Paulo Evaristo Arns
Dom Paulo Evaristo Arns, o último Quixote do Pacto das Catacumbas
Arns sempre esteve atento à voz de seu tempo e militou nas fileiras daqueles que preferem apostar na esperança e não no pessimismo
A morte do arcebispo emérito de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, levou o último Quixote do “Pacto das Catacumbas”, selado por 41 bispos presentes ao Concílio Vaticano II, que fizeram juramento de “viver como pessoas comuns”, sem pompa nem riqueza.
Em 1959, quando o papa João XXIII convocou de surpresa o Concílio Vaticano II, mais de três mil bispos de todo o mundo foram a Roma para discutir o futuro da Igreja, que na época havia se distanciado do mundo. Faltaram apenas os bispos que estavam na prisão nos regimes comunistas do Leste da Europa.
Entre aquele exército de prelados tinha de tudo, desde os mais conservadores, entre eles os espanhóis, que nutriam a esperança de que depois do Concílio “as águas voltariam ao seu curso”, aos mais progressistas que, como João XXIII, compareceram ao Concílio com uma esperança de renovação, como, por exemplo, os brasileiros, que se distinguiram por seu apoio à chamada “Igreja dos pobres”.
Entre os brasileiros, destacou-se o recém-falecido arcebispo emérito de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns, que tinha 40 anos na época. Eu assisti às sessões do Concílio como enviado especial do jornal Pueblo, de Madri, em plena ditadura franquista.
Lembro-me do jovem bispo brasileiro, sempre próximo do grupo de bispos mais abertos e entusiasmados coma aquela primavera da Igreja, especialmente aqueles dos países do norte da Europa.
O bispo brasileiro fazia parte dos 41 padres do Concílio que se reuniram no silêncio das catacumbas de Domitila para fazer um juramento de fidelidade às ideias renovadoras do Concílio.
Foi o chamado “Pacto das Catacumbas”. O documento consistia em 13 promessas, entre elas a de, ao voltar do Concílio, viver em suas dioceses como as pessoas simples, sem palácios ou roupas vistosas, sem bens próprios, compartilhando a vida da classe trabalhadora.
Ali foram lançadas as primeiras sementes da futura Teologia da Libertação, da luta pelos direitos humanos e da defesa dos esquecidos e perseguidos da sociedade, que teria sua maior força na América Latina.
Dom Paulo demonstrou até a morte sua fidelidade àquele pacto nas catacumbas de Roma, onde se esconderam os primeiros cristãos perseguidos, entre eles Pedro e Paulo.
Como outros bispos brasileiros –Dom Helder Câmara e Dom Antônio Fragoso–, Dom Paulo vendeu o palácio episcopal para comprar terrenos nos bairros pobres na periferia das cidades, onde levantou comunidades, enfrentou a ditadura militar e dedicou grande parte da vida a cuidar dos presos políticos e a defender os direitos humanos. Seu trabalho pastoral se desenvolveu principalmente nas favelas pobres de São Paulo.
Religioso franciscano, culto e de uma profunda espiritualidade, especialista no estudo da história dos primeiros séculos do cristianismo, Dom Paulo acabou sendo perseguido pelos dois poderes: o de sua própria Igreja, quando o papa João Paulo II desmembrou a diocese de São Paulo e o recriminou dizendo: “a Cúria sou eu”, e o dos militares golpistas. Morreu convencido de que o acidente de carro que sofreu no Rio foi uma tentativa de assassinato.
Foi fiel até o fim às palavras proféticas de João XXIII quando, ao anunciar a convocação do Concílio Vaticano II afirmou que “a voz do tempo é a voz de Deus” e criticou aqueles que qualificou de “profetas de desventuras”.
Dom Paulo sempre esteve atento à voz de seu tempo e militou nas fileiras daqueles que preferem apostar na esperança e não no pessimismo.
Por: JUAN ARIAS
Fonte: brasil.elpais.com
Luiz Werneck Vianna: De quando é bom ter uma pinguela segura
Agora não resta solução senão a de atravessar, pé ante pé, essa estreita que se tem à frente...
Para um observador desavisado, inexperiente de como aqui se vivem as coisas da política, diante do cenário que aí está, nada de estapafúrdio que se lhe dê na telha a ideia de estarmos na iminência de uma revolução.
Nas salas de aula das universidades os estudantes exibem adesivos estampando um “fora Temer”, professores das escolas de ensino médio cumprimentam seus alunos com o mesmo bordão, artistas e cantores populares não começam seus espetáculos sem ele, também presente nas salas de cinema e nos teatros. Uma ex-presidente da República que teve seu mandato cassado, num trâmite que passou pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, que decretou o seu impeachment, em julgamento presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, participa de comícios eleitorais de candidatos às eleições municipais, quando se declara vítima de um golpe, todos são sinais que levam nosso observador a ruminar suas impressões.
Contudo se ele resolver testá-las, levantando a vista para a sociedade inteira, logo reconhecerá o despropósito da sua fabulação. No Congresso, em suas duas Casas, o governo detém folgada maioria, couraça sem a qual não há Executivo que se mantenha, fato ilustrado pela nossa experiência, contundentemente confirmada por recentes episódios. Nas chamadas classes fundamentais, fora a agitação de sempre que lhes é própria, não se percebem outras movimentações que não sejam as da defesa de seus interesses e direitos. No mundo agrário, tradicional calcanhar de Aquiles da política brasileira, sopram os mesmos ventos.
Faltaria, ainda, consultar o que se passa nas eleições municipais, termômetro confiável para o registro dos sentimentos da população, e nos quartéis, cuja importância na tradição republicana brasileira dispensa comentários. Nestes últimos reina, há tempos, a reverência ao culto constitucional e ao exercício dos seus papéis profissionais; nas eleições, que transcorrem em clima morno, se valem as pesquisas – e tudo indica que valem –, as candidaturas que se deixaram embair pelo bordão “fora Temer”, principalmente nas grandes capitais, estão longe de obter votações que as levem à vitória. E, como sempre entre nós, não há melhor detergente em horas de crise política do que um processo eleitoral.
Feito esse balanço, nosso observador admite que se equivocou no diagnóstico. Mas se não é de revolução, do que se trata, que bicho é esse que nos aturde com sua presença? A frase é velha, mas nem por isso perde validade: o passado não mais ilumina o futuro, que ainda não começou a nascer. A hora é de transição, de lusco-fusco, não é mais noite e o dia tarda a aparecer, mas a sociedade se inquieta e começa despertar sem saber o que a espera em meio às ruínas que sobraram dos partidos e, em geral, das nossas instituições políticas.
Ela mudou em meio às poderosas transformações demográficas, sociais e ocupacionais que desfiguraram a paisagem reinante em meados do século passado. Encontramo-nos em terra nova, como se estrangeiros a ela, agarrados a um passado que nos foi familiar, com as relações entre gerações, entre gêneros, sobretudo entre as classes sociais e sistema de crenças girando em gonzos fora do nosso controle e da nossa imediata percepção. A sociedade modernizou-se por cima, sujeita a experimentos saídos das pranchetas de uma tecnocracia ilustrada, impostos a ferro e fogo – exemplo mais recente, o da colonização da Amazônia.
Entre nós, a obra dessa modernização persistiu por décadas, ora por vias duramente repressivas, como no Estado Novo de Vargas e no regime militar, ora de forma doce, como nos governos de Juscelino – que criou no centro geográfico do Brasil, nos ermos do Cerrado, uma nova capital para o País – e nos de Lula e Dilma.
Fora de dúvidas que tais esforços em favor da aceleração da modernização foram bem-sucedidos, em que pesem os altos custos políticos e sociais envolvidos, não só pelo aprofundamento das desigualdades já existentes, como pela condenação da sociedade a um estatuto de minoridade sobre a qual deveria incidir a ação modernizadora do Estado. Não à toa as lutas pela democratização do País trouxeram consigo a denúncia dessa modelagem, filha de nossa longa tradição de autoritarismo político, do que foi exemplar a publicação de São Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza, sob a iniciativa do cardeal Paulo Evaristo Arns, obra coordenada por Lucio Kovarick e Vinicius Caldeira Brant.
Essa nova agenda, nos anos 1980, encontrou no PT uma de suas mais importantes vocalizações. Com efeito, dele vieram críticas contundentes ao nacional-desenvolvimentismo e à cultura política que enlaçava a sociedade civil ao Estado e às suas agências, como no caso do sindicalismo, objeto de feroz crítica das emergentes lideranças sindicais dos metalúrgicos do ABC, Lula à frente, como seu principal porta-voz. O PT nasceu e cresceu em nome de uma representação da sociedade civil que aspirava por autonomia diante da onipotência de um Estado que fazia dela base passiva para sua manipulação.
Como se sabe, esse partido, por fas ou nefas, se converteu às práticas que combatia; e levou-as à exaustão depois de um curto período de fastígio no seu uso, culminando no episódio melancólico do impeachment do mandato presidencial de Dilma Rousseff sob a acusação de ter atentado contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, cuja inspiração oculta, ao impor limites ao decisionismo do Executivo, consistiu precisamente em interditar caminhos ao processo de modernização autoritária vigente por décadas no País.
Agora, não resta outra solução que não a de atravessar, pé ante pé, a pinguela estreita que se tem à frente, de que falou em entrevista o ex-presidente Fernando Henrique, travessia perigosa que, para ser segura, está a exigir outra bibliografia e uma imaginação bem diversa da que nos trouxe até aqui.
Luiz Werneck Vianna: Sociólogo, PUC-RJ
Fonte: opiniao.estadao.com.br