momento, boas notícias para quem pretendia ver a estatal passando para as mãos da iniciativa privada.
Em relação às privatizações, deve-se levar em conta, ainda, o atual cenário da disputa pelas mesas diretoras do Legislativo. Em recente entrevista ao Valor, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) demonstrou indisposição de abrir caminho, no curto prazo, para medidas que reduzam a presença do Estado em setores considerados estratégicos.
Na Câmara, já havia pressão para que uma eventual desestatização da Eletrobras fosse compensada com investimentos na revitalização do rio São Francisco. É preciso lembrar, neste caso, que o candidato governista, Arthur Lira (PP), é um dos representantes de Alagoas no Parlamento. Ele só não esteve em novembro numa solenidade ao lado de Bolsonaro na cidade histórica de Piranhas, uma das bases para a visitação dos imperdíveis cânions do São Francisco, por estar em isolamento e se recuperando da covid-19.
Isso sem falar da resistência de auxiliares do presidente advindos das Forças Armadas, o mesmo grupo que sempre viu com grandes ressalvas o projeto que formaliza a autonomia do BC. Eles não têm tanto poder para influenciar a tramitação da proposta no Congresso, mas possuem amplo acesso ao presidente e espaço para defender eventuais vetos. A ala desenvolvimentista agradeceria, assim como a política. Afinal, apesar de agradar ao mercado, a sanção total do projeto poderia ser usada contra Bolsonaro na campanha à reeleição. O PT já explorou o tema contra Marina Silva (Rede).
Agora, contudo, as maiores dúvidas em relação às chances de aprovação do projeto residem na própria Câmara, onde a oposição promete fazer de tudo para tentar barrá-lo.
O relator da proposta, deputado Celso Maldaner (MDB-SC), diz que já articula para que seu parecer seja colocado em pauta o mais rápido possível. Segundo descreveu, conversou com o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) sobre o assunto. Sua expectativa é que a votação ocorra de forma célere, no máximo em março, caso seu correligionário vença a eleição. “Isso tem que acontecer antes das reformas tributária e administrativa”, argumenta. “É a grande prioridade para dar segurança jurídica e estabilidade”, acrescentou o parlamentar, segundo quem o governo é a favor da proposta e o Brasil precisa acertar os passos agora para assegurar a retomada do crescimento econômico.
O relatório está pronto. A opção de Maldaner foi manter o texto aprovado no Senado, para que a proposta possa ser remetida diretamente ao Planalto em caso de aprovação. Ele diz ser secundário o risco de uma vitória de Arthur Lira acabar levando à sua substituição no posto de relator. “O importante é colocar em votação.”
Fábio Alves: Perdendo o bonde
Brasil está perdendo o bonde do crescimento acelerado da economia global
É cada vez maior o número de fundos de investimentos nacionais que está alocando uma parcela grande de suas carteiras em ativos no exterior, diante da percepção de que o Brasil está perdendo o bonde da elevada liquidez internacional, dos estímulos fiscais em países desenvolvidos e do maior otimismo com o crescimento acelerado da economia global em 2021.
Por enquanto, se esses gestores nacionais ainda não migraram em massa para posições apostando na derrocada de ativos domésticos, muitos deles reduziram significativamente a tomada de risco no Brasil, deixando de aproveitar uma possível alta da Bolsa brasileira ou valorização do câmbio. Ou seja, os ativos brasileiros estão ficando para trás e podem não aproveitar o vento a favor dos mercados globais.
Na semana passada, por exemplo, o Ibovespa caiu 2,47%, acumulando uma perda de 6,25% em apenas duas semanas. Enquanto isso, os índices das principais Bolsas americanas renovaram recordes históricos de alta no período, com o S&P 500 subindo 1,94% na semana e o Nasdaq saltando 4,19%. Já o dólar valorizou-se 3,30% na semana passada, elevando os ganhos a quase 6% em apenas 22 dias de janeiro e deixando o real brasileiro como a moeda com pior desempenho entre as emergentes.
O temor que vem se alastrando nas últimas semanas entre os gestores nacionais é o de que a retomada da economia brasileira poderá se frustrar neste ano em meio ao descontrole da pandemia do coronavírus no País, ao atraso no programa de vacinação, à maior pressão política no Congresso para a renovação do auxílio emergencial e, por tabela, à ameaça ao teto de gasto, a única âncora fiscal a sustentar a confiança dos investidores.
O consenso das estimativas aponta para um crescimento do PIB brasileiro de 3,49% neste ano, segundo a Pesquisa Focus, do Banco Central. Mas o banco BNP Paribas, por exemplo, reduziu recentemente sua projeção para o PIB de 2021 de 3,0% para 2,5%. Enquanto isso, o banco Goldman Sachs elevou sua previsão de expansão do PIB dos EUA para 6,6% neste ano. E o Barclays projeta um crescimento de 5,7% da economia mundial.
“Estamos mais reticentes com os ativos brasileiros por achar que a relação risco retorno está pior do que a dos ativos lá fora, pois ainda que vejamos, por exemplo, maior potencial de alta na Bolsa brasileira do que as de países desenvolvidos, o risco aqui é de piora enquanto lá fora esse risco é menor”, diz Fabiano Godoi, sócio fundador e diretor de investimentos da Kairós Capital, fundo que passou a aplicar em ativos no exterior nada menos do que 95% dos R$ 520 milhões sob gestão.
Para ele, a ameaça iminente é de uma crise fiscal. “Nas últimas semanas, tudo o que a gente escuta dos políticos, seja no Executivo, seja no Congresso, é que é preciso voltar com o auxílio emergencial, o que indica uma direção de piora fiscal”, diz.
No curtíssimo prazo, o foco dos investidores estará na aprovação do Orçamento de 2021. Se o Congresso aprovar um Orçamento que respeite o teto de gastos, sem incluir jeitinhos para gastos extras fora do teto, a sinalização será positiva para o mercado de que o País não caminha para um precipício fiscal.
Mas a eleição para a presidência da Câmara e do Senado, no dia 1 de fevereiro, vem turvando essa perspectiva, uma vez que os principais candidatos para o comando das duas Casas vêm fazendo declarações em apoio à prorrogação do auxílio emergencial.
“Independentemente do mérito, fazer mais gastos fiscais sem ter aprovado reformas como a PEC Emergencial ou a administrativa é um risco muito importante no médio prazo e o que está causando essa divergência entre o desempenho dos ativos brasileiros e de outros países”, diz Godoi. Ele espera que o Orçamento de 2021 possa ser aprovado até o fim de março, mas que apenas a PEC Emergencial, entre as reformas que têm impacto fiscal imediato, possa sair até o fim do ano.
“Não quero estar vendido em Brasil, pois os preços dos ativos domésticos estão convidativos – o real é uma das moedas mais baratas do mundo –, mas só não quero estar em Brasil neste momento, pois o equilíbrio é instável: ou o mercado vai melhorar muito ou a piora será rápida”, afirma Godoi.
Alon Feuerwerker: Gastar e cortar
O fim do auxílio emergencial pago ao longo de 2020 por causa da pandemia é talvez a ameaça mais imediata à recuperação econômica ensaiada no final do ano passado. E a reinstalação de um auxílio emergencial com cara de permanente será sinal claro de fraqueza política do governo.
Daí que o ministro da Economia tenha aparecido hoje ao lado do presidente da República para defender que, se pensam em novas despesas, deem um jeito de cortar das já existentes (leia). E o presidente aproveitou para dizer que as reformas liberais vão andar, inclusive as privatizações.
Na luta de vida ou morte em torno do comando da Câmara dos Deputados, ninguém quer perder o apoio empresarial. Depois de definida essa refrega, o Congresso se verá às voltas com outro tipo de pressão, a popular. Se a economia sofrer nesta largada de 2021, essa pressão vai subir muito.
A economia depende de imunizar a população, já havia lembrado o ministro da Economia (leia). Se é assim, melhor ter cautela. Vamos esperar para ver que bicho dá na Câmara e como vai andar a vacinação. E mesmo se tudo der certo para o governo nas duas frentes ainda será um processo de, no mínimo, meses.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação