Paulo Delgado

Paulo Delgado: O assador Lira

Quando se formam maiorias predatórias, algo de atentatório à democracia emerge

Se o Executivo quiser humilhar a Câmara por considerar ridículo ter de respeitá-la, a maioria se esfarela. As conveniências venceram, mas como prego mal pregado na parede. Se o presidente não souber lidar com o poder, o humor do Legislativo não vai espelhar o do Executivo. E teremos o parlamentarismo do Centrão.

A concha acústica que seria colocada no ponto mais alto do terreno para projetar o grito de manifestantes para dentro do Congresso jamais foi construída. Mas o espelho d’água para desencorajar a multidão a invadir o prédio, esse, sim, foi aberto.

Senado e Câmara elegeram seus novos presidentes sob a indiferença dos brasileiros. No Senado não foi tanto vitória do governo. Foi o Senado, velho e sem se fazer de caduco, que escolheu um homem jovem, gentil, associativo para enfrentar uma política totalmente sem imaginação. O belo discurso de Simone sobre o mar, barcos e remos se perdeu nas ondas de procuradores imaturos e de um juiz que, se foi duro para perseguir grandes, se viu menor diante de um pequeno. Talvez por isso, a poesia logo foi suplantada pelo discurso de formatura do melhor aluno da turma de 2018.

Um senador sem freios apurou: Simone para lá, Rodrigo para cá, depois morreu. Que gente! Ninguém poderia imaginar que assim contassem votos no Senado da República.

Na Câmara foi diferente. Houve boxe, com socos combinados e frases dirigidas para acalmar a boa consciência de traidores engajados. SUS, rede de proteção social, pauta emergencial, cadeira giratória, todos conheço por nome. Clichês endereçados a aplastados partidos. Uff!

A matemática é inexorável. Dos 211 do bloco de Baleia, 145 votos ele teve. Assolador. Com 247 em seu bloco, Lira obteve 302 votos, revelando que os convencidos eram minoria diante dos dispostos a ser convencidos. Partidos de gente partida.

Não é o apocalipse. Mas há um parentesco natural entre Executivo e Legislativo quando um mesmo apetite adquire peso e a balança do destino coloca a vida perto da necessidade e do medo. Se o Congresso deu outra chance ao presidente, não deve imitar sua deformidade.

A relação com ele é incompatível com a emoção, como bem fez o Senado. Há emoções que ajudam a corrigir e reorganizar o caráter; há outras que o exacerbam. Há inversão de papéis se o Parlamento imagina manipular cordéis do Executivo. Certo que há parlamentares colegas acostumados com a longa prática da hipocrisia que é usufruir o mandato mais do que exercê-lo. Estranho é um número tão grande achar isso natural.

O governo pode ter posto o inimigo em casa. Já o Congresso pode ter armado uma rede em que ele próprio cairá. Se continuar comovido e aceitar suflê, será servido na mesma vasilha do forno sem imaginação do presidente. Em política a distração é cômica.

Todo esse vaudeville é sinal da luta do politeísmo pagão praticado pelos partidos. Alguma coisa lembra George Foreman e sua máquina de grelhar. A iniquidade que a chapa inflige à carne é que permite o triunfo glorioso do churrasco. Mal passado, bem passado ou cru, o assador Lira deve cuidar para produzir pouca fumaça num plenário em que uns nada querem entender, outros nada querem ver e a maioria só vê o que quer. O fácil se torna impossível. E quando se formam maiorias predatórias algo de atentatório à vida democrática emerge.

A tensão é de cabo de guerra. O governo não olha sequer os mortos. Mas a política é um padre mole que une os casais que parentes desaprovam. A hora do divórcio é que interessa em país onde os governos caem de dentro para fora.

Antes do primeiro churrasco Lira homenageia Niemeyer descrevendo a grandeza sutil da arquitetura do plenário. Minutos depois, assentado no trono, queima a carne passada. Anula a votação da Mesa e ataca Maia, inexoravelmente abandonado, sem condições de conter a velocidade da adesão. Fidelidade é guarda-chuva frágil; na tormenta, melhor táxi.

Inacreditável: as 35 propostas prioritárias são um gasto psíquico acreditar. Revelam como a política se desequilibra em desfavor da racionalidade quando os ideais se esgotam. Um amontoado que desvirtua conceitos, privilegia tontices para contornar o custo de enfrentar privilégios. Uma lembra o esquadrão da morte ao defender imunidade para policiais arbitrários. A miscelânea tem gás, água, luz, pedágio, pedofilia, Fräulein, startups, arma, índio e o emergencial é de 2019. Nada sobre os mandarins do Estado, vacina, pobreza, jovem, privilégio militar, desemprego. A incompreensibilidade e o desprezo pela economia fazem o Brasil refratário à evolução humana e a aspirações coletivas.

É uma cegueira fingir não ver que o artificial da economia vai estourar. Manter a estagnação econômica e apostar na pobreza dos não influentes para proteger os influentes da depressão é intelectual e moralmente pouco exigente. A razão da força paradoxal do presidente talvez seja o esforço que faz para manter o estado de crise e evitar que a paz seja um dia longa. Seu jogo parlamentar não se sustenta se metade do dia ele se dedicar à prosperidade de sua reeleição. E na outra metade a impedir a prosperidade da Nação.

*Sociólogo


Paulo Delgado: Incógnitas e lutas caducas

O Brasil parece renunciar ao amor por seu povo. Não há melhores a imitar

Aos trancos e barrancos, em violentas erupções eles governam. Se o país está quebrado, é hora de comprá-lo. Barão de Rothschild vaticina: a riqueza troca de dono quando há sangue nas ruas. Os mercados lucram com a miséria humana, explica o New York Times, porque as bolsas estão bombando na pandemia.

Como o presidente libera sentimentos que ninguém quer ver e em geral destrói todos os que cometeram o erro de nele acreditar, há alguma coisa no ar que não fecha. Declarar a insolvência do Brasil sabendo da manipulação da descrença que a isso se segue permite supor que alguém já lhe deve mais do que ele jamais poderia dever.

Brasil e EUA vivem a moléstia do vitorioso mal-agradecido que debilita a glória de presidir o país pela mortificação pessoal de ocupar cargo acima de seu nível. Porque esse negócio de dizer que não pode fazer nada quer dizer que não pode fazer tudo em regime legal. Alusão ao mundo subterrâneo, motor da palhaçada ultrajante no Capitólio querendo produzir torpor na democracia.

A democracia não tem a velocidade maldosa do impune. Não detém sua esterilidade petulante, nem suaviza a dureza da pedra ou incute valores morais em atitudes destrutivas. Basta uma declaração para resumir a aversão ao diálogo, como campeão de lutas caducas.

Dois países, um mole, outro desarranjado, assistem ao êxtase de líder errado, num concurso de paixão sem razão e capacidade de frear. Impeachment é por crime de responsabilidade. De irresponsabilidade é interdição, desqualificação por circunstância. Como a sorte lançou votos em seu caminho, drenar o pântano é aposentar quem não entende as dificuldades da vida normal e fazer regredir a preferência pelo conservadorismo político desinformado e pelo liberalismo tosco.

O poder não se comove. Quando diz decência pode significar indecência. A confusão se amplia. O excesso de estimulação que recebe o governante produz um vazio extremo no governado que confunde poderoso como alguém de ego forte. Negativo. Forte é a circunstância do ambiente facilitador em que vive. A má autoridade não injuria ou zomba de ninguém. A agressão vem do lugar que ocupa.

Há uma inversão na ordem. Dois países gigantes perdem a fé na sua força por não saberem lidar com problemas pessoais de presidentes e o ambiente de fúria e inveja que propagam. Muitas autoridades trazem de casa seus costumes e ampliam a confusão entre o público e o privado.

O Brasil vive uma desnecessidade de poder. Como se os anéis justapostos do arbítrio, da criminalidade e do delito produzissem uma atividade motora que vai do indivíduo à autoridade, do crime ao tribunal, sem distinção ou limite. Quem julga o juiz em nossa pátria? Quem detém do governante o delito? Quem protege a paz do cidadão? As instituições começam a não desempenhar papel relevante na vida pública, com mãos soltas para executar o que for.

Erra também o Banco Central se deixa sua independência ser entendida como garçonnière de bolsa e suas fantasias. Alienação baseada em comodismo acadêmico supersticioso: considerar o mercado amante volúvel, sem emprego e produtividade. E supor economicamente irracional pensar também em metas de confiança, pleno emprego, crescimento econômico e estabilidade da moeda. Sozinha e paparicada, a moeda especulativa, dogma do iliberal brasileiro, é uma desmaterialização produtiva, que permite que valorização no mercado de ações seja desvinculada da economia real. A economia financeira do risco e som de canhão acha que a paz dá prejuízo.

Assim começa janeiro. A terceira pré-estreia desse filme de quatro anos. E a bagunça geral vai produzindo um País sem testemunha que não sabe que a sucessão no Congresso é a principal decisão econômica de 2021. Ou continuaremos a assistir a bolsa rica e bolso pobre; especulação subir, produção sumir; o empresário investir, o imposto comer; o jovem crescer, o emprego desaparecer. Agravado pelo erro de querer desvincular empresa e escola nas políticas para jovens vulneráveis. Trabalho sem estudo é gasolina na evasão escolar, ponte inútil para o futuro.

O Brasil parece renunciar ao amor pelo seu povo. Não há melhores a imitar. Desde 1926, de Araraquara Mário de Andrade alertava: “Se três brasileiros estão juntos estão falando porcaria... Pode ser que os outros sejam mais nobres. Mais calmos certamente que não. Mas não tenho medo de ser mais trágico... O presente é uma neblina vasta. Hesitar é sinal de fraqueza, eu sei. Mas comigo não se trata de hesitação. Trata-se de uma verdadeira impossibilidade, a pior de todas, a de nem saber o nome das incógnitas”. Enfim, estão aí o ano novo e o mesmo presidente sem horizonte.

Não é a primeira vez que o Brasil vive o amor devorante do narcisista que parece deixar-se amar para levar do outro os esforços em proveito de si mesmo. Diante do deboche e da audácia releiam Macunaíma. Para pular cedo da canoa, dar uma chegada até a foz do Rio Negro, buscar a consciência ali deixada e ajudar a tirar do buraco o ano novo.

*Sociólogo. 


Paulo Delgado: Os pobres como mercadoria

Quem olha em redor só vê o que já viu um dia. É o governo que mantém o pobre fraco

O progresso não resolve todas as angústias humanas, mas o governo deveria organizar-se melhor para ser útil, como o faz para sua autopreservação.

Poderia associar o povo às possibilidades contidas no desenvolvimento social, cultural, técnico e econômico, e não deixar a ausência de renda virar destino. Vulneráveis deveriam ser o governo e sua virtude oblíqua de converter necessidade social em dependência política, um freio no entusiasmo de progredir.

Não é fácil ajudar respeitando a personalidade de cada um. Sonhar, reunir, respeitar e prosperar são companhias essenciais do ajudar, mais comuns à boa filantropia moderna. Quando o Estado faz assistencialismo não alarga horizontes nem rompe limites. Faz corretagem política, uma prática contra a liberdade e a autoridade.

Quem só recebe usufrui sem precisar desejar. O povo põe suas mazelas em perspectiva. Seu caráter acontece, vem do cimento endurecido pela vida. Se alguém lhe oferece algo inesperado, não vê necessidade de justificação. Sabe que são passagens secretas que governos usam para acumular vícios da popularidade.

Outra vez se mudam nomes de programas. Volta a rotina dos eventos de gratificação. Como nada é novidade, para ser escolhido é preciso apagar a memória da esperança desfeita. E assim parecer um número novo, encontrar honra no costume de ser encontrado, sem ser respeitado.

Por meio do apoio do Banco Mundial, a última síntese de estudos sobre a renda básica universal (UBI, de Universal Basic Income) contém uma confissão, em linguagem às vezes inadequada, de um dos fatores do fracasso na eliminação do estigma que é selecionar quem vai receber. Como o World Bank é mais um banco pronto para usar, vamos considerar irrelevante o fato de o texto associar a entrega incondicional de dinheiro para todos a neurotransmissores ligados à vontade de comer.

Dito isso, é possível ler no estudo que a renda universal é uma oferta crocante e tangível para satisfazer o apetite por mudança e justiça social. Isto é, o hormônio monetário é o regulador da igualdade. Ou seja, o mundo, para banqueiros sociais, visto pela ótica digestiva, é prisioneiro de processos metabólicos e a influência de estímulos parecidos aos psicogastrointestinais nas decisões políticas é humana, demasiadamente humana. O coração da ideia é o remédio que prescreve: é preciso dispensar a elegibilidade para contornar erros de exclusão ou inclusão próprios de direcionamento baseado em necessidades.

Daí surge a cobertura universal, para evitar distorções de aplicação. Sintetizando: vamos dar um pouco a todos porque o Estado não consegue digerir bem o trato especial das carências dos que mais precisam.

É possível observar a relevância do tema desde os anos 1960, quando mais de mil economistas e centenas de universidades lançaram um manifesto sobre a renda anual garantida. Além de ser possível listar mais de uma dezena de Prêmios Nobel, de Economia e da Paz, tratarem da questão antes e depois de terem sido laureados.

A questão central permanece. Dar dinheiro torna tudo mais simples e encobre a ineficácia que é querer enfrentar o comportamento manipulatório intrínseco às políticas governamentais. Continua tudo estático ao não perguntar ao necessitado sobre prazer/desprazer, tristeza/felicidade, capacidade/subjetividade. Assim suportado, sem ter como partilhar seus perigos, visto como alguém desobrigado de crescer não é dado por infeliz.

Dinheiro assim é oferta de submissão, não fator de mobilidade social. Não serve para voar além de sua fronteira, negligencia sua personalidade. Insolência paga com bajulação.

De tanto tentar contornar dificuldades e testar incentivos, surgiram inúmeras possibilidades de dar cidadania econômica aos pobres. Resumir todas num cheque serve para facilitar as coisas para quem não sabe resolver a questão da incompetência humana para a justiça social.

Alguns caminhos. Financiar por ativos públicos um fundo permanente para os necessitados, investido em ações e captado sobre recursos naturais da União, pertencentes ao povo. Parece mais adequado do que aumentar o imposto ou sacar a descoberto do Tesouro. Exigir compromisso social da inteligência artificial para estimular outras formas de trabalho, inovar no emprego. Ações de transferência real de renda incluem acesso universal a serviços essenciais, proteção integral na primeira infância, expectativa concreta de aprender, cidadania patrimonial com a segurança de ter pelo menos uma casa, acesso a alguma forma de seguro, desoneração tributária por solidariedade social, etc. São caminhos para livrar o governo do clientelismo, o conhecimento imperfeito do que é um cidadão.

O País perdeu a novidade. Quem olha em redor só vê o que já viu um dia. É o governo que mantém o pobre fraco. Ambos sem horizonte cultural, respaldo jurídico ou eficácia econômica. Tratado como simplório, e como matéria-prima do fluxo de poder individual do governante, o pobre continua mercadoria cativa da vida política e social injusta, razão de seu destino econômico precário.


Paulo Delgado: O homem da coragem errada

A palavra insincera cumpre a função de abolir a relação com a realidade que incomoda

A qualidade de governante não se adquire sem fundamento, especialmente se o rolo compressor que brota de individualidade exacerbada é safra diária de disparates absurdos.

A combinação de coragem errada com circunstância ruim é um desastre. Abrir a boca para berrar só piora se a educação é nota de rodapé e o texto principal, palavrão. A agressividade nele é um método cujas ameaças são um ardil.

Sempre foi admitido no círculo das instituições mesmo quando as criticava sem pudor. Sua lógica é parecer fora dos costumes desde que foi inocentado no STM por desonra de conduta e nunca punido pelas injúrias e pelos desacatos como deputado. Duas escolas que tiraram dele a noção de castigo. Percebeu que a verdade é diminuída em valor quando a autoridade, civil e militar, de direita ou esquerda, está bem confortável em seu cargo e disposta a acreditar no que for.

Obtendo sucesso como um fora da ordem se envolveu em ações inimagináveis, bem abaixo do padrão de um país que fala tanto em Estado Democrático de Direito. E constatou que os fatos, vindos dele, não valem como prova. Bingo. Beneficiado pela simbiose dos radicais – um pacto entre espalha-brasas cujos extremos se alimentam –, livrou-se do confronto adulto e informado, o único que pode realmente detê-lo. Pôs em prática a ideia de que o medo ativa o inimigo. E decidiu que amigo é quem embarca na aventura destrutiva em que vive.

Uma boa maneira de conhecer a vida dos homens é observar o tom de voz e a frequência das palavras que usa. A palavra insincera cumpre a função de abolir a relação com a realidade que incomoda. Escorre e arrasta a culpa para longe da consciência que a utiliza. Deposita no outro a responsabilidade que não assume.

Ele está levando uma surra dos estereótipos que cultiva. Esqueceu-se de que na última eleição para presidir a Câmara teve quatro votos. Nem o filho votou. Mas como caiu para cima, sem nenhum atributo de liderança, mantém a astúcia: ser hostil à divergência de opinião é a principal característica do sucesso político há mais de 30 anos.

A reunião não seria jocosa mesmo se a veneziana continuasse fechada e o creia-em-mim não fosse tão paranoico. Já são 16 as vezes que a palavra-espetáculo que mais o excita é a referência ao sêmen usada como ponto final da frase. Um verdadeiro doping vocabular: não haverá outro dia igual a ontem; eu sou a Constituição; não respondo a ninguém que queira me julgar; não cedo ao Estado meu poder. Somado a essa mania de distorcer tudo, fazer gato-sapato da história dos judeus e misturar Confúcio com ignorância.

O sujeito cindido e espaçoso é assombrado. Meios-tons na economia, strip-tease na política, desprezo por doentes, apartheid social-ambiental rebaixando o perfil internacional do País. Jogador treinado no ringue parlamentar, usa o baralho sem conhecer todas as cartas e ameaça com recursos de poder que não possui.

Mas joga a isca. Anunciar, sem ser contestado, que tem seus tontons macoutes voluntários e ativos é de rir sem alegria. Ai de ti, SNI. A ameaça sem dubiedade às instituições Supremo, Congresso, mídia lembra “acorda, amor. É a dura, numa muito escura viatura”.

Os serviços de inteligência estão totalmente atomizados e acabam operando uns contra os outros. Não servem nem para antecipação de decisão, nem para contrainformação. Ao invés de o Estado organizar sua sinergia para proteger o País, o presidente usa os buracos na doutrina de segurança e defesa para fazê-la mais vulnerável.

Interessante é saber de onde vem esse desejo de desobedecer. Com as críticas do ministro da Justiça soubemos como se concilia o sistema de Justiça com a ideia de que “lei errada não se cumpre”. O crime organizado gosta da confusão criada por presidente que prega não ter medo da ameaça legal.

Refém do temperamento bilioso, coloca, cuidadosamente, a mão suja na mão de quem lhe estende a mão, assinando a culpabilidade de um Estado que zomba da doença e da morte. Quanto ao resto, quem quiser ver algo melhor que veja. Na eleição desanca o Parlamento, no governo confirma o ditado: quem não tem cão caça como gato.

Domingos imorais. Quando a pata do animal escavou o asfalto em busca de um ponto de apoio o arreio afrouxou e ele caiu do cavalo dias depois ao escorregar em outro Estado. Foram cinco voltas inúteis num Super Puma, porta aberta, pondo todos em risco. Se fosse bombeiro não se exibia, nem pisava na mangueira.

A combustão alimenta o paradoxo. A cada hora finge ir ao máximo nas palavras por imaginar que no grito tira a vantagem de quem o ameaça. As aversões ocultas, as dificuldades de apego, a falta de altruísmo e empatia não caracterizam nosso Estado. Governante que induz a população, durante pandemia, a desprezar os riscos de adoecer e morrer pode terminar em tribunal de reparação.

Mantida ativa a sementeira o grão se multiplica em cem, desatarraxa a sociedade e atrela a democracia a um alfinete. Destravar a granada é enquadrar seu impulso de guerra na sabedoria de buscar a paz obrigatória, dever de quem governa.

  • PAULO DELGADO É SOCIÓLOGO. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGADO.COM.BR

Paulo Delgado: Emergência e democracia

Berrar instruções para a morte é querer companhia para plano de extinção pessoal

Um mal-assombrado uso do poder nos dilacera: isolamento voluntário de todos ou solução final para a velhice. A esse delírio absurdo e não cristão soma-se a perda de contexto da missão fiscal na economia, deixando a cartilha liberal sem norte para fazer o que precisa.

Uma parada global sincronizada, um governo incapaz de estabilizar suas ações. A confusão alucinatória do presidente, fustigando sem pudor seu ministro da Saúde, estressa mais ainda o cenário e pode levar o Brasil a ser o maior perdedor entre os emergentes. Enquanto o palácio boicota a Nação, o povo ainda encontra temperança, seguro de que nenhum princípio humano ou ético é violado pelo Ministério da Saúde ou pelos governadores.

Itamar, maduro e experiente, custou-lhe tanto a acreditar no Real que o ministro da Fazenda virou o autor do plano, salvando o País da inflação. Jair, o verde, despreza tanto a doença que o ministro da Saúde é que vai salvar o País da infecção. Mandetta, a URV do coronavírus, é mais do que governo. Virou ministro da República.

Lançando sombras sobre o País, parte do governo parece mais agarrada à bolsa do que à vida, convicto de que saúde pública atrapalha a economia. Viúvas do mundo velho, não conseguem realizar o luto pela morte que o vírus impôs ao estilo de vida moderno. Stop. A vida parou, ou foi o presidente? Antifuturista, martirizado pela desinformação, finge governar.

A democracia é forte, mas não é um regime de força. Confunde quem trabalha com expectativa falsa e não consegue agir certo diante de dificuldades. Que governante se mantém à tona sugerindo que o bombeiro salve os móveis e deixe a família se queimar? Acreditar nele é como segurar água na mão. Com atrevimento diz sem pensar o que pensa. Está virando o nome do desastre. Schettino, Schettino, não abandone o navio na hora do naufrágio!

Não é difícil manter a democracia em situações de emergência. Mas que trauma leva o presidente a se identificar tanto com esse vírus a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo? Quem sabe o Centro de Inteligência do Exército de Agulhas Negras o alerte para o que dizem os modelos estratégicos de enfrentamento de populações abandonadas e em pânico. Não é em todas as situações que o homem escolhe sua saída.

Não é fácil conciliar democracia e emergência quando a situação exige mais cérebro e sentimento do que desejo e força. O método de convencimento democrático, pelo isolamento voluntário a pedido da autoridade sanitária, é o melhor para conter a doença. Ajuda, ainda, na preservação do tempo de esperança e solidariedade capaz de soerguer a sociedade depois da desgraça.
Para isso é preciso abandonar qualquer fraude no comportamento. O que houve no mundo foi mais do que uma parada repentina tirando a liquidez dos mercados. Diante da inadimplência geral, e vendo a riqueza sem movimento, a autoridade que não considera o PIB um conceito de fluxo, e não gosta do papel do Estado, sente-se catatônica.

A espiral negativa quando atinge o capital e o trabalho tem de ser amenizada prontamente pelo Estado, recalibrando sua relação com a base fiscal e monetária. O ultraliberal, não podendo ser dogmático, sente-se um insincero titular do poder. Não é burocracia, é a filosofia a razão da demora em estancar a infecção na economia.

É hora da união, de os estadistas de todos os setores afirmarem que é desaconselhável romper o isolamento e obrigatório o Tesouro impulsionar a salvação do País. Por que na emergência a economia se desmancha? Que país é esse que supõe que a vida humana vale menos do que dois meses de produção econômica? Se não há uma base existencial mínima de entendimento, fiquemos com a principal: se somos uma democracia, não precisamos usar a força.

Não é preciso abrir o embrulho para ver o que contém. O universo paralelo do presidente se desfez com a pandemia. Eleito pelo modelo mental virtual, por onde não passa nenhuma privação, ele se virava com retórica, sem ligar para autoridade. Agora o cálculo estratégico que opera, ao jogar com o vírus imaginando não quebrar a cara, parte da ideia de que o Brasil sofre, mas não morre. O ponto de equilíbrio surgirá quando as instituições democráticas o convencerem de que não há necessidade de o País todo sofrer, talvez ele, mantida sua prerrogativa de falar pelos cotovelos.

Há atletas a quem a camisa pesa. Outros, cansativos, acionam uma necessidade de atenção maior do que a que podemos dar. Imaginem estado de calamidade, tendo de suportar coexistência e hierarquia com um governo que se esfrangalha ali onde a fantasia se choca com a realidade.

O mundo intrapsíquico de quem vê a política como jogo trapaça-charlatão-sabichão não prevê desmoralização. Mas se diante do nada até a incompetência costuma ser aceita, quando há necessidade de comando e controle profissional não adianta falar mais alto. Concepções vagas de como governar no temporal podem não corroer os ossos da raiva. Mas berrar instruções para a morte é querer companhia para um plano de extinção pessoal.

 


Paulo Delgado: Mecânica do poder

Nosso slogan é a estupidez da política, o caminho que o Brasil escolheu para fracassar

Tem sido difícil ajudar o Guedes, é o que se houve aqui e ali entre intelectuais vinculados às atividades econômicas. Na área acadêmica a antipatia é esperada, pela linguagem coercitiva e disciplinar característica do governismo atual. Presume-se que a defesa do liberalismo não visa unicamente a mudar as habilidades no trato da política pública, mas a fazer um pensamento econômico mais obediente, quanto mais útil, à mecânica do poder.

Do lado dos simpáticos, mas críticos, mesmo sabendo que a política é um jogo de espaços, as maneiras do governo revelam uma natureza ligada a uma imodéstia que pouco ajuda. Uns lembram que em tudo há uma arte, até mesmo para cortar as pedras. Com o continuado cenário de incerteza, com forte característica de risco e a má conduta da economia, melhor não exagerar e pedir ao País que se comporte como adulto por um tempo infinitamente excessivo. Pois adversário do melhor ambiente de negócios tem sido a compulsão do governo por selfies e lives, explorações infantis de si mesmo. Fogo de artifício que costuma queimar o fogueteiro.

O presidente quer construir um campo de provas desconhecido para operar seu governo. A convocação dos desfiles de domingo – com tanta antecedência não é uma manifestação – continua tendo objetivos ocultos e visa a compensar a dispersão administrativa. A ideia de renovação por crise permanente sugere levar o atrito institucional ao limite para mudar peças na anatomia do poder. Convidando militares da ativa para se tornarem ministros, a digital das Forças Armadas na política já é fato.

O resultado econômico não produz convicção e revela um paradoxo. Como a economia perde giro, ao contrário do que se pensava após as reformas da Previdência e trabalhista, além de o governo não saber explicar por que os investidores não aparecem, a expectativa se ancora cada vez mais na política. Isso só reforça a crise institucional e joga risco excessivo num governo especialista em enredos secundários. Como a equipe econômica é teórica, insensível à desigualdade social, subestima a política e tem certa má vontade com dificuldades, a confusão prospera. É exemplar a entrelinha da questão dos dois PIBs. Traduzindo: o Estado não é mais o País, mas um setor da sociedade cujo PIB ruim bota a economia para baixo. O discurso moral que brota daí incluí escolha ficcional envernizada para fazer a propaganda do PIB bom, o privado, o que bota a economia para cima. Conclusão: não há necessidade de reforma para o País crescer 3%.

Tudo pode ser intensificado na medida em que o governo, ambíguo, acusa o Congresso pelos acordos que lhe dão vitória. Na dúvida, melhor falar a verdade e dizer como negocia, reconhecendo a legitimidade do Parlamento. Ou continua fora do tom e do foco, ampliando a insegurança geral.

Esse confronto com a política, assim como o baixo desempenho econômico e a dificuldade de gerir uma pasta tão grande é que podem estar provocando estresse extremo no ministro. Que não tem o que reclamar do presidente Rodrigo Maia, seu maior fiador e apoio para acalmar o Congresso e o mercado. Em suma, o presidente precisa ajustar o caminho este ano se quiser um terceiro ano diferente, em que o País possa colher os resultados que o governo prometeu. Mas como este ano temos eleições municipais e ele parece indiferente a elas, para seus adversários é agora que começa a sucessão de 2022.

O governo precisa se livrar do tempo perdido e diminuir a agenda de enfrentamento com o Legislativo e o Judiciário para não parecer que põe a culpa nos outros por interesse próprio. E, finalmente, ter criatividade para parar de rir do PIB e liberar recursos para investimento, mantendo a âncora fiscal. Sem se esquecer de que tem de enfrentar a responsabilidade de obedecer a todo o rito formal para isso. Por exemplo, em infraestrutura, só se pode falar em parcerias público-privadas (PPPs) e concessões depois de os recursos alocados percorrerem os longos passos burocráticos – estudo, audiência, Tribunal de Contas da União, edital, leilão e contrato.

Muita coisa para um governo que convoca um humorista para responder sobre o baixo crescimento do PIB e apresenta o fato como galhofa – o humor sempre foi o outro lado do trágico, uma forma de lidar com o mal-estar. Rir em velório tanto pode ser incongruência como transgressão. Há quem ria por submissão quando ameaçado por algo que parece dominante. Mas rir do abismo pode ser um desejo de amortecer a queda. Um alerta à equipe econômica, que está cada vez mais sem fio terra e indiferente ao potencial energético do chão.

Nesse cenário de sombras, parece ilusionismo achar que ao governo importa a aprovação da reforma tributária ou mesmo a administrativa neste ano. Especialmente se se repetir a pior das tradições do Parlamento e deputados e senadores decidirem disputar eleições municipais para manterem seu poder local. Assim, se surgirem mais de 20% de candidatos a prefeito ou vice, o ano acaba em julho.

Por tudo o que se vê, “é a economia, estúpido” não é nosso slogan. O slogan é a estupidez da política, o caminho que o Brasil escolheu para fracassar.

*Sociólogo


Paulo Delgado: Como as democracias adoecem

Lesões oportunistas são obra de ideologias diversas que enfraquecem uma nação

Para saber como as democracias morrem há legistas mais capazes na autópsia. Mas para diagnosticar como adoecem melhor observar o mal-estar dos fatos polêmicos à luz da ousadia pessoal dos influentes que os cometem e da letargia cívica com que os influenciados reagem a eles. Lesões oportunistas são obra de ideologias diversas que enfraquecem uma nação e comprometem sua saúde democrática.

Neste artigo olho um período cheio de egolatrias em que ficamos à mercê da marca do outro. Assim como a gula, apetite sem limite de quem se sente situado no topo da cadeia alimentar, a voracidade é mecanismo próprio do mau instinto de quem não tem predador natural.

Se todos têm suas próprias razões no que fazem e estão tão mergulhados de interesse nelas, não se trata de liberdade de pensamento e é difícil imaginar reflexão de boa-fé. Existem ficções e existem fatos concretos. Embora pouco praticada entre nós, a psico-história da política costuma ser mais hábil para entender os venenos sutis que alimentam a ambição dos que são notícia.

Anda, evidente, muito mal conduzida nossa democracia. Mas isso não significa que tenha morrido. Lembra mais a lenda brasileira de que ninguém presta e não vai dar em nada. Lenda que impulsiona o caráter arbitrário do tipo que manda ver. Um costume primitivo, institucional, cuja dimensão ainda não compreendemos inteiramente. É onde estacionou a curva da civilização brasileira e dali jamais passou. Ali onde o mundo em que são cometidos crimes e as aberrações legais ameaça ficar parecido com o mundo onde deveria ser possível corrigir suas consequências.

Assim se pode inferir um pouco da hilária história do escritório especialista em convencimento, dissuasão e oferecimento de conduta sobre dívida, confusões financeiras e contábeis de países e instituições enroladas, descuidadas da responsabilidade pública e coletiva. Era uma auditoria nacional ou uma exigência extraterritorial? Bem, depende de onde importa a justiça para o caso. Se é preciso limpar a barra nos EUA, o ônus da prova cabe ao acusador. Eu escolheria Londres, onde o ônus da prova cabe ao acusado e se evita a promiscuidade do advogado com o cliente. Todos sabem que em negócio corrosivo a ferrugem parece não corromper o ferro. E os zelosos guardiões do fundo que ampara o trabalhador acabaram pagando, de fato, um milionário honorário de sucumbência.

Bem, sobre a turma do entretenimento fácil tivemos um cardápio variado. Permanece a sina de que o lucro velhaco e a guerra pelo mercado brasileiro fazem da internet uma trincheira, com essa mania de viciar idiotas em aplicativos, vídeos e competições arranjadas. Manifestos em forma de ficção política e humorística ofereceram insultos em vertigem à democracia e ao espírito do País. Do mesmo naipe que o empréstimo bancário expatriado saiu pela porta dos fundos. Está fácil açoitar o nazareno, pois romanos sempre gostaram de rir de judeus. Tudo converge para dois martírios: o do sagrado pela piada grossa que quer ser humor e o da opinião pessoal que quer ser história.

E assim, glória do inadmissível, chegamos à encruzilhada de a liberdade de imprensa receber goela abaixo hacker como fonte. Dá vontade de rir recorrer a jornais estrangeiros para ampliar o ilícito! Outra vez o estilo manda ver dando a linha que já destruiu ideais na esquerda por achar que causa justa limpa conduta suja.

Em seguida, em movimento digestivo aquoso e rápido, próprio do apetite de mandar, relembro a amarga definição de um ex-presidente do Supremo, quando saiu a decisão do presidente interino: o STF é uma porta que só abre por dentro. O elo mais alto da cadeia alimentar da Justiça joga no lixo decisão do Congresso exigindo dos representantes do povo o princípio da obediência devida, pois não há mais garantia em juiz. A desordem de princípios e a falta de domínio de si de magistrados são adoecimentos.

Não me parecem dilemas morais ou políticos. Estamos afundados é na era em que os que comem sentem fome. E até Regina, admirada por ser sempre a mesma, é atacada por tutores ideológicos que a querem outra e aproveitam para descarregar sua alma empanturrada de ênfases sobre ela. Bem, a volta ao mundo em 12 dias pelo interino voador, usando um avião da FAB como uber, resume tudo, pois lembra assustadoramente o fastio de viver do filme A Comilança.

Olhando bem, a marca atual é a de que cada um só faz servir a si próprio. Nossa época está melhor se ajustando a um tipo de racismo não estudado pela antropologia, uma etnia específica do cara de pau. O pode-tudo da ficção vivida como realidade é geral. Um jogo de fascismos, essa certa visão de si mesmo que provoca disputa e cria rivais. Mas como o campo gravitacional da luta mudou de lado na última eleição, a autoanálise dos derrotados é mais indicada do que o desencanto ou manipulações.

O poder arbitrário continua um obscurantismo que cumpre a função de agravar ou criar uma fragilidade identitária nas pessoas. Para ganhar adeptos para a fantasia de imperfeição, grosseria, desconfiança e desânimo que adoece a democracia.

* Paulo Delgado é sociólogo.


Paulo Delgado: Brasil, Nobel do pessimismo

Não adianta ter força no País quando o jogo moral é jogado lá fora. A assimetria é mortal

O que está levando Trump ao impeachment não é aquela culpa no cartório, mas o fato de usar uma nação estrangeira para influenciar decisões dentro da política interna americana.

Diferente do Brasil, que pratica há anos uma política mórbida, por isso não tem até hoje um Prêmio Nobel, e entregou de mão beijada a supremacia que adquiriu com a fabricação de aviões médios e está fazendo tudo para entregar a agroindústria à intriga internacional. Porque, internamente, além de olharmos mal para o futuro, externamente inúmeros brasileiros adoram falar mal do País e até se dedicam a escrever cartas, telefonar, visitar e azucrinar os suecos e noruegueses para não reconhecerem o papel de descortino mundial que tiveram Alysson Paulinelli, Nise da Silveira, César Lattes, Ozires Silva, Lara Rezende-Pérsio Árida, dentre outros.

O Brasil tem de se dedicar um pouco mais a valorizar o que sabe fazer. Pois a qualidade de tudo o que é descoberto ou inventado hoje, especialmente tecnologia, deveria ser objeto de contratos de como deve ser seu uso, e não de discursos patrióticos sobre se aquilo é ou não oportuno. Tudo o que é serviço será digital, toda a poluição será monitorada, e não é possível imaginar um país sem unidade interna, política e empresarial, para criar sua própria legislação sobre o uso do que comanda o mundo moderno.

Não haverá nenhum Simão Cirineu ajudando o País a carregar a sua cruz.

O brasileiro precisa parar de viver achando que tem de ser arruinado para que restauradores da calamidade se apresentem. A prosperidade exige compromisso com a harmonia. Pede autoridade e confiança, não força e discriminação. Maldades civis, indiretas militares e incitação à revolta, devemos desconfiar, debaixo de qualquer oratória.

Só o comedimento e a perseverança nos salvam. A hostilidade constante não permite que o País respire e aumente o ânimo dos que querem paz. Nossa época explosiva é muito forte. Fracos são os líderes que não armazenaram ou economizaram nada que os estimulasse a ver a encruzilhada em que está o destino do mundo. E aí, alerto, nosso presidente, especialista em cortar o galho em que está assentado, depois do desamor de Trump pelas ligas e pelos metais brasileiros, deve refletir sobre algo mais grave.

A COP-25, que está sendo realizada em Madri, é desmistificadora: infelizmente, não há clima político no mundo para evitar o aquecimento global. A principal causa das mudanças climáticas é a matriz energética de base fóssil. Sem sair do petróleo, carvão e gás natural não é possível evitar que o clima do planeta mude para pior. Todo o resto é paliativo. E o único paliativo mais honesto é aplicar tecnologias que capturem dióxido de carbono (CO2) dos locais que o emitem e da atmosfera.

O problema causado pelos diferentes interesses relacionados à mudança climática é exacerbado por quem ganha ao desviar a atenção da necessidade de enfrentar uma saída para o uso do petróleo. Os grandes poluidores possuem trilhões de dólares e já se organizam para preparar o futuro de confrontos por conta de mudança climática.

O Brasil, apesar de ser o quinto maior país do mundo e ter a sexta maior população, é apenas o 13.º maior emissor de CO2 do planeta. O Brasil é verde, não poluente, mas se permanecer na matriz atual e for crescer é que vai poluir para valer.

Curiosidade de que ninguém se dá conta é que, fora o uso industrial e para o transporte, uma das principais emissões de gases de efeito estufa se dá por causa do frio que sentem as pessoas que vivem nas zonas temperadas e subpolares. Quase que uma exclusividade da Eurásia e da América do Norte. Países com invernos rigorosos que precisam ficar com calefação funcionando boa parte do ano e que continua ativa até mesmo quando saem de férias, fugindo do inverno.

Cerca de 40% de todos os gases de efeito estufa emitidos pela cidade de Nova York são decorrentes de calefação e água quente obtidas pela queima de combustível fóssil. Quem quiser reduzir para valer a mudança climática tem de começar parando de fazer calefação com combustível fóssil. Não adianta parar de comer bife e meter o pau no Brasil.

O fato é que é a parte fria do mundo que esquenta o planeta. E é ela que tem capital para fazer o mundo parar de esquentar. Entretanto, sua população gasta mais energia criticando as áreas tropicais e subtropicais, que são as que mais sofrem com as mudanças climáticas porque são, já de início, mais quentes.

Entretanto, há mais gases causadores do aquecimento. O metano corresponde a cerca de 16% das emissões de efeito estufa decorrentes da atividade socioeconômica. O Brasil é um dos cinco maiores emissores desse gás no mundo. Vem muito atrás da China, que é o maior emissor, mas também atrás da Índia, da Rússia e dos Estados Unidos.

A emissão de metano pelo Brasil vem da agropecuária e do desflorestamento. Seria inteligente o agronegócio brasileiro decidir se tornar a ponta mundial do desenvolvimento tecnológico para captura de metano. Esse é nosso calcanhar de Aquiles e será miseravelmente explorado por quem quer desviar a fúria política global para longe dos combustíveis fósseis e das regiões mais ricas.

Tanto a grande indústria petrolífera quanto o agronegócio que concorre com o Brasil são dois lobbies formidáveis num brutal ataque conjunto à questão do desflorestamento e da emissão de metano. A matemática da correlação de forças tem um resultado muito objetivo: no confronto direto, o agronegócio brasileiro vai perder.

Não adianta ter força no Brasil quando o jogo moral é jogado fora daqui. A assimetria é mortal e cresce a imagem de que estamos poluindo, sem saber despoluir. Vamos dar com os burros n’água se não aprendermos a ganhar dinheiro no mercado da despoluição. Para destruir a imagem de nossa agroindústria é preciso primeiro destruir a imagem do Brasil como país verde. Não deve ser o que queremos.

*Sociólogo


Paulo Delgado: Civilização brasileira

Não há entre nós uma maneira coletiva de ser e agir, uma disciplina estrita de obediência à lei

A ideologia é uma invenção da ideologia. Rodeada de armadilhas, é ímã para desafetos. Sua obstinação é ser contrapensamento e ferir a base da confiança da política, que é o que sustenta um país. Adia ao máximo a aceitação da regra do jogo que sugere respeitar o vencedor. A moldura do ringue é instigante e velha conhecida. O choque ideológico pode vir de qualquer lado: do vencedor, do derrotado, das Forças Armadas politizadas, da Polícia Federal autonomista, do Ministério Público açulador, do Supremo em erupção. Pode vir também da sociedade, dos sindicatos, das ONGs, das igrejas. Não há entre nós uma maneira coletiva de ser e agir, uma disciplina estrita de obediência à lei capaz de manter algo sólido como um princípio, aquele dom partilhado por todos que dá forma ao destino dos povos e configura a ética de uma nação.

Todos fazem parte do sistema nacional de poder. E embora sem condição de precisar bem a origem dos movimentos de partilha e fratura do novo governo, é possível identificar sinais da construção de um vazio, sem motivo aparente, já querendo dividir o poder com quem ainda nem tomou posse. O Brasil está entusiasmado com instituições cheias de sentimento de poder - Forças Armadas, Polícia Federal, Ministério Público - e indiferentes a quem faz a lei, o desmoralizado Congresso Nacional.

Constitucionalmente, estabelecido para governar é o presidente da República. Há Poderes da união que gostam de definir a época em que vivemos. E avançam sobre as fissuras do sistema político e a erosão que a vida pública provoca na honra dos seus titulares nos últimos anos. Não se trata de fazer concessões aos poderosos ou deixar de ser iconoclasta com governantes de araque que nos levam à lona. Mas o patriotismo insuficiente do oposicionismo de insulto é como dizer “nós estamos aqui, aguarde o transbordar sobre você do nosso reservatório de desconfianças”. Enquanto isso, o que a outra civilização quer saber é se pode surgir por aqui algo como um Putin, um Erdogan, um Xi Jinping para podermos ser levados a sério, ou temidos. Alguns, melhor não, mas a marca de nossa democracia é a facilidade com que depreciamos o poder. De um lado, pela fragilidade que é a falta de consenso sobre a soberania das escolhas políticas; de outro, o dissenso entre partidos sobre se é lícito a um presidente incluir entre seus privilégios o de tornar-se desonesto no exercício do cargo.

O Brasil não sabe fazer um pacto entre suas elites talvez porque nenhuma seja hegemônica. Só um pacto de natureza civilizacional, elite do povo incluída, poderá fazer-nos caminhar para ser uma civilização. Três pontos iniciais: compromisso com a verdade, não depreciar a presidência de nenhum órgão público e total aversão ao erro. Na competição política, evitar espalhar dúvida, medo, suspeita sobre todos os que nos incomodam. A ideia de que tudo na vida é resultado de mecanismos repressivos embutidos na política e na economia é uma ideia ruim. Não há como deter a evolução, a própria natureza tem um forte componente liberal, competitivo. Quem se acha um salmão em rio poluído, envenenado pelos “outros”, experimente Freud: qual a sua responsabilidade na desordem de que você se queixa?

O conservadorismo é um freio de arrumação no caminhar desgovernado da humanidade. Entretanto, só vale se for coerente, ilustrado e dotado de propostas que capturem as questões pungentes. Enfiar ideologia em tudo, num culto da ação ao estilo militante, leva à sobrepolitização de todos os aspectos da vida. Com a crise, a entrega de proteções começou a falhar e é explicável que novas forças surgissem. Caiu o sistema binário com a globalização e as coisas saíram do controle da esquerda. As políticas identitárias viraram as costas para o povão desorganizado, o maior e mais sub-representado contingente eleitoral em todos os países.

O livre comércio foi muito longe e meio sem lei. Os jovens estão desprotegidos em seu desejo de ser estagiário, aprendiz, e gostaram de ouvir do futuro presidente que estão em seu plano de governo. Afinal, precisam que a política pública incorpore seu futuro, pois no contingente dos desempregados do presente são eles a maior parte. Precisamos correr para compensar nosso atraso e assim dar ao trabalhador condições de competir na brutal realidade moderna, em que o homem desconectado não será mais explorado, será irrelevante.

O liberalismo apropriou-se das bandeiras da igualdade e vinculou-as a tecnologia e comunicação. Claro que há limites, tanto para as políticas distributivistas, pois não há liberdade com igualdade total (os protegidos tornam-se improdutivos legais e sem autonomia); como para os compromissos sociais dos governos liberais, pois também não há igualdade com liberdade total (os competitivos são atropelados pelos ilegais). O desafio é garantir um espaço autônomo para a vida social, econômica e política, novas instituições de negociação, sem pensar em sair do jogo mundial.

Assim, atenção aos tratados ambientais, pois eles fazem parte do pacote exigido dos fornecedores para a venda de produtos agrícolas aos consumidores europeus. Além do mais, a Convenção do Clima tem forte simbolismo para o Brasil, foi aqui a primeira Cúpula da Terra, no governo Collor; logo, sem desculpa de ter conotação ideológica de esquerda. A Rio-92 teve seu tratado ratificado por 196 países em Kyoto, em 1997, o que criou, até hoje, a melhor imagem do Brasil no mundo. Tal fato fez de nossa habilidade diplomática, nessa área, um líder internacional do soft power ambiental.

O novo governo deve também ficar atento: a revolta do eleitorado não contém um basta ao Estado protetor, nem parece representar uma despedida do modelo econômico brasileiro - o Estado de compadrio - dos últimos 80 anos. Um bom problema, pós-ideológico, para o mais homogêneo Ministério da Economia desde Castelo Branco.

*Sociólogo, Paulo Delgado é co-presidente do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio/SP.


Paulo Delgado: A estatização da bondade humana

A filantropia é o oposto do egoísmo. Em quase mil municípios brasileiros, a única instituição de saúde é a filantrópica

Cozida no caldeirão dos mágicos do Supremo, humilhada por portarias no Executivo e esquartejada por almas mortas do Congresso, a Constituição brasileira agoniza diante da desarmonia entre Poderes. E a moda de fazer lei avança na direção errada. Atenção: a política pretende estatizar a compaixão.

A filantropia é o caminho dos otimistas. Nasceu da moral privada das pessoas de bem. E só, muito depois, contaminou a ética pública dando origem ao estado de bem-estar social e os regimes democráticos. No Brasil, chegou com as Santas Casas de Misericórdia, ainda no período colonial. Muito antes da Independência e da Proclamação da República.

Quando praticada de forma verdadeira é vocação que não engana nem frustra a confiança das pessoas. A riqueza que produz é salvar setores vulneráveis do esquecimento. Imaginar sua razão de ser no campo tributário é achar que o imposto é um deus e desconhecer o milagre que a faz funcionar com milhares de colaboradores. O coletor de impostos não sabe o papel dos serviços de natureza social na economia invisível da sociedade.

Instrumento de promoção e integração de pessoas à cidadania plena, o que a impulsiona é o desprendimento, solidariedade, altruísmo, o voluntariado. A filantropia é o oposto do egoísmo. Em quase mil municípios brasileiros a única instituição de saúde é filantrópica. Para jovens que buscam estágio e aprendizagem não há nada melhor do que o CIEE. Algum setor do Estado se acha mais digno do que a APAE, o Pestalozzi? Quem não admira as Congregações religiosas que educaram o Brasil a vida inteira?

A filantropia autêntica ultrapassa o que pede a Lei. Constrói, fora do Estado, tão sólida ética pública que são bons governos que valorizam as parcerias com o setor. A assistência social, de alcance universal, sem ônus para seus beneficiários, é a mais moderna e autônoma política pública. Não pode ser objeto de escolha política errada em razão de crise econômica provocada por má governança das contas públicas. Respeitados os princípios contidos na Constituição Federal, de gratuidade, controle social e transparência deveria ser bem-vindo quem a ela se dedicasse.

O esforço do governo para se meter em tudo não é democracia. Assim, o Estado não deve pretender, em todos os casos, ser o titular, o formulador da política para a sociedade. Muitas entidades filantrópicas têm mais a ensinar do que a aprender dos governos. Foi essa autocontenção do Estado, em relação à sua competência regulatória total, que deu origem à parceria público-privada, da qual a filantropia é o mais elevado exemplo.

Ora, reduza tudo à tributação, obrigação, igualdade e a direito que do ser humano você só verá o vassalo, o subcidadão. A política não é tudo. Por isso, é sempre hora de valorizar o que nossa cultura, e pessoas beneméritas com visão de futuro, construíram. Afinal, que virtude pode ter a Sociedade onde só ao Estado cabe fazer o bem?

*Paulo Delgado é sociólogo


Fonte: gilvanmelo.blogspot.com.br