Paulo Fábio Dantas Neto

Paulo Fábio Dantas Neto: O PSDB e o centro – Entre a grande e a pequena política

Comentei, na semana passada, duas visões pessimistas de formadores de opinião não alinhados aos campos pré-eleitorais representados, hoje, pelo presidente Bolsonaro e pelo ex-presidente Lula.  De um lado, políticos e analistas próximos ao que se pode chamar de centro liberal-democrático e à centro-esquerda acham inevitável recorrer ao segundo para evitar a reeleição do primeiro. Supõem, inclusive, que esse será também o caminho da parte do chamado “centrão” menos aquinhoada pela distribuição de recursos políticos coordenada pelo deputado Artur Lira. No limite, poderia ser o caminho do próprio Lira, caso a imagem do presidente encaminhe-se mesmo ao derretimento eleitoral. De outro lado, raros políticos e diversos analistas situados à esquerda do PT acham também inevitável a polarização eleitoral entre extrema-direita e esquerda convencional e admitem apoio crítico a essa última. Mas negam às eleições um papel decisivo no enfrentamento da extrema-direita, que deve ser visto como luta continuada a ser travada num terreno bem além da política institucional. Essa última visão é mais ideológica do que propriamente política e dela não tratarei hoje. Mas da primeira, sim. Partirei da percepção mencionada acima, passarei, em seguida, a uma mirada no campo político da centro-direita (onde estão governistas, independentes e oposicionistas), para concluir a análise com foco no PSDB.

No modo de ver as coisas dos que se querem realistas quando, no centro democrático e na centro-esquerda, aceitam como definitiva a bipolarização hoje fotografada por pesquisas, subjaz certa preocupação em não se atrasar para o embarque no navio lulista, apresentado como uma espécie de arca de Noé. Afinal, a eleição presidencial não é solteira e estão em jogo mandatos de governador e senador, o que recomenda atenção imediata à formação de coalizões nos estados. Além disso, o espectro de gente do centrão costeando o alambrado da arca também recomenda agilidade aos candidatos a deputado ainda não alinhados. Porém, noves fora essa compreensível ansiedade pragmática, se bem analisados os argumentos públicos usados nesse campo, fica curioso ver admitir-se que Bolsonaro pode derreter e, ao mesmo tempo, justificar-se o apoio antecipado a Lula como se fosse um imperativo democrático pois, sem ele no segundo turno, a reeleição seria praticamente certa. Vejo motivos para avaliar como imprudente o pragmatismo implícito nessa confusa conduta proativa.

Antecipei, na coluna passada (A política entre universos paralelos”, de 08.05), que “na mão oposta à das previsões fatalistas, penso estar se configurando, no universo da política sistêmica, uma aceleração de movimentos de convergência para oferecer, às forças que se despregam, ou podem se despregar, do combo bolsonarista, uma alternativa eleitoral que não as afaste do eleitorado afim ao seu posicionamento político”. Chamei esse campo de liberal, ou centro-direita. Agora tentarei ser mais explícito.

Na adjetivação ideológica que usei se inclui o antipetismo. Fora dessa adjetivação (mas próximo a ela, especialmente na pauta econômica) vinha estando um conservadorismo social básico que convive de forma tensa com uma visão liberal dos costumes e das relações sociais. Esses movimentos convergentes têm conexões empresariais economicamente relevantes, mas também uma crescente aceitação numa classe média e de trabalhadores mais jovens do setor privado menos tradicional. Seu peso eleitoral tem se mostrado grande, desde 2014, em eleições nacionais, estaduais e municipais.

Forçando um pouco a mão, diria que esse campo tende a uma polarização de novo tipo com a percepção da esquerda mais enraizada no eleitorado, que é a do PT, a qual, graças a Lula, não deverá perder a sua posição hegemônica até 2022. Por contraste, no campo oposto à esquerda, do qual estou falando, não há predomínio partidário claro, mas nota-se, há mais de uma década, movimentos de capacitação do DEM para ocupar esse lugar. A escassa maturidade do processo não permite afirmar que 2022 será o do salto a esse patamar. Mas não deve passar despercebido que o DEM dispõe, para uma eventual composição na eleição presidencial, de quadros para o caso de uma articulação que se dirija ao centro, tangenciando mesmo a centro-esquerda, ou para uma solução dissidente do esquema governista, que eventualmente possa herdar boa parte do espólio bolsonarista, em caso de derretimento da popularidade do chefe

Independentemente das suas preferências políticas, quem se preocupa com a saúde da democracia será levado a saudar o surgimento de uma opção de centro-direita capaz de deslocar Bolsonaro da posição de polo. Isso, inclusive, induziria Lula a disputar o centro também pela via do discurso político, em vez de apenas semear cunhas nos bastidores enquanto fala como salvador da pátria e propagandeia seu paraíso passado. A busca, por atores da centro-direita, de uma opção não governista alternativa à de Lula fará bem ao país, ganhem ou percam a eleição para ele. O PSD de Kassab – autêntico ator de pequena política – tanto pode ficar nela e cumprir o papel de dissidente do centrão embarcado na arca de Noé, quanto o de aliado do DEM na busca dessa opção de centro-direita, que, sem deixar de ser filha da pequena política, poderá ir além e apontar uma saída que considere seu umbigo, mas não se resuma a ele. Como a política não é a seara do mero desejo, é bom ponderar que, enquanto a fortuna eleitoral de Bolsonaro não se definir, possibilidades de uma articulação como essa dar certo não ficarão explícitas.

A conservação ou o desgaste do capital eleitoral do presidente é, assim, a variável central a determinar maior ou menor largueza do horizonte do chamado centro. É óbvio que se essa variável decisiva se comportar na direção da reanimação de Bolsonaro (em linha com a agitação crescente no seu universo político paralelo dos comícios, lives, marchas, inaugurações e provocações) a resultante é a confirmação das versões fatalistas que apontam para a polarização entre ele e Lula. Mas em caso da variável tomar a direção oposta, indo do atual desgaste à erosão e dela à evaporação eleitoral do mito, cabe uma reflexão sobre o timing. Quanto mais cedo um desgaste irreversível se der, mais os agentes políticos próximos ao palácio (como o PSD e outras áreas do centrão) e um partido independente, como o DEM, tendem a ser o centro de gravidade de uma opção competitiva que procure se apresentar como centrista, assim como fará Lula na centro-esquerda. Quanto mais o desgaste de Bolsonaro for incremental – como tem sido – mais espaço haverá para uma solução política mais ampla, que aponte a uma candidatura de fato centrista e frentista, com um candidato de perfil liberal democrático e um programa de viés social-democrático. Nessa hipótese, a possível repercussão sobre o script de Lula seria a de levá-lo a prestar mais atenção na sua retaguarda à esquerda, que poderá ser fustigada por um candidato de centro menos marcado com o carimbo “eles”, tão ao gosto do petismo para ter conforto. Nesse enquadramento analítico pode-se discutir agora o possível papel do PSDB, partido de larga história e presente estreito.

Faz tempo – a rigor desde que Fernando Henrique Cardoso deixou o governo e o PT o ocupou e lá se vão quase vinte anos – que o PSDB se desloca cada vez mais ao campo liberal em economia e ao da centro-direita em política. Isso em termos práticos, não programáticos. Desse modo, não é estranho que não disponha, nesse momento, de um nome com perfil sequer aproximado ao da origem do partido. O nome que de fato está à sua disposição tem perfil diverso.

A desconfortável performance do governador João Dória, em pesquisas dentro do seu estado, parece estar levando a que desista de vez da reeleição e a apostar numa fuga para a frente. No seu estilo fortemente obstinado e autocentrado de fazer política, desafia a má vontade do partido e segue buscando a indicação para a candidatura presidencial, como quem trabalha com a linha do menor desgaste para a sua imagem. Essa conduta é possível não só pela obstinação, ou pelo fato de dispor de recursos de persuasão e pressão inerentes a quem governa São Paulo. Resulta também do cada vez mais claro fato de que não há no partido nome para concorrer com o seu. Sem discutir aqui méritos pessoais do governador Eduardo Leite ou do senador Tasso Jereissati, uma observação realista da cena não pode desconsiderar que são políticos com mandatos a renovar em 2022. Desistir de uma reeleição provável em seus estados para embarcar numa empreitada presidencial é uma decisão incomum no mundo real da política, a menos que haja largo conforto nas previsões de chances de vitória, o que não é bem o caso.

Nessas condições não se pode ver como animadora, para o PSDB, a perspectiva das prévias marcadas para outubro. Caso ocorram mesmo, dificilmente cumprirão o papel de derrotar João Dória. A opção, para evitar o nome do governador – objetivo que une em coalizão de veto praticamente todas as lideranças históricas do partido (por menos próximas e apaziguadas que estejam elas entre si) -, só pode ser a de propor uma política nacional de alianças diferente da que tem seguido desde quando foi, em 2002, deslocado para a oposição. Em resumo, não ter candidato e tornar-se centro fiador de uma frente. Para construir uma canoa dessa é preciso paus de boa cepa que têm sido queimados nas fumaças que emanam do ninho tucano. De há muito tem-se a impressão incômoda de que ali o ex-presidente Fernando Henrique prega no deserto. Mas os fragmentos históricos ainda podem influir, se vencerem as idiossincrasias que os dispersam e prodigamente dilapidam o capital político da legenda. Ao menos eleitoralmente, esse capital continua relevante, como ficou claro nas eleições municipais de 2020. O que tem faltado é liderança de grande política, capaz de sintonizar os interesses do partido com os do país.

Nas três eleições presidenciais seguintes à derrota de 2002 (em 2006, 2010 e 2014) o PSDB foi o polo que reuniu, em segundos turnos, as oposições ao PT. Em 2018 não foi capaz de trocar os pneus em plena viagem. Desertou do papel político que assumira como núcleo articulador do impeachment de Dilma Rousseff. Em vez de se apresentar ao eleitorado como principal força política responsável pelo governo de transição, procurou desvincular sua imagem daquele governo, tática malsucedida diante da óbvia e gritante coincidência entre as suas pautas e as daquele. O drible de corpo cobrou seu preço nas urnas, não obstante a dignidade do seu candidato. As três derrotas acumuladas, a saída do PT do governo e a intensa pressão da lava jato sobre o conjunto da política “tradicional”, fazendo emergir o bolsonarismo, somaram-se a essa miopia política para levar à perda da antiga condição de polo. O PSDB dilui-se, hoje, numa nuvem mais ou menos invertebrada que tenta se identificar como centro. De incontestada segunda via tornou-se uma entre as incertas opções de uma terceira.

Lucidez e alguma humildade não fariam mal e ajudariam aquele partido a ler corretamente a situação. Relativos êxitos em eleições municipais não fabricam candidaturas presidenciais competitivas. O palanque aí é plebiscitário e impõe requisitos de carisma ausentes hoje no plantel tucano. Mas olhando ao redor é possível achar um parceiro que possua um quadro que os atenda. Aqui não cabe fulanizar a análise, que não pode querer ensinar pai nosso a vigário. O ponto que trago tem a ver com virtudes do PSDB, não com suas fragilidades. É inegável que, além de quadros políticos estaduais e municipais, o partido ainda se conserva como referência nacional importante do eleitorado do centro democrático também pelo fato de ter, no seu entorno, gente capaz de formular ideias compatíveis com a qualidade da democracia política, mas também com o momento mundial de ênfase em redirecionamento de matrizes e objetivos econômicos e de reestruturação dos estados nacionais para mobilizar investimento robusto em políticas sociais. A sintonia do ideário formal do partido com essas exigências mundiais gritantemente inadiáveis para superar a crise nacional ficam evidentes na leitura do documento “Brasil pós-pandemia: uma proposta de reconstrução do futuro”, disponível no site do Instituto Teotônio Vilela.

Antes que apressados protestem, digo que não estou cogitando que um partido político qualquer possa se contentar com um papel formulador próprio de centros de debate intelectual. Trata-se é de encontrar vocalizadores politicamente viáveis para fazer suas melhores ideias influírem sobre decisões do eleitorado e de governo. E o modo prático de sintonizar um partido que disponha dessa possibilidade com as demandas da sociedade e do eleitorado é apostar numa política de alianças compatível com o fato de que valores da primeira e necessidades do segundo convergem, no momento, para um ideário social democrático que dorme nas prateleiras internas do partido. Tirá-las dali para que trafeguem na política (na grande e na pequena) só pode ser obra de grande política, capaz de ler que o eleitorado destinatário tem votado de modo relevante na centro-direita.

O que será mais realista? Inventar um quadro que pretenda reverter essa tendencia do eleitorado ou oferecer à centro-direita o programa social-democrático de que ela necessita, nessa conjuntura social e sanitária crítica, para sustentar sua sintonia embaixo? Sem esforço, os leitores entenderão que me refiro a uma virtual repactuação entre PSDB e DEM, com provável capacidade de atrair também o MDB, dissuadindo-o de um vôo solo. Ao contrário de 1993/94, o contexto 2021/22 pede orientação social do Estado, em vez de liberalismo econômico. Ao contrário do eleitorado de 1994, o viés da atitude do eleitor é a centro-direita, em vez de centro-esquerda. No tempo em que uma frente da centro-direita à centro-esquerda fez FHC presidente, o PFL forneceu o programa econômico e o PSDB entrou com o quadro político capaz de realizá-lo nas circunstâncias daquele momento. Quem duvidar disso leia o projeto detalhado que o partido antecessor do DEM preparou para a abortada revisão constitucional de 1993 e confira com o que o governo FHC aprovou no Congresso, ou adotou no Executivo, nos anos subsequentes. A conclusão inescapável será a de que ideias podem, sim, conversar com a política prática. Aquele arranjo vitorioso esteve longe de ser mera obra de pequena política.

Os dados do mundo real estão a sugerir aos atores de centro e de centro-direita a inversão dos termos de 1994 para produzir concertação análoga. Nenhum partido pode elaborar com mais agilidade e profundidade que o PSDB um programa em sintonia fina com um olhar “baideniano” sobre o Brasil e o mundo. Com amplitude capaz de agregar segmentos da centro-esquerda e lhes garantir lugar numa composição política para a chapa presidencial e/ou para as soluções estaduais. Por outro lado, nenhum partido está, objetivamente, mais bem postado que o DEM, no espectro político-eleitoral, para sediar a face externa dessa possível agregação, porque é aquele que pode, com a sua posição, tirar o continuísmo de tempo, ou seja, do segundo turno nessa eleição. Eventos na contramão da agregação – como a recente captura do vice-governador de São Paulo pela tática pré-eleitoral do governador – podem ocorrer a todo momento e precisarão ser enquadrados, digo melhor, neutralizados, em sua miudeza, por uma perspectiva estratégica. Seria muito bom para o Brasil. Já se será o melhor possível para o Brasil é assunto para os eleitores decidirem em 2022. Afinal, a esquerda também estará no jogo, com força, legitimidade e, espera-se, com proposições críveis e perspectiva estratégica.

Para concluir não custa relembrar a variável decisiva, que é a popularidade de Bolsonaro. Cooperar para derretê-la é questão de sobrevivência comum, nacional e social. Mas a escolha do método é questão em aberto. Quem quiser que se forme, como alternativa a ele e à esquerda, uma aliança mais conservadora, deve se apressar para tirá-lo do caminho logo e capturar dissidentes. Quem, dentro do espectro do chamado centro democrático, quiser apostar em solução mais ampla, capaz de sensibilizar também um eleitorado de centro-esquerda, precisará reunir grande e pequena política em vez de priorizar um tiro ao alvo imediato e cego contra o capitão. Precisará mais de uma ambiciosa paciência do que de espetáculos arrojados e projetos de heróis. Concertação demora, mas sua obra dura.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte:

Democracia Política e novo Reformismo


Paulo Fábio Dantas Neto: A política entre universos paralelos

Esta coluna é dedicada aos brasileiros assassinados na favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro, na última quinta-feira, dia 6. Seus CPFs, ou suas “folhas corridas”, não são condições prévias para que se defenda seu direito à vida. No Brasil, nem a Justiça pode decretar pena de morte. Menos ainda uma operação policial, embora essa prática nefasta seja banal no mundo que existe fora da lei. Mundos paralelos, os dos justiceiros e o da lei, não se pode ignorar nem um nem outro, o primeiro, porque precisa ser identificado, para que possa virar passado, o segundo, porque precisa ser valorizado, como a única possibilidade de um futuro mais civilizado para o nosso país.

Voltando a Jacarezinho, se parte, ou mesmo a maioria das vítimas, cometera algum crime antes, essa mesma palavra é que exprime o que a polícia civil do Rio cometeu. Execução e massacre são crimes, em qualquer hipótese. E o são mais ainda no contexto de uma operação subversiva, como foi aquela, feita em flagrante desobediência a uma proibição do STF. O tom desafiador da operação, salientado por uma entrevista coletiva insolente de um delegado, é fato singular. Como tal precisa ser encarado, não como se fosse apenas “mais do mesmo”, parte da violência corriqueira de prepostos do Estado que, em nome do combate a criminosos, promovem terror contra cidadãos indefesos. Não é corriqueiro um funcionário público policial usar posição de comando numa operação letal para desafiar dessa forma um poder da República. Muito grave, tanto o que ele disse, como a situação que permitiu que dissesse.

É inaceitável, do ponto de vista social, que quem, diariamente, em ônibus ou em trens de metrôs, se expõe à pandemia para ganhar a vida corra o risco de perdê-la por comportamento miliciano de uma corporação de Estado que tem como missão garantir o oposto. E inaceitável, também, do ponto de vista institucional, que o desafio verbalizado por esse delegado passe batido. Se instâncias administrativas da cúpula da segurança o acobertam, cabe ao ministério público e à sociedade civil provocar instâncias judiciárias e, a essas, agir com presteza, de modo especial o STF que, a rigor, tendo sido flagrantemente desafiado, nem precisa ser mais provocado.  Precisa ser apoiado, sem ressalvas, no seu esperado agir.

Inaceitável, por fim, do ponto de vista político, que autoridades eleitas não tomem providências que enquadrem as cúpulas policiais na linha da segurança pública, para que a população não se veja abandonada. E que, ao contrário, o governador do estado onde ocorreu o massacre adote, como adotou, o discurso policial, sendo nisso abertamente avalizado pelo vice-presidente da República. Aliás, o abandono, pelo General Mourão, ao falar dessa ação policial, da pele de cordeiro e das meias palavras que costuma usar sobre todos os demais assuntos, é politicamente pedagógico. Mostra o quão ilusório é o impeachment como solução estabilizadora, nas circunstâncias dramáticas do Brasil atual.

Fecho parênteses para retomar o fio do argumento sobre o modo com que a política lidou, até aqui, com esse fato indicador – ao modesto ver deste colunista – de uma escalada subversiva gradual e não de um mero episódio isolado, muito menos de um “equívoco” da inteligência policial. Além da omissão, ou responsabilidade ativa, do governador, na operação policial subversiva, registra-se também posições pusilânimes, como a do prefeito da capital do Rio, tentando se colocar num ponto equidistante entre a ação de supostos “malucos” e um também suposto (pelo delegado insolente) “liberou geral” do STF. Preocupa também o silêncio ruidoso de importantes políticos fluminenses a ponto de o deputado Marcelo Freixo despontar, mais uma vez, para quem não usa lupa minuciosa, como honrosa exceção.

Universos paralelos: uma leitura política de Jacarezinho, para além do Rio

Todos os aspectos que abordei até aqui contribuem para qualificar como política a violência inaudita da operação policial que banhou Jacarezinho de sangue. Mais relevante que todos eles, é, no entanto, aquele fator que leva o fio do argumento a transcender a dramática situação do Rio de Janeiro e se concentrar num perigoso paralelismo que ameaça acometer a política brasileira. A coalizão de forças reacionárias que chegou ao governo com Bolsonaro perde amplitude e força na política institucional enquanto o presidente se ampara nas suas facções mais extremadas para deslocar às ruas o confronto que provocou (e perde) no âmbito do sistema político e no seu relacionamento com o Judiciário. Fracasso cumulativo, que não cessa de provocar fissuras no arranjo político-miliciano, bem como em suas conexões com o mundo da economia e com interesses de grupos sociais abençoadores da coalizão. É dos efeitos desse evidente fracasso que ele tenta, obstinadamente, blindar – até aqui com sucesso – a sua popularidade. Para segurar esses dedos, abandona, um a um, os anéis do governo e aposta no quanto pior, melhor. Incapaz de vencer na política, quer vencer a política insuflando o povo contra ela. Dispensa mediações, cria uma arena paralela e direta de operação política e a elege como seu universo.

É a partir desse universo que Bolsonaro tenta desviar a pauta nacional ou, não podendo fazer isso, deslegitimar, perante o eleitorado, as instituições políticas e judiciais (no limite as próprias eleições), os partidos e a sociedade civil que, gradativamente, se articulam para lhe impor uma pauta indigesta, qual seja a da responsabilização de seu não-governo pela crise e a de governar o país para tirá-lo dela. A crise que, há um ano, era adivinhada por ele como temida adversária, a ponto de lhe incutir paranoia, hoje é realidade que precisa se converter em caos para que o presidente sobreviva politicamente.

São dois universos paralelos. Num, a política democrática avança, escancara a natureza do retrocesso político, administrativo, cultural e moral em que o país mergulhou. Exorciza perigos, isola o extremismo, produz alguma política pública para situações emergenciais, busca saídas e fabrica alternativas, inclusive eleitorais, colocando obstáculos a que a aventura bolsonarista se renove pelas urnas. Noutro universo, a estratégia desestabilizadora do presidente volta a se radicalizar, em comícios e em suas lives. Repõe ameaças ao STF, aos governadores, às eleições; menciona, possessivamente, as três armas como cúmplices de suas ambições autocráticas e faz novas sabotagens à vacinação. A sensação de perigo retorna porque a desenvoltura do ator sugere que as amarras institucionais que aqui e ali bloqueiam seu ímpeto destrutivo estão mais frouxas do que há semanas atrás.

Tanto quanto os da polícia legal e da polícia fora da lei, esses dois universos políticos são reais. A crise sanitária, social e econômica é o pano de fundo que sustenta esse paralelismo. Nenhuma avaliação ponderada considerará inexorável o derretimento político do presidente hostil, nem superestimará sua capacidade de revogar aquele universo político que visivelmente acumula forças para derrotá-lo. Da mesma forma que não se pode – confiando no que vem ocorrendo no universo da política sistêmica – considerar seu universo paralelo como delírio e deixá-lo solto como se fosse cachorro quase morto que sangrará até a eleição, pelas garras duvidosas da CPI, também não se pode ir atrás do canto de sereia de sua estratégia, cedendo ao combate aberto nas ruas, como opção ao institucional, no qual ele patina.

Sinalizações subversivas do universo bolsonarista

De fato, não é puro delírio, nem se explica como desespero, o que Bolsonaro tem dito nas lives e em palanques armados país afora. Em primeiro lugar, o discurso não apenas tem repetido os mantras de sempre, mas os tem requalificado também, com boas doses de racionalidade. O discurso do comício de Rondônia, especialmente, mostra uma inflexão importante. Ali não estava mais o autocrata vítima de uma conspiração do sistema e limitado, por uma Constituição hostil à sua vontade, no cumprimento de promessas que fez ao seu povo. Agora ele não se limita a reclamar e a ameaçar reagir contra o Judiciário que estaria lhe empurrando a Carta pela goela. Declara-se agora dono efetivo da prerrogativa – que, no universo republicano, é conferida ao STF – de defensor e intérprete positivo da Carta, plenipotenciário senhor do destino do isolamento social, das prerrogativas de cada instituição e do próprio processo eleitoral, aí querendo ocupar também o lugar do TSE. Em segundo lugar, tem dado passos concretos para obter, dos indivíduos despoticamente livres do “seu povo”, o “eu autorizo” para implementar sua pauta. Não é sensato ignorar que levou muita gente à rua no domingo passado, além de estar armando milícias. Quem deu atenção ao clima do discurso da deputada Carla Zambelli, naquele insólito primeiro de maio, não viu desespero, mas celebração confiante de uma aparente decisão bolsonarista de avançar e tomar posse da Constituição como se fosse coisa sua. Como no dizer do professor Miguel Pereira, “não se trata mais de destruí-la, mas sim de preenchê-la com novo conteúdo, mantendo a forma”.

É na moldura desse universo político paralelo, que busca antagonizar o das instituições do Estado e movimentos da sociedade civil, que Jacarezinho adquire conteúdo político e dimensão nacional. A provocação policial ao STF, presente na acintosa coletiva após a chacina, consiste em insinuar que todos os gênios sairão das garrafas, inclusive algum que possa dirigir ao seu alvo o jipe do zero três.  Assinalando essa relação, não me vem à mente a ideia de que corramos, nessa conjuntura complicada, risco de golpe, ditadura ou algo assim.  Vontade não falta ao presidente paralelo, o que lhe falta é como fazer da bravata realidade. Mas sua aposta perene em que anomia fabrique caos social não pode sair do radar democrático.  A expansão da energia destrutiva pode abrir caminho a um imponderável e não são poucas as analogias que se lê com o que se tornaram Colômbia e México a partir de conjunturas críticas. E uma vez admitida a possibilidade de incremento da violência política, daqui a 2022, é forçoso não afastar, no rastro da fala de Mourão, uma “solução” que iniba e mutile a democracia de modo mais sério.

O universo paralelo que Bolsonaro agita contra o “sistema” assusta, impacienta e/ou planta ceticismo em muitas consciências “centristas”, ou de centro-esquerda, que não se identificam com o PT. Exigir uma Justiça ainda mais ativa, ao mesmo tempo contra Bolsonaro e contra as “incoerências” e o “toma lá, dá cá” dos políticos é aí uma pregação frequente que, por vezes, adquire um tom apostolar e desatento à imprescindibilidade democrática do mundo real da política. Por outro lado, a mesma agitação bolsonarista apressa certo pensamento assumidamente voluntarista, situado “à esquerda” da oposição de esquerda, a deduzir daí a ineficácia da Justiça e a complacência do sistema político, denunciando a inadequação de nossas instituições republicanas e liberal-democráticas para a necessária defesa contra o perigo. Enfrentar o fascismo com “luta popular” nas ruas e superar os “limites” do universalismo da democracia representativa são duas diferentes facetas de uma mesma ideia iliberal de fundação de uma república para os “de baixo”, através de uma democracia com maior “intensidade”.

Duas conclusões fatalistas resultam dessas variadas percepções que tendem a construir seus próprios universos paralelos. Elas não são eleitoralmente significativas, mas têm influência cultural e intelectual inibidora de convergências democráticas na política institucional. As de “centro radicalizado” percebem a polarização entre Bolsonaro e Lula como inevitável, tendendo a antecipar um alinhamento por gravidade, para evitar o pior. As da “esquerda crítica” são céticas, quase distópicas, face a qualquer política de frente. Apelam a um discurso de oposição com teor antissistêmico simetricamente oposto ao do bolsonarismo, no qual eleição é instrumento de arregimentação ideológica e não de solução política.

Sinalizações democráticas do universo da política e da sociedade civil

O argumento final aqui – reiterando um ponto que marca esta coluna desde a sua inauguração – vai na direção oposta, de salientar a realidade e vitalidade simultâneas do universo da “política dos políticos” e da rede de movimentos e outras organizações da sociedade civil. Quando nesse universo predominam consensos amplos ou conflitos civilizados, a qualidade da democracia e das relações sociais tende a melhorar, dando-se o oposto quando esse universo trava por polarizações extremas e, por isso, estéreis. A observação continuada do processo político no interior desse universo revela um processo lento, marcado por avanços e recuos, mas ainda assim contínuo, na direção da passagem de uma situação de polarização disfuncional (entre 2013 e 2018) para uma de agregações parciais, transição benigna ligada à  experiência traumática de defrontamento comum com o pathos destrutivo do bolsonarismo, variável em grau de intensidade, mas compartilhada com todas as instituições e todos os atores (mesmo aqueles que a ele se aliaram), desse universo sistêmico animado pela representação política.

No interior desse universo duas agregações estão em marcha, conforme comentei, nesta mesma coluna, três sábados atrás (“Pautas das oposições”, em 17.04.21). Uma delas em torno do nome do ex-presidente Lula, outra, ainda sem nome, por tentativas de aproximação de partidos e personalidades que, no ponto de partida, situam-se entre os campos de atração de Lula e de Bolsonaro. Coloco aqui uma objeção a análises que se suponham cientes, ou videntes, quanto aos respectivos pontos de chegada desses dois subcampos. São ainda ignorados, tanto os limites de agregação de cada um, quanto as entonações políticas que assumirão, por conta dessas mesmas agregações e de tendências que serão, a seu tempo, detectáveis no eleitorado (e que reverberam também a partir do que se dê no universo paralelo, assim como podem afetá-lo). As projeções possíveis de cenários precisam ser recebidas com a imprescindível cautela de quem está ciente do material perecível de que se compõem. Isso inclui as que farei, no próximo sábado, sobre o campo de agregação alternativo ao de Lula, já que a esse último dediquei outra recente coluna (“Lula não é para amadores”, em 24.04.21). Antecipo que, na mão oposta à de previsões fatalistas, vejo se dar, no universo da política sistêmica, uma aceleração de movimentos de convergência para oferecer, às forças que se despregam, ou podem se despregar, do combo bolsonarista, uma alternativa eleitoral que não as afaste do eleitorado afim ao seu posicionamento político, o qual, na falta de termo mais preciso, chamarei, por ora, de liberal, ou de centro-direita.

A possibilidade dessa lógica de agregação do campo democrático afetar e desconstruir o universo paralelo que Bolsonaro construiu para movimentar suas hostes não depende de uma convocação afoita de uma militância oposta para guerrear com ele e suas falanges nas ruas infestadas de coronavírus. Dependem mais da capacidade e do compromisso da política das instituições e partidos, em especial de governadores e prefeitos, tomar a si a responsabilidade por milhares de jacarezinhos que têm seus gritos abafados pelo terror das milícias do Rio e de suas congêneres espalhadas pelo Brasil. Essa empreitada não terá nada de passeio. Embora não se saiba ao certo (ao menos em público) até que ponto essa reprodução de células malignas já avançou sobre a área de segurança pública da União e dos Estados, é certo que não se pode mais adiar um freio de arrumação “nisso aí”, seguido de um programa de reconstrução institucional e de regeneração moral que sinalize aos cidadãos que eles não estão sós.

O desafio de fazer isso contando com o boicote e a sabotagem do governo federal e com a violência retaliativa que emergirá dos porões com a complacência, estímulo e apoio de representantes organizados em bancada no interior das instituições legislativas propicia compreensíveis raciocínios céticos. Mas não há outra atitude a cobrar da representação política, ainda que ao custo de conflitos que compliquem os movimentos de agregação acima mencionados. Além de cerrar fileiras em apoio ao STF, ela precisa assumir, como sua missão, fazer da sorte dos jacarezinhos uma causa nacional. Assim como os poderes da República buscam, com a luta pela vacina, fazer, apesar do presidente, os brasileiros todos virarem jacarés, é preciso buscar que os jacarés defendam os direitos violados dos jacarezinhos. Essa é uma construção cultural inadiável e de importância política decisiva, a ser feita no campo específico do Estado e no campo aberto da sociedade civil. Sem querer calar céticos e ouvindo as notícias verazes que trarão, dirijo-lhes o argumento final. Além desse dever de dirigentes do Estado não ser um passeio, ele nada terá de altruísmo. Deter a escalada de terror miliciano é condição para haver, em 2022, eleições capazes de lhes conferir mandatos. Nessa medida é um desafio que fala também ao seu interesse vital.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte:

Democracia Política e novo Reformismo

https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/05/paulo-fabio-dantas-neto-politica-entre.html


Paulo Fábio Dantas Neto: Ciência e política, cem anos depois de Weber

O tema de hoje pode não interessar a muita gente. É provável que pessoas desistam de ler ou ouvir quando virem o “arriar das malas”. Além disso, eu já tratei dele aqui, de um outro modo, há dois meses, na coluna intitulada “Ciência e política, amantes do possível”. Desejava, então, enfatizar a inclinação prudencial ao realismo, comum às duas profissões. Hoje quero tratar é de possibilidades contemporâneas de cooperação entre as duas. Sei que é coisa árida. Desculpem, mas o Bahia perdeu um jogo importante. Hoje, qualquer tema, aos meus cuidados, ficaria árido.

Há pouco mais de um século, o intelectual alemão Max Weber proferiu duas conferências – “A ciência como vocação” (1917) e “A política como vocação” (1919), ensaios escritos separadamente, que, tomados em conjunto, sugeriram, a estudiosos das ciências sociais e das humanidades, um ponto nobre de reflexão. Embora enfrentado por Weber sob impacto dos desafios concretos da Europa daquela época, o tema dos vínculos entre ciência e política transcendeu aquele contexto. Nunca deixou de se destacar entre temas clássicos que conservam crucial atualidade, tanto para iniciados naqueles campos de estudos acadêmicos, como para governantes e cidadãos de todo o mundo. No contexto de uma pandemia, que põe todo o mundo entre parênteses, ele se renova e adquire uma relevância desconcertante.

Tudo bem, o par ciência/política é atual e relevante como tema. Mas qual o sentido de revisitar, especificamente, aquela memorável reflexão de Weber? O mundo não terá mudado bastante – e com ele as ciências e políticas plurais que nele se pratica – de modo tal que o ponto de Weber hoje pertence mais à história das ideias, deixando de ser relevante para a política em ato? Enfim, qualquer comentário sobre aquelas conferências pode parecer uma visita à História e à Filosofia Política talvez um pouco diletante para quem faz um esforço para compreender e opinar sobre a política de hoje e suas conexões atuais com a ciência.

Mantenho, intuitivamente, a crença na potência e atualidade da luz imanente às duas reflexões de Weber. Através delas pode-se ver ciência e política como campos distintos, mas não opostos, porque suas distinções não impedem – e sim sugerem – convergência e conciliação entre elas. Embora em alguns lugares, como em nosso país, uma política insana use um senso comum desesperado e infeliz para tentar desafiar o óbvio, a complementaridade e interdependência forte entre ciência e política hoje reforçam e conectam o ponto de Weber ao mundo real.

Como comentei no texto de março, em ambos os trabalhos, Weber chama de vocação a dedicação a uma profissão. E trata da tensão própria presente na adoção dessa atitude dedicada. De um lado, aceitação realista de um condicionamento social; de outro, aposta do sujeito individual numa possibilidade de ação com sentido de valor.

Prossigo me repetindo: a condição social é sempre o desencantado mundo moderno, fruto de um processo de racionalização de meios para o atingimento de fins. Já a possibilidade que se apresenta à pessoa vocacionada de cultivar valores através de uma profissão é a de escolher um modo de agir que conecte meio e fim a uma “causa”.  A ciência e a política, tal como vistas por Weber, são (ou ainda podiam ser, há cem anos) espaços de ação por mobilização de valores, desde que no exercício dessas vocações a pessoa não se rebele contra o que há de inexorável na racionalização que também afeta as duas atividades.

Agora, repito coisas que disse em março, mas desdobro-as e vou além. Fato social e ato individual são facas com dois gumes. A racionalização é esquina entre emancipação e instrumentalização (é racional buscar direitos ou privilégios). Se a esquina for dobrada exacerbando instrumentalização, há redução e amesquinhamento da razão, que virtualmente chega à fronteira com a perversidade. Já a decisão do ator é, por vezes, tomada em esquinas entre autonomia (faço livremente o que posso querer) e despotismo (faço o que quero). Em contextos críticos, como o que vivemos com a pandemia, essas esquinas viraram mobília em nossos cercados. Quando eticamente animada, a razão gera decisões pelas quais readquire amplitude e grandeza. Mas corre risco de se tornar intolerante e dogmática, inspirando atitudes voluntaristas que paradoxalmente levam ao irracional ou, ao menos, à irrazoabilidade. Por exemplo, ficar em casa é racional, expor-se ao vírus por escolha não é. Mas acusar de irresponsável quem é obrigado a sair de casa, sem considerar o contexto dessa pessoa, é usar uma razão – licença aqui para lembrar Leandro Konder – quase enlouquecida.

Na ciência e na política persiste um dilema. O sujeito que pratica uma ou outra vive entre a resignação a uma estabilidade que pode parecer medíocre e depressiva (apego ideológico a uma verdade em matéria de ciência e a uma opinião fixa em matéria de política) e uma insegurança ansiosa diante do imprevisível. Esse dilema, em outras áreas de atividade humana, já foi resolvido em favor da chamada razão instrumental. Vale o objetivo. Se na ciência e na política o dilema entre o que pode e o que deve ser ainda existe, então o ponto de Weber, sobre as vocações, exposto nos textos das duas conferências, segue relevante.  A pessoa que adota ciência ou política como vocação não escapa da condição de mover-se num fio de navalha.

Essas são balizas para ver diferenças e até contrastes entre as vocações da ciência e da política, sem criar abismo entre elas. Essa atitude permite especular que não é estranho um diálogo entre essas duas distintas vocações.  Um diálogo que se tornou um imperativo civilizatório.

Weber salienta, na ciência, a influência “fora do comum” do acaso, que desafia qualquer valor. Um problema de ação coletiva, por exemplo, no corporativismo das seleções acadêmicas, que pode premiar arrivistas e medíocres. Seguindo seu raciocínio crítico podemos até nos espantar com o fato de haver tanto acertos como erros nessas seleções e não predomínio claro de erros.

O papel influente do acaso na ciência resultaria também de uma dupla exigência da carreira:  ser cientista e professor. O critério da “sala cheia” condena a profissão aos ditames do acaso, do ponto de vista científico. Se de um lado a educação científica é uma “aristocracia espiritual”, de outro, a tarefa pedagógica mais difícil – e sem a qual o êxito na missão formativa não é pleno – é saber expor problemas científicos de um modo suficientemente claro para serem apreendidos por espíritos não preparados, embora bem dotados. Isto é um dom pessoal que não se confunde com os conhecimentos detidos pela pessoa. Só por coincidência reúnem-se, numa só pessoa, as duas aptidões. Por interpretação não autorizada do argumento do autor pode-se argumentar que, se queremos combinar ensino e pesquisa, resta apostar em instituições, mais que em compromissos ou talentos de indivíduos. Se reencarnado em nossa época, o espírito de Ortega Y Gasset certamente acharia que era feliz e não sabia, na sua encarnação anterior quando lamentava, antes de Weber, a ascensão dos “homens sem mister”.

Vamos para a política. É célebre a definição weberiana do Estado moderno. Prestemos atenção nela: “Instituto político de atividade contínua, cujo quadro administrativo mantém, com êxito, a pretensão de monopólio legítimo da coação para a ordem”. Prestemos atenção porque o caráter monopólico do poder estatal (que é geralmente lembrado) é tão relevante como o de ser um instituto racional e um empreendimento contínuo, coisa nem sempre valorizada. É a organização burocrática do estado moderno que controla os governantes que, por sua vez, para dirigirem o estado, expropriaram, lá atrás, na História, o poder de poderosos pré-políticos, senhores oligarcas e mandões de todo tipo. Assim, burocratas da política organizam a política como poder continuo, graças ao caráter compulsório da organização do Estado.

Importa tanto a história dessa profissionalização, quanto a de modos economicamente distintos, mas simultâneos, de praticar a política como vocação. Riqueza, por exemplo, segue valendo como atributos de políticos profissionais. Mas não é empecilho à profissionalização específica dos políticos, nem à difusão de novos modos de acesso de pessoas sem propriedade à liderança política, nem ao aperfeiçoamento do mercado de recompensas. Os cargos seguem sendo a forma mais moderna de prebenda e, por isso, a expressão mais ativa da luta dos partidos. Passado o intervalo totalitário vivido no coração da Europa há 80 anos essas difusões voltam a revelar os laços mundanos da democracia. Assim como na ciência, cientistas e professores complementam-se em instituições, para combinar grande e pequena política é preciso apostar em instituições mais que na qualidade individual, ou das elites dirigentes.

Voltemos, com Weber, à ciência. Nas condições “modernas”, a valorização na profissão científica “propriamente dita” está condicionada à especialização. Somente trabalhos de especialistas podem almejar valorização própria no mundo da ciência. Logo, quem não for capaz de usar antolhos e adotar uma exata e determinada ideia como sua razão de vida e salvação da alma deve ficar longe da profissão. Também por interpretação não autorizada, é possível dizer que o que hoje chamamos de multidisciplinaridade só pode se realizar com êxito por articulação de diferentes especialistas, no âmbito de uma instituição. Para propiciar êxito ao cientista individual, a multidisciplinaridade precisaria, ela própria, converter-se em disciplina especializada, reiterando a regra e renunciando à sua pretensão inovadora original.

Agora, de volta à política, mais uma vez. Nada mais atual do que a rejeição social da “política dos cargos”, mesmo da parte de quem não vê relação entre burocracia e integridade. A história da luta entre políticos destacados e funcionários administrativos é antiga e é luta por poder. São antigas também e em ziguezague as coalizões entre funcionários especializados e algum dos poderes diretamente políticos, na maioria das vezes com o Executivo, em menos vezes com o Legislativo. Assim se forma a experiência governamental de um país.

Mas esse campo da experiência está longe de se resumir a tradições e outras balizas historicamente assentadas.  O treinamento na luta, de que nos fala Weber, é processo contínuo. Em cada contexto valem como balizas para a ação política tanto fatores (instituições, partidos, lideranças, teorias e práticas) já considerados pelo conhecimento da história, longínqua e recente, de cada lugar, como também fatores casuais, ou mesmo inéditos. Alguns irão se tornar longevas e com isso serão também incorporados a tradições. Outros vão se esgotar ali, naquele momento. Mas nada impede que esses efêmeros sejam mais decisivos num contexto crítico.

Vivemos num país que está passando de uma forma muito severa por essa lição sobre a efetividade do que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “mão invisível do caos”. Ela, essa mão invisível, é que pode, como não-razão que é, levar uma boa razão a se deixar enlouquecer pela pretensão de amputá-la. Numa busca dessa, antecipadamente fracassada, os super-racionais podem julgar inúteis as reflexões realistas de Weber, que nos lembra de que a distinção entre funcionários administrativos e funcionários políticos não é essencial. Nela não há o bem, nem o mal. Ela é uma implicação do treinamento na luta pelo poder.

A possibilidade, que hoje temos, de recorrer com êxito a funcionários da ciência como formuladores de políticas públicas é um recurso prudente quando a lógica da política in natura torna-se refém da face mais negativa do carisma. O ponto que Weber nos traz induz a celebrar como providencial a dependência recíproca entre política e ciência. É essa uma das âncoras práticas a partir da qual uma atitude política prudencial de novo tipo pode se amparar para conter a força recente que a atitude voluntarista adquiriu em nossas democracias.

A moderna organização dirigida por políticos profissionais pode retornar – e tem retornado – a viver nos parlamentos. Poderosas máquinas burocráticas seguem derivando da democracia e do voto de massas, mas deixam de subordinar parlamentares porque eles e os políticos profissionais deixaram de ser coisas diferentes. O papel relevante, político e eleitoral, da liderança democrática volta a mostrar que a prudência é uma face possível do carisma.

Chegamos à última estação da viagem a Weber. Trata-se das éticas da ciência e da política e aqui retorno, uma vez mais, à coluna de março. Nada poderia dizer sobre isso, nem em março nem agora, que substituísse as palavras do próprio. (…) toda obra científica “acabada” não tem outro sentido senão o de fazer surgir novas indagações. Portanto, ela pede que seja ‘ultrapassada’ e envelheça. Todo aquele que pretenda servir à ciência deve resignar-se a esse destino”

Por que ser cientista, se a produção é condenada ao envelhecimento? Weber evoca Tolstói, para dizer que perguntas sobre os sentidos da morte e da vida passaram a defrontar-se com a ideia moderna de progresso (ninguém mais morre “pleno de vida”). A mórbida realidade da nossa hora renova o sentido dessa vocação.

Agora sobre a ética da política, volto a citar: “A impossibilidade de uma ética única, extensiva à política, é tão real quanto a falsidade da afirmação de que a ética da política não possui nexos com qualquer outra ética”. As indicações para quem pretende vocacionar-se à política dirigem-se a uma determinada ética da responsabilidade, contraposta à ética das convicções, própria da fé dogmática. É muito vivo o contraste entre as duas orientações. Enquanto a da convicção sobre os últimos fins faz quem a segue julgar-se distinto da estupidez e da mesquinhez do mundo, a da responsabilidade manda dizer: “Eis-me aqui. Não posso fazer de outro modo”.  Daí ser impossível agora, como em março, ignorar o parágrafo final de “A política como vocação”:

“A política é como a perfuração lenta de tábuas duras (…) somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de tudo!” tem a vocação para a política”

Quem acha – e também comentei isso na coluna de março – que essa oposição radical entre duas éticas que separam o político por vocação do apóstolo de uma fé serve também para distinguir a política da ciência surpreende-se ao não encontrar esse contraponto em “A ciência como vocação”.  Se a ética da responsabilidade compete claramente ao político por vocação, não se constata, no texto sobre a ciência uma correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A ambiguidade ética intrínseca à vida política infiltra-se no agir científico, impondo também ao cientista uma “negociação com demônios”. Sua ética também precisa ir além das suas convicções. Talvez não tanto quanto a da política – ou de modo diferente dela – a ética da ciência contrasta a fé dogmática.

Os valores perseguidos por uma e outra vocação são distintos. A verdade na ciência e a legitimidade na política não podem ser alcançadas através de idêntica conduta. Um político não produz ciência, nem se resolve no professor. Mas a distinção não impede a cooperação.

O carisma é a fonte da legitimidade propriamente política e como a política, é ambíguo. Pode conciliar os valores que defende com as regras que limitam sua ação e se for assim atua como energia revigoradora. Mas pode também mobilizar afetos para ameaçar essas próprias regras e nesse caso ser energia destruidora.

Na política, exortação à intervenção revitalizadora do carisma; na ciência, a pregação de uma paixão pela rotina. A paixão que leva à dedicação profissional a uma causa é um elo comum entre as distintas dinâmicas da ciência e da política no mundo moderno. Elo que permite a vocação ser cumprida com sentido crítico e inovador. Liame ético que, em vez de estagnar o sujeito em suas convicções, orienta-o a agir com responsabilidade, fazendo seus valores pessoais dialogarem com os limites institucionais e culturais da sua respectiva vocação.

Espero ter argumentado que quando comparamos, hoje, ciência e política, estamos, mais ainda do que há cem anos, diante de uma cooperação possível, que é exigência social da vida prática.

*Cientista político e professor da UFBA

Fonte:

Democracia Política e novo Reformismo

https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/05/paulo-fabio-dantas-neto-ciencia-e.html


Paulo Fábio Dantas Neto: Pautas das oposições - A busca de um “novo normal” também na politica

Como me propus a fazer, ao final da coluna da semana passada, tratarei, hoje, do que chamei de um nó político que precisa ser desatado para que as diferentes oposições constituídas convertam o amplo consenso cívico atual de rejeição ao governo Bolsonaro numa convergência de natureza política, conversível em aliança eleitoral, em 2022.  

Parto do entendimento de que, por enquanto, não há roteiro positivo seguro (no sentido de um elenco de proposições concretas sobre um imediato amanhã), em nenhum dos dois campos que se apresentam, hoje, como adversários do bolsonarismo, a saber, a esquerda e a nebulosa política que se faz chamar de centro e que inclui grande parte da centro direita e parte da centro-esquerda. Aviso que essa terminologia de geografia ideológica não deve ser tomada ao pé da letra. Usada aqui sem rigor e sem poder explicativo de nada, é mais um recurso para não alongar o texto. O que importa é constatar a relativa ausência (ou incipiência) de alternativa positiva clara à barbaridade que aí está. O não cada vez mais urgente e uníssono ainda não está acompanhado de algum sim que a sociedade entenda. É na permanência dessa situação politicamente tosca que populismos diversos apostam.

Pauta da oposição liberal-democrática

déficit de discurso e ação do chamado centro (agora “polo”) liberal-democrático está no terreno da oposição plebiscitária a Bolsonaro. Ação e discurso nesse terreno até aqui são precários, porque uma parte desse centro, por mais que proclame o contrário, está presa a 2018, por um antipetismo que a impede de se jogar por inteiro na oposição, sem temor de se ver comprometida, em eventual segundo turno, a cooperar com o PT. O enraizamento extremo do tema da corrupção em parte do eleitorado que centristas querem conquistar é uma constante trava que os inibe tanto para o diálogo com a esquerda eleitoralmente mais relevante (diálogo necessário, dada a regra de pleito em dois turnos) quanto para uma relação mais fluente com o campo do pragmatismo de varejo, que atende pela alcunha de Centrão. Essa segunda relação é também crucial por outro motivo: procurar dividir o campo governista e, eventualmente, barrar o seu acesso ao segundo turno.

O que torna crível um centro político, convertendo-o em alternativa de poder, não é a propensão a se distinguir retoricamente da direita e da esquerda, mas a capacidade de se entender, simultaneamente, com ambas, criando marcos governativos na democracia. Trata-se de exigência de política prática.  Se ignorada, desaparece a razão de ser do centro.

Por outro lado, se nem o Centrão nem Lula representa políticos autodeclarados de centro liberal-democrático, centristas precisam, como é óbvio, fazer, de sua unidade prática, atitude estratégica. Essa é a primeira de três condições (outras são um programa e uma candidatura que o encarne e aglutine) para terem voz e fala próprias, como oposição, na arena da disputa presidencial. Oposição que não precisa se dizer de esquerda, centro ou direita. Precisa ser democrática no programa, nos valores e na atitude política positiva.

A disposição declarada em manifesto recentemente assinado por seis possíveis candidatos que se situam nesse campo é um inegável avanço nessa direção. Está longe, contudo, de expressar uma agregação satisfatória daquelas três condições. Sem elas, resta a pregação apostolar contra presumíveis “extremos”. Esse é um mantra incompatível com o discurso de ampla frente democrática contra um extremismo concreto, como é o que Bolsonaro e seu governo expressam. Em suma, ainda é precária a identidade oposicionista do centro.  Inútil querer que o Congresso preencha a lacuna, através de políticos republicanos e lúcidos, mas institucionalmente condicionados, como o Presidente do Senado. Seu papel é outro (conter, não enfrentar o presidente), tão relevante para a preservação da República, quanto o de todas as oposições democráticas de disputarem o eleitorado com Bolsonaro.

Pauta da oposição de esquerda

No campo da esquerda a pauta não é menos desafiante. A reabilitação de Lula para uma eventual candidatura mexeu com todo o cenário político, mas de modo especial com o campo em que ele é identificado e ao qual ele vinha se restringindo cada vez mais, desde que seus problemas com a Justiça o confinaram à prisão e depois a um relativo ostracismo. Acuado, adotara atitude defensiva e reativa, que era compreensível, do ponto de vista pessoal, mas também imobilizadora do seu partido, num contexto em que o mesmo necessitava tomar iniciativas positivas de diálogo com a sociedade e as demais forças políticas, para sair do isolamento crescente em que vivia desde o impeachment de 2016.

Embora o comando político de Lula sobre o PT jamais tenha sido desafiado de modo relevante, era visível a situação de desconforto de quadros partidários mais afeitos a uma política de frente, seja por atitude política pessoal, seja por posição institucional que ocupam, como nos casos dos governadores do Piauí, Ceará e Bahia. Desconforto que aumentava quando os aliados na esquerda com os quais o PT contou na maioria de suas empreitadas eleitorais começaram, não apenas a abrir alternativas de centro-esquerda ao viés hegemônico do petismo – processo que transcorria desde 2010, com a candidatura de Marina Silva, com as de Eduardo Campos/Marina em 2014 e Ciro Gomes em 2018 –, como a se entender, agora, para oferecerem contraponto eleitoral ao PT no campo da esquerda, atraindo para isso até o PCdoB, o mais próximo dos aliados e assíduo apoiador de Lula.

Outro relevante fator de alteração no status quo da esquerda brasileira foi a inserção de novo tipo na cena política, obtida por Guilherme Boulos, em sua recente candidatura à prefeitura de São Paulo. Chamou a atenção o contraste entre a postura relativamente moderada que adotou dessa vez e a atitude disruptiva que, para além de seu ativismo de movimento social (mas de modo sintonizado com ele), marcara suas primeiras aparições na cena política, inclusive no contexto da resistência ao processo de impeachment e à prisão de Lula. Essa atitude inicial, típica de “esquerda negativa” orientada ao confronto, rendeu-lhe, naquelas circunstâncias, palavras de estímulo e recomendação pública, da parte do líder petista. Talvez a hábil e experimentada raposa política enxergasse no jovem leão que rugia forte um aliado útil para elevar a temperatura do ambiente político e o moral da militância, num momento adverso.  Mas se Lula contava manobrar com Boulos e, depois de o ter atiçado, retirar-lhe a escada com algum movimento moderado posterior (como toda a vida fez com militantes mais radicais do PT), certamente teve uma surpresa. O suposto manobrado revelou-se, na campanha paulistana, um perito manobrista, capaz de numa só campanha emular três Lulas pretéritos – o semeador de sonhos de 89, o adversário implacável do PSDB de 94 e 98 e o conciliador de 2002 – com o cuidado de se afastar do Lula ex-governante petista, que virou alvo de acusações de corrupção. Mas ainda assim avançou com apetite sobre a parte sobrevivente do espólio eleitoral também daquele que parecia ser o último Lula e que – sabemos agora – era o penúltimo.

O fator Boulos tem pouco ou quase nada a ver com um hipotético deslocamento do PT da posição de partido mais relevante da esquerda. O PSOL não tem a menor condição de ser o ator beneficiário desse suposto deslocamento que as urnas de 2020 se encarregaram de desmentir. Delas o PT saiu figurando entre os relativamente vencidos, mas exibindo a resiliência própria de uma instituição partidária genuinamente enraizada na experiência democrática que a sociedade brasileira vive nas últimas quatro décadas. Experiência rica em paradoxos, dos quais o mais notável é ter se aprofundado um processo de inclusão de novos grupos sociais na vida política (e aí o PT foi ator proeminente de democratização) ao mesmo tempo em que se dá, a partir da segunda metade da penúltima dessas décadas, uma séria avaria de um longevo hardware republicano.  Democratizado sob os auspícios da Carta de 1988, o hardware serviu de incubadora daquela democratização contínua. Na inflexão institucionalmente regressiva, o PT foi ator proeminente também, inserindo, num hardware virtuoso, um software espaçoso, que se fez pesado, pelo baixo teor de república.

Boulos demonstra estar atento a isso e aí está a potencialidade de sua liderança pessoal para uma eventual reanimação da esquerda, projetada para além do curto prazo. De um lado, a visita ao centro, por uma aliança entre o PDT, o PSB e o PCdoB; de outro, um difícil processo de aproximação e entendimento entre um Boulos que emerge e áreas do PT dispostas a não deixar o partido se afogar no abraço de uma personalidade política que a   cada instante parecia submergir mais fundo nas águas turvas de um populismo ressentido. Quando Lula reassumiu, como uma fênix - feliz, apaziguado e investido de uma relativa moderação e malícia que lembram seus melhores momentos - o lugar de protagonista, era essa a pauta interna de uma esquerda que, desde 2019, se mantinha como coadjuvante quase ausente de embates públicos decisivos de Bolsonaro com instituições republicanas, Se antes já se mostrava improvável e não muito racional (se falarmos de uma razão que dialoga com a realidade) convencer o maior partido da esquerda a abrir mão de apresentar um candidato, depois da fênix e de reflexos do retorno de Lula à cena, em sondagens da recepção que ele teve no eleitorado, isso se torna virtualmente impossível. 

O retorno de Lula coloca a oposição de esquerda em clara vantagem sobre a oposição de centro no que se refere ao quesito candidatura que encarne o campo na arena plebiscitária de enfrentamento a Bolsonaro. E também sinaliza um processo mais simples que o do centro em relação ao quesito construção de uma disposição à unidade. Isso porque, enquanto o centro precisa cumprir um diálogo horizontal entre suas partes, na esquerda os movimentos tendem agora a ser animados pela força gravitacional da sensação difusa de que Lula pode não só salvá-la, eleitoralmente, como salvar o país de Bolsonaro.  

A pauta da esquerda anterior à fênix não desapareceu. Ela foi suspensa pela contingência. Adiadas as decisões de médio e longo prazos, os problemas que as requeriam tendem a se avolumar, ainda que a força de gravidade mantenha o campo razoavelmente unido em 2022. É curioso, chega mesmo a parecer armadilha astuciosa da nossa história política, o partido que sempre virou as costas às urgências das frentes políticas em prol da sua construção particular adiar decisões cruciais para seu destino, pela necessidade de Lula cumprir um papel nacional. Só nesse papel Lula pode ser pensado hoje como protagonista. Num cenário sem Bolsonaro, ele passa a ser mais uma entre diversas opções e lhe será cobrada reflexão pública sobre o desfecho da experiência governamental petista. Mesmo seu virtual retorno à presidência da República não eliminaria anticorpos produzidos, nos últimos anos, na sociedade e na política, contra o modo petista de governar.     

E se Bolsonaro derreter?

Falei muito mais sobre a esquerda porque o problema do centro já tem sido mais discutido, não só por mim. Mas tudo o que até aqui argumentei, sobre o centro e sobre a esquerda, parte da premissa de que o arranjo bolsonarista que está no governo, embora perca força de maneira gradual e sustentada, representa um perigo real para a república, pelas chances que ainda persistem de que o presidente possa se reeleger. Chances que não podem ainda ser bem mensuradas, diante não apenas da volatilidade de variáveis propriamente políticas, como da insegurança da situação social e econômica.

A experiência internacional das últimas décadas mostra que quando autocratas têm mandatos renovados, a autocracia que buscam deixa de ser um perigo e se torna realidade fatal. Por isso não se pode relaxar ao constatar que as instituições brasileiras resistem a ataques com sucesso efetivo e que uma opinião pública sólida se formou contra a aventura autocrática, já começando a reposicionar parte do eleitorado que a chancelou em 2018.

Partindo da premissa do perigo, o eixo que orienta a conduta de democratas de todos os matizes é uma frente pela defesa da Constituição, bem como das instituições e práticas democráticas que vivem à sua sombra, pelo combate à pandemia e pelo socorro aos vulneráveis. Essa frente pode ter tradução eleitoral no segundo turno de 2022, precisando, para tanto, assegurar a realização das eleições e uma disputa em primeiro turno dentro de limites civilizados que permitam a unidade posterior. O adversário comum identificado é Bolsonaro, incluído, nessa identificação, como elemento inseparável, o seu governo.

Uma análise realista precisa, contudo, considerar outra possibilidade. A de que o presidente se torne incapaz de obter a reeleição. Sem fazer previsões ou especulações sobre desdobramentos políticos e institucionais de uma constatação dessa ocorrer antes mesmo da campanha eleitoral começar, é preciso admitir que um derretimento irreversível da popularidade do presidente que o retirasse antecipadamente do jogo teria impacto imenso sobre a situação política e provocaria reposicionamento de forças em relação a 2022 mais abrangente que o atualmente em curso com o retorno de Lula ao jogo.

As áreas de oposição que se ativerem exclusivamente a uma contestação da pessoa do presidente tendem a perder seu discurso se ele sair de cena, de algum modo, ou mesmo se ele se mantiver na cena, mas sem força eleitoral para chegar ao segundo turno. Podem se tornar política e eleitoralmente irrelevantes, como oposição ou, então, aderir a uma solução governista pós-Bolsonaro, a qual, no limite, pode ser bolsonarismo sem Bolsonaro.

Por esse motivo cabe examinar com atenção o estágio das oposições diante daquelas três exigências do momento, de que aqui se falou. A esquerda, por ora, tem um virtual candidato, que se revela o mais competitivo, enquanto o centro liberal-democrático, de tantos nomes, ainda não tem nenhum. A agregação na esquerda também se revela hoje menos complexa, pela já comentada força de gravidade do fator Lula. Mas há uma das condições que ambos os campos de oposição ainda estão longe de cumprir: resolver o que dirão à sociedade sobre o dia seguinte a Bolsonaro, caso amanheça com algum desses dois campos de oposição no comando do país. Que promessas suas mensagens podem fazer?

Qual será o “novo normal” da política num pós-bolsonaro?

Um amplo consenso institucional, em defesa da constituição e da democracia já é, hoje, algo que saiu do terreno da promessa para o da realidade. Firmou-se ampla resistência nacional aos ataques à Carta de 88 e aos poderes da república, resultado compartilhado por instituições do estado, governos subnacionais, partidos, lideranças e representações parlamentares de vários matizes do campo democrático e republicano, da direita à esquerda. E igualmente por amplos setores da sociedade civil, com especial destaque ao papel da imprensa. Do mesmo modo está em curso um pacto cívico de enfrentamento da pandemia para redução de danos sanitários e sociais. Nem um nem outro chega perto da unanimidade porque a divisão política e o esgarçamento do tecido social são fatos. Mas se alcançou um patamar de convergência que permite dizer que esses dois consensos transcendem a oposição. Alcançam até alguns inquilinos da esplanada dos ministérios.

Mas é das oposições que aqui se trata. A sociedade e a parte do eleitorado que já pensa em 2022mesmo na pandemia (não conheço mensuração do percentual que está nesse caso)precisa ouvir, de seus partidos e lideranças responsáveis, uma mensagem mais explícita e menos genérica sobre o que pensam acerca das bases de construção da sua decantada unidade e sobre o grau de civilização da política que se pode esperar dessa pactuação. 

Todos os que estão convencidos do desastre econômico, social, político e cultural causado ao país pelo governo Bolsonaro compreendem que se trata, mais do que uma obra de um indivíduo, do desastre de um governo. Sendo assim, a saída melhor e mais desejável é pelas urnas, pelo fato de delas sair um novo governo.  A vitória eleitoral sobre o presidente subversivo pode ser previamente facilitada pelos efeitos benévolos dos consensos cívicos.

Mas além de derrotar o protagonista do mal, é preciso fazer cessar automatismos malévolos que contaminaram espaços da República. Para isso a unidade implica em fazer um chamado a que se coloque entre parênteses, neste momento, os juízos de retrovisor acerca das responsabilidades políticas pelo desfecho eleitoral que ensejou o desastre. Admitir que um inventário dessas responsabilidades pode envolver tanto quem se aliou, ou de algum modo apoiou, em 2018, a chapa vencedora, quanto quem, opondo-se a ela, imaginou vencê-la promovendo um acerto de contas, em revide ao desfecho da crise de 2015/2016. A comum avaliação sobre o desgoverno em curso no país e sobre a profundidade das sequelas que isso já produz no seu tecido social e político é suficiente para que o foco se concentre no presente e aponte ao menos a um amanhã imediato que supere polarizações extremadas e o clima de confrontação política.

A tradução eleitoral dessa disposição não precisa ser candidatura única de todas as oposições. Precisa ser articulação e consolidação de candidaturas agregadoras de seus respectivos campos, que sinalizem agregações parciais, no primeiro turno das eleições; disposição comum dessas candidaturas oposicionistas de explicitarem suas diferenças e divergências, para qualificarem o debate democrático sem prejuízo de entendimento entre elas no segundo turno; concretização desse entendimento numa agregação mais ampla para enfrentar a candidatura governista no segundo turno, ou na ausência de tal adversário, para travar uma disputa republicana entre candidaturas diversas do campo democrático.  A reciprocidade é condição importante para haver chance das ações oposicionistas de ambos os campos darem vida a um “novo normal” também na política.

Essa é a premissa política para haver dia seguinte. A partir dela pode-se pensar em programas eleitorais que dirão o que ele pode ser, ou, ao menos, o que se quer que ele seja.

* Cientista político e professor da UFBa


Paulo Fábio Dantas Neto: Carolinices sobre solução política de uma não questão militar

Na conjuntura crítica do Brasil atual, uma coluna semanal sobre política já corre o risco de deixar o tempo passar e, como uma Carolina tarda, mal ver a banda tocar. Se deixar de circular uma semana, aí então é que a fila anda e a banda toca longe da sua janela. A política brasileira tornou-se matéria volátil, seu relógio se perde nos minutos, enquanto a força desestruturadora da pandemia parece absorver para si as horas todas, assumindo, em paradoxo com seu andamento trágico, uma regularidade própria de rotinas de uma estrutura. Após duas semanas, eis-me tentando juntar, como num quebra-cabeça, fragmentos de fatos para montar um texto que comente alguma vida passada nessa rotina de morte.

No meio tempo entre a coluna anterior e essa, Jair Bolsonaro, ao lado de oferecer, ao Presidente da Câmara dos Deputados, a secretaria ministerial do seu governo (mais um anel que talvez desejasse manter nos dedos), perfilou - ou ajustou controles sobre - os Ministérios da Justiça e da Defesa, a AGU e a Polícia Federal, além do que já tem sobre os órgãos de informação. Se houvesse conseguido emplacar comandantes amigos nas forças armadas, estaria completo o desenho de um misto de bunker e trincheira para uma luta decisiva que acalenta em seus delírios. Restaria conseguir produzir a centelha de desordem pública que persegue, meses a fio, para justificar uma virtual proposição de estado de sítio, ou algo equivalente, com respaldo de comandos militares. Hoje o Congresso não o concederia. Mas num hipotético cenário de violência miliciana nas ruas, insubordinação nas PMs combinada com caos sanitário, povo amedrontado, pedindo ordem, o Congresso e o STF poderiam ficar emparedados. Assim parecem pensar os que respaldam os movimentos de Bolsonaro, ou os que hesitam em repeli-los.

O plano de Bolsonaro não pode mais ser segredo para ninguém que observe a cena política e social. Pode dar certo, em algum momento? Especialistas em assuntos militares afirmam que não e devem ser escutados com o respeito e a reverência que merecem. Intuo, porém, que não sabemos, apesar da reiteração obsessiva de uma mesma tática comprometer a estratégia bolsonarista, que se torna previsível pelas defesas adversárias, marcação cerrada feita por instituições que ele está obrigado a respeitar, mas ataca e organizações da sociedade que ele tem obrigação de governar, mas desgoverna.

Seu fracasso na área militar é, como sabemos, avaliação praticamente unânime. A grande imprensa, assim como a pequena, respalda a tese de que os militares cumprem seu papel institucional e ponto. Uma pergunta resta sem resposta: quem afinal escolheu (refiro-me a pessoas de carne e osso e não a entidades sobre-humanas que agiriam sozinhas) o novo comandante do Exército? Bolsonaro é que não foi. Interditaram-no numa prerrogativa sua? O desfecho não apenas revela que o capitão foi “contido” pelos generais na ativa, mas o desmoraliza e o leva a ver estrelas, mostrando quem manda nessa seara. Pode-se chamar de autonomia o que parece mais soberania da corporação na designação da sua cúpula? Penso que é complicado interpretar o ocorrido como mero movimento de despolitização e afastamento das FFAA da política. Pedindo vênia aos especialistas, suspeito que possa ser meia verdade persuasiva.

É verdade que a cúpula militar reagiu à politização tentada por Bolsonaro. Mas de onde provém a convicção de que, ciosa da profissão, descarta assumir qualquer atitude política? É obvio – e não precisa entender de militares para admitir - que faltam sintonias materiais e mentais entre, por exemplo, os contextos nacional e mundial de hoje e o do instável período que foi da promulgação da Constituição de 1934 ao autogolpe do Estado Novo, perpetrado por Getúlio Vargas. O contraste de época desaconselha analogia explícita entre a postura atual da cúpula da hierarquia militar e o antigo lema do General Góis Monteiro que, em vez de política “no exército”, preconizava, então, a política “do exército".

Golpe militar não esteve, pois, nem está na pauta das especulações razoáveis. O que causou receio, nessas duas últimas semanas, assim como em outros momentos, durante o atual governo, foi a hipotética chance de um autogolpe com respaldo militar, baseado num cenário de desordem e violência fomentadas.  Essa nuvem dissipou-se, no momento. Mas não é irrazoável observar que ganhou potência e visibilidade uma expansiva política corporativa dos militares, alimentada pelo governo Bolsonaro e traduzida em fortes pressões orçamentárias. Conexões entre isso e a aproximação de uma eleição presidencial, no bojo da qual se discutirá prioridades em ambiente de grave crise social não devem ser subestimadas.  É nesse contexto que é relevante interpretar a nota do agora ministro da Defesa, Gal. Braga Neto, publicada na véspera da data do golpe de estado de 1964, a título de celebrar seus 57 anos.

Braga briga com a História quando interpreta o período de 1964 a 1979 como de pacificação nacional.  Afirma que um movimento de cunho popular depôs um governo ligado a uma ideologia violenta e que em seguida as forças armadas foram chamadas a pacificar e reconstruir o país. Levaram 15 anos fazendo isso até que o pacto da anistia, de 1979, teria dado maioridade democrática ao país. Inegável o caráter pacificador daquela lei e seu papel indutor da transição democrática que se seguiu, por uma década. Mas na historiografia de Braga, o general Figueiredo não foi o último general-presidente num regime autoritário, mas o primeiro presidente dessa democracia em novo patamar. O marco inaugural desse patamar é a ascensão do seu governo, não o colégio eleitoral de 1985, muito menos a Carta de 88.

Está, portanto, claro, que não me refiro à discussão sobre 1964, especificamente. Seria malhar em ferro frio, pois é sabido que os militares, em geral, não admitirão que foi um golpe de estado. Não tenho quanto a isso, preocupação historiográfica, muito menos doutrinária, mas política. Uma coisa é a polêmica sobre 64. Muitos liberais apoiaram e participaram do movimento. Foi um golpe, mas não estava escrito nas estrelas que ia dar em ditadura, como deu.  Outra coisa é celebrar a ditadura que ocorreu por opção política, inclusive sua radicalização, depois de 1968. A nota de Braga chama essa noite quase fascista de pacificadora. A nota está se identificando não com as forças armadas, genericamente, mas com a “linha dura”, para a qual 1968 foi continuidade natural e necessária de 1964.

Essa narrativa é politicamente inaceitável por democratas porque não é só erro historiográfico. Prevalecendo, apontaria a uma negação da política que construiu a democracia que temos. Como sabemos e sentimos, com a eleição de Bolsonaro os fantasmas de 1964 voltaram a estar presentes, não importa se são delírios. Quando fantasmas guiam pessoas e as fazem se posicionar contra ou a favor de algo relevante, eles passam a compor uma realidade em aberto, sinalizando que o julgamento da História não está tão fechado assim. A eleição de alguém como Bolsonaro, dizendo abertamente o que disse na campanha, sinaliza, ela mesma, algo diverso de um assunto encerrado.

Penso que mesmo a omissão diante dessa narrativa já é um equívoco. Chamar essa cantilena extremista de moderada é equívoco maior ainda. Há como abordar esse ponto de modo prudente, afirmando que o marco inaugural, jurídico e político, da nossa democracia é a Carta de 88, sem com isso desqualificar a importância da anistia para que essa obra se tornasse concreta. Imprudente é nos acomodar a uma conveniência tática que, nesse caso, levaria a sociedade para longe do seu porto seguro, que é a defesa intransigente da democracia, não deixando sem resposta qualquer tentativa de usar esse termo para se referir ao que, de fato, foi ditadura. A democracia vive de suas instituições, de seus procedimentos e também do grau de crença, de convicção democrática da sociedade. Esse governo - e não apenas Bolsonaro - tem rebaixado esse grau, borrando as fronteiras entre ditadura e democracia. Essa nota foi mais um ato dessa sabotagem, dissimulado por um palavreado educado e por um verniz racional que não deixam de merecer reconhecimento, em meio à barbárie nossa de cada dia. Mas não podem iludir.

É fato que, depois dos fatos da última semana, o rio ficou mais navegável. Então, não vai ter golpe de qualquer espécie. Ficamos combinados assim.

Noves fora conversa de golpe, há um bolo fermentando contra a impolítica do presidente e ainda não dá para saber seu sabor. Dá para ver, porém, que agora a coisa anda em novos trilhos. Em vez de proposições de impeachment e CPIs, feitas por parlamentares ou grupos isolados e não previamente articuladas a contento, há um coro externo crescente pressionando o Congresso para que tome providências, mas ninguém se adianta dizendo quais seriam elas. Isso deixa rédeas sob manejo das suas lideranças, para negociarem e resolverem. Se e quando a "providência" vier à tona, já poderá ser na forma de ação concreta. Em certos momentos de alta na temperatura política, não se pensa tanto em risco de golpe quanto numa contagem regressiva para lançar Bolsonaro ao espaço. Como?  Passagem pacífica do bastão ou guerra do fim do mundo? Mal comparando, entre um e outro extremo, vamos ver se Bolsonaro, que fala ao mesmo tempo como proclamador de uma república particular e refundador de uma imaginária ordem passada, vai concluir sua farsa simulando Deodoro ou Conselheiro.

A jornalista Rosângela Bittar especulou sobre uma etapa intermediária antes da “solução final” da farsa.  A elite política da democracia representativa conserva-se atenta para preservar regras e limitações de horizonte do jogo político. Traduz para um contexto democrático um saber herdado de outros tempos. O mineiro Rodrigo Pacheco anda ensaiando a performance de um Campos Sales do sufrágio universal.

A recente reinserção de Lula no embate político direto, mergulhado na arena plebiscitária que é a praia que ele disputa com Bolsonaro, adicionou um fermento potente ao bolo. Em terreno análogo, peças publicitárias difundidas em rede têm produzido motes e bordões, batendo na carestia, no desemprego e na tragédia sanitária e tratando com humor e ironia o negacionismo e o nepotismo presidencial. O Congresso, dessa vez, apareceu como propositor e autor do auxílio emergencial. Bolsonaro e seu governo, até aqui, não contabilizaram lucros políticos, apenas responsabilidade pelo valor irrisório. O meio político - partidos e lideranças que vão de Pacheco, FHC e Temer, até Lula, passando pelos governadores e pré-candidatos - está empenhado nas vacinas, tendo esse, felizmente, se tornado um campo de cooperação, embora tensa, com o governo federal. O centrão pressionou e derrubou Pazuello, tentou emplacar uma ministra de fato e deu tom de última chance quando o presidente recusou e escolheu outro. E o Judiciário não perde chance de estreitar o espaço de Bolsonaro.

Tudo isso ocorre e entra aos poucos em catalisação. O conjunto produz efeito, tanto que a rejeição a Bolsonaro e a desaprovação a condutas do seu governo crescem continuamente, consistentemente, embora de modo incremental. Isso é comum em democracias, regimes políticos em que as políticas públicas dependem de percepções contraditórias do conjunto de uma sociedade complexa e não apenas dos seus segmentos mais informados, politizados, organizados e, por isso, mobilizados e influentes.

Por outro lado, como o ensaísta Luiz Sergio Henriques bem frisou em artigo recente, um político como Bolsonaro sempre tem uma fonte inesgotável de recursos retóricos, porque não tem compromisso algum com a realidade e sequer com o que ele próprio disse ontem, quanto mais com o que se possa falar e fazer contra ele, hoje ou amanhã. Seu ativismo é e será um dado da realidade, mesmo se e quando ele estiver a minutos da derrota final. Jamais o veremos se calar ou passar recibo de derrotado. Foi assim com Trump, com ele tende a ser também.

*Cientista político e professor da UFBa


Paulo Fábio Dantas Neto:Democracia como vacina política e as cloroquinas de ocasião

Dedico a coluna de hoje ao Dr. Severino Elias, médico com profundo sentido de missão, que nos deixou ontem, depois de semanas de luta pessoal contra a Covid. Essa foi, porém, apenas a sua batalha final. Antes desse desfecho, chorado por quem perdeu o amigo e a referência profissional, houve um ano de dedicação e bravura cotidianas para não abandonar seus pacientes, apesar dos mais de 70 anos de idade e quase 50 de serviços prestados. Dele é possível dizer, sem exagero, que doou sua vida a uma vocação. Eis a razão desta homenagem, que me vale, também, de estímulo para escrever o que segue.

Peço perdão a Cabral (o João) por passar agora da evocação de uma morte e vida severina, alegórico exemplar do seu poema imortal da humanidade brasileira, para uma alusão à mais abjeta negação de qualquer humanidade. Incluo, a contragosto, entre as reflexões de hoje, as mais recentes agressões psicopáticas do presidente da República à dor infinita do povo que ele deveria defender. Evocar seus ares debochados com as vítimas da falta de ar e o seu incentivo perverso a saques e outras violências incalculáveis é um introito necessário ao argumento que aqui procurarei desenvolver.

O desespero de incontáveis pessoas está fazendo com que se disponham a pagar qualquer preço para que Bolsonaro seja tirado, o quanto antes, do lugar de poder que ele desonra. Compreensível desejo que não pode, contudo, nos distrair da hipótese de que um Putin militar esteja nos aguardando na esquina. O que o Dr. Marcelo Queiroga está prometendo fazer caso assuma mesmo o Ministério da Saúde pode dar ideia do que seria o resultado da substituição do presidente por seu vice, se feita de modo imprudente, sob pressão desse desespero, ou por sua manipulação. Seria cloroquina, nada mais.

Confirmam-se, no MS, sombrias conjecturas. O que era péssimo com o general Pazuello, ensaia piorar. Sua queda banal - que para muitos parecia ser cirurgia providencial, a ponto de se apostar fichas numa CPI de tempestividade e eficácia duvidosas - não diminuiu a premência da vigilância constante da fera, pela  comunidade da saúde, imprensa e sociedade, assim como não provou ser medida mais eficaz do que o tratamento paliativo, tópico, atenuante, conservador, com que a atitude prudencial do Congresso e do sistema político de um modo geral, contém efeitos dos impulsos de morte emanados do palácio. 

O médico que se quer impor ao ministério é mais perigoso do que o general destrambelhado. Ele pode destilar o veneno da dúvida na opinião técnica, dividi-la, isso resultar em maior desorientação ainda da população e essa desorientação, por sua vez, alimentar ainda mais aglomerações e outras atitudes de risco, às quais terão que corresponder atitudes mais duras de polícias estaduais. Tudo isso gera um altíssimo potencial de conflito político entre poderes e de confrontos de rua, inclusive físicos, entre pessoas. Em síntese, o caos social expresso em desordem. Essa é, ao fim e ao cabo, a meta que Bolsonaro persegue, enquanto finge preocupar-se apenas com as urnas. Resistamos ao autoengano: se urnas prometem, cada dia mais, ser um pesadelo para ele, não se deve esperar que marchará para elas como se fosse um líder democrático, porque ele é a antítese disso. É claro que precisamos estar cientes de que o subversivo fará tudo que estiver ao seu alcance para virar a mesa antes disso.  E que quem comanda nossas instituições não pode vacilar um só dia na vigília para impedi-lo de tornar seus planos realidade.

Impedir não é, contudo, virar a mesa antes dele, permitindo que o impulso autocrático que ele encarna retorne ao jogo com força. O tratamento conservador, da democracia sem atalhos, continua sendo crucial para a saúde política e social desse paciente em estado crítico que é o nosso país, por mais enervante e angustiante que essa linha de conduta seja.  Democracia é a vacina, tudo o mais, cloroquina.

Embora a queda de Pazuello sequer tenha sido consumada na prática, as primeiras pistas oferecidas pelo agente Queiroga, um projeto de Dr. No (personagem de romance de Ian Fleming, popularizado pelo cinema, ao fazê-lo antagonista de James Bond, o agente 007), permite também imaginar o que seria um pós-bolsonaro antecipado sob a batuta salvacionista do ex-general Mourão. Ou mesmo a investidura desse último, como quer a procuradoria do MPF junto ao TCU, na gestão do combate à pandemia. Nenhuma morte já marcada para ocorrer, por falta de remédios, oxigênio, ou leitos, deixaria de ocorrer. Mesmo se um anti-bolsonarista autêntico (que nem de longe é o perfil do ex-general em causa) chegasse ao MS, levaria semanas, talvez meses, para conseguir o que hoje falta para salvar vidas de novas dezenas, talvez centenas, de milhares de brasileiras e brasileiros marcados para morrer anonimamente.

É preciso ver que se torna cada dia mais difícil conter a revolta e a suposição de alívio que a ideia de Bolsonaro ser logo afastado produz. Nessas condições, a solução proposta ao TCU, se considerada, poderá produzir mesmo algum alívio, se for uma tentativa de, ao menos, impedir o prolongamento da atual tragédia seguindo semestre afora, que é a missão dada, pelo visto, ao ministro que consta estar prestes a assumir. Ficam, mesmo assim, dúvidas, que nada têm de laterais, sobre o que ou quem levaria Mourão - caso assumisse a gestão da pandemia e até cancelasse a virtual nomeação de Queiroga - a tirar os militares do Ministério da Saúde e sobre até onde iria o seu poder para tirar, de agências governamentais externas ao MS, outros agentes que poderiam ajudar Bolsonaro a minar uma suposta nova política sanitária para perpetrar a próxima etapa do seu plano macabro. Questões em aberto.

A partir dessas dúvidas, alguém poderá argumentar, com alguma razão, que esse paliativo não resolve, sendo preciso afastar Bolsonaro, não apenas da gestão da pandemia, como do próprio cargo que ocupa. Mas ainda que sigamos esse raciocínio aparentemente pragmático, respaldado pela intensidade da atual tragédia sanitária, é preciso indagar, de saída, em que bases poderia surgir, de fato, um novo governo e não apenas a troca do ex-capitão por um ex-general no comando do mesmo governo. Quem, nessa situação ditada pelo desespero, poderia exigir de Mourão o desmonte do atual governo e do dispositivo paramilitar que foi nele introduzido e, com isso, constituir um governo de transição? Mais provável seria que tomássemos o caminho da Rússia, mudando expectativas e regras, para manter a situação.

Com isso não quero dizer que alternativas intermediárias arriscadas devam ser preliminarmente afastadas, em qualquer hipótese. Algo que se considera provável não é sempre uma fatalidade, claro. A política democrática pode criar caminhos onde parece haver apenas muros e precipícios. Essa é a sua missão legítima, desde que se respeite a Constituição, a premissa que a legitima. Mas o que não se pode é ser afoito, ou ingênuo, diante dos perigos. Para evitar risco de Rússia, o melhor é aguentar as pontas até 2022, no limite máximo do possível. E correr o risco de que tentem invadir, antes, o nosso capitólio. Será custoso defendê-lo, mas igualmente preciso.

O desafio à resiliência democrática já era grande, antes da reentrada de Lula no primeiro plano da cena política. Agora, a situação torna-se ainda mais complexa e precisa ser analisada por ângulos diversos. De um lado, é óbvio que mais gente do topo, do establishment, seja civil ou militar, tende a ser tomada, como se fossem ultra-esquerdistas voluntariosos, por uma súbita e suspeitíssima pressa de livrar logo o país de Bolsonaro e entregá-lo a um guardião que atalhe o caminho até as urnas, não para calar a voz do demos soberano, mas para modular a sua fala. De outro lado, a visibilidade que ganhou, há dez dias, uma primeira alternativa pré-eleitoral concreta a Bolsonaro pode fortalecer e animar democratas de várias orientações políticas a persistirem na aposta na democracia, apesar das tentativas de bloqueio a essa reta visão que, por vezes, tornam sinuoso esse caminho.

No horizonte está, como é óbvio, uma eleição daqui a um ano e meio. Ainda bem que assim é. Ligada a esse horizonte, sem se prender exclusivamente a ele, é que pode prosperar uma política de unidade democrática. Com o cuidado de não se fazer dela um evangelho oco, desligado da realidade cotidiana das pessoas comuns. Tão importante quanto pregar unidade é deixar claro o que se quer dizer com ela.

Proclama-se a torto e a direito a necessidade de uma “frente única” contra Bolsonaro. Essa frente única não é e nunca foi provável, do ponto de vista eleitoral. O que se pode ter, ou melhor, o que temos tido é uma frente amplíssima em defesa da democracia contra as investidas golpistas e autocráticas do palácio e de suas cercanias espúrias, visíveis e invisíveis. E mais recentemente nota-se também a formação de uma frente política e social igualmente ampla, em prol de vacinas, de vacinação e do provimento, na contramão da desorientação deliberada que Bolsonaro dá ao governo federal, de mínimas condições de governabilidade e de amparo médico, hospitalar e social nesse instante crítico da pandemia.

Mas isso é uma coisa e a questão pré-eleitoral é outra. Não há como juntar as forças políticas democráticas, de direita, centro e esquerda em torno de uma única candidatura já no primeiro turno das eleições presidenciais.  Se pensarmos bem, isso nem seria desejável, pois anteciparia o segundo turno para o primeiro sem que os eleitores pudessem captar o posicionamento atual de cada força política. Essa visão turva tenderia a reeditar o script de 2018 e o resultado dele, como sabemos, é o desastre que vivemos hoje. Lula e o PT podem até ser protagonistas no novo cenário, sem que isso signifique flertar com a tragédia. Flertar com a tragédia será, sim, repetir, não tanto os atores, mas aquele script. Entre a proliferação de candidaturas ao centro e à esquerda (como houve em 2018) e a antecipação de um segundo turno ainda durante o primeiro, um meio termo é desejável e possível.

Dois processos de agregação oposicionistas podem ocorrer, um na centro-direita, outro na centro-esquerda e ambos tenderem ao centro, com seus candidatos evitando, ao máximo, trocar farpas e assim prepararem terreno a uma aliança no segundo turno. A agregação da esquerda ao centro dificilmente se fará em torno de outro nome que não Lula e de outro partido que não o PT. Já a que pode ir da centro-direita ao centro é só incerteza se o critério for a intenção de voto, cuja medição, hoje, só pode refletir o recall de 2018. Se o critério for o capital político estimado como potencial de voto, a incerteza diminui e sobressai, como já comentei aqui na semana passada, o nome ex-ministro Luiz Mandetta. 

A possibilidade de uma saída desse tormento por uma via democrática torna legitimo que se fale, sim, abertamente, de política, em plena pandemia. Sei que o preço em vidas para manter a democracia está sendo muito alto. Mas os países que conhecem o seu valor, pagam, porque sabem que ela, a democracia, é a única vacina disponível e que, fora dela, não há solução melhor e mais sustentável do que as lentas e penosas soluções que, através dela, a política pode construir. Essa convicção - sem a qual uma sociedade se torna escrava – é que impede elites políticas e sociedade civil de alienarem a condução do país a autocratas, cloroquinas que estão sempre de plantão. Saber recusar, no meio de uma tragédia social, esse barato que afinal sairá mais caro, é teste definitivo de maturidade democrática. A sociedade que passa por esse teste não só se livra do inimigo - ainda que tarde e chore muitas perdas severinas - como submete à justa punição, na devida hora, quem a ele se aliou na hora de batalhas decisivas. 

 *Cientista político e professor da UFBA


Paulo Fábio Dantas Neto: Lula na área - Desjejum, almoço e jantar

O Lula que irrompeu no topo do noticiário dessa última semana é o “sapo barbudo” ou o político “paz e amor? A julgar por seu pronunciamento de retorno ao primeiro plano da cena política, está sendo as duas coisas. No ato político em São Bernardo, na quarta-feira, 10 de março, o eterno metalúrgico saiu de longo jejum guiando-se pelo seu ABC político, que quem tem mais de trinta anos de idade conhece bem. Ele foi o nacionalista e anti-imperialista grisalho, que manifestou reconhecimento a Maduro e ao Foro de São Paulo, o lulo-petista autocentrado, sem qualquer sombra de autocritica, que repetiu várias vezes o "nunca antes nesse país", pelo qual contrasta o PT e ele próprio com tudo o que existiu antes dele e com tudo o que veio depois dele no Brasil; a fera ferida que, entre vírgulas, repetiu o mantra de que houve “golpe” em 2016, que bateu no PSDB, em Temer, na mídia em geral e na Globo em particular.

E foi também, ao mesmo tempo, o político de pés no chão, conhecedor do terreno onde pisa e com o qual se identifica, o pai da pátria que afirmou o Brasil como lugar de paz e de solidariedade, que fala com todo mundo e com o mundo todo, que se declarou sem ressentimentos, mesmo enfatizando a injustiça que sente ter sofrido da Lava Jato, que se reafirmou um defensor da liberdade de imprensa, aberto a conversar com a sociedade e até com a direita sobre pandemia e auxílio emergencial, insistindo que essa é a pauta unitária do momento; e que não fugiu à regra de todo político sensato, que sabe não ser hora de falar em eleição ao grande público, pois compreende as aflições que lhe importam agora.

Lula deve continuar sendo assim por um bom tempo, talvez até a urna, sua íntima.  Ocupa tanto o lugar do homem de luta como o da pacificação. É o candidato da esquerda e é também aquele que pode saltar por cima do centro e atrair o centrão. Perda de tempo querer colar na sua testa a etiqueta de extremista.

O chamado centro não tem a menor chance de ser ouvido agora. Não conseguirá, por mais que tente, ser mais oposição a Bolsonaro do que Lula é, nem conseguirá convencer o imenso eleitorado da direita de que o centro é opção mais segura do que Bolsonaro para evitar a possível volta do PT. Fala e falará para as paredes quem prega, em tese, contra a polarização, um dado do mundo real que só passará a ser visto como algo a ser superado se e quando ficar claro que a reeleição de Bolsonaro é o desfecho provável dela. No atual momento, é inútil. A fênix Lula comunica aos quatro ventos precisamente o contrário, isto é, que essa polarização é o caminho visível a olho nu para livrar o país do extremismo que o desgoverna.  Só depois de meses se poderá medir e saber (por pesquisas e outros termômetros) se a luz no fim do túnel que o ex-presidente promete é comunicação veraz, portanto, promissora, ou esperança vã e perigosa, pelo risco que a reeleição de um extremista de direita representa para a democracia. Nessa segunda hipótese sim, poderá surgir espaço a um discurso real, não só evangelizador, contra a polarização Bolsonaro/ Lula. A fotografia atual da situação dá razão a quem considera essa disputa entre ambos como o que temos para o almoço. Quem recusar essa realidade, arrisca-se a ficar com fome.

Agora, o jantar vai ter esse cardápio também? Ou em um ano e meio o cenário pode mudar? Não me arrisco a passar da fotografia à profecia. É preciso ter em conta que o imenso impacto que a volta de Lula ao protagonismo provoca em tudo ao seu redor vira de ponta cabeça a conjuntura, porque ele, sem dúvida, é um dos eixos que a estrutura e a torna mais clara e compreensível. Mas esse impacto não faz do ex-presidente e seus movimentos chaves interpretativas do que passará a ser esse “tudo ao redor”. O futuro continua a ser propriedade do imprevisto.  A razão humana é teimosa e deseja fazer previsões, mas para que elas não sejam só projeções de desejos, precisam recorrer a hipóteses alternativas, que só podem ser pensadas se usarmos instrumentos de prospecção adequados. Eles existem, para esse caso?

Pesquisas podem sempre ser instrumentalizadas para inflar bolas e criar marolas. Nem se trata de o instituto ser ou não confiável. Mas o que não é, a meu ver, nem informativo, nem educativo, é pesquisa de intenção de voto ser valorizada como bússola, um ano e meio antes da eleição e no meio de uma pandemia, quando os eleitores estão - com toda a razão, aliás - muito distantes de pensar em eleição. É persuasivo o argumento da especialista Márcia Cavallari Nunes (ex-Ibope) que relativiza o sentido, neste instante, de pesquisas convencionais de intenção de voto, que expõem entrevistados a simulações de hipotéticos cardápios eleitorais, quando se está muito longe de definir qual valerá. Assim, o que o Ipec (novo instituto de pesquisa que ela dirige) nos oferece é a detecção de um "potencial de voto" de personalidades “presidenciáveis” sobre cujos nomes, apresentados em separado, sem alusão a qualquer cenário hipotético de disputa, os entrevistados são inquiridos, cabendo quatro alternativas de resposta: votaria com certeza, poderia votar, não tenho informação para saber se votaria e não votaria de modo nenhum. Os resultados não permitem supor o desfecho da eleição, caso ela ocorresse hoje, e sim saber quem tem potencial para concorrer com êxito a uma eleição prevista para daqui a um ano e meio.

A pesquisa foi feita há três semanas, logo, não registra nem o impacto da reativação do fator Lula, nem   a recente escalada assustadora de Bolsonaro na hostilidade a governadores e na negação da tragédia brasileira na pandemia.  Mas vale debruçar a atenção sobre um gráfico dessa pesquisa, publicada pelo “Estadão” no domingo passado (07/03), porque ele mostra, para além de oscilações de conjuntura, o que a matéria chama de “capital político” dessas personalidades, assim entendido: POTENCIAL DE VOTO (que soma, numa faixa azul, quantos votariam hoje com certeza e os que poderiam votar), DESCONHECIMENTO (mostrado numa faixa amarela) e REJEIÇÃO, mostrando, em faixa vermelha, quantos hoje não votariam nesse nome de jeito nenhum. 

Consideradas as faixas azuis, conhece-se quem tem potencial de voto e a manchete do jornal, corretamente, já apontava Lula à frente de Bolsonaro mesmo antes da decisão de Fachin e ambos em vantagem face aos demais. Mas sendo a eleição brasileira em dois turnos, é preciso ajustar a lupa e seguir em frente na análise. Somadas as faixas, azul e amarela, de cada uma das dez personalidades e abatido, dessa soma, o número da sua faixa vermelha, ficamos sabendo quem tinha, em fevereiro, um capital político capaz de chegar lá e, chegando, ter êxito.  Como esperado, Lula e Bolsonaro têm faixas amarelas muito exíguas, ambos com 6%. Na comparação, Lula parecia estar bem melhor nesse ponto também, porque a faixa vermelha de Bolsonaro é maior.

Para uma análise menos estática, é pena que o gráfico não discrimine (não sei o porquê) quem votaria com certeza e quem poderia votar. Para mensurar o capital político de momento faz sentido juntar essas duas situações numa só faixa. Mas para uma prospecção mais precisa e ousada, essa faixa azul mistura alhos e bugalhos, pois uma das situações expressa resiliência e a outra é o elemento volátil, suscetível a discursos, à conduta política diante de problemas relevantes e às estratégias de campanha.

Afinal, as coisas se movem. Depois da decisão de Fachin, do discurso amplo de Lula em São Bernardo e da realidade brutal de agravamento da pandemia com radical insensibilidade do presidente não se pode saber quantas pessoas da faixa vermelha de Lula passaram agora para a amarela ou para a porção mais volátil da azul. Ao mesmo tempo não se sabe quantos podem ter migrado da faixa vermelha de Bolsonaro para a amarela ou a azul depois que souberam que Lula e o PT podem mesmo voltar. Dessas coisas só se saberá nas próximas rodadas. É de esperar que nas próximas divulguem os números em quatro faixas, dividindo a azul em duas, pois é o movimento entre as faixas "poderia votar" e "de jeito nenhum", o que mais interessa acompanhar, no que diz respeito ao confronto Bolsonaro-Lula.

Mas convém olhar também, no mesmo gráfico, o capital político das outras oito personalidades e fazer a mesma conta. Até onde se pode ver hoje, a regra geral é a soma das faixas azul e amarela (potencial + desconhecimento) sequer alcançar a vermelha, ou seja, a rejeição atual desses presidenciáveis tornaria improváveis suas vitórias em segundo turno. A única exceção é Luiz Mandetta. No seu caso, as faixas azul e amarela somadas ultrapassam a vermelha em dez pontos. Isso é um indicador de amplíssimo campo para uma construção do seu nome, caso essa seja uma decisão de forças políticas e não apenas uma pretensão pessoal dele. Sua faixa amarela era tão larga que com ele pode ocorrer tudo, inclusive nada. Compreende-se que esteja quase invisível em pesquisas convencionais de intenção de voto. Mas numa pesquisa de “capital político” só ele e Lula (e ele ainda mais do que Lula) sinalizavam, em fevereiro, rejeição minoritária, isto é, boas chances de vencer, se candidato, um segundo turno. Por isso acho inadequado enquadrar Mandetta na mesma situação onde efetivamente estão Huck, Doria, Ciro ou Marina. Mesmo hoje ainda longe da raia principal, o ex-ministro da Saúde é o único nome da centro-direita, ou do centro, capaz de entrar na arena plebiscitária, onde hoje estão apenas Bolsonaro e Lula.

O caso de Bolsonaro merece comentário adicional. Rejeição, alta e crescente, retira-lhe competitividade no segundo turno. Ele dependeria de um jogo de soma zero com um adversário de rejeição equivalente, jogo em que ataques recíprocos pudessem levar alguém a vencer pela aversão ou pelo medo que possa incutir no eleitor, em relação ao adversário. Seja quem for esse adversário, não terá dificuldade em ampliar tal sentimento contra Bolsonaro, pois o extremismo e a irresponsabilidade do próprio já o faz. A questão é quantos eleitores Bolsonaro, a essa altura da sua escalada, convencerá de que o adversário, seja quem for, é perigo maior do que ele mesmo. Talvez ele pense que um petista (não necessariamente Lula) seja o melhor adversário para si, mas só o tom que Lula adotar confirmará ou desmentirá isso. Sendo ele um craque profissional, e não um Haddad, o capitão não tem motivos para estar esperançoso.

O assunto pesquisas pode render ainda mais reflexão se tomarmos como referência uma modalidade alternativa que, em comparação com a do Ipec, está ainda mais distante de pesquisas convencionais de intenção de voto.  E com a vantagem de ser novíssima, posterior à reestreia de Lula. Foi publicada ontem, no jornal El Pais, a segunda pesquisa do Atlas Político que usa um conceito distinto do de capital político, mas bastante convergente com ele. Avalia imagem de personalidades públicas, também apresentadas aos eleitores isoladamente, não como pré-candidaturas submetidas a comparação com hipotéticos concorrentes.  Simpatia, antipatia ou conhecimento insuficiente para simpatizar ou não, é uma tradução possível do significado de imagem positiva (faixa verde), negativa (faixa vermelha) ou indefinida (faixa cinza). Essas percepções estão ainda mais distantes de uma intenção de voto e por isso não podem também fazer prospecções sobre resultados eleitorais. Mas apontam quais podem ser as candidaturas competitivas, com base em saldo ou déficit entre imagem positiva e negativa.

Um gráfico da primeira pesquisa (janeiro de 2021), segue apenas para ilustrar e permitir, a quem quiser, estudar a evolução, que aqui não comentarei.

*Cientista político e professor da UFBA


Paulo Fábio Dantas Neto: Ciência e política, amantes do possível

O possível não é um dado. É um tesouro a ser encontrado. Quem acusa de inação os buscadores do possível engana-se, ou tenta despistar. O possível está num futuro que depende das circunstâncias do presente. Ele não tem compromisso prévio com a correção de erros do passado nem com a realização de intenções das mentes dos atores sociais. O possível não é conservador nem progressista, ele apenas será o resultado, sempre incerto, de um encontro, ou desencontro, entre a razão e a experiência. Dessa alternativa depende boa parte do que será felicidade ou tragédia, nesse futuro possível. 

A busca do possível requer um passo prévio: reconhecer o impossível para fazer dele uma baliza, em vez de objetivo da busca. Substituir um prévio intento pela aposta em nova possibilidade que reanima e contenta é dar um passo além, não só da impotência que nos incute culpa, como da resignação, que frustra e deprime. Falando assim pode parecer um convite a um passeio, mas a decisão por essa busca é processo dilacerante quando se dá em meio a uma situação crítica, que pode se tornar agonística.

O Brasil vive intensamente nada menos que duas dessas situações críticas. Parafraseando Jobim, não é para amadores lidar com Bolsonaro e Covid ao mesmo tempo. Os dois infortúnios se retroalimentam e isso pode nos fazer crer que um é causa do outro. Mas não é assim. Com ou sem Bolsonaro teríamos que recorrer à ciência para lidar com a pandemia. Com ou sem ela, teríamos que recorrer à política para lidar com Bolsonaro. Política não é vacina contra o vírus. E a ciência não derrotará Bolsonaro. A saída de cena de um não nos livra, necessariamente, do outro. Ciência e política, cada qual deve fazer sua parte. Para isso não precisam, nem devem brigar. E podem atuar de modo complementar.

A ciência, nesse caso, obteve um assombroso sucesso quando ofereceu ao mundo vacinas seguras em tempo recorde contra um vírus desconhecido. A humanidade vê aumentar sua dívida para com ela. O sentido de urgência da ação mais complexa foi atendido porque, desde logo, a comunidade da ciência compreendeu que não havia a solução simples de medicamentos que atalhassem o tratamento. A busca do possível não foi adiada porque se detectou e afastou o impossível do horizonte. A má notícia, acolhida com realismo, em vez de desespero ou depressão, produziu ação. No mundo todo, incluído o Brasil, que, graças à ciência que aqui também habita, está, sob forte tempestade, produzindo vacina.

Os resultados da ação política no mundo são mais controversos (se não o fossem estaríamos falando de outra coisa, não de política) e seus êxitos, menos universais. Para serem avaliados exigem lupas sobre múltiplas realidades nacionais, para o que não há espaço na coluna nem informação em meu poder. É visível, no entanto, a atitude da grande maioria dos dirigentes dos países de alta e média relevância (deixo de me referir aos de baixa relevância não por desprezo, mas por desinformação) de não querer matar a mensageira da má noticia, no caso, a ciência. Aqui é redundante, até enfadonho, assinalar o governo federal brasileiro como uma desonrosa exceção. Sem malhar em ferro já quente, pode-se dizer que, através de suas ações e inações, matou-se e ainda se mata muito mais que apenas a mensageira. 

Mas um inventário da ação da política brasileira em relação à pandemia não pode se resumir aos desmandos e crimes do Executivo Federal e muito particularmente daquele que é seu chefe nominal. Além de equívoco, seria injustiça ocultar serviços prestados pela política nessa quadra difícil. Governadores e prefeitos têm agido, com forte apoio do Judiciário, dando respostas, de um modo geral (quem quiser encontrar flagrantes do oposto, claro que achará), em patamar acima do potencial que a elite política subnacional parecia deter. Expertise em atuar na adversidade é um capital institucional inesperado que ela está a acumular, efeito colateral do treinamento político e social a que esse desafio a está submetendo. Do Congresso Nacional não se pode falar diferente, sendo digno de nota que os conflitos políticos recentes, especialmente na Câmara, não fizeram as duas casas se afastarem do centro da cena do combate à pandemia. Seguem construindo consensos amplos para votarem medidas cruciais de apoio a estados e municípios e de combate a efeitos sociais da pandemia e da crise econômica.

Esse o papel positivo que a política vem podendo exercer, no combate à pandemia, em condições extremamente adversas, maximizadas pela conduta do presidente e pela influência que ele exerce sobre agências do governo e sobre parcelas da população. Papel reforçado depois da detecção do impossível e do seu devido afastamento do horizonte de objetivos da ação. Assim como a consciência de que não havia remédio pronto para tratar a covid incitou a ciência a descobrir vacinas, a consciência de que é impossível, neste momento, afastar Bolsonaro, incitou o sistema político e judiciário a protegerem a democracia dos seus ataques frontais e a fornecer um mínimo de governabilidade ao País. Penso que os moderados resultados alcançados com essa atitude prudente resultam da ambiguidade própria da situação e não podem ser confundidos com intenções de conivência. Essa a imputação feita, a granel, a partidos e a dirigentes de instituições, cavalgando, por ingenuidade ou demagogia, na baixa simpatia popular de que gozam. Não houve até aqui sinais de ambivalência desses dois poderes da República nem quanto à crise sanitária, nem quanto à defesa das instituições democráticas.

Quanto ao enfrentamento político de Bolsonaro, é obvio que a ambivalência predomina. Mas quem quer acabar com ela, cobrando que o sistema político se oponha ao presidente, está em busca do possível? Ou ainda não afastou o impossível do rol de seus objetivos? Percebo que cobram da política que ela não apenas aja, como tem agido, em acordo com a ciência, mas que adote, em sua conduta prática, a ética da ciência e aí não só das ciências médicas e biológicas, mas a das ciências humanas e sociais, quando elas, por algumas de suas vertentes teóricas, se impõem a missão de compreender e também transformar o mundo. Para quem assim se posta palavras políticas chave são movimento e vanguarda. É complicado querer que sejam palavras-chave da ação de quem atua institucionalmente como elite especializada, em arenas racionalizadas de competição política ou de estabilidade judiciária. Num momento crítico de alta tensão e angústia sociais, em que pretensões de protagonismo de movimentos estão limitadas por inclinações conservadoras do eleitorado e atrofiadas pelo rigor da pandemia, esses apelos e cobranças de que instituições funcionem como movimentos chega aos limites da exasperação. Peço licença para fazer uma digressão um pouco longa, em torno da própria ciência social, no intuito de argumentar pela insensatez dessa pretensão. Quem estiver convencido nem precisa se deter nesse ponto da leitura.

“A ciência como vocação” e “A política como vocação” são dois dos mais contundentes textos de Max Weber sobre os paradoxos da modernidade. Em ambos, ele trata de vocação como dedicação a uma profissão. E da tensão entre a aceitação realista de um condicionamento social e a aposta na possibilidade de ação para o sujeito individual. A condição social inescapável é o desencantado mundo moderno, onde impera a racionalização de meios e fins; a possibilidade do sujeito é a escolha de um agir que conecte meio e fim a determinada “causa”. 

Como Raymond Aron chama a atenção, aqui temos, também, um problema existencial: delimitar em que espaços da sociedade a racionalização para objetivos ainda permite algum lugar a outros tipos de ação. A ciência e a política, mobilizáveis, também, por valores, são (ainda podem ser) espaços desse tipo. Desde que o exercício dessas vocações não se insurja contra o que há de inexorável na racionalização que, afinal, também alcança as duas áreas, como todas as demais.

O fato social e o ato individual são - para usar um lugar comum - facas de dois gumes. A racionalização (uma esquina onde se encontram a vontade de emancipação e práticas de instrumentalização) exacerba-se a ponto de reduzir e amesquinhar a razão. A decisão do ator (esquina da aspiração de autonomia com tentações de despotismo) devolve à razão sua amplitude e grandeza, mas ao risco de transpor as fronteiras do irracional. Diante do imprevisível, na ciência e na política persiste, ao menos, o dilema valorativo entre conservar uma estabilidade medíocre, depressiva, ou promover mudança, ao custo de uma insegurança ansiosa. Em outras áreas esse dilema sequer aparece. Foi resolvido em favor da razão instrumental. Ciência e política sobrevivem como domínios onde é possível o agir criativo.

Eis o relevante ponto weberiano que ambos os textos exprimem: o sujeito que adota a política ou a ciência como vocação é, em certo sentido, um sobrevivente no exercício de uma autonomia, mas por ter escolhido uma das duas, nem por isso escapa da condição de mover-se num fio de navalha. 

Mas quanto às distinções entre ciência e política? Elas cabem na distinção, feita pelo próprio Weber, entre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade”? Quem pensa nessa dicotomia – apresentada na parte final de “A política como vocação” - como uma chave para compreender as distintas vocações da ciência e da política, surpreende-se ao não encontrar em “A ciência como vocação” um contraponto à ética da responsabilidade. Esta orienta, claramente, o político por vocação, mas não se constata clareza equivalente na correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A ambiguidade ética da vida política infiltra-se no agir científico, impondo também ao cientista uma negociação com demônios. Sua ética vai além das convicções. Sem isso não nasce a pesquisa científica. Assim como faz a ética da política – e de modo diferente dela – a ética da ciência também contrasta a fé religiosa, certamente valiosa, para outros fins humanos e conforme outros valores. Mas nos dois textos de Weber lemos que ambas (ciência e política) estão expostas a visitas do irracional. São visitas insólitas, que trazem ideais de perfeição. A ideologia, quando fé, faz ciência e política perderem suas razões de ser. Entre as respectivas razões há convergências que balizam a exploração de diferenças e até contrastes entre as vocações da ciência e da política, sem criar um abismo ético entre elas.  Numa palavra, compreender as razões e a experiência da política institucional como distintas das razões e da experiência do movimento social e ver essa distinção com simpatia não coloca ninguém na contramão da ciência. Apenas arma a consciência para não ver a “classe política”, nem mesmo o que se apelidou de centrão, como inapelável aliada de Bolsonaro e do que ele representa. É interlocutora, não adversária.  

A política tem sua ética, ainda que no mundo real predominem simulacros, no centrão e nas “melhores” famílias ideológicas.  Weber fala em política como causa que sustenta uma vocação (profissão) e avisa sobre a impossibilidade de estender à política uma ética única, de fora dela. Essa pretensão é tão irrealista quanto afirmar que a ética da politica não possui nexos com qualquer outra ética (supor políticos santos é tão irrealista quanto supor que todo político é aético). Sim, a ética da responsabilidade (o norte da política) põe em risco a salvação da alma e a ética dos últimos fins põe em risco as metas, por ausência de responsabilidade pelas consequências. As duas éticas orientam diferentes condutas diante de noções de bem e de mal e da irracionalidade do mundo: “O mundo é estúpido e mesquinho, eu não” (ética dos últimos fins); “Eis-me aqui. Não posso fazer de outro modo” (ética da responsabilidade). E arremata: “A política é como a perfuração lenta de tábuas duras (...) somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de tudo!” tem a vocação para a política”.  A reflexão vale como metáfora institucional, por mais que no caso do político beltrano seja descrição veraz e no de sicrano, doce ilusão.

A que serve tanta digressão? Para dizer que, sim, a situação extremamente crítica que vivemos no Brasil com a associação entre Bolsonaro e Covid pode ser enfrentada pelas gramáticas da ciência e da política. Culpa, vergonha, covardia são repertório léxico funcional ao universo bolsonarista, incapaz de explicar o buraco, menos capaz ainda de nos tirar dele, embora essas palavras brotem do desespero de pessoas de várias condições sociais. São autoexplicáveis cobranças de ação contundente e resultados imediatos por parte de quem se vê direta ou potencialmente implicado nas ameaças e delitos diários.  A parte da sociedade que tem consciência das dimensões da tragédia desconfia da fina camada de proteção que as instituições construíram contra as investidas autocráticas, ainda mais se a compara com a jaula em que está trancada, por medo da doença e falta de horizonte. Mas será mesmo uma jaboticaba brasileira?

Essa interpretação sempre se apresenta quando se alega os quatro séculos de escravidão. A lembrança atiça o açoite masoquista. Ajoelharemos no milho por outros quatro séculos e ainda não será bastante para apagar a vergonha que somos como país. Temos tão cronicamente vergonhosas elites civis que cumpre duvidar de tentativas não governamentais concretas de fazer, em hora critica, algo socialmente justo, apesar do governo. São inconfiáveis como parte desse legado espúrio, tanto quanto as iniciativas políticas que tentam levar o governo a assumir seus deveres por caminhos diversos ao da contestação. Quanto ao povo, coitado, se foi capaz de votar em Bolsonaro e de continuar em boa parte crendo nele a caminho do extermínio, dele não se pode esperar nada a não ser que se arrependa da condição de bicho solto e passe a ser guiado por uma vanguarda onisciente que o redimirá para a civilização do dever.

Pois bem, como se sentia e movia metade dos norte-americanos durante os quatro anos de Trump, o ultimo deles passado em interação com a pandemia? E a outra quase metade que seguiu fiel ao mito até as urnas desse ano? Até a invasão do Capitólio não se viu, da parte das instituições da ciência e da política daquele país outras atitudes que não a marcação cotidiana para conter a fera, a esgrima de bastidores e escaramuças públicas pontuais, enquanto movimentos de cidadãos preparavam o acerto de contas eleitoral do qual ascendeu um político convencional e moderado. A opção por pacificação revelou-se rota não só virtuosa, como eficaz. Se devemos fazer de outro modo é preciso dizer o porquê.

Penso que a política brasileira precisa saltar sobre a tardança, não a carregar, como fardo expiatório. Sem sentar sobre ela, nem a ruminar, seguir buscando as vacinas que a ciência produziu, tentando encurtar o tempo, protegendo como possível as pessoas mais vulneráveis durante a inevitável espera e marcando em cima, fungando no cangote do governo, para que não ceda a novas sabotagens do presidente e do seu grupo palaciano, militares incluídos. Se algum plano cabe além desse é o de chegarmos de pé a 2022 para o acerto de contas entre Bolsonaro e a democracia.

A sociedade, partidos de oposição, movimentos políticos e sociais podem buscar formas de expressão contundentes de indignação e contestação. Ao mesmo tempo é importante que cúpulas das instituições continuem a jogar o xadrez político discreto de cada dia, para que a corda não se parta e, com ela, liames que, ainda em pé, ligam o estado e a sociedade emersa ao mundo bruto em que vive o cidadão comum.

Para isso precisaremos vencer a tentação da ética da não aceitação do impossível como tal. Evitar chamar de impotência (uma disfunção) a busca de soluções possíveis, que é o sentido mais próprio da política. Antes que alguém se engane: o que estou dizendo nada tem a ver com resignação, aceitação meramente racional do impossível como tal. Falo é da consciência do impossível ser chave de buscas individuais e coletiva pelo possível. Porque ele, o possível, é o único terreno em que se pode VIVER.

* Cientista político e professor da UFBA 


RPD || Paulo Fábio Dantas Neto: Crônica de um revés parcial - Duas arenas e a política de resistência democrática

Vitória com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente, não é garantia de que Jair Bolsonaro vai ter sucesso na disputa eleitoral em 2022

Na análise das eleições às presidências e mesas diretoras do Congresso não se deve subestimar, ou exagerar, suas implicações sobre a política brasileira. Em especial na Câmara, houve vitória importante do governo federal, mas esteve longe de ser decisiva. É preciso cautela antes de tratá-la como prenúncio do que ocorrerá com o Executivo, a partir de 2022, ou antes. A dinâmica do Congresso é uma, a da disputa presidencial, outra. Na primeira arena, decidem deputados; na segunda, o povo, e inexiste coerência entre suas lógicas. Bolsonaro (sem partido) pode manter sua base na Câmara e perder a eleição apesar disso. Pode perder a base e ganhar a eleição apesar disso, ou justamente por isso.

Na Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) foi o foco de uma disputa politizada pela candidatura da frente partidária que liderou. A frente evoluiu da defesa da independência do Legislativo à oposição ao governo, entrelaçando lógicas das duas arenas. O adversário largara na frente e, pela lógica da arena interna, fez-se elo entre o governo e deputados, individualmente. A campanha de Baleia Rossi (MDB-SP), com discurso democrático, para fora da Câmara, vendo-se em desvantagem, jogou pedras nos votantes. Denunciar fisiologismo esmaeceu a valorização, pelo próprio Baleia, de serviços prestados pela Câmara ao país, sob a gestão de Maia. No contexto de pandemia, a “política dos políticos” tem dado mais do que recebe. Foi seu adversário quem disse isso sem ressalvas, com sotaque corporativo. Todavia, não foi o tom da campanha que derrotou a frente. Maia expressava um centro político contestado, com êxito, pela base governista, usando, em escala inabitual, recursos políticos habituais.

Num quadro de polarização entre governo e oposição, um centro independente, sob forte pressão, tende a ser sufocado se não adernar para um dos lados. A opção de olhar à direita e tentar dividi-la desvaneceu quando a base governista se organizou. Maia fez o que podia, isto é, olhou à esquerda e acenou à sociedade civil. Não bastou. Pode-se arguir que, ciente da inviabilidade eleitoral desse caminho, poderia assimilar a derrota e tentar confiná-la à Câmara, para manter a frente partidária de pé. As eleições presidenciais estão logo ali, caberia cuidar para que a derrota não contaminasse a outra arena.

O resultado da eleição no Senado dispensa resenha. O desfecho considerou a especificidade da arena parlamentar, mantendo teso o arco da promessa de frente democrática. A articulação incluiu partidos que formaram com Baleia na Câmara, ajudou a dissolver a polarização e mitigou a vitória governista. Pela agenda e perfil de Rodrigo Pacheco, o Senado pode ser âncora da resistência democrática, conter crises e construir governabilidade, papéis análogos aos que a Câmara vinha tendo e, por ora, não terá.

A postura de Arthur Lira assusta pelo tipo de populismo de plenário que pode levar a Câmara, sem freios, a votar com violência plebiscitaria. Uma casa como aquela, se não tiver um comando centralizado, é fonte de instabilidade e de pautas polarizadoras da sociedade. Lira prometeu previsibilidade só a seus pares. Se cumprir, a sociedade pode se deparar com um Nero, e Bolsonaro, talvez, com seu Eduardo Cunha.
A Câmara pode colidir com o STF e com o Senado, em autofagia institucional. E, encoberta pelo biombo ruidoso das pautas de costumes, prospera, com a vitória de Lira, uma discreta e concreta estratégia de solapa da Constituição. Ricardo Barros, líder do governo, parece ser o político selecionado para a missão da reforma constitucional que, por atacado ou a varejo, atenda ao continuísmo por três vias, não excludentes entre si: derrubar freios institucionais para que o Executivo se aproprie de joias eleitorais como vacina e auxílios emergenciais a pobres e distribua benesses a setores econômicos; alterar regras eleitorais para facilitar a reeleição de Bolsonaro, hoje dificultada pela regra dos dois turnos; e a “via russa”, da governabilidade semiautoritária à investidura do Gal. Mourão, tecida pelo centrão e militares do palácio, em caso da popularidade do presidente desabar.

Com ameaças de tal monta, que papel pode ter um centro político? Fazer intransigente oposição a desmandos e crimes. Valem manifestos, artigos, panelaços, processos judiciais e resistência parlamentar em defesa da Carta, com articulação entre oposição política e sociedade civil. De outro lado, diálogo constante com elos mais tênues da cadeia governista para bloquear a via russa, no que terão papel o Presidente do Congresso e a ambivalência estratégica de seu partido, o DEM. Assim, a derrota na Câmara será parcial.

Frente ampla ainda pode haver na arena congressual, mas é irrealismo vê-la na eleitoral. Se houver frentes no primeiro turno, tendem a ser duas. Mas há condição de derrotar Bolsonaro, fugindo da Rússia e caminhando, até 2022, colado à via agregadora que livrou o mundo de Trump. Uma sociedade civil que o rejeita, organizações e instituições que podem contestar cada passo extremista e, entre opções ao centro, é possível achar um candidato que fale de vacina, emprego e renda, democracia e pacificação política. Na esquerda, há gente capaz de fazê-la agir no segundo turno como Sanders nas eleições americanas. Desde que, no centro, haja análoga disposição, se a esquerda chegar lá.


Paulo Fábio Dantas Neto: O abismo das esquinas - Conexões entre indignação e política

Na coluna da semana passada procurei economizar em análises para fazer uma exortação a quem ocupa um lugar na sociedade civil e não apenas no eleitorado. Ela foi no sentido de não permitir que a vontade política de se livrar de um presidente extremista e inimigo da república desconecte-se da prudência recomendada pelas urnas de 2020, pelas quais os eleitores indicaram rotas de responsabilidade administrativa e despolarização política.

Hoje retorno a um esforço mais analítico, com argumentos ancorados em dois pontos de observação. O processo sucessório nas duas casas do Congresso Nacional e os movimentos de forças governistas. A intenção é fazer conexões entre eles para avaliar a distância entre o desenrolar de certos fatos e a percepção que motivou a exortação da semana passada.

Sobre as sucessões no Congresso os prognósticos predominantes são de vitória do governo na Câmara e de um acordo interpartidário no Senado, que vai bem além do governismo e inclui não só independentes, como a oposição. Tende a acontecer no Senado uma convergência política maior do que a prometida pela frente partidária que lançou, há pouco mais de um mês, a candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB) na Câmara.

O senador Rodrigo Pacheco (DEM) caminha para a eleição, tendo ao seu lado um arco de forças centrado nos maiores partidos, indicando que sua virtual gestão será marcada por equilíbrio e não, como se propala, por governismo ou submissão institucional. A candidatura oponente, da senadora Simone Tebet (MDB), noves fora seus méritos pessoais, terminou circunscrita a uma minoritária convergência entre antigos “cardeais” do Senado, partidos médios e políticos outsiders. Dentre eles o grupo defensor da CPI da Lava Toga, que faz o discurso da “nova política” emergente das eleições de 2018, relevante na ascensão de Davi Alcolumbre à presidência, há dois anos. Entre os “cardeais” destaca-se Renan Calheiros (MDB), que passou a ver em Tebet e nos órfãos do pragmático Alcolumbre, a chance de dar o troco a esse último e recuperar o Senado para um outro MDB, paralelo ao da Câmara. Essa compreensão do processo diverge da que ganhou a mídia, ou seja, a de que Tebet foi “traída” pelo MDB. Na verdade, ela se tornou pré-candidata por apoios fora do seu partido, por isso quase foi acolhida por ele, mas perdeu a queda de braço. Sua candidatura começou avulsa e terminou avulsa porque o MDB é um partido relevante. Ao apoiar Pacheco, terminou seguindo, apesar do paralelismo de suas bancadas, o rumo seguido na Câmara, aliando-se ao DEM, PSDB e PT.  A política tem uma proficiência que a razão proficiente desconhece. O Senado, que teve dois terços de sua composição alterados no ambiente extremado das eleições de 2018, parece que seguirá, no próximo biênio, script oposto ao daquelas eleições. Enquanto isso, na Câmara, onde prosperou, desde 2019, sob a liderança de Rodrigo Maia, uma estratégia prudencial de política positiva que obteve claro aval nas urnas de 2020, no momento da sucessão de Maia, em que essa política poderia se consolidar, cedeu espaço à lógica polarizadora de 2018, tendo como pano de fundo dessa guinada, o mantra do impeachment.

A princípio, a de Baleia Rossi era candidatura em defesa do Legislativo, voltada a mobilizar a maioria dos deputados para isolar a tentativa de sua instrumentalização pelo Executivo, sinalizada pela candidatura de Artur Lira. Formou-se ampla frente partidária para preservar a independência da casa, que se mostrara essencial no enfrentamento - objetivo e não apenas retórico - da pandemia e das ameaças à democracia. Tudo a ver com o script vitorioso nas urnas de 2020. Mas a campanha seguiu a rota da polarização e, em vez de isolamento do governismo, provocado por energias agregadoras, assistiu-se à ampliação de sua margem de manobra, graças a lógicas centrífugas que marcaram a conduta de vários setores da frente. Paulatinamente forjou-se uma imagem de Baleia como candidato de oposição. A guinada significou o abandono de uma estratégia promissora.

É compreensível a dificuldade de políticos se conservarem “maricas” num contexto em que a indignação comanda. De fato, com os desmandos políticos e administrativos cometidos pelo governo no contexto da pandemia, dramatizados pela falta de vacinas e pela crise de Manaus, o medo geral e a indignação começaram a comandar os sentimentos públicos na sociedade civil, cutucando a vontade política da oposição e criando uma sinergia contestatória que se apresentou como capaz de comover também o eleitorado e criar condições para um impeachment.  Pode ser que mais adiante se chegue a isso, mas essa perspectiva não se concretizaria a tempo de interferir na solução da sucessão na Câmara em favor da alternativa independente. Essa é tributária da persistência da estratégia maricas, que os sentimentos públicos difusos na sociedade civil demonizaram como de conivência com o crime. Nada tinha disso, mas e daí? Cada vez mais vozes somaram-se contra ela entre os apoiadores de Baleia e aos poucos o próprio Rodrigo Maia inclinou-se mais a ouvi-las. Parecendo cansado do modo Tancredo de ser, ele entrou no modo Ulisses de 1973, quando o futuro Senhor Diretas foi anticandidato contra o Gal. Geisel, no Colégio Eleitoral.  Fazer campanha nesse tom, quando os eleitores reais são um corpo político em que a oposição é minoria, explica boa parte das dificuldades eleitorais da candidatura.

A farra de emendas e cargos que o governo promove na Câmara responde, é verdade, pela outra parte da explicação.  Mas o que há mesmo de inédito nisso?  Temer não agiu assim para conseguir se blindar no Congresso? Dilma, que não conseguiu, acaso fez diferente? A pergunta não é por que o governo usa essas armas pois a resposta é óbvia. A pergunta é por que, ao que parece, está tendo sucesso? A resposta, aparentemente óbvia também, de que tem sucesso porque a maioria da Câmara apoia os crimes de Bolsonaro é escapatória ideológica tosca. O bom senso manda buscar e contar outra. Arrisco-me a dizer que o virtual êxito de Lira decorre de que quem opera em seu favor, dentro do governo, já não opera como agente de Bolsonaro. E desse modo chego ao segundo ponto de observação que anunciei na abertura deste texto: os movimentos das forças governistas, a saber, o Presidente e a militância-milicia que o sustenta nas redes, os militares que o cercam no palácio, os políticos e os empresários que apoiam um governo que é cada vez menos seu.

Minha atenção está cada vez mais concentrada no general Hamilton Mourão. Insinua-se, em torno dele, a tortuosa e duvidosa construção de uma saída conservantista para a crise. Se essa percepção for verossímil, Artur Lira, se realmente vencer a disputa pela Presidência da Câmara, trabalhará por essa saída. Em vez de biombo de Bolsonaro seria ele o encarregado da missão de colocar, sobre o pescoço do presidente, uma espada ou uma guilhotina que podem fazer dele um Dâmocles ou um Robespierre.  Faltaria a um herdeiro da política positiva de Rodrigo Maia poder de persuasão para que o capitão se retirasse com medo da sua espada civil e maioria qualificada para mandá-lo à guilhotina do Senado.  Artur Lira, como bom político do chamado centrão, não tem nem uma arma nem outra, assim como é desprovido de linha política. Mas terá, nas retaguardas do presidente, quem lhe empreste uma espada para dissuadir suas resistências. E não lhe faltarão na Câmara os votos para fazê-lo sair por mal. Afinal, se o start vier do próprio centrão, - diria Silvio Lamenha - ser contra quem há de?

A suposta saída conservantista passaria pela derrota de Baleia Rossi, pela implosão da frente que Maia articulou - e não se sabe se ainda lidera -, pelo derramamento espetacular de Leite Moça em telas de variados tamanhos, pela persistência do impasse econômico, pelo agravamento da crise sanitária, e, por fim, pelo impeachment. Muita coisa para uma estratégia só, daí ser ela tortuosa, duvidosa e obrigada a contar, inclusive, com reações anticapitolianas da turma do capitão. Mas, ao mesmo tempo, torna-se crível pela cada vez mais nítida percepção de que Bolsonaro é muito forte para um primeiro turno em 2022, mas um azarão para o segundo turno. Considero improvável que quem divide com ele o palácio resigne-se a cair com ele, nas urnas, a via que existe hoje para oposições o derrotarem. A do impeachment depende de adesão de parte relevante do governismo.  Essa última é o atalho que poderia nos livrar mais cedo da serpente e ao mesmo tempo, a brecha pela qual poderemos herdar os ovos em nosso ninho, por tempo indeterminado.

Se a lógica permite, sigamos na especulação de cenários, já que nos falta a faculdade da adivinhação.  Uma “fase 2” começaria pelo clássico "voto de confiança", que se deveria ao tampão para tirar o país do caos. Prosseguiria em acomodações regionais de apetites políticos, criando a base nacional para a conversão do tampão em candidato à reeleição. O processo poderia ser coroado e abençoado nas eleições de 2022 se o primeiro turno fosse, mais uma vez, um cemitério de alternativas fragmentadas, restando dentre elas a de uma esquerda afirmativa, adversário ideal no segundo turno. Eis o preço político possível do "alívio geral" resultante do cartão vermelho a Bolsonaro. Depois que tirarem o bode da sala, a formação de uma frente conservantista, em torno de Mourão. O centro se dispersaria de novo e quem ficará contra isso? A esquerda. Estará refeita a polarização e com ela, a reeleição de um governo. É pra esse leito que iremos se a sinergia entre oposição política e sociedade civil montar no cavalo da indignação e não no da pacificação.

Claro, isso que acabo de alinhavar não é o futuro. Mas é o tipo de projeto de futuro cujo quartel general só pode ser o palácio. Além desse projeto, só prospera, no momento, como alternativa ao capitão, o "Fora Bolsonaro" que ecoa na sociedade civil. Mas esse caminho, na falta de resposta mínima a uma pergunta (“para que?”) feita pelo jornalista Élio Gáspari, termina sendo, apesar da sua aparência contestadora, um apêndice do pré-projeto que parece se desenhar no palácio.

Uma de várias objeções que podem ser legitimamente levantadas contra essa especulação é a de que seria necessário combinar com o soberano, sem cujo voto, em 2022, a estratégia seria engenhosa, mas inócua. É possível que muitas pessoas imaginem que, nem se todas as vacas tossirem durante os próximos dois anos, o general Mourão se tornará popular a ponto de se eleger. Em tese, há também muitos outros óbices.  A começar pela farda mal lavada dos crimes do passado que já se vê implicada, nos de agora. Segue pelas desconfianças da banca quanto à firmeza liberal desse militarismo planaltino sempre afeito a “projetos estratégicos” e ávido por dirigismo estatal e prebendas do erário. Vai mais longe com a urticária que políticos civis e oficiais militares provocam uns nos outros. Com a imprensa, que deve saber de onde podem partir tentativas de cerceá-la. Por fim, com a pecha de traidor e golpista que lhe seria imputada em todos os espaços que o bolsonarismo pudesse alcançar, com o agravante de que o grito não seria só militante, como foi o do PT, mas teria capacidade de inquietar quarteis pela subversão da disciplina.  

Longe de mim enfrentar essa pauta ainda neste texto. Por ora, vou apenas anunciar que procurarei, na próxima coluna, por em questão a premissa de que o atual vice não poderá se tornar um candidato competitivo. Farei isso partindo da imagem que hoje ele tem, segundo uma pesquisa do Atlas Político, recentemente divulgada. Pelo que até aqui pude analisar dessa pesquisa, ele e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta são as personalidades políticas cujas imagens públicas mais facilitam que se tornem candidatos competitivos numa eleição em dois turnos.

Por hoje, fico no seguinte: Mandetta e Mourão são nomes emblemáticos da esquina política em que o país se encontra. Se pensados como candidatos presidenciais, e não apenas como personalidades políticas, o primeiro é compatível com a estratégia independente, ou oposicionista moderada, que manda levar o barco devagar até 2022. O segundo é a encarnação do impeachment.  Quem força a barra para essa via deve contar com a hipótese de que Mourão não será apenas um tampão. Na dobrada imprudente da esquina, um tiro ao alvo aleatório entre interesses arrivistas e vontades indômitas fará da Constituição de 88 uma candidata a ser a próxima vítima.  

*Cientista político e professor da UFBa.


Paulo Fábio Dantas Neto: Povo e sociedade civil - Prudência e vontades; voto e palavras de ordem

Permitam-me, essa semana, fazer pouca análise. Há momentos em que de tão abundantes, elas se tornam contraproducentes, em seu objetivo de criar uma base racional comum para a discussão política. Quero, como muitos de nós neste instante, fazer uma exortação. Parto da premissa de que a mensagem pode se dirigir tanto a governantes quanto a governados, sem minimizar a óbvia diferença de papeis de uns e outros. Numa república democrática, todos fazem escolhas políticas, embora sejam bem distintas suas aplicações.

Faz menos de dois meses que brasileiros e brasileiras foram às urnas e deixaram um claro recado. Valorizaram bom governo em suas cidades e a política da moderação. Puseram em segundo plano a retórica e as performances populistas, bem como a polarização ideológica.

O que fazer diante disso? Seguir o recado ou tentar modificá-lo? Ambas as opções são possíveis e têm sua legitimidade e sua justificação racional.  Seguir o recado das urnas tem como argumento o respeito a um senso comum, que deve orientar a conduta de qualquer democrata genuíno e dotado de bom senso. Tentar modificá-lo pode ter como argumento a razão fundada num dever ser alternativo a tudo isso que aí está a exigir mais contestação que moderação, e o objetivo, derivado dessa razão, de mobilizar a sociedade para essa luta.

Optar por um caminho ou outro depende, é claro, de circunstâncias. Mas não só. Existem diferentes modos de encarar a política que, uma vez adotados por uma pessoa, ou por uma organização, levam essa pessoa, ou organização, a tender para esse ou aquele caminho. Há quem deseje realizar suas ideias no mundo e, assim, encara a política como instrumento de uma causa projetada ao futuro, como alternativa abrangente aos males do presente. Há quem assume, como causa, a preservação do nosso mundo construído em comum, sendo a política uma atividade mais contida, capaz, porém, de aperfeiçoá-lo, de modo sustentável. Para os primeiros a palavra-chave é vontade. Para os segundos, prudência. O que não quer dizer que toda vontade política é imprudente nem que todo prudente abdica da vontade.

Para entender isso, distingamos o que são visões sobre a política (como instrumento de uma causa ou como ferramenta de melhoria), do que são atitudes políticas - modos, prudente ou voluntarista, de intervir politicamente, decidindo ou influindo sobre decisões. Assim, a visão política pode ser cheia de vontade, no sentido forte do progressismo e isso levar, de fato, a uma atitude voluntarista, mas é possível que um progressista adote uma atitude prudente, submetendo sua vontade a uma gradação, para mudar construindo. Já uma visão política de conteúdo prudencial pode assumir um sentido conservantista, até reacionário, o que constitui atitude política imprudente quando uma situação clama por mudanças. E pode ser prudencial no sentido moderado, acolhendo a mudança sustentável, aquela que não destrói o edifício, caso em que se combinam visão e atitude prudentes.   

Imaginemos a diferença que faz a escolha entre essas duas atitudes (prudente e voluntarista) ser feita por quem governa e por quem faz oposição, não vindo ao caso aqui se cada um dos dois pode ser classificado como de direita, de esquerda ou de centro. É intuitivo esperar de quem governa uma atitude mais prudente e da oposição uma atitude mais animada pela vontade política. Mas é próprio da atividade e da vocação política, em ambos os campos, buscar o equilíbrio entre os dois impulsos. Pois nada muda, sempre que a vontade política da oposição é anulada. E nada funciona, sempre que a prudência falta no palácio.  O recado das urnas de 2020 foi exatamente no sentido desse equilíbrio. Oposição sim, polarização forte não, para que as coisas mudem sem pararem de funcionar.

Prometi pouca análise, logo, não discutirei aqui se as elites políticas (governo e oposições) estão atendendo ao recado das urnas ou tentando alterar o script. No caso do governo, porque é óbvio, no das oposições, porque é controverso e espicharia demais a conversa. Vou tratar é de outra grande diferença que há em a atitude prudencial ou voluntarista ser adotada, não por políticos, de governo ou oposição, mas por cidadãos comuns, que pertencem à classe dos governados, em seu papel bem mais limitado de influir sobre decisões políticas. Sendo ainda mais preciso, vou me referir ao caso da opção por uma das duas atitudes ser feita por cidadãos quase comuns, isto é, governados que não são apenas eleitores - como todos os demais governados são – mas que, além disso, possuem situação social, e/ou informação cultural, e/ou organização política que lhes permitem tomar parte da chamada sociedade civil. É a essas pessoas que a exortação se dirige. Antes dela, porém, vamos pensar em mais um aspecto do problema da decisão sobre qual das atitudes tomar.

É intuitivo, mais uma vez, que se espere mais prudência dos governantes do que dos governados, pelo fato óbvio de que na mão dos governantes é que estão os principais instrumentos de poder. O fato de que numa democracia esse poder é legitimado pelo voto e limitado por uma Constituição só aumenta essa expectativa quanto à atitude política de quem governa. Mas, ai da república democrática que se fiar apenas nessa expectativa racional! É preciso que instituições constranjam a vontade política e obriguem os políticos a serem prudentes, do ponto de vista das atitudes. A vontade dos governos precisa ser sempre contida para que as de todos os governados sejam respeitadas. E a vontade das oposições também limitadas pela lei, para que a vontade da maioria seja cumprida. 

Por fim, é intuitivo também que o mundo dos governados seja a residência das vontades saídas do livre pensar e do agir sem a responsabilidade de governar. E é bom que assim seja. Por ter sido delegado poder a representantes, a cidadania consiste em lembrá-los sempre desse laço original da representação, para que representantes não se sintam donos do poder político, não natural nem hereditário, mas criatura histórica da República. A mobilização de vontades, no eleitorado comum ou na sociedade civil (relembro aqui a distinção, que devo ao professor Cícero Araújo), não é alvo dos mesmos freios institucionais. Sua liberdade é regrada também, mas aí as regras são para assegurar seu exercício, não para limitá-lo.  O que limita é outra coisa, chamada pluralidade social, aliada a pluralismo político, que todos são obrigados a respeitar, para que nenhuma organização social ou visão de mundo possa legitimamente pretender o timbre de estatal, ou oficial.

De tudo isso resulta legítimo e mesmo vital que eleitores e sociedade civil se manifestem com ampla liberdade e de modos distintos daqueles, mais forçosamente moderados, que se deve impor a políticos e mais ainda aos que ocupam governos. A radicalidade das manifestações não pode variar segundo o desejo de quem representa e governa e sim de acordo com o grau de satisfação dos governados. Se satisfeitos, calam; contrariados, reclamam; indignados, gritam. Contudo, todos os cidadãos, sem exceção, precisam ter responsabilidade social e lei como limites, a segunda comparecendo para coagir, caso falte a primeira. Vale tanto para crimes ambientais de empresas, como para greves selvagens.

A responsabilidade social varia também de acordo com a capacidade, de quem se manifesta, de afetar a vida e a opinião dos demais e de influir sobre decisões políticas. Participantes da sociedade civil têm uma responsabilidade a mais do que o eleitor comum. Esse algo mais tem um significado político que não é institucional, mas é importante como contribuição ao fomento de uma atitude cívica prudencial ou voluntarista, na medida em que são, ou podem ser, formadores de opinião.  Não no sentido hierárquico, ultrapassado pela horizontalidade das redes, mas no de uma interação onde níveis de informação e experiências de organização podem ser trocados, em benefício maior de quem, a princípio, possua menos de ambas as coisas. Aqui começa, enfim, a prometida exortação.

Retorno ao recado das urnas, que é o meio primordial, senão o único, pelo qual o eleitor comum pode se manifestar. Penso ser animador que, em 2020, ele tenha valorizado a experiência política e administrativa, ao lado do equilíbrio e da moderação política. O desgoverno federal - que a pandemia escancarou - e a polarização extrema que grassava no país desde 2014, cobraram seus mais altos preços sobre o cotidiano dos cidadãos comuns, dentre eles os mais pobres, que são também pretos. Historicamente desprivilegiados no acesso a políticas financiadas pelo fundo público, distantes de redes de autoproteção social difusas na sociedade civil, são eles que morrem mais de Covid e são eles os que mais sofrem com as lacunas de ação resultantes do desvio de energias da política para embates ideológicos e guerras culturais.  É racional que queiram mudanças na saúde, no emprego e na segurança e que esse seja um querer pragmático, próprio de quem, prudentemente, quer preservar seu mundo comum, tão duramente sustentado por uma labuta cotidiana, em ambiente inóspito. E que sua indignação cívica mais genérica se oriente menos a conflitos institucionais e mais a temas como desigualdade social e racial.  

Sabemos que esse modo do mundo popular sentir a crise que atravessamos não coincide em muitos pontos com aquele que predomina na chamada sociedade civil. Mais uma vez nos pouparei de análise e me aterei ao explicitamente óbvio. No mundo da sociedade civil o que mais conta é o dever ser. Visões de mundo alternativas alimentadas por mentalidades progressistas, bastante inclinadas a ver política como vontade. Sentem os políticos e seu pragmatismo como adversários, ou melhor, concorrentes bem estabelecidos que não deixam os projetos alternativos vingarem. Gente empoderada que chegou antes e maneja os instrumentos que poderiam – imaginam - concretizá-los. Trata-se de conflito de interesses, mas a sociedade civil é também uma usina ideológica e, assim, nas universidades e em outras agências, vigoram teorias de que se trata só de bem comum.

Nesse terreno ativo e imaginativo, que se encontra a uma distância mediana e não a anos-luz dos centros de decisão, prospera, no momento, a ideia de que as 200 mil mortes que a incúria programada do governo provocou exigem a remoção imediata do chefe da organização criminosa. Acompanho sem ressalvas o diagnóstico, embora não essa conclusão política que dele vem sendo deduzida. Aqui não farei a discussão desse ponto porque não faltará oportunidade, uma vez que a palavra impeachment e o comando “Fora Bolsonaro” (ambos acompanhados do advérbio já) demorarão, pouco ou muito, na agenda do debate nacional.  O que quero enfatizar neste texto é o desencontro entre essa leitura política da conjuntura, que avança na sociedade civil e busca pressionar a sociedade política, e o recado moderado das urnas, ainda fresco, de menos de dois meses atrás.  Em si mesmo esse desencontro preocupa, ainda que seja possível e legítimo contra-argumentar que a posição do eleitorado pode mudar, seja pelo agravamento da crise, seja pelas luzes de uma sociedade mobilizada. Preocupa porque a experiência brasileira ensina que esse tipo de desencontro costuma dar em soluções autoritárias. É o tipo do jogo bruto, entre poderosos e desvalidos, no qual não se deve pagar para ver, muito menos blefar.

Friso (não devia ser preciso, mas é) que simpatizo muito com a ideia de impedir Bolsonaro de prosseguir destruindo e matando. Mas se ele me responder “e daí?”, não sei como poderia treplicar sem ser bravata. Ainda assim não me fecho à possibilidade de que o aceno, hoje inconsequente, possa vir a ser consequente amanhã. Mas aqui se trata de exortar, não de especular e a minha exortação é para que não se queime as pontes entre a vontade política que esquenta seus motores e o recado prudencial que recebemos das urnas. Que venham carreatas, mas não em detrimento da energia pacificadora que precisa ser prioritariamente carreada para a decisiva eleição, daqui a pouco mais de uma semana, da Mesa da Câmara dos Deputados, palco aliás de um virtual início de processo de impeachment. Quem disser que é briga de branco ou, mais educadamente, trabalho para a política “tradicional” e não para cidadãos ativos, está cego à alma participativa da democracia brasileira pós 88, comprovada em vários episódios cruciais. E quem candidamente disser que não há risco de uma coisa empatar a outra, pois, ao contrário, a campanha pelo impeachment só pode ajudar a vitória da frente democrática na Câmara, respondo com um “depende”.  A justificativa dessa resposta é o arremate da exortação.

Carreatas estão programadas para esse final de semana. Se forem grandes e unitárias, na composição e no sentido das mensagens deixadas no trajeto, podem mesmo ajudar, de algum modo. Se forem pequenas, apenas deixarão de ajudar, mas não farão mal. Mas há uma hipótese em que podem atrapalhar não apenas ajudando a encalhar a baleia no seco como armando nuvens no horizonte que as eleições de 2020 começaram a desanuviar.

Manifestações por impeachment atrapalharão se essa palavra der lugar a gestos políticos paralelos ou concorrentes, manifestações da “esquerda” e da “direita”, tal como cogitado na imprensa. Implicará em que o restante das palavras proferidas, bem como as intenções comunicadas pelos gestos permaneçam opostas. Os discursos sobre o presente são ambos ácidos, mas não se entendem sequer sobre o passado, recente ou remoto, muito menos sobre o futuro. Os dois campos ideológicos exibirão suas feridas. Mas irão à rua como água e óleo, como se estivessem medindo forças para um confronto entre si, daqui a pouco.

Que País resultará disso senão o da reiteração da tragédia que vivemos hoje? País ao molde de estádios de futebol que só se pode frequentar conferindo a cor da camisa de quem se senta ao lado. Mundos demarcados por paralelas, sem ângulos, vértices, intersecções. Cada qual procura sua turma e grita, não importa se o grito lhe une ou lhe separa do irmão, do filho, do vizinho, do colega de trabalho, do conterrâneo, do concidadão. Do outro enfim, sem o qual você não pode viver.

Vacina, emprego, liberdade, sossego. Essas palavras criam pontes e derrubam muros. É preciso elegê-las, priorizá-las, ao nos comunicar, responsavelmente, com o público mais amplo, seja usando um microfone, apertando uma tecla ou participando de uma carreata. São palavras mais eficazes que o “Fora Bolsonaro” para nos livrar do desgoverno. Com a vantagem de que não só nos libertam, mas constroem algo bom para o lugar da tragédia.

*Cientista político e professor da UFBa.


Paulo Fábio Dantas Neto: Meio de campo já!

“Prezado amigo Afonsinho

Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição

Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou um Tostão
Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão

(Gilberto Gil, “Meio de campo”)

Devo a Luiz Sergio Henriques, amigo, parceiro, botafoguense roxo, acostumado a remar contra a maré, a dica poético-musical para inspirar um artigo sobre política brasileira em semana tão áspera. Parte da aspereza é notar como é difícil, a qualquer bom meia armador, fazer trabalho de costura e ligação quando a tática da moda confia mais em zagueiros e virtuais artilheiros.

Este texto destoa da lógica que orienta pedidos, de boa-fé ou não, para que o Presidente da Câmara dos Deputados se imponha ao tempo e à experiência e aja como senhor da razão, disparando um processo de impeachment contra um Presidente da República aprovado por um terço dos brasileiros e apoiado, no momento, por parte considerável da própria Câmara. Apesar dessas más notícias, acham que o gesto não importaria tanto por suas consequências práticas, mas por despertar a sensação de não se estar parado. Ela parece vital, para esses cidadãos mobilizados, como oxigênio para os pacientes objetivamente exasperados de Manaus

Certamente essa consciência cívica foi atiçada, de alguns dias para cá, por aquilo que muitos pensam ter sido uma boa lição da vitória que a sociedade norte-americana e seu sistema político acabam de lograr contra Donald Trump. O gosto de imitar o que vem “de lá”, faz louvar o uso político que ali fazem de um processo de impeachment como se devêssemos aprender a fazê-lo, sem considerar que lá, ao contrário de aqui, o processo não implica em afastamento imediato do presidente do cargo, até o julgamento pelo Senado. E como se essa medida simbólica, ao “enodoar” Trump, pela segunda vez, fosse parte da vitória e sintoma do seu merecimento. 

Desculpem, mas a meu ver, ela expressa uma prodigalidade de democratas exaltados e embriagados pelo sucesso eleitoral. Confundiram o espaço aberto pela vitória de Biden com senha para abolir o trumpismo por voluntarismo institucional. O que se diria de um processo de impeachment de um presidente em rito sumário - sem ferir a letra da Constituição, mas ignorando a tradição de formar uma Comissão de Justiça para instruir o processo antes da decisão - caso a proeza fosse cometida no Paraguai? Certamente algo diferente do reconhecimento da “robustez” do sistema norte-americano e das virtudes cívicas (leia-se coragem) de seus líderes e cidadãos. Por outro lado, analistas que apontam, compenetrada e burocraticamente, diferenças entre Brasil e EUA, conseguem, em geral, ver duas. Lá tem cadeia pra valer; lá não se baixa a cabeça. Óbvio que a comparação desfavorece o Brasil na linha de criticar "jeitinho" e conciliação como marcas de atraso.

Além de incidir no cacoete que Nelson Rodrigues nomeou - e Eduardo Gianetti traduziu em sociologia política - como “complexo de vira-lata”, essa sentença incorre em distração quanto ao fato de Biden ter sido eleito empunhando enfaticamente a bandeira da conciliação do país, não a da confrontação com um extremista tão criminoso como o daqui.  E de ter sido essa também a sinalização firme e serena das instituições quando o crime invadiu o Capitólio. Em vez de se acusar sumariamente o criminoso, ele foi primeiro instado a recuar e a desfazer o que tinha feito. A justiça republicana é um prato servido frio, Trump e os arruaceiros não perdem por esperar, mas perigos emergenciais têm prioridade temporal sobre a sede de justiça. Já o gesto pelo impeachment sumário, antes da posse de Biden, vai em direção oposta a essa orientação e à mensagem das urnas. Colocou uma bola na marca do pênalti para que Trump chutasse. Ele fez isso com uma fala de pomba, tentando roubar o discurso pacificador de quem o venceu. Quem não sabe perder pode se aproveitar de gente afoita, que não sabe ganhar. Há república na América para moderar, não para consagrar excessos de apetite político de vencedores, nem justificar ressentimentos de perdedores. Essa a sua robustez, a lição que vale aprender.

A elite política brasileira, depois de patinar e se fragmentar, até 2018, perante a blitz da Lava Jato e outras operações conexas, usa sua expertise histórica em conciliação política (que deve ter raros rivais no mundo) para resistir a ataques do bolsonarismo. A partir da pandemia, a cada sensação de perigo fabricado pela aliança entre governo e vírus, tem-se o alivio de ver que o capitão não pode tudo e, embora tenha voltado a veicular imprecações contra a democracia, manda cada vez menos. Desde o começo da pandemia, Bolsonaro ameaça, desgoverna, adia, transtorna, sabota, mas não impede que .coisas importantes andem. Como bem lembra a jornalista Dora Kramer, os fatos mostram que além de nas últimas eleições ter prevalecido o valor do comedimento sobre a exacerbação, o presidente da República e companhia só fazem perder uma atrás da outra para as instituições.

O Brasil chega também a dar outras lições, como a do massivo, plural, transparente e seguro sistema eleitoral aqui instituído, no qual os norte-americanos não fariam mal em se inspirar. Desculpem de novo, mas não é a democracia ou a república que agoniza entre nós e sim concidadãos de carne e osso que precisam delas em modo normal, para salvar suas vidas. Sob perigo iminente estamos todos. Precisamos de vacina e também, para que ela não tarde ainda mais, de um reforço do meio de campo político, para unir a república à sociedade e isolar o adversário comum, inclusive privá-lo, judicialmente, se preciso, de condições de orquestrar a sabotagem da máquina pública. Ela é parte da conciliação.  

Escrevi semanas atrás sobre a eficácia do que chamei de “estratégia maricas”, atitude de conciliação política que tem criado pontes entre sociedade política e sociedade civil, cooperação administrativa entre governos subnacionais adversários, alianças eleitorais entre partidos de campos ideológicos distintos. Claro que nada disso afasta os perigos inerentes ao fato de haver um extremista no topo, mas tem mantido o país com alguma governabilidade e o governo com um mínimo de atividade, apesar do ânimo destrutivo a paralisante do capitão. A trancos e barrancos, a vacinação começará na próxima semana, na seguinte ou no final do mês. Supunha-se isso em dezembro? O horizonte, há um mês, era as calendas e o governo ainda escolhia que vacinas deviam ou não ser aceitas. Isso mudou porque a pressão contínua funciona. A conciliação é atitude e também resultado. Não evita a tragédia, mas que tamanho teria com o adendo de uma conflagração política aberta por um impeachment? A batata de Bolsonaro está assando, mas só lhe deve ser servida se e quando ele não mais puder ser vencedor e se houver evidências claras de que não se trocará um autocrata desgastado por outro, seu vice, que chegue com gás, achando-se digno de crédito de confiança e de carta branca para nos salvar, em razão de uma farda que um dia usou. As contas serão acertadas com Bolsonaro quando for menor o risco de sermos infectados pelo vírus e devorados por ele e/ou por seus áulicos.  Somos reféns? Sim. Essa é uma fatalidade para além da pandemia? Temos motivos para pensar que não.

Comecei este texto com a arte de Gilberto Gil, refinada e popular, como a política precisa ser, sem se reduzir ou retroagir ao elitismo e ao populismo. Terminarei oferecendo, à ansiedade nobre de quem se vê em dificuldade para suportar Bolsonaro, o pensamento não menos nobre de Joaquim Nabuco, que assegura e anima, com a mesma nobreza da arte de Gil: Há duas espécies de movimento em política: um, de que fazemos parte supondo estar parados, como o movimento da terra que não sentimos; outro, o movimento que parte de nós mesmos. Na política são poucos os que têm consciência do primeiro, no entanto esse é, talvez, o único que não é uma pura agitação (Joaquim Nabuco – Minha Formação).

*Cientista político e professor da UFBa.