paulo fábio dantas
Paulo Fábio Dantas: Fusão na direita, campanha na esquerda, hora H no centro
Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno seria, a meu ver, o argumento mais lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via
A maioria das pesquisas está indicando que se a eleição fosse hoje, Lula ganharia no primeiro turno. Portanto, Bolsonaro estaria fora e ninguém da chamada terceira via decolaria. Esse é o retrato atual da realidade. Em resposta a interpretações fatalistas sobre o sentido dessa informação real, o pré-candidato Ciro Gomes lembrou que pesquisa é retrato, a vida é filme. Esta coluna tem argumentado na mesma linha há algum tempo e cheguei a usar essa mesma imagem a que o pedetista recorreu agora. Porém, as fotografias do momento têm sua relevância e vão se tornando cada vez mais persuasivas, à medida que vai ficando menor o tempo que nos separa da eleição. Daí não poderem ser ignoradas.
Um modo vesgo, no entanto, de considerar as boas notícias que pesquisas têm dado a Lula é ver, ao lado delas, como face reversa de uma mesma moeda, o que seria a “surpreendente” resiliência dos índices de intenção de voto em Bolsonaro. Essa surpresa é desatenta ao fato de tratar-se de presidente no cargo, manejando, sem senso de limites, recursos que o cargo lhe disponibiliza, não poucas vezes avançando em direção à ilicitude. Comparativamente, sua performance pré-eleitoral tem sido menos atípica do que as derrocadas abissais acontecidas, em contextos bem diversos, nos casos de Fernando Collor e Dilma Rousseff. O argumento de que os crimes de responsabilidade do atual incumbente são incomparavelmente mais graves que os dos seus predecessores é veraz, mas não cancela a lógica do que está diante dos nossos olhos. É o exercício (o normal e o arbitrário) do poder a explicação para que, apesar dos seus crimes, Bolsonaro ainda conserve apoio político no Congresso e nível de aceitação popular para ir ficando no cargo, mesmo que a cada dia adicione, à sua maligna pobreza de espírito, a condição de alma penada. Vistas as coisas sob esse ângulo, boa parte da surpresa se dissolve. Entretanto, esse não é o ângulo político mais habitualmente adotado nas análises e sim o ângulo do espanto indignado.
Resulta, desse ângulo habitual, outra leitura imprecisa da fotografia do momento. A indignação conecta-se à legitima vontade, animada pelo impacto imediato das pesquisas, de que se faça uma espécie de justiça política, expondo o presidente golpista a uma derrota eleitoral acachapante, infligida pelo seu mais conspícuo oponente. Seu golpismo e sua antipolítica serem rejeitados pela opinião pública e pela esmagadora maioria da população não é bastante. Mesmo se essa condenação for capaz de nos livrar de sua presença nefasta na cena, não morre o desejo de execução explícita da sentença, pelo gesto redentor do voto na urna. Trata-se de desejo social que, além de compreensível, é politicamente positivo. Só não se pode dizer que as pesquisas estão a indicar que esse clímax coletivo ocorrerá.
O que aparece em todas as fotografias atuais (e nunca é demais lembrar que a vida é filme) é a vitória de Lula no primeiro turno. Elas mostram, além de uma virtual consagração do petista, duas virtuais inviabilidades: a primeira – de uma candidatura agregadora e competitiva da chamada terceira via - é apregoada aos quatro ventos por inúmeras análises que são música para Lula e o PT e, ao menos, unguento para o bolsonarismo. Mas a segunda – a virtual inviabilidade do próprio Bolsonaro chegar a um segundo turno - costuma ficar obscurecida pela imaginação desse duelo épico, sonhado por alguns, temido por outros. Mas apesar de desejos legítimos e vieses analíticos, as fotos não mentem.
Digo mais: das duas inviabilidades mostradas nas fotografias vejo a de Bolsonaro como maior porque a ele não basta ficar resiliente. Até para simplesmente ir ao segundo turno, precisa reverter o quadro declinante atual e ganhar pontos, o que, dado aquilo que mostram a tragédia social do país, o estágio atual e as perspectivas da economia, o relativo isolamento político do presidente e sua rejeição crescente junto ao eleitorado, parece ser bem mais difícil do que a duvidosa terceira via decolar. A prevalecer a visão dos céticos, de que tendem a ser mantidas as atuais condições de temperatura e pressão, Lula já poderia estar pensando em qual alfaiate contratar. E como o fatalismo anda em alta e o pragmatismo é previdente, forma-se fila para conseguir assento na suposta arca de Noé.
Apesar disso, não se pode ainda descartar que Bolsonaro vá a um segundo turno amparado em seus resilientes adeptos, mesmo que seja só para tomar uma surra eleitoral. Isso poderá ocorrer se a soma de votos dados a candidatos da chamada terceira via crescer um pouco, o suficiente para garantir a realização do segundo turno, mas sem que, por força da fragmentação desse campo, qualquer dos seus nomes ultrapasse Bolsonaro. Uma pesquisa Ibope da última quinta-feira, por exemplo, mostra que quando se admite um cenário com Sergio Moro candidato, Lula segue com intenções de voto suficientes para ganhar no primeiro turno, porém com menos folga, aproximando-se da margem de erro.
Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno para provocar arruaças no atacado ou a granel seria, a meu ver, o argumento mais forte e lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via com a obstinação que estamos vendo. O único contra-argumento possível, ao mesmo tempo realista e normativo (coisa risível para muitos), é o de que um candidato de terceira via chegar ao segundo turno - ganhando ou perdendo para Lula - faria muito bem ao país, não só porque deixar de se classificar ao segundo turno seria uma contundente derrota política para Bolsonaro, como porque uma candidatura com postura e programa liberal-democráticos é contraponto à maré populista que tensiona o mundo atualmente, com a pretensão de minar a democracia representativa do constitucionalismo liberal e “refundar” a democracia em bases soberanistas. Esse é o sentido político que teria, neste momento, a agregação máxima possível entre centro-direita e centro, chame-se isso de terceira via, ou não.
Como evidência de que o inusitado é componente sempre possível de dada conjuntura política (sendo mais provável quando são conjunturas críticas) há gente na esquerda insinuando (ao menos em ambientes informais) que a iminente fusão DEM-PSL é biombo de uma conspiração para ressuscitar a jamais nascida candidatura do ex-juiz Sergio Moro.
Talvez o desejo íntimo que subjaz a essa especulação seja o de que o justiceiro mítico, hoje opaco, cumpra o desiderato de distorcer e desqualificar a ideia de terceira via, sem direito a apelação. Mas conjecturar sobre uma candidatura que, se fosse possível, só interessaria a Bolsonaro (na medida em que facilitaria haver segundo turno) é um diletantismo que não ajuda a esquerda. A Lula, não tendo ele nada de amador, não deve agradar a hipótese dessa torcida crescer na sua cozinha. Se Moro entrasse no jogo – e isso poderia se dar mais por uso solitário de um atalho partidário como o do Podemos - até poderia mesmo jogar um jato de água na terceira via, mas poderia também, e mais provavelmente, jogar outro jato na chance, hoje muito real, de Lula vencer no primeiro turno. E Lula deve ter motivos para querer essa vitória antecipada, não por mera vaidade, ou por receio de efeitos colaterais da jactância morista, mas porque a vitória consumada em primeiro turno dar-lhe-ia tempo de usar disputas de segundo turno nos Estados para fazer alianças conciliatórias. Elas seriam imprescindíveis para dar estabilidade mínima a um governo seu, que não será, nem de longe, o futuro cor de rosa que ele tem prometido em sua performance populista nostálgica, até aqui a escolhida para o vôo sollo no primeiro turno.
Noves fora a insólita suposição de que políticos profissionais, dentre os quais o próprio presidente do Congresso Nacional, possam servir de agentes do projeto pessoal de um ex-juiz, carrasco da “política dos políticos” e com prestigio cadente, a discussão da fusão dos dois partidos, além de objetivos pragmáticos ligados ao interesse de reeleição de deputados – interesse intrínseco a políticos que atuam numa democracia - sinaliza a disposição da direita brasileira de se reorganizar para fazer valer a sintonia momentânea que seu modo de pensar guarda, em muitos pontos, com o da maioria do eleitorado brasileiro, como foi demonstrado nas três diversas eleições realizadas de 2016 para cá. Tal inclinação conservadora do eleitorado não contradiz a imensa rejeição a Jair Bolsonaro, cuja atitude destruidora de instituições é uma antítese da atitude conservadora. Misturar duas coisas distintas para enxergar na rejeição uma evidente guinada do eleitorado à esquerda, ou mesmo ao centro, seria, no mínimo, uma imprudência analítica.
Por isso, o pragmatismo que guia a iniciativa da fusão está longe de ser evidência de aproximação dos dois partidos a uma estratégia eleitoral de Bolsonaro ou mesmo do governo, se é que alguma estratégia desse tipo existe como plano A do golpista e da alcateia que o cerca. Parece, ao contrário, ser um modo de ambos os partidos se sentirem material e politicamente fortes para se afastarem de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, DEM e PSL freiam o ímpeto de um concorrente de peso – o PSD de Gilberto Kassab – que vinha nadando de braçada, a oferecer boias e botes a náufragos da canoa governista. Nesse mar de águas turvas chega agora um navio de resgate maior. É previsível que o PSD coopere.
A operação, se de fato for consumada, mudará muita coisa (além do que a simples hipótese da fusão já muda) não apenas no palácio ou nas piscinas que o circundam, mas também em todos os campos e quadrantes partidários da política. São muitas - senão todas, exceto as duas nubentes – as forças que torcem ou operam para que a ideia malogre. É previsível que não só o governo, mas interesses distintos joguem firme, oferecendo vantagens, em alianças estaduais, à reeleição de deputados e senadores para atrapalhar a fusão e, se isso não for possível - como parece não ser - para reverter, ou ao menos reduzir, seus efeitos.
O diagnóstico e um dos prognósticos do ex-prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, em entrevista a “O Globo”, são precisos: “DEM migrou para a direita e fusão com PSL será confusa”. Bom de análise, como de hábito, o Maia original não tenta matar o mensageiro da má (para ele) notícia e faz várias observações perspicazes e realistas sobre possíveis percalços da fusão, sem deixar de admitir, porém, chances de êxito e relevância dos efeitos. Apenas deixou de completar seu raciocínio, por compreensíveis razões políticas que não desqualificam em nada a sua análise. É fato, sim, que o DEM desistiu de ter, ao menos nesse momento, o centro como aliança prioritária (até porque o tipo de reação do outro Maia, o Rodrigo, à sua sucessão na Câmara, tornou mais difícil esse caminho, que já era problemático) e resolveu olhar para a direita. A fusão com o PSL expressa essa escolha. Mas para o raciocínio analítico se completar é preciso ver que esse olhar para a direita, por mais confusões que haja a resolver na sequência, está sendo mais eficaz para tirar o DEM da órbita de Bolsonaro. Tudo bem, é pedir demais a Cesar Maia que, além de bom analista ele seja um político desprendido (contradição em termos) e um pai insolidário.
Quem quer realmente uma dita terceira via tem de saber que o relógio está contra ela e que não dá para perder tempo reclamando da fusão de um partido médio da centro-direita com uma direita mais explícita. Se a agregação não ocorrer pelo centro, tende a ocorrer mesmo pela direita. Será um desfecho sub ótimo, do ponto de vista do centro, que não tem sentido demonizar, a não ser que o sentido seja não o de agregar, mas o de concorrer com a centro-direita. Ademais, o DEM não está queimando seus navios ao se distanciar do centro. O aval à circulação do nome de Luiz Mandetta é demonstração disso. Mas as tranças que Rapunzel joga, ainda que como seu plano B, cairão no vazio se o centro democrático não for capaz de provar que agrega mais do que a direita. Se não for capaz precisará considerar, com realismo, que essa agregação que a fusão e suas implicações conservadoras insinuam é, ainda assim, um desfecho mais interessante para si e para a democracia do que a guerra de fim do mundo do virtual segundo turno revanche de 2018 e melhor mesmo que o cenário, menos regressivo, de Lula vencendo no primeiro turno, tal como aparece nas fotos do momento. Há três coisas mais importantes hoje do que tentar imaginar agora quem, afinal, vencerá ou perderá as eleições. São elas a garantia de que as eleições aconteçam dentro das regras, a possibilidade de que aconteçam de modo civilizado, com o país já livre do espectro da reeleição de Bolsonaro e a inclusão, desde já, na agenda política, do debate da pauta do país, enfim, do que se quererá no pós-Bolsonaro.
Para quem não possui ânimo nem conexão governista e também está fora da órbita petista, assim desejando continuar, não existe outra opção além da de persistir fazendo política em dois planos. Um é o da frente democrática ampla, para defender, ao lado da esquerda, a democracia e o processo eleitoral dos perigos - não mais eleitorais, mas ainda institucionais – de desestabilização que o bolsonarismo, mesmo politicamente batido, pode causar através do fomento a um caos social e/ou à violência política. Outro é o da articulação e mobilização pré-eleitoral com foco na maior agregação possível do centro com a centro-direita, através de uma candidatura e de um programa capazes de dialogar também com forças de direita, de centro-esquerda, com pragmatismos do tipo centrão e, principalmente, com os eleitorados dos respectivos campos onde se situam essas forças.
Como já disse e nem precisava dizer, é um roteiro de duvidoso êxito. Acrescento que de complexa execução também e por esses dois motivos, é legitimo considerá-lo improvável. Mas mesmo que os vaticínios se confirmem, há aquela hipótese de agregação desse campo a partir de uma força de gravidade vinda, não dele mesmo, mas de uma estratégia de uma direita de vocação governista ainda não inteiramente desprendida de Bolsonaro, mas em trânsito a uma posição de centro direita, justamente para se desvencilhar dele. Em torno desse script do conservadorismo democrático circula a hipótese, por exemplo, da candidatura de Rodrigo Pacheco. A seu favor, a maleabilidade requerida em operações políticas delicadas, a postura não doutrinária em economia, além do discurso irretocável, tendo em vista os cânones do constitucionalismo liberal. Contra ele, a escassa penetração do seu nome em áreas populares e a percepção desfavorável da sociedade em relação ao Parlamento e a parlamentares em geral, variáveis cuja incidência só seria neutralizada pelo impacto de seu envolvimento positivo num fato ou processo politicamente decisivo. Isso dá lugar a afinidades eletivas (embora não a nexos necessários) entre a ideia de sua candidatura e a hipótese de um impeachment com caráter e dimensões de processo cívico. Mas se o Senado seria o lócus decisivo desse eventual processo, é preciso que sua deflagração seja combinada com Artur Lira e “sua” Câmara. Nesse ponto a incerteza reina.
Independentemente do que cada eleitor, ou grupo de interesse, decida a respeito do seu voto ou apoio, uma via como essa (que não seria mais terceira, mas substituta da primeira via) pode ser vista também como boa notícia para o país, ainda que tenda a estar aquém da plataforma reformadora de cunho social-democrático, que a situação crítica da maioria dos brasileiros requer. Mas isso seria questão a debater e decidir na urna, possibilidade que é horizonte benigno em si, depois de tantos sustos tomados e tantos riscos corridos. Quem leu entrevista recente do ex-ministro Tasso Genro constatará que uma reflexão como essa não pode ser cancelada, simploriamente, como anti-lulismo. É uma reflexão orientada, ao mesmo tempo, por fatos e pelo compromisso com a democracia.
Mas costuma ser mais efetiva na esquerda uma atitude anti-liberal que vincula, tensa e pragmaticamente, o chamado lulo-petismo ao PSOL e a políticos como Guilherme Boulos, a partidos e quadros de organizações de esquerda sem expressão eleitoral, a ativistas de movimentos identitários e a analistas militantes do esquerdismo acadêmico. Trata-se de um maciço ideológico empenhado em não admitir que o "capitalismo" se saia bem da crise provocada por seus contrastes e potencializada pela emergência da extrema-direita global. Crise que é vista, por esses olhos gauche, em chave chinesa, como risco e oportunidade. Por essa ótica Biden pode ter sido aliado tático, mas já é e sempre será adversário estratégico, contra o qual vale até (para alguns mais ousados) ver algum sentido de libertação na luta do Talibã. Nisso acaba dando o fato da 'esquerda ocidental" - especialmente a dos campi universitários e a do hemisfério sul – ter, aos poucos, trocado o Manifesto Comunista (um texto que não xingava e sim analisava criticamente o capitalismo do seu tempo) pela atemporalidade, ou temporalidade recorrente, em aspiral, do I Ching. Filosoficamente, a escolha é livre e nela nada há de ruim. Politicamente, é apenas péssima.
*Cientista político e professor da UFBa.
Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/09/paulo-fabio-dantas-neto-baile-de.html
Paulo Fábio Dantas Neto: Insigths de Mark Lilla e chances de uma política democrática no Brasil
Circulando no Brasil, há meses, provocando comentários elogiosos e indisposições, o livro de Mark Lilla, "O progressista de ontem e o do amanhã", que agora li, animou-me a tocar em temas não habituais para mim. O argumento liberal (mas não tanto), norte-americano (mas não só), pegou-me pela veia, como discurso crítico vigoroso da onda identitária que, segundo Lilla, teria capturado, há décadas, as mentes da esquerda liberal do seu país e feito o Partido Democrata capitular, face ao desafio de falar à nação.
Textos de Antônio Risério já vinham me ajudando a entender o viés político-cultural da argamassa identitária que tem murado – há menos tempo, mas também não de hoje – parte relevante da esquerda brasileira. O livro de Lilla sugeriu-me uma analogia, que arrisco, mesmo ponderando a razão de quem me alerta para uma distinção: identitários brasileiros não refletem tanto o individualismo “pseudopolítico” que Lilla vê nos movimentos que pautam seus correligionários. O sotaque “anti”, “pós”, ou “de”colonial, que movimentos brasileiros sustentam – mesclado, em curioso mix, com retóricas marxistas e perspectivas comunitaristas, religiosas e não – faz com que a sua ancoragem político-partidária dê-se em (ou em torno de) partidos e parlamentares da esquerda iliberal, acentuando, nessa última, o seu pendor histórico a ser uma esquerda “negativa”.
Além dessa discussão, é interessante, no livro, a visão reiterada de Trump como início de nada, exacerbação degenerada do ocaso da era Reagan. Interessante, também, essa visão não levar o autor a um otimismo partidarista, que poderia parecer pragmático, mas seria politicamente tolo. O seu raciocínio é outro: se o liberalismo norte americano está enredado na política identitária, logo, desarma-se, politicamente, para ocupar o vácuo que se apresenta. E mais interessante ainda é onde Lilla resgata cartas de navegação para sair em busca de um discurso liberal “progressista”, capaz, em tese, de fazer o PD voltar a falar ao grande público. É no repertório de métodos e valores de um conservadorismo político que em nada se confunde com a onda reacionária mundial, da qual Trump é a expressão mais notória e Bolsonaro, um arremedo tropical.
Conservadorismo do bem, em primeiro lugar, porque o valor mais acenado no livro é o de uma solidariedade associada à ideia de bem comum. Lilla reivindica, com razão, essa ideia como parte do patrimônio do liberalismo democrático. Mas quando, no contexto da sua crítica à política identitária, ele propõe alterar a agenda dos democratas para não deixar, na mão da direita, a bandeira do sentimento nacional americano, o bem comum surge como obra de uma cidadania política vivida através de instituições do Estado, não de movimentos sociais. Desse modo, o valor da solidariedade tem tradução diretamente política, como antídoto para um déficit que é mais de república do que de democracia. Nesse ponto pode-se chegar, também, a uma analogia com o contexto brasileiro.
Em segundo lugar, conservadorismo moderado, pelo método político. A distinção, até mesmo oposição, entre um espírito político conservador e a anti política, populista e reacionária, que se expande hoje, é um nó a desatar, para que o pensamento democrático saia do aperto em que se encontra. Lilla ajuda a desatá-lo, saltando por cima da dicotomia entre “nova” e “velha” política. Propõe prioridade à política institucional (a “política dos políticos”) e a define como a mais autêntica política dos cidadãos. Contribui, assim, ao debate em que Marco Aurélio Nogueira tanto nos tem feito pensar.
Quanto mais começo a conhecer (estimulado por alunos, é bom assinalar) pensamento de gente conservadora como Russel Kirk, Oakeshott ou mesmo Roger Scruton, mais persuadido fico de que, em suas reflexões, há afinidades, no modo de pensar a política como processo, com a esquerda positiva, que Gildo Brandão tão brilhantemente interpretou e em cuja tradição me reconheço. Por vezes vieram-me à mente, ao ler algo daqueles conservadores, ou sobre eles, passagens de Armênio Guedes (“politizar a ideologia, em vez de ideologizar a política”) e coisas que escreveu Marco Antônio Tavares Coelho, à guisa de enquadramento imediatamente político de uma perspectiva programática. Isso para ficar só em dois desbravadores de nexos entre socialismo, democracia e política, antes de 64, no antigo PCB. Vejo o rastro metódico de Armênio em Luiz Sergio Henriques e, de outro modo, em Luiz Werneck Vianna. São intelectuais que se sofisticaram estudando Gramsci, sem se concluírem como “gramscistas”. Para justificar essa menção, feita sem licença prévia deles, lembro dos belos usos que fazem, respectivamente, das obras de Giuseppe Vacca e Aléxis de Tocqueville.
Mas, pelo que sei, em geral, os reformistas de matriz comunista nunca levamos essas afinidades muito a sério, a ponto de conferi-las. Já tensionados pela necessidade de avistar pontes com o campo reformista liberal para reelaborar "metas" (o que parece ser o caso, por exemplo, de alguns quadros históricos do PPS), deixamos de prestar atenção mais simpática a essa direita tradicional, quase virtual, não para pedir “filiação”, mas como possível diálogo para aperfeiçoar um método que esse reformismo encontrou e adotou nos seus enfrentamentos críticos com esquerdas negativas, em variados tempos e países. Esse método, assimilado e curtido na política, parece ter mais parentesco com o da tradição política conservadora do que com o modus operandi da política liberal.
A cogitação não sai da cabeça, por mais que seja óbvia - e ideologicamente inibidora - a oposição entre o conservadorismo político e o reformismo, esse que é, hoje, talvez, nossa razão se ser. Mas como fazer, nesse canto do mundo atual e nas circunstâncias do Brasil, acontecerem reformas, num sentido "progressista", adjetivo que está no título do livro de Lilla? Vai e volta a ideia que ouvi, há mais de um ano, quase por acidente (ele talvez nem se lembre e aqui vai amistosa indiscrição), de Rubem Barboza Filho: devemos pensar em reconstruir, pela esquerda, a ideia de nação. Um tema conservador?
Parece-me impossível fazer isso, democraticamente, sem dormir com alguns dos que sempre vimos como aristocratas e, portanto, inimigos. Assim como será impossível, a pensadores conservadores brasileiros “do bem”, seguir, à risca, a cartilha anti reformista (embora receptiva a reformas sem ismos) de seus primos anglo saxões. No passado foi Nabuco quem melhor compreendeu isso e, no entanto, seu “reformismo conservador” permanece até hoje como uma espécie de elo perdido no pensamento político brasileiro.
Talvez Lilla tenha me impressionado tão bem precisamente por ser - como foi Nabuco, em outro tempo e lugar - um auto declarado liberal, ciente do valor que o método político conservador tem no embate que trava em seu próprio campo reformista. Talvez devamos, os reformistas mestiços de matriz comunista, fazer algo assim no nosso campo. E com isso, quem sabe, acharmos o elo perdido de uma boa tradição truncada.
A recepção positiva ao tipo de afinidade que Lilla explora, ao pensar, universalmente, sobre o seu país, pode ter, no mínimo, entre nós, o sentido político de propor uma saída de compromisso para evitar a aliança do conservadorismo político esclarecido brasileiro (se é que esse sujeito existe) com a impostura populista que venceu as últimas eleições.
Até certo ponto, é bom que hoje o DEM esteja lá, se puder prevenir (mais) desatinos. Mas haverá um ponto em que será desejável o seu desembarque, para se juntar à reconstrução, como fez o embrião do PFL ao deixar o ninho da ditadura, em 1984/85.
Há um vácuo de opções de diálogo desse tipo no Brasil atual, porque o centro e a centro direita liberais estão bloqueados pela tirania de um fundamentalismo econômico que não nos deixa esquecer o que Gramsci chamava de cosmopolitismo postiço. Também porque há algo de atávico no fato do PSDB não conversar bem com o MDB. O convívio no governo Temer (saudades daquele carnaval) foi a enésima demonstração disso. De outro lado, porque a esquerda não petista (incluindo a nossa franja, auto definida como reformista e democrática) está rouca e de mãos atadas, pelo êxito do fundamentalismo resistencial do petismo, em ambientes onde ela atua. Por fim, porque parece quimérica a ideia de que o PT possa se reabilitar, no sentido democrático e pluralista.
Isso tudo sinaliza que o resgate de uma política de compromisso talvez tenha que surgir de uma ligação direta entre direita e esquerda democráticas, sem a mediação, até aqui esperada, de um ex-centro político que é social democrata na fala, liberal na meta e doutrinário no método. Se tiver futuro, essa ligação evocará a imagem arendtiana da política como um milagre de "nascimento", tornado possível pelos atos de prometer e perdoar. Virtualmente, começaria por um compromisso entre atores hoje invisíveis, sendo até provável que seja preciso criá-los. Mas sem novos instrumentos políticos já nascidos, que tipo de ação pode ter lugar, hoje? Antes de tudo, há os instrumentos da “velha” política real, que podem ser operados com disposição nova, como recentemente argumentou, por exemplo, Eduardo Jorge, num encontro pós eleitoral da Roda Democrática. Além disso, a ação do pensamento, como tem insistido Werneck Vianna.
* Cientista político e professor da UFba.
FAP Entrevista: Paulo Fábio Dantas
Esperar unificação ou até mesmo impermeabilidade política da Justiça brasileira neste ano de eleições parece algo distante da realidade, acredita Paulo Fábio Dantas
Por Germano Martiniano
A insegurança no meio jurídico decorrente da politização do Judiciário neste ano de eleições presidenciais - com exemplos como a tentativa de soltura do ex-presidente Lula por meio de uma ação do desembargador Rodrigo Favreto (TRF-4), numa manobra política liderada por três deputados petistas - aliada à ausência de uma alternativa concreta do centro democrático brasileiro na disputa do principal cargo do executivo brasileiro foram os principais temas discutidos com o cientista político Paulo Fabio Dantas na entrevista da semana da série FAP Entrevista. A série, que a Fundação Astrojildo Pereira está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, tem o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Com mestrado em administração pela UFBA (1996) e Doutorado em Ciências Humanas/Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/IUPERJ (2004), Paulo Fábio Dantas acredita que é ingenuidade se esperar unificação da Justiça brasileira. “Isso não me parece realista e mesmo em tempos de calmaria, é um conto da carochinha. Como seria possível (caso fosse desejável) que o STF, cimo de um Poder, ficasse alheio à temperatura política? O que é anormal é se permitir que ele exerça poder normativo para além da Constituição”, avalia.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista - Como o senhor avalia essa sistemática insistência do PT em desmoralizar a justiça brasileira para soltar Lula?
Paulo Fábio Dantas - Factualmente o problema é anterior à prisão de Lula e não envolve apenas o PT. Desde o final da década passada acumulam-se, lentamente, sinais de alteração da tradição política brasileira, marcada pela adoção do entendimento e da conciliação como método preferencial para a prevenção ou resolução de conflitos. Antes da crise dávamo-nos ao luxo de especular se isso era bom ou ruim e as avaliações variavam, tendentes a sopesar aspectos em uma e em outra direção, crendo todos que as mudanças eram processuais, das políticas sociais ao combate à corrupção. Mesmo após o processo do Mensalão, ao país aparente parecia bastante a prisão de José Dirceu se ela permitia seguir crendo que Lula não sabia de nada. Mas desde 2013, com a não resposta da elite política (governo e oposição) às manifestações de rua e, principalmente, após a entrada em cena da Lava-Jato, em diferentes pontos do espectro político e dos ambientes institucionais prospera a subversão daquela tradição. Sistema político e sistema de Justiça estão em aberto conflito desde que ficou claro, de um lado, que a PF, o MPF e setores do Judiciário optaram pelo caminho de uma faxina ao molde de uma “revolução moral” como base para uma “refundação da República”, encontrando para tanto uma ampla cobertura midiática que potencializou predisposições moralistas presentes na sociedade; por outro lado também ficou claro que, como seria de esperar, o sistema político não se deixaria abater sem luta.
A situação tornou-se mais grave porque essa reação da elite política não foi politicamente articulada e até aqui assume a feição de um salve-se-quem-puder. E aí sim, o PT assume protagonismo, seja por ter sido o alvo inicial da operação moralizante, seja porque tem alta expertise em matéria de construção e desconstrução de inimigos. Sua vocação política, desde o berço, é a da combatividade a partir da auto referência, como de resto é a vocação de parte amplamente majoritária da esquerda brasileira, que ainda não assimilou historicamente, o golpe de 1964 e vive parada naquela estação, em busca de desforra. Não consegue enxergar o imenso passo à frente, o virar de página histórico dado pela transição democrática dos anos 70 e 80. A velha esquerda populista e o PT entraram em simbiose há duas décadas e o resultado é esse aí: um misto de voluntarismo, corporativismo, hegemonismo e ressentimento a que se dá o nome de “resistência”. Lula solto ou Lula preso passou a simbolizar a resiliência ou a ultrapassagem dessa agenda retrô. Penso que o pronunciamento do eleitorado é crucial nesse instante para decidir como sair do ponto morto em que entramos esse ano, desde que tanto o Fora Temer quanto a agenda positiva do governo Temer perderam a vez e o sentido. O fim do Fora Temer convoca o PT às urnas, por mais que Lula tente desviar o partido desse caminho. E o fim da agenda do governo reduz o horizonte da pinguela a um juntar de cacos. Foi assim, está sendo assim. O que se pode fazer? Tocar a vida como ela é, porque por enquanto temos o principal: democracia.
O Judiciário, por sua vez, também não está unificado, como se pode ver por meio de ações de ministros e desembargadores, por exemplo, que se valem de seus ofícios para beneficiar certos políticos e partidos. Aonde chegará essa politização da Justiça?
Penso que chegará até onde a política como vocação (profissão) permitir, pela ação ou pela omissão. E isso está ligado à confecção do cardápio eleitoral (missão da elite política), ao modo de servi-lo aos eleitores (missão dos candidatos e suas campanhas) e ao efeito digestivo pós eleitoral, que é sempre uma interação entre o que se come, como se come e a saúde precedente de quem come. Nos intestinos do eleitorado abundam maus sinais, tanto de constipação por má digestão, quanto de diarréia verbal. Isso torna ainda mais cruciais as missões da elite política de um modo geral (oferecer cardápio leve) e dos candidatos em particular (não vender gato por lebre). Se mal sucedidos ou omissos nesses místeres, podemos esperar que a porta do Judiciário continuará sendo assediada por demandas políticas crescentes.
No mais, não creio que se deva esperar unificação ou mesmo impermeabilidade política da Justiça. Isso não me parece realista e, mesmo em tempos de calmaria, é um conto da carochinha. Como seria possível (caso fosse desejável) que o STF, cimo de um Poder, ficasse alheio à temperatura política? O que é anormal é se permitir que ele exerça poder normativo para além da Constituição. Nesse caso, assumindo (se voluntariamente ou não, pouco importa) papeis que numa democracia são dos políticos, não há como esperar que seus agentes ajam senão como políticos, isto é, estrategicamente. E como são amadores, o fazem desastradamente e permitem vazamentos da sua autoridade para baixo, isto é, não aparentando a isenção que devem sempre aparentar estimulam que a mesma conduta se difunda na base do Judiciário. Em resumo, ao atuarem, inapropriadamente, como elite política “para fora” deixam de sê-lo “para dentro”, como seria preciso.
O senhor disse em seu último artigo "Factoide golpista na ressaca da Copa", que 'é inaceitável que se queira corrigir um suposto erro cometendo um erro induvidoso maior' em relação ao ex-presidente brasileiro. Por que Lula não deveria ter sido preso agora?
Porque a Constituição conserva o direito do condenado provisório ao trânsito em julgado. O STF relativizar esse direito é algo muito polêmico (e se já temos polêmicas de sobra, penso que o Judiciário não deveria provocar novas) mas enfim, o STF criou nova jurisprudência então, paciência, em respeito às suas prerrogativas e também em nome da minimização de controvérsias, deve-se aceitá-la. Mas não seria mais fácil fazê-lo se o STF decidisse de uma vez? E por que diabos a sua presidente não coloca o assunto em pauta e em vez disso permite/fomenta a estabilização da incerteza? Mas ainda que se resolva definitivamente pela possibilidade de prisão em segunda instância (e não vejo nisso problema), possibilidade não seria jamais obrigatoriedade da prisão, como quer a mídia (a “grande” e boa parte das redes sociais), a PF e a parte militante do MPF. E se ao juiz deve ocorrer um juízo de razoabilidade em cada caso, penso que no de Lula ele aconselharia não prender, seja pela ausência de pacificação dos juízos, seja por respeito a uma percepção de senso comum que não deveria ser ignorada. Lula não deve ser candidato pois a Lei da Ficha Limpa impede. Mas por que impedi-lo de se expor na campanha como cabo eleitoral e condenado provisório? Talvez se esteja subtraindo ao eleitor brasileiro a chance de virar a página do lulismo sem margem a esperneio de revanchistas. Pessoalmente ajudaria com meu modesto voto. Seria arriscado? Sim, mas democracia é (também) risco, desde que corridos dentro da lei.
Em seu artigo, o senhor também citou que a ordem democrática ainda não encontrou uma convergência contra os discursos populistas e extremistas. Por quê?
Não tenho essa resposta e duvido que alguém a tenha. Quero antes de discutir isso esclarecer duas coisas: primeiro, que populismos e extremismos também fazem parte da ordem democrática. No caso dos populismos eles são em geral fenômenos cultivados no chão da democracia, embora possamos considerar que muitas vezes, quando predominam, conduzem-na a impasses. E mesmo os extremismos (inimigos da democracia) precisam ser tolerados ainda que sempre vigiados pela lei. É essa tolerância que distingue uma democracia e ela não tem nada a ver com bom mocismo e sim com uma reflexão realista: os preços da não tolerância costumam ser mais nocivos ao ambiente político e social do que as ameaças extremistas à ordem democrática quando essa ordem está legitimamente assentada. Então qualquer posição ou opinião pode ser livre desde que tente prevalecer por meios democráticos, isto é, dispute eleições. O segundo esclarecimento vem do primeiro: se todos (inclusive extremistas) podem disputar eleições dentro da ordem então não tem sentido falar em convergência da ordem democrática. Numa eleição o confronto é salutar. A unidade que na minha opinião deve se buscar – e vem sendo concretamente buscada embora com resultados ainda parcos – é em torno de uma candidatura competitiva capaz de gerar governo e não mais crise. É por isso que tem de ser moderada. O caminho para isso até aqui está bloqueado e isso tem a ver com a perda de fôlego do governo federal a partir das investidas feitas a partir de 2017 para derrubá-lo. Salvou-se mas perdeu força porque várias forças políticas essenciais à sua sustentação retiraram-lhe apoio com os olhos postos no imediatismo eleitoral. Pragmatismo eleitoralmente improdutivo, porque fica no eleitorado a sensação de que as promessas do impeachment não foram cumpridas e isso deu algum fôlego novo ao PT. Era (e ainda apesar do tempo perdido) de se esperar que os partidos e lideranças que se apresentaram ao país como fiadoras daquela solução estivessem juntas em outubro próximo.
Na Conferência Nacional A Nova Agenda do Brasil, organizada pela FAP no início deste ano, teve uma discussão 'acirrada' em sua mesa sobre o papel do Estado brasileiro, que deveria ser mais enxuto, mais regulador do que provedor e até se falou de uma aliança de uma centro-esquerda com os liberais. Não parece contraditório esquerda e liberalismo econômico?
Convergência através de alianças políticas práticas tem havido e não é de hoje, no Brasil e fora dele. A questão naquela discussão foi convergência de pensamento, algo mais perene e capaz de interpelar certezas dos dois campos. O centro não é liberalismo econômico (embora uma agenda comum deva incluí-lo, sem fundamentalismos) e sim a democracia política (com fortalecimento do pluralismo e da representação e com ampliação da participação política), um reformismo social assumidamente incremental e uma perspectiva cosmopolita e amplamente liberal quanto à cultura. Devemos dizer de qual liberalismo se fala. Penso num corpo de ideias que durante muito tempo existiu, conforme a imagem de Raymundo Faoro, como “corrente subterrânea”, um corpo de ideias não convertido em pensamento político conectado de modo feliz com a ação. Conforme a interpretação faoriana esse liberalismo teria sido “arredado” da história política brasileira, com as decisões na política real sendo tomadas ao seu largo. Nabuco?
Na esquerda, ou seja, no mundo das contra elites, parece ter ocorrido algo similar com uma corrente específica dentro da “linhagem” de pensamento que Gildo Marçal Brandão chamou de marxismo de matriz comunista. Essa corrente, que trocou a perspectiva revolucionária pela do reformismo democrático e social, é deslocada no interior da esquerda desde a emergência, nos anos 60, da contestação nacional-popular (à qual se incorporou), depois pela resistência armada à ditadura, e, por fim pela interação desde o final do século passado e, mais tarde, numa estrutura de poder, do nacional-popular com uma concepção iliberal de democracia que crescera no petismo. É um link dos ideários do nacional desenvolvimentismo e da democracia de “alta intensidade” com perspectivas identitárias “pós modernas”, emergentes na sociedade civil. Isso tem levado a esquerda brasileira para ainda mais longe da perspectiva cosmopolita, institucional e incremental do reformismo democrático. Em que isso resultará? Difícil dizer mas uma das hipóteses é que essa esquerda arredada encontre, no campo liberal, a interlocução interditada na esquerda canônica. Afinal o liberalismo, ao contrário, parece “desarredar-se” a cada dia num país em que o acerto de contas com a Era Vargas parece caminhar para um estágio decisivo.
O que o senhor espera do novo presidente brasileiro?
Espera-se que a consciência da improdutividade do pragmatismo raso que ajudou a enfraquecer a pinguela apresse as tratativas políticas para que alguma candidatura moderada e reformista ainda tenha chance de chegar ao segundo turno. Se chegar, minha suposição é a de que vencerá as eleições. Se vencer espera-se que tente implementar a agenda que defendeu na campanha mas com o realismo político de flexibilizá-la para que as políticas sejam aprovadas pela via normal da democracia representativa. Se perder, espero que a agenda siga sendo defendida mesmo na oposição porém que estejamos atentos à necessidade – que é de toda a sociedade - do governo eleito governar.