Partidos

Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e o novo sebastianismo

“À crise de representação dos partidos soma-se a crise ética que desgastou os poderes da República e, por muito pouco, não implodiu os grandes partidos”

Quando do bloqueio continental de Napoleão à Inglaterra, justificativa para a invasão de Portugal pelas tropas do general Junot, os sebastianistas exultaram, por causa das profecias de Gonçalo Annes Bandarra, sapateiro e poeta de Trancoso, estudioso do Antigo Testamento, cujas trovas alimentaram o imaginário lusitano com o mito da volta do rei-menino, Dom Sebastião (Lisboa, 20 de janeiro de 1554 — Alcácer-Quibir, 4 de agosto de 1578), que desaparecera ao liderar uma cruzada no Marrocos.

Apesar das censuras e proibições da Inquisição, as trovas do Bandarra continuaram circulando por séculos, sob todos os pretextos, até mesmo a invasão napoleônica. Nascido na Córsega, Napoleão seria descendente do rei Sebastião e fora saudado pelos sebastianistas como o futuro chefe do Quinto Império, que faria sair do porto de Lisboa uma frota em direção à Ásia, para conquistá-la e convertê-la ao catolicismo. Novas impressões das trovas foram feitas em 1810, 1815, 1822, 1823, 1852, influenciando o pensamento sebastianista e messiânico de D. João de Castro, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, entre outros.

Portanto, não foi à toa que o sebastianismo ressurgiu no Brasil não somente nas manifestações folclóricas, como reizados e folias de rei, mas também em episódios como o de Canudos, no sertão da Bahia, que marcou profundamente a história política e militar da República Velha. Com alma lusitana, nosso populismo tem essa característica sebastianista, ou seja, gravita muito mais em torno da ideia de um salvador da pátria, um líder carismático, do que do nacionalismo econômico, do clientelismo e da conciliação de classes.

O período que vai da redemocratização, em 1945, ao golpe que destituiu o presidente João Goulart, em 1964, para alguns, foi marcado por governos populistas, mas isso é ignorar as grandes diferenças entre os governos Dutra, Vargas, Juscelino, Jânio e Goulart. Essa tese ignora as singularidades do pensamento político brasileiro e promove rupturas com o passado cujos resultados práticos foram dois impeachments: o de Collor de Mello e o de Dilma Rousseff. A fronteira entre a manipulação das massas e o real atendimento das demandas sociais é mais sinuosa do que o esquematismo teórico imagina. Havia um sistema partidário robusto até 1964, que era o verdadeiro alicerce da democracia brasileira, mas a tentativa disruptiva de supostamente superar a “política de conciliação” à esquerda resultou numa ruptura à direita.

Desde a Constituinte de 1988, a composição de um sistema robusto de representação esbarra na fragmentação exagerada dos partidos, que não pode ser atribuída apenas às lideranças políticas. Talvez a maior responsabilidade seja do Supremo Tribunal Federal (STF), que havia proibido a adoção de cláusulas de barreira para representação no Congresso, em julgamento ocorrido em 2006, quando a regra passaria a vigorar. Resultado: no final de 2015, o Brasil contava com 35 partidos, oito deles fundados a partir de 2011, três novos partidos somente em 2015.

Eleições
Em 2017, novas propostas de reforma política foram apresentadas: o fim das coligações em eleições proporcionais (deputados e vereadores), uma cláusula de barreira e a criação de um fundo eleitoral. No ano passado, a cláusula de barreira atingiu 14 dos 35 partidos então existentes: PCdoB (elegeu nove deputados), PHS (elegeu seis), Patriota (elegeu cinco), PRP (elegeu quatro), PMN (elegeu três), PTC (elegeu dois), DC, PPL e Rede (elegeram um, cada), PMB, PSTU, PRTB, PCB e PCO. Presume-se que em 2022 haverá drástica redução do número de partidos, o que forçará um reagrupamento partidário após as eleições municipais.

À crise de representação dos partidos, provocada, entre outras coisas, pela emergência das redes sociais, soma-se a crise ética que desgastou os poderes da República e, por muito pouco, não implodiu os grandes partidos. Entretanto, esse cenário catapultou Jair Bolsonaro à Presidência da República, por um pequeno partido, o PSL, que elegeu 51 deputados e cinco senadores. Esse resultado da eleição, porém, não resolveu a crise de representação dos partidos, cujo epicentro hoje é a saída do presidente Bolsonaro do PSL, depois de uma disputa pelo controle da legenda e dos recursos do seu fundo partidário com o deputado Luciano Bivar (PE), que comanda o partido com mão de ferro.

Bolsonaro tem todas as condições de construir seu próprio partido. Além do carisma, tem uma narrativa política conservadora, um programa econômico ultraliberal, o governo nas mãos, uma militância política agressiva e articulada em rede e, sobretudo, uma base eleitoral sebastianista, que acredita em milagres e num salvador da pátria. Entretanto, tem pela frente eleições municipais que funcionam como centrífuga do espectro partidário. Por isso, para construir um partido nacional que atenda os seus objetivos, precisa lançar candidatos a prefeito e organizar chapas proporcionais em milhares de municípios, inclusive porque o sebastianismo não é monopólio de ninguém, há outros candidatos a salvador da pátria.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-e-novo-sebastianismo/


‘O Cidadania quer se transformar em importante referência de centro-esquerda’, diz Roberto Freire

Presidente do partido ressalta que sigla quer contribuir de forma positiva para a democracia e o desenvolvimento

O Cidadania quer ser protagonista de uma nova jornada, com um horizonte para se transformar em importante referência de centro-esquerda e contribuir de forma positiva para a democracia brasileira e o desenvolvimento do país. A afirmação é do presidente do partido, Roberto Freire, em artigo de sua autoria publicado na 12ª edição da revista Política Democrática online. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza, gratuitamente, todo o conteúdo em seu site.

» Acesse aqui a 12 edição da revista Política Democrática online

De acordo com o presidente do Cidadania, o mundo vem experimentando fortes transformações em seu modo de produzir e nas suas relações sociais, o que, conforme acrescenta, é fruto de uma revolução científica e das inovações, que impactam muito fortemente também nos campos da política e das ideias.

“Os padrões aceitos como universais e pouco mutáveis, todos eles herdados do iluminismo, da revolução industrial e da criação dos estados nacionais ainda no século XIX, começaram a se dissolver e passaram a não mais corresponder às realidades dos povos e aos formatos políticos de intervenção social”, afirma ele. “Ficaram velhos e foram perdendo apelo junto à opinião pública”, acrescenta.

Na avaliação de Freire, o neoliberalismo, uma tentativa de contornar o keynesiasnismo que salvara o capitalismo, conseguiu alguns resultados econômicos positivos na Inglaterra e Estados Unidos, porém faliu em sua pauta conservadora e não conseguiu fazer frente aos movimentos de conteúdo mais extremado de direita. “Trump, dentro do Partido Republicano nos Estados Unidos e Johnson, no Partido Conservador inglês, são exemplos dessa falência”, escreve ele.

Outros ideólogos, segundo o presidente do Cidadania, surgiram para dar sentido político ao mundo em desalinho e esbarraram contra uma muralha invisível que ia se formando, pelo advento das novas tecnologias, o intercâmbio das informações e as novas relações sociais e de consciência, estas nascidas nos desvãos ideológicos e à sombra do poder velho.

No Cidadania, com certeza não estarão todos os liberais nem todos os socialistas e socialdemocratas. “As clivagens e as diferenças internas nesses dois campos são inúmeras”, afirma. “Acreditamos, porém, que o Cidadania tem horizonte para se transformar em importante referência de centro-esquerda e contribuir de forma positiva para a nossa democracia e o nosso desenvolvimento”, destaca.

Além das dimensões políticas e programáticas, segundo Freire, o Cidadania tem por vocação a criação de uma nova formação política, longe dos modelos centralizados e verticalizados, totalizantes. “Um dos seus dilemas é permitir ao máximo possível o plasmar das diferenças de ideias e concepções, ser mais movimento e transparência, sem, no entanto, perder a credibilidade e capacidade diretiva. Se não resolver esse dilema, qualquer partido que se pretenda novo já nasce em conflito e em processo de decadência”, destaca.

 

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Marco Aurélio Nogueira: Partidos, movimentos, democracia - riscos e desafios do século XXI

Nascidos como esteios das grandes democracias representativas de massa surgidas gradualmente na Europa a partir das últimas décadas do século XIX e com maior ímpeto após a Segunda Guerra Mundial, os partidos políticos ingressaram no século XXI em franco processo de crise. Ainda permanecem como personagens centrais do jogo político e parlamentar, mas perderam protagonismo como agentes de mobilização, educação política e formatação da cidadania. Por caminhos múltiplos, puseram em xeque suas próprias autoimagens culturais e o modo mesmo como são vistos e assimilados pela opinião pública. Deixaram, em suma, de atuar como fatores de hegemonia — de formação de consensos e da fixação de diretrizes ético-políticas –, processo que se transferiu sempre mais para o mercado (o marketing, a publicidade), a indústria cultural e os diferentes ambientes virtuais.

O mundo político foi assim literalmente invadido por políticos personalistas, regra geral demagógicos e populistas, bem como pela efervescência caótica das redes sociais e do ativismo associativo. A derrocada dos partidos, especialmente em sua formatação tradicional, com máquinas administrativas pesadas e ritos verticalizados, passou a reforçar a ideia de que a democracia representativa ingressou em crise de igual proporção, com a ampliação da fuga dos eleitores, o aumento do desinteresse político da população e a desvalorização das eleições como método para a escolha dos governantes.
Nos países ocidentais, a abstenção eleitoral chega a ultrapassar um quarto do eleitorado, ao mesmo tempo em que crescem os protestos de todo tipo e as críticas aos sistemas políticos, aos partidos e a seus líderes. As vozes dos cidadãos, porém, não chegam aos vértices do Estado, o que despoja a democracia de parte ponderável de sua capacidade de limitar o poder.

Eleitores se afastam das urnas, partidos perdem inscritos e militantes, decai a confiança nas instituições. A movimentação associativa parece ignorar a política institucionalizada e esta, por sua vez, tende a se oligarquizar, a aprofundar seus nexos com o sistema econômico-financeiro e a virar as costas para os cidadãos, que passam a se sentir “sem representação”. A sensação é de que há muita “política” e pouquíssima política ao mesmo tempo. Estaríamos frente ao esgotamento da “democracia representativa fundada sobre uma relação de osmose entre os cidadãos e seus representantes”? Tal crise somente poderia ser superada se a estrada dos cidadãos voltasse a se encontrar com os caminhos da política.

O populismo ressurge
Movimentos populistas apareceram recentemente em quase todas as democracias, impulsionando o que costuma ser visto como uma inflexão mundial da extrema direita, renacionalizante e conservadora. Mas é um fato que “políticos de todas as colorações apelam para os interesses do povo, e todo partido de oposição faz campanhas contra o establishment”, o que complica a distinção entre o populismo e a política democrática corriqueira. Para Nadia Urbinati, “o populismo deve ser considerado uma nova forma de governo representativo”, baseado em uma relação direta entre o líder e as pessoas que ele define como “boas” ou “corretas” e com as quais ele se relaciona sem a necessidade de intermediários — em particular, sem partidos políticos e meios de comunicação independentes. Ainda que tais governos populistas se distingam de regimes ditatoriais ou fascistas, sua dependência da vontade do líder, sua baixa tolerância, sua repulsa às oposições e às rotinas constitucionais da democracia fazem com que estejam sempre a um passo do autoritarismo.

Democracias iliberais
Marca registrada dessa situação é o surgimento, em diversas sociedades, de formas variadas do que tem sido chamado de “democracia iliberal”: sistemas em que se dá a eleição regular dos dirigentes políticos mas onde pouco respeito há pelos direitos humanos, pelo pluralismo e pela tolerância, com a formação de um circuito que tende a garantir a reposição dos detentores do poder. Os casos de Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdoğan (Turquia) e Vladimir Putin (Rússia) são considerados emblemáticos. Donald Trump (Estados Unidos) e Jair Bolsonaro (Brasil) seguem a tendência, na qual os instrumentos legais da democracia são empregados de modo autoritário e mediante uma coreografia demagógica que, prolongada no tempo e articulada mundialmente, sugere a cristalização do risco daquilo que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamaram de “morte das democracias”.

O voto serviria para legitimar governos que corroem a democracia. “O retrocesso democrático hoje começa nas urnas”, escrevem Levitsky e Ziblatt. Ampliam-se os espaços para a emergência de outsiders que, aproveitando-se com maior ou menor inteligência dos espaços democráticos existentes e contando com a conivência de forças sistêmicas, do Legislativo ao Judiciário, promovem práticas que rebaixam a democracia e, como decorrência, minam a capacidade de oposição dos partidos políticos e movimentos. Não somente descaracterizam as regras democráticas e roubam legitimidade das oposições, como agem para limitar as liberdades civis e fazem vistas grossas ao emprego da violência, quando não a estimulam abertamente.

Há ritos, rotinas e instituições democráticas, mas não há um processo organizado de produção de democracia e de disseminação da consciência de cidadania. Clãs familiares, organizações fanatizadas, patriotismo artificial agressivo, violência verbal e ameaças à imprensa e ao jornalismo, tuítes bizarros e falas destemperadas liberam toxinas antidemocráticas que vão dissolvendo o que existe de sentimento de pertencimento a um povo comum, a um demo, um “nós” democrático.

Para complicar, os governos assim constituídos apresentam-se como se carregassem nas mãos todas as promessas de renovação política e regeneração moral. Fomentam confusão e mal-estar, contribuindo para desorganizar e paralisar os partidos que a eles poderiam se opor. A “desunião democrática” serve, assim, de alimento para a chegada ao poder dos novos autoritários e para sua reprodução.

No caso brasileiro, pôs-se em circulação uma retórica reacionária de fundo evangélico e concentrada nos costumes. Valores conservadores que defendem a família, a pátria, a autoridade paterna, a masculinidade e a religião são proclamados ao mesmo tempo em que se faz o elogio do ultraliberalismo na economia, formando um compósito paradoxal.

Em sociedades divididas e fragmentadas, carentes de pontes e mediações políticas, como são muitas das atuais, o reacionarismo consegue se reproduzir. As “democracias iliberais” alimentam-se da insegurança e das incertezas que cercam os cidadãos que, reunidos em grupos pequenos e autorreferidos, tornam-se presas fáceis de líderes que se apresentam como “fortes” e dispostos a tudo para ajudar os mais “fracos”.

Passa-se a falar em “pós-democracia”: “ainda que as eleições continuem a transcorrer e a condicionar os governos, o debate eleitoral é um espetáculo firmemente controlado, conduzido por grupos rivais de profissionais especializados nas técnicas de persuasão e concentrado em um número restrito de questões selecionadas por esses grupos. A massa dos cidadãos desempenha um papel passivo, aquiescente, até mesmo apático, limitando-se a reagir aos sinais que recebe. À parte o espetáculo da luta eleitoral, a política é decidida em privado pela interação entre os governos eleitos e as elites que representam quase exclusivamente interesses econômicos”.

Especialmente na esfera superior do sistema político, o clima é de mudança de paradigma e perda de qualidade da democracia: entre as muitas dimensões caóticas das modificações políticas contemporâneas, “o primeiro aspecto que se deve destacar é o processo de regressão oligárquica da democracia”, ou seja, o “deslocamento para cima dos mais relevantes centros de tomada de decisões, com o que as decisões políticas escapam das sedes mais amplas e se refugiam em lugares menos acessíveis, reservados a restritos grupos oligárquicos”, traduzindo-se assim em “um verdadeiro processo de des-democratização”.

Nesse ambiente, os governos e a classe política se soltam de suas comunidades e as deixam sem muitas saídas, ao mesmo tempo que pioram seu desempenho. Nos vazios que se abrem, projetam-se uma cidadania ativa, mas excessivamente posicionada contra o sistema político, mídias tradicionais e novas mídias, muitas tribos e nichos identitários, um mercado que funciona com moto próprio e indivíduos “empoderados”. Economia, política e sistema de comunicação estão conectados, mas há pouca articulação democrática: falta solidariedade (coesão e unidade) entre as classes e dentro de cada classe. Tudo isso encapsula e comprime a democracia política.

O social fica mais complexo
A guinada iliberal da democracia, embora se dê em um terreno imediatamente político e ideológico, tem determinações sociais profundas. Nas sociedades hipermodernas dos dias atuais, as experiências cotidianas sofrem o efeito cruzado da financeirização e da mundialização. A revolução tecnológica faz com que a vida se acelere, se diferencie, se fragmente e se individualize. A “estabilidade” é problematizada em termos individuais, nos relacionamentos, na vida profissional e nas organizações, sejam elas empresas, escolas, movimentos ou partidos políticos, que precisam empenhar sempre mais recursos (financeiros, humanos, técnicos, emocionais) para funcionarem de modo razoável. As sociedades passam a ser eminentemente comunicativas, com a informação adquirindo valor crescente como recurso essencial de atuação, especialmente precioso quando se tem em vista a intensificação de um firme “desejo social de participação”.

Reitera-se, desse modo, o processo registrado por Norbert Elias: o “equilíbrio entre a identidade-eu e a identidade-nós” é abalado, radicalizando uma dinâmica que vinha, a rigor, desde o final da Idade Média. “Mais e mais frequentes se tornaram os casos de pessoas cuja identidade-nós se enfraqueceu a ponto de elas se afigurarem a si mesmas como eus desprovidos do nós”, com a consequência de que a “identidade-nós das pessoas, embora decerto permanecendo presente, passou a ser obscurecida, em sua consciência, pela identidade-eu”. Trata-se de um processo que explica a gradual perda de coesão social provocada pela complexificação globalizada da vida e que, ao mesmo tempo, ajuda na compreensão da reação renacionalizante que se manifesta com regularidade ao longo da história, com particular destaque nos dias atuais, que poderiam ser percebidos como atravessados por uma espécie de “vingança” da “identidade-nós”.

Nessas sociedades, a mundialização da economia exerce um efeito desagregador sobre os diversos aspectos da vida organizada. Há mais do que transformação e mudança acelerada, a ponto de Ulrich Beck falar em “metamorfose”, uma transformação da natureza humana: estão todos — sociedades, grupos, classes, indivíduos, organizações — projetados no mundo, que se cosmopoliza e passa a exercer forte “atração gravitacional” sobre os Estados nacionais e suas instituições. Ocorreria então uma “metamorfose abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas e acontece de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”.

Em uma “sociedade de risco mundial”, na qual se empilham “incertezas fabricadas”, descontroles e descuidos, a maior parte dos problemas não encontra resposta institucional, criando a sensação de caos e insegurança. As instituições fracassam porque, concebidas que foram no interior de uma lógica nacional, não estão equipadas para a realidade cosmopolita. Ingressa-se em uma “zona crepuscular entre o falecimento da era nacional e a emergência de uma era cosmopolita”, zona essa em que o indivíduo se torna o ponto de referência, mas “afunda em uma inimaginável quantidade de dados”. A comunicação digital intensificada “força os indivíduos a confiar em si mesmos porque solapa a matriz de identidades coletivas dadas e a usar os recursos que os espaços cosmopolitas de ação possuem”. A experiência cotidiana fica cortada por uma espécie de “reflexividade organizada”, na qual tudo se torna reflexo e reflexão.

A vida fica saturada de tecnologia de comunicação e informação. Ganhos conseguidos com o progresso mostram-se sempre mais carregados de perigo. A paisagem mundial fica tingida por crises econômicas sucessivas e tragédias ambientais, tsunamis inesperados, incêndios arrasadores, em um quadro de irresponsabilidade de governos e instituições. A atual questão climática e do aquecimento global insere-se precisamente nesse contexto: tratada ora de forma apocalíptica, ora com desdém, ela expressa, ao mesmo tempo, a incompetência dos governos — muitos dos quais, por não saberem como enfrentar o problema, alegam que ele não existe –, e a ausência de um consenso internacional sobre como gerenciar a gravidade da situação ambiental.

A expansão e a consolidação da globalização se fazem acompanhar de uma generalizada multiplicação dos sujeitos sociais, mas não trazem consigo um particular reforço da institucionalidade, o que faz com que a vida social fique mais solta em relação ao Estado e ao aparato institucional. A crise de poder do Estado-nação implica uma crise de confiança dos cidadãos em relação a seus governos e sistemas políticos, corroendo parte das condições de legitimidade.

Constrangidos pelo capital financeiro, pelas agências internacionais, por redes e fluxos globais, os Estados obrigam-se a despender esforços ininterruptos para manter viva sua operacionalidade “para fora” e sua capacidade de resposta “para dentro”, ficando com mais dificuldade para atender às demandas de seus cidadãos. Como observou Yuval Harari, “estamos encalhados em políticas nacionais” ao passo que tudo o mais se globaliza: a dissonância produz um descolamento entre Estado e sociedade, gerando um vácuo difícil de ser preenchido.

É o que permite a Alain Touraine falar em “situação pós-social”: sistemas e atores não mais se integram, jazem separados do mesmo modo que a economia e a sociedade, e somente conseguem ser politicamente unificados em patamares universais (os direitos humanos, o ambientalismo, a regulação da economia globalizada, por exemplo). Os partidos políticos progressistas, formados e treinados em outra estrutura social, sofrem para se adaptar ao mundo “pós-social”. O ambiente geral é de rupturas, dissociação e ruídos.

Dinâmicas sociais desse tipo produzem múltiplos efeitos sobre as ações coletivas. As lutas passam a ser mais segmentadas e individualizadas, orientadas por identidades e direitos. Com a ampliação do “desejo de participação”, as agendas se fragmentam e se torna mais difícil unificá-las, especialmente porque cresce a intolerância com organizações “pesadas”, lentas, burocráticas e centralizadas, como são os partidos políticos. As lutas tendem a ser performáticas e “expressivas”, espetacularizadas, concentradas na busca por identidade, autonomia e reconhecimento.

Os embates sociais tornam-se claramente “disputas de significados”, de “narrativas” e de modelos culturais. Para os movimentos que surgem a partir dessa dinâmica, o que importa não é mais o poder do Estado ou do sistema político e de seus agentes, mas o poder do cidadão e de suas organizações, a dignidade do indivíduo e dos pequenos atores sociais. O “empoderamento” torna-se a meta. Não se trata de mudar a ordem capitalista ou reformá-la, como na esquerda tradicional, mas sim de garantir espaços sempre maiores de autonomia individual, solidariedade cívica, cooperação, tanto quanto possível gerando atritos que modulem a força e as restrições do sistema institucional e do sistema econômico.

Movimentos e partidos
Se, por um lado, demagogos e populistas são vistos como fatores negativos, que rebaixam a qualidade da democracia e fazem com que prevaleça uma atuação política desprovida de grandeza cívica, as redes e o ativismo associativo costumam ser tratados como fatores que expressariam os novos termos da vida social e carregariam consigo algumas promessas de revitalização democrática.

Ainda que nem sempre o ativismo cidadão seja uma ferramenta efetiva de democratização, é um fato que sua expansão ao longo das últimas décadas reflete uma busca por participação que não estaria a ser fornecida pela vida política institucionalizada e pelos partidos políticos, que atuariam sempre mais fechados em si mesmos. A contestação feita pelos novos movimentos em rede, nacionais e transnacionais, seria assim tanto uma “virtude cívica”, que fomenta a participação dos cidadãos, como um desafio para a democracia, graças aos efeitos disruptivos que tendem a ter sobre governos e sistemas políticos.

Como, porém, os partidos controlam os canais institucionais da política e são particularmente decisivos nos processos eleitorais, criou-se a percepção na opinião pública de que eles seriam os verdadeiros donos da representação, personagens do fenômeno da “partidocracia” e daquilo que, no Brasil, designou-se como “velha política”. Em uma época na qual a política não é devidamente valorizada no âmbito estatal e na opinião pública, os partidos são rejeitados por serem vistos como excessivamente poderosos no controle do processo decisório, o que afastaria os cidadãos das decisões políticas e bloquearia a participação cívica, com o efeito colateral de entregar a política aos interesses unilaterais dos políticos e à corrupção.

O incômodo causado pelos partidos, porém, nem sempre foi uma regra, ainda que tenha se manifestado de forma recorrente em diversas sociedades. Os partidos políticos de massa, em particular, conheceram períodos de prestígio, identificação e interação ético-política com os cidadãos, durante os quais atuaram de maneira efetiva tanto na governança das sociedades como na formatação de políticas públicas e na ampliação de direitos e garantias. Os “trinta anos dourados” do Estado de bem-estar, na Europa, por exemplo, foram vividos com um claro protagonismo partidário, sobretudo da social-democracia, do trabalhismo, da democracia cristã e do comunismo democrático. Muitos processos de transição democrática, como no Brasil de 1982 até a primeira década do século XX, foram vividos com a presença de partidos políticos com capacidade de liderança e articulação, casos do MDB, do PT e do PSDB, que obtiveram expressivo reconhecimento social.

Como observou Norberto Bobbio, dentre outros, “a polêmica antipartidos é tão antiga quanto os próprios partidos”. Como são associações de pessoas que “fazem acordo para estimular certas decisões políticas mais do que outras e determinar a política nacional”, é inevitável que os partidos sejam vistos como grupos privados de poder, mesmo que revestidos de funções públicas. Além do mais, a tipologia dos partidos é elástica e acomoda desde associações personalistas, instrumentalizadas pelos chefes, nas quais nada se discute ou se formula, até organizações especializadas no controle de recursos de poder e que operam como verdadeiros clusters dentro do Estado, com as devidas variações (partidos-Estado, partidos ideológicos, partidos-rede, partidos de massa). Tal fato faz com que se amplie com facilidade a imagem negativa dos partidos, ao mesmo tempo que dificulta sobremaneira o estabelecimento de fronteiras ou distinções entre o que é um partido e o que é um movimento cívico ou um movimento de ideias.

Acrescente-se a isso que os partidos foram fortemente afetados pelas “consequências da modernidade” tardia, que aprofundaram a reflexividade social, ou seja, geraram um universo de ação estruturado mediante práticas sociais que são constantemente “examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre as próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”. O “conhecimento reflexivamente aplicado” e a revisão daquilo que está dado são radicalizados e reverberam em todos os aspectos da vida, fazendo com que cada pessoa seja impelida a refletir sobre suas próprias condições existenciais, ao mesmo tempo em que a dinâmica estrutural repercute sobre si mesma, gerando um permanente movimento de transformação.

Ao se combinar com a reorganização global da produção econômica capitalista, a modernização reflexiva sacrificou o mundo do trabalho, fragmentou as sociedades e pôs em curso uma revolução tecnológica-digital que imprimiu inédita velocidade à comunicação, reconfigurando os relacionamentos sociais, a cultura, as formas de organização. Movimentos de todo tipo surgiram na sociedade civil, impulsionados por lutas identitárias ou pela contestação ao sistema, desafiando as organizações partidárias. Tais circunstâncias modificaram o peso relativo dos partidos vis-à-vis as sociedades civis, os Estados e os mercados.

Os partidos passam a aprofundar sua crise, seja porque têm dificuldades para ajustar seus procedimentos aos novos ritmos da vida, seja porque suas bases de referência (classes sociais, grupos, regiões) se fragmentaram e adquiriram outras formas de agregação, seja enfim porque a própria democracia passou a sofrer abalos em sua tradução institucional. No afã de compensar a crise, os partidos ingressam em metamorfose permanente, perdendo as características que lhes davam sustentação e coerência.

Está nesse ponto o dilema que tem levado seja ao desaparecimento de grandes partidos da tradição comunista, como o italiano, seja aos problemas da social-democracia e do trabalhismo nos países em que conheceram sua maior fortuna (França, Alemanha, Inglaterra). A rigor, as organizações partidárias vivem hoje a processar conflitos internos e a estabelecer relacionamentos com movimentos que as acossam e com elas competem. O quadro é de busca de reposicionamento, de recuperação de um protagonismo que se perdeu no tempo.

Configura-se assim um quadro no qual a proliferação de movimentos empurra a política para uma dinâmica sempre mais centrífuga, sem que os partidos consigam compensar isso com a afirmação de uma dinâmica oposta, de tipo centrípeta. Em decorrência, prolongam-se processos que ampliam a fragmentação, não beneficiam a democracia e minam a “consciência da coletividade”.

A crise dos partidos de massa (especialmente dos perfilados mais à esquerda) coincide, por um lado, com o esgotamento das duas tradições que moldaram o mundo moderno, o liberalismo e o socialismo, e, por outro, com a disseminação social da democracia e dos direitos humanos. O desdobramento disso é que a luta política fica desprovida de agentes capazes de levar a democracia para o plano institucional, que é onde se pode de fato garantir direitos e ampliar a cidadania. Crescem assim os dilemas do campo progressista, ou seja, das correntes políticas e intelectuais sustentadas pela interpenetração vigorosa da liberdade com a igualdade social. Como viver numa “era de perplexidade”, pergunta-se Yuval Harari, na qual o gênero humano enfrenta revoluções sem precedentes, ao mesmo tempo em que “todas as narrativas antigas estão ruindo e nenhuma narrativa nova surgiu até agora para substituí-las”?

Se a velha ordem industrial e pós-industrial se mostra esgotada, também é verdade que ainda não se estabeleceu um novo padrão de vida coletiva, que se ressente da ausência de agentes unificadores e de um projeto de sociedade que reunifique o que está separado e prefigure o futuro, fornecendo uma imagem de como a vida comum pode ser na época de complexidade social e de preponderância da tecnologia e da inteligência artificial.

A proliferação de movimentos cívicos está diretamente determinada por esse quadro de metamorfose do mundo. Ela expressa a modificação dos humores sociais, o aumento da fragmentação e da complexidade societal, em um contexto no qual a política deixa de fornecer respostas satisfatórias, convincentes. Desejosos de participação e refreados pelas idiossincrasias dos sistemas políticos, muitos cidadãos buscam novos espaços de agregação e atuação. Os movimentos tornam-se, assim, uma espécie de desaguadouro do ativismo que floresce na hipermodernidade, expressando uma vontade coletiva de limitar as oligarquias partidárias, reformar a política e inventar novas formas de atuar politicamente. No horizonte de todos esses movimentos, anuncia-se a perspectiva de não repetir a organização tradicional dos partidos políticos.

Invariavelmente, os novos movimentos trouxeram, na agenda, a contestação da política institucional e das práticas nela ancoradas, algo que se expandiu na mesma medida em que avançaram a crise do Estado de bem-estar e a ultrapassagem da sociedade industrial. Como demonstram os fatos das duas primeiras décadas do século XXI, um clima de mal-estar, indignação e revolta se colou à vida cotidiana. “Não foram apenas a pobreza, a crise econômica ou a falta de democracia que causaram essa rebelião multifacetada. Mas sim a humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja ele financeiro, político ou cultural”. Redes multitemáticas se formam tendo na base um interesse comum: “controlar a capacidade de definir as regras e normas da sociedade mediante um sistema político que responde basicamente a seus interesses e valores”.

Dadas as circunstâncias de crise da política, os movimentos sociais podem de fato ajudar a tirar o poder e o sistema político da zona de conforto em que vivem. Podem pressioná-los de fora para dentro, forçá-los a se atualizar e a se democratizar. Podem introduzir, no sistema, novas regras, novos critérios de inclusão, novos direitos e novos processos de tomada de decisões. Podem fazer com que a “política-vida” se cole na “política-poder”. Fica, porém, em aberto, o problema de saber em que medida os movimentos podem atingir esses fins sem uma articulação com o sistema político, ou seja, com partidos, instituições sistêmicas e governos.

Os movimentos sociais da hipermodernidade não podem ser tratados como expressão típica da esquerda ou do progressismo democrático. Refletem muito mais a complexidade social, as falhas do sistema político e as próprias características adquiridas pela democracia representativa no correr das modificações estruturais. No Brasil atual, por exemplo, os movimentos sociais surgidos nos últimos anos têm um perfil mais propriamente “conservador”, privilegiando o questionamento de instituições como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, a pressão em favor do combate à corrupção — visto como um pleito de caráter mais moral que político –, a reivindicação de melhores políticas públicas.

Se considerarmos particularmente o Brasil, não será difícil constatar a presença de traços que definem essa paisagem de metamorfose e transfiguração. A própria redemocratização, iniciada nos distantes anos 1980, parece sem força para se desdobrar. Faltam-lhe, entre outras coisas, atores e projeto. Os partidos brasileiros não conseguem dar conta de uma realidade que escapa à sua compreensão e que os empurra para a condição de meros reprodutores do sistema. Dividem-se e subdividem-se ao sabor da dinâmica política, o que os enfraquece e amplia a fragmentação do sistema partidário. Deixam escapar pelas mãos algumas oportunidades importantes para melhorar seu funcionamento, amenizar os estragos sobre a democracia e encontrar pontos de cooperação e unidade que transfiram substância a seus programas de ação e às grandes linhas doutrinárias que os referenciam: o liberalismo, o conservadorismo, o socialismo.

Movimentos e crise da política no Brasil
A situação partidária no Brasil é marcada por um paradoxo: ainda que pouco eficientes no diálogo com a sociedade e a opinião pública, os principais partidos funcionam e conseguem transferir alguma estabilidade ao sistema político. Vivem em um ambiente de disputas incessantes por espaços e recursos de poder, algo amplificado pela forte fragmentação do Congresso e pelo funcionamento de “bancadas suprapartidárias” que em boa medida retiram força e coesão dos próprios partidos. São também acossados, ao menos desde 2013, pelos movimentos que se dedicam à seleção e formação de lideranças cívicas, que terminam por opor aos partidos uma dinâmica externa a eles, fonte de não poucos problemas.

Apesar disso, as principais agremiações — PT, PSDB, PMDB, PL, DEM, PSD, PSB, PDT (não necessariamente nesta ordem) — conseguem manter uma surpreendente unidade de atuação parlamentar, graças aos influxos da política subnacional (o peso dos governadores e das bancadas estaduais) e a uma relação de barganha com o Poder Executivo. Suas estratégias “corporativistas” de defesa dos próprios interesses fazem com que o sistema partidário se reproduza, mas sempre em tensão com a opinião pública.

Um sistema partidário estável não é sinônimo de eficiência na gestão pública, na governança, no controle do Poder Executivo ou na revitalização da democracia. Pode mesmo ser o contrário disso. Os partidos brasileiros funcionam, mas carecem de capacidade de apresentar projetos de sociedade. Entregam-se sem pudor ao jogo eleitoral e à manipulação dos recursos de poder de que podem dispor. Não selecionam adequadamente seus representantes, preocupam-se pouco com sua formação e seu preparo técnico-político e cultural.

Um sistema desse tipo funciona com brechas evidentes, por onde entram as críticas da opinião pública, as táticas de captura dos partidos pelos grandes interesses organizados e a busca incessante, pela sociedade civil, de caminhos alternativos de pressão e representação.

No Brasil, o alarme soou em 2013, quando massas de manifestantes desceram às praças sem organização e sem lideranças, posicionando-se como fatores de pressão sobre o sistema político e de recusa à intermediação partidária. Ficou evidente a distância entre o sistema político e a polissêmica voz das ruas.

Os protestos surpreenderam, mas as razões de sua efervescência estavam inscritas na realidade do capitalismo globalizado, na história nacional e na conjuntura política em sentido mais estrito. Falou alto a reestruturação da vida brasileira, que se fazia sem ultrapassar a desigualdade e a má oferta de serviços públicos, as injustiças, a má qualidade da política democrática, a corrupção e os desmandos governamentais.

Dos protestos de 2013 vieram movimentos que se mantiveram ativos nas ruas e desaguaram no impeachment de Dilma Rousseff e, depois, na eleição de Jair Bolsonaro. Se, antes, a contestação social era feita por iniciativas de esquerda, gradualmente houve um deslocamento: da exigência de mais igualdade, distribuição e reforma social, passou-se a uma pauta de questionamento dos políticos, da corrupção, dos poderes instituídos, algo que terminou por ser assimilado pela direita e pelo campo mais conservador. O verde-e-amarelo tomou conta das ruas, a expressar um “patriotismo” extemporâneo e uma repulsa ao “petismo” que dominara a política nacional até a queda da ex-presidente.

Em 2013, o protesto contra as deficiências na prestação de serviços públicos trincou a imagem de “paz social” que havia no ar. A revolta não organizou uma agenda clara, mas fez com que ressoasse por longos dias um grito de indignação e angústia coletiva. Ignorou parlamentares, sindicatos e partidos políticos. Ainda que de modo espontâneo e improvisado, deixou evidente que se dirigia contra o governo representativo tal qual estruturado no Brasil: contra todos os governos, o sistema político, seus atores, seus procedimentos e sua cultura. O protesto escancarou uma crise da política que vinha de longe, que trocara sua manifestação explícita por uma latência recorrente que aos poucos foi corroendo a representação política e pondo em xeque a legitimidade dos governos. O que se questionou, portanto, foi o arranjo político protagonizado por pessoas, grupos e classes, interesses econômicos e organizações que, por vias ora dissimuladas, ora explícitas, têm-se associado para governar o país.

A crise germinou e se aprofundou com o correr do tempo. Foi impulsionada pelos governos, que continuaram a exibir falhas graves e mau desempenho, tanto em termos de gestão e de políticas públicas, como em termos de comunicação e diálogo com a população. A corrupção cresceu ininterruptamente. Os partidos políticos seguiram em frente como associações parasitárias, sem vida e sem ideias. Não contribuíram para transferir maior politicidade à sociedade civil, que cresceu em dimensão e ativismo sem conseguir contornar a fragmentação. O sistema foi permitindo que se agigantasse o contraste entre a miséria de boa parte da população e os gastos desnecessários, o desperdício e o uso suntuoso de recursos públicos pela elite política e administrativa (Executivo, Legislativo e Judiciário). Foi se distanciando da sociedade e a incentivando a se tornar “contra a política”.

Para complicar, a perversão sistêmica ganhou uma sobredeterminação. Tornou-se mais grave durante o período em que o vértice do Estado passou a ser integrado por quadros e políticos do Partido dos Trabalhadores, que sempre se apresentou e cresceu como expressão do progressismo e da justiça social. Sob seus governos, porém, reproduziram-se as bases do clientelismo, do patrimonialismo e da corrupção, o que gerou ainda mais frustração e indignação, que aumentaram na medida em que foi ficando claro que persistiam os privilégios das grandes empresas, a impunidade dos mais ricos, os gastos exorbitantes e sem critérios claros, o enriquecimento dos dirigentes políticos.

Em junho de 2013, a hipermodernidade proclamou sua presença na política. Dali em diante, as ruas brasileiras ficaram mais ativas, mas o estupor se fixou no campo democrático. Uma incessante disputa por visibilidade e “narrativas” tomou conta da vida política e foi corroendo, pouco a pouco, todos os protagonistas do sistema político e da política tradicional, abrindo espaços generosos para outsiders e novas agendas, de tipo conservador. A derrota dos partidos de centro, centro-esquerda e esquerda nas eleições de 2018 revelou uma democracia carente de eixo, exposta ao autoritarismo regressista e demagógico de Jair Bolsonaro, que se alimentou da desilusão social, do antipetismo e da denúncia da “velha política” para vencer de modo insofismável nas urnas.

A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, em 2018, explica-se em boa medida por esse quadro. Naquele ano, com o sistema político abrindo falência, a economia em recessão e a sociedade mostrando apetite anti-establishment, as correntes democráticas (liberais, social-democratas, de esquerda) privilegiaram as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita. Mostraram incompetência e ausência de visão estratégica. Prepararam o terreno para a eleição de um candidato improvável e despreparado, sem conseguir compreender as razões de sua progressiva afirmação.

Bolsonaro mostrou senso de oportunidade ao endossar um figurino específico na hora mesma em que o eleitorado demonstrava estar cansado das ofertas políticas usuais. Suas proposições autoritárias, seu estilo informal, o uso abusivo de valores religiosos e moralistas e sua habilidade em utilizar as redes sociais encontraram eco nos eleitores, que viram nele uma opção ou para derrotar o PT e virar a página, ou para depositar esperanças num líder de novo tipo.

A extrema-direita vitoriosa chegou ao poder disposta a promover a eliminação da esquerda e de suas filosofias, transformando a democracia progressista em inimigo, desprezando postulações identitárias, criminalizando gays e feministas em nome de uma moralidade regressista. Estigmatizou a política, os políticos e seus partidos, menosprezou o ritmo democrático e o sistema de freios e contrapesos da República, sempre apelando à sociedade para atacar o “sistema”. Passou a atuar em nome do combate a aspectos deplorados pela opinião pública — a “velha política”, os políticos, a corrupção — , articulando tais pontos com uma bizarra postura contrária ao “globalismo”, à democracia representativa, ao ambientalismo, ao socialismo.

A hostilidade como procedimento tornou-se metódica, um recurso de mobilização. O governo permanece em campanha sem alcançar muita coordenação e sem entregar resultados concretos. O risco de isolamento social despontou, fazendo com que o governo aumentasse seu estilo belicoso.

A guerra ideológica da extrema direita contra partidos, “velhos políticos” e sociedade civil desorganiza a democracia, aumenta os custos da transação política, enfraquece instituições e órgãos públicos. Em vez de promover a superação da polarização fratricida que reinou nos últimos anos, ela a agrava, a esvazia de dignidade e a empurra para a violência explícita. Por um lado, impede que se atinja uma sociedade mais coesa e um Estado administrativo mais eficiente. Por outro, faz com que se reforce a crise de confiança nas instituições e na própria democracia, fomentando a concentração das expectativas sociais na autoridade presidencial.

Conclusão: o futuro em aberto
O principal problema do progressismo brasileiro não é a existência de um governo de extrema direita presidido por um demagogo fundamentalista e retrógrado. O problema é que ele governa em um quadro de desarticulação, de desconexão dos partidos democráticos entre si e com a sociedade civil. A verborragia provocativa, a narrativa tóxica e o estilo agressivo do presidente precisam ser decodificados. Não são o dado mais importante: são parte do drama, integram a coreografia, mas não definem o drama.

Por trás da violência verbal, há uma disputa direcionada para refazer o pacto social brasileiro, as regras vigentes no mundo do trabalho e do emprego, o modo como historicamente se concebeu o desenvolvimento econômico entre nós, com seus devidos acordos interclasses. Ainda não está suficientemente claro o fôlego que terão as forças políticas que hoje governam o País. Não se sabe, também, se do projeto governamental sairá alguma nova situação econômica, se haverá ou não retomada do crescimento e melhoria das condições de vida dos brasileiros. Sabe-se, porém, que Bolsonaro é o instrumento de uma aposta, de uma maneira de conceber o império do mercado, que se combina, paradoxalmente, com isolacionismo internacional e alinhamento meio atabalhoado com as correntes “soberanistas” que tentam se fixar no mundo. O ultraliberalismo econômico serve de instrumento para a afirmação do reacionarismo na política, na cultura, na moral.

O comportamento presidencial e de parte de seus ministros prenuncia uma era de regressão ética e barbárie social, funciona como uma cortina de fumaça que oculta a fraqueza técnico-política do governo e a ausência nele de um projeto para a sociedade.

O sistema político mantém seu perfil e seu equilíbrio, sem ter sido abalado pela vitória de Bolsonaro e a ascensão inesperada de seu partido, o PSL. A “velha política” continua no comando, com os mesmos expedientes de sempre. Os partidos mais fortes permanecem votando em uníssono, em que pesem os ruídos provocados pela voz dissonante de alguns parlamentares, como por exemplo nas votações da reforma previdenciária.

O sistema resiste e demonstra, em alguns momentos, ser capaz de impulsionar o processo de tomada de decisões e de compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera suas marcas negativas, que opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios. Em parte ele se contrapõe aos movimentos do governo e mostra independência, em parte se consome em seu próprio fogo corporativista.

Falta articulação ao governo, que carece da capacidade de produzir consensos e arregimentar as próprias forças no Congresso, como tem sido evidenciado pela marcha da reforma previdenciária, tida como estratégica pelo governo e necessária pela maior parte dos parlamentares. A reforma avançou mais por empenho da Câmara dos Deputados do que por iniciativa governamental. Foi sendo reformulada no âmbito legislativo sem que as bases do governo atuassem de forma coordenada.

A falta de articulação política é um problema dos partidos, mas é antes de tudo expressão de uma grave falta de liderança. Sem líderes consistentes e com um presidente da República desinteressado do tema, despreparado para imprimir qualidade ao processo decisório, a política transcorre com dificuldade. Seria uma oportunidade para os democratas, não estivessem eles afetados pela mesma carência de lideranças e agregação.

A repercussão desse vazio atinge o conjunto das relações políticas: entre o Executivo e o Legislativo, entre os três poderes, entre a Câmara e o Senado, entre os entes da federação. Os dispositivos de “checks and balances” (pesos e contrapesos) tornam-se pouco eficientes e a dinâmica política, por sua vez, deixa de produzir efeitos virtuosos, travando o avanço de reformas econômicas, o controle das políticas públicas e a proteção de direitos.

Há muita contestação e resistência aos atos, palavras e decisões governamentais, mas não há propriamente oposição. A sociedade e a opinião pública continuam divididas entre bolsonaristas, petistas, conservadores, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política. A polarização se mantém em parte como produto passivo da longa exposição à dialética do “nós contra eles” que vem dominando a política nacional, e em parte graças à insistência governamental em hostilizar o PT, o socialismo, as esquerdas, a democracia. Assim disposta, a polarização reflete a paralisia dos democratas liberais, de centro e socialistas, que não se articulam para apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder.

Crise de pensamento e ação dos democratas
Como a economia não dá mostras de que sairá do lugar no curto e médio prazo, pode-se antever que não haverá espaços para bonança fiscal, empregabilidade e expansão do consumo. Poderá evaporar, assim, parte importante das promessas de Bolsonaro. Somando-se a isso o desmascaramento da sua postura anticorrupção, seu familismo recorrente, o comportamento folclórico de alguns de seus ministros e o mau funcionamento da máquina administrativa, é de prever que sua popularidade não subirá.

Nem isso, porém, tem servido para energizar as forças políticas que se opõem ao governo. Elas permanecem desorientadas, contaminando os cidadãos e os movimentos sociais de viés democrático. Não há lideranças, faltam propostas e ideias, a perspectiva de uma coalizão democrática permanece no papel.

Palavras são palavras: têm mil e uma utilidades. Em política, influenciam, organizam, são recursos de hegemonia. Podem educar, iludir, inflamar, envenenar. Precisam ser, por isso, decodificadas, decifradas, criticadas, levadas em conta, em si mesmas e na “narrativa” que impulsionam. No caso de Bolsonaro, antes de tudo, porque elas contrastam a Constituição, especialmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos e da ordem social. As frases racistas, preconceituosas, misóginas, anticientíficas, abrigam uma violência que turva e colide com o modo de ser dos brasileiros. Deseducam para a cidadania.

Diante das tropas fanatizadas do bolsonarismo, palavras servem para mobilizar, sem elas a base se desmancha e a narrativa não se sustenta. O “mito” deve ser reposto dia após dia, para que sua demagogia populista e patrioteira sobreviva. É uma reposição que se faz com atos e decisões, mas também com palavras, que mobilizam e persuadem. É preciso separar o caricato do substantivo, descobrir o que há por trás do palavrório de Bolsonaro. Sua narrativa funciona como um filtro que bloqueia a visão da paisagem. É tóxica sobretudo por isso. Desconstruí-la é recuperar uma perspectiva e um entendimento que se perderam pelo caminho.

O progressismo brasileiro precisa abrir novas portas. Buscar maior interlocução, abandonar projetos parciais de poder e cálculos eleitorais de curto prazo. Ir além da “resistência” e da contestação retórica. Deve converter-se em oposição e disputar a sociedade, sem medo de ousar, correndo riscos que valham a pena.

 


Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra

“O PSL é belicoso e midiático, na primeira crise interna, o que se vê são gravações feitas sem autorização, ameaças de denúncias e muito bate-boca entre seus deputados nas redes sociais”

Usada à farta no Brasil para caracterizar uma atitude fadada ao fracasso, não existe uma explicação para a existência da expressão “Foi assim que Napoleão perdeu a guerra”, sobre a qual não há referências em alemão, francês, russo ou inglês. Alguns atribuem a expressão aos portugueses, uma espécie de vingança sarcástica devido à invasão de Portugal pelo exército francês e a consequente fuga de D. João VI e sua corte para o Brasil, em 1808.

As especulações vão da desastrosa retirada de Napoleão da Rússia, em 1812, depois da ocupação de Moscou, pois a cidade fora evacuada e, depois, incendiada (o exército russo evitou o confronto aberto e perseguiu as tropas francesas em pleno inverno, até Paris) a uma suposta crise de hemorroidas que o impedira de montar durante a Batalha de Waterloo, em 1815, quando foi definitivamente derrotado pelos ingleses.

O chiste lusitano é sob medida para a crise do PSL, cujo último lance foi a renúncia do líder da bancada na Câmara, deputado Delegado Waldir (GO), e sua substituição pelo deputado Eduardo Bolsonaro (SP), filho do presidente da República. Jair Bolsonaro se encontra no Japão, primeira etapa de sua viagem à Ásia, mas de lá monitora a operação que levou seu filho à liderança do PSL.

Apesar de ter a maior bancada governista da Câmara, com 53 deputados, o PSL nunca foi o partido hegemônico na Casa, embora seja muito estridente na tribuna e nos apartes, além de agitar as redes sociais. Agora, com essa divisão, corre o risco de ser tornar irrelevante, a não ser que haja um acordo interno que apazígue a disputa. Falta à bancada do PSL cultura parlamentar para o entendimento e a composição, num ambiente com ritos de convivência consolidados.

O modus operandi do partido é belicoso e midiático. Na primeira crise interna, o que se vê são a divulgação de gravações feitas sem autorização, ameaças de denúncias sobre os podres partidários e muito bate-boca pelas redes sociais, às vezes em linguagem completamente estranha à vida parlamentar, como a guerra de emojis entre a ex-líder do governo no Congresso Joice Hasselmann (PSL-SP) e o vereador carioca Carlos Bolsonaro (PSL), filho do presidente da República, que nem da bancada é.

Decantação

A reviravolta de ontem, quando Eduardo Bolsonaro conseguiu finalmente o número de indicações para se tornar o líder, não encerra a crise, apenas restabelece a lei da gravidade, pois seria um aborto da natureza o presidente da República ser derrotado na sua própria bancada, como aconteceu na sexta-feira. Entretanto, é um jogo de perde-perde: se 29 deputados apoiam o novo líder e 24 são contra ele, em certas circunstâncias, isso reduz o peso da bancada a cinco deputados, principalmente em questões interpares. Vamos supor, por exemplo, que a eleição para a presidência da Câmara fosse hoje.

A confusão na bancada do PSL faz parte de um processo de decantação, após o tsunami eleitoral que renovou a Câmara. Começa a separar os parlamentares eleitos para brilhar e que se destacam entre as principais lideranças daqueles que vão permanecer no baixo clero. Alguns serão deputados de um só mandato.

A aposta do clã Bolsonaro é que os adversários internos não sobreviverão sem o apoio do presidente da República, porque chegaram ao Congresso na aba do seu chapéu. Além disso, ficarão a pão e água, conforme a narrativa usada para pressionar os rebeldes a apoiarem o novo líder. Tem lógica, mas muita água ainda vai rolar sob a ponte.

O primeiro ato de Eduardo Bolsonaro foi destituir os 12 vice-líderes da legenda, cargos importantes no funcionamento da Câmara, porque seus ocupantes substituem o líder nas comissões e no plenário, além de terem direito à partilha dos cargos da liderança. O líder é poderoso quanto ao funcionamento da Casa, pois indica os integrantes das comissões e relatores, comanda as negociações e intermedeia a ocupação de espaços e liberação de recursos nos ministérios.

Para o presidente Bolsonaro, controlar a liderança é uma forma de confrontar o poder da cúpula do partido, principalmente do presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), com quem entrou em rota de colisão por causa dos recursos dos fundos partidário e eleitoral, que somam mais de R$ 200 milhões. O papel de líder, principalmente nos grandes partidos, exige capacidade de diálogo e negociação. Esse não é o forte de Eduardo Bolsonaro, cujo perfil é mais agressivo. Pode ser que a estratégia de Bolsonaro pai seja mesmo essa, porque a agenda econômica do governo vai bem sem o PSL. O grande negociador das reformas é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O papel do filho seria fazer um contraponto e demarcar território.

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Luiz Carlos Azedo: Cria corvos

“A crise de Bolsonaro com o PSL não tem nada a ver com os temas em discussão no Congresso, nem com a polarização política direita versus esquerda. É o varejo do varejo que a move”

“Cria cuervos que te sacarán los ojos” (crie corvos e eles te arrancarão os olhos) é um velho provérbio espanhol. A citação inspirou a obra-prima do cineasta Carlos Saura, que se passa em pleno franquismo. Aqui, porém, tem mais a ver com a crise entre o presidente Jair Bolsonaro e seu partido, o PSL, que ameaça implodir a legenda, quiçá o próprio governo, se o líder da bancada na Câmara, deputado Delegado Waldir (GO), nesse caso, fosse levado a sério. A sua ameaça vazou em gravação divulgada à imprensa, como vazara antes uma declaração do presidente da República articulando a substituição do líder por seu filho, deputado Eduardo Bolsonaro (SP) — aquele mesmo que o pai pretendia nomear embaixador do Brasil nos Estados Unidos — numa reunião no Palácio do Planalto com 20 deputados da legenda.

A crise começou com uma declaração de Bolsonaro de que o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), estaria queimado, evoluiu para um questionamento sobre a transparência da gestão e uma ação de busca e apreensão da Polícia Federal na casa e no escritório do cacique da legenda. Fechou a semana com uma mudança na liderança do governo no Congresso, a destituição da deputada Joice Hasselmann (SP), que foi substituída pelo senador Eduardo Gomes (MDB-TO), e a fracassada tentativa de destituição do líder da bancada na Câmara, por meio de duas listas cujas assinaturas não atingiram o número de deputados necessários para o reconhecimento da Mesa.

Nesse bafafá, além dos vazamentos de conversas gravadas sem autorização, houve muito disse-me-disse e articulações de bastidor para destituir os filhos do presidente Bolsonaro do comando da legenda no Rio de Janeiro, no caso, o senador Flávio Bolsonaro, e em São Paulo, o deputado Eduardo Bolsonaro. No fim da tarde, Delegado Waldir tentava minimizar as próprias ameaças: “É uma fala num momento de emoção, né? É uma fala quando você percebe a ingratidão. Tenho que buscar as palavras”, disse. Ao encontrá-las, a emenda foi pior do que o soneto: “Nós somos Bolsonaro. Nós somos que nem mulher traída. Apanha, não é? Mas, mesmo assim, ela volta ao aconchego”.

A crise de Bolsonaro com seu partido parece reprise de outros momentos da história, em que presidentes eleitos numa onda antissistêmica, por pequenos partidos, sem uma base sólida no Congresso, acabaram interrompendo o mandato: Jânio Quadros, eleito pelo PTN, que renunciou em 1961, sonhando com a volta nos braços do povo, e Fernando Collor de Mello, eleito pelo PRN, que também renunciou, mas para evitar um impeachment. Ambos tiveram comportamentos histriônicos na Presidência, foram eleitos com uma narrativa de combate à corrupção, numa onda populista de direita. Os contextos, porém, eram diferentes. A eleição de Jânio foi pautada pela Guerra Fria; a de Collor, pela modernização do país após a redemocratização.

Varejo
O mais impressionante na crise de Bolsonaro com o PSL é que a disputa não tem nada a ver com os grandes temas em discussão no Congresso, nem mesmo com a polarização política direita versus esquerda protagonizada pelo presidente da República. É o varejo do varejo da política partidária que a move. Bolsonaro considera todos os parlamentares do PSL caudatários de seu próprio prestígio, porque foram eleitos pela base bolsonarista, que descarregou votos nos candidatos proporcionais que o apoiavam. Nesse aspecto, está cheio de razão. Ocorre que os parlamentares pensam diferente, descobriram seu próprio poder na convivência com outros líderes e bancadas partidárias, querem mais espaço no governo e não abrem mão de seu quinhão na partilha dos recursos dos fundos partidário e eleitoral.

Bolsonaro não desistiu de remover Delegado Valdir. O líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (GO), continua as articulações para fazer de Eduardo Bolsonaro (SP) o novo líder da bancada. A briga tem muito a ver com o posicionamento da legenda em relação às eleições municipais do próximo ano. Bolsonaro quer indicar os candidatos apoiados pelo PSL, principalmente nas capitais. A experiência mostra que esse tipo de envolvimento direto do presidente da República nas eleições não costuma dar muito certo. Nacionalizar as eleições municipais não é a tendência dos eleitores, mesmo nas grandes metrópoles. Foram raros os momentos em que isso aconteceu, como na eleição de Luiza Erundina, então no PT, à Prefeitura de São Paulo, em 1988, durante o governo José Sarney.

O maior problema é que a disputa ocorre num momento em que o governo está sem agenda no Congresso. A aprovação da reforma da Previdência deverá ser concluída na próxima quarta-feira, no Senado. Com o engavetamento da reforma tributária, o governo não sabe ainda o que fazer em termos de iniciativa legislativa. O ministro da Economia, Paulo Guedes, ontem, negociava uma pauta com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), mas foi atropelado pela crise entre seu chefe e seus correligionários. Não fossem o DEM e o MDB, principalmente, o governo estaria no sal, sem a menor governabilidade.

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Luiz Carlos Azedo: Os dissidentes da esquerda

“Acabaram como estranhos no ninho, pois tanto o PDT como o PSB são partidos da esquerda tradicional, com uma lógica de funcionamento que não acolhe as ideias do grupo”

Sete parlamentares do PDT e do PSB protocolaram, ontem, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), um processo de reivindicação de mandato. São dissidentes programáticos das respectivas legendas, porque votaram a favor da reforma da Previdência durante a tramitação da matéria na Câmara dos Deputados. Como a legislação determina que o mandato fique com o partido, caso o parlamentar deixe a legenda fora da janela temporária, mas prevê exceções, como a perseguição política, é exatamente este quesito que alegam para mudar de partindo.

Tábata Amaral (SP), Marlon Santos (RS), Flávio Nogueira (PI) e Gil Cutrim (MA), do PDT, e Rodrigo Coelho (SC), Jefferson Campos (SP) e Felipe Rigoni (ES), do PSB, fazem parte de uma nova esquerda que surge na Câmara, democrática e reformista. Tábata, de 25 anos, é uma jovem da periferia de São Paulo que foi estudar ciências sociais em Harvard e voltou militante dos movimentos sociais, principalmente na Educação. Com um discurso político liberal, é a principal estrela do grupo. Logo ao chegar à Câmara, notabilizou-se por interpelar o então ministro da Educação, Ricardo Vélez, numa audiência pública, mas logo entrou em rota de colisão com o PDT, herdeiro do velho trabalhismo de Leonel Brizola.

Foi suspensa pelo comando do partido, com a previsão de que seu caso de infidelidade fosse julgado internamente em dois meses. “Já se passaram mais de três. Não tenho mais diálogo com o PDT. Enviei uma carta ao presidente (Carlos) Lupi pedindo que fosse julgada. Sou ignorada. Não estou podendo atuar de forma efetiva na Câmara, não sou indicada para comissões, nada. Estou suspensa sem previsão de julgamento. É perseguição política”, reclama.

Cego desde os 15 anos, o capixaba Felipe Rigoni é outro ponto fora da curva. Formado em engenharia de produção na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), com mestrado em Oxford, na Inglaterra, aos 27 anos também pressionou o ex-ministro Ricardo Vélez por propostas concretas na pasta. Brilhou ao discursar pela primeira vez da tribuna da Câmara. É o primeiro parlamentar com deficiência visual total na Casa.

Quando se filiou ao PSB, havia assinado uma carta conjunta que lhe garantia independência, mas esse acordo não foi cumprido. Segundo ele, o PSB fechou questão contra a proposta da Previdência enviada pelo governo. Depois das modificações no texto feitas durante a tramitação na Câmara, Rigoni decidiu mudar de posição: “Eu tinha minhas ressalvas contra a proposta inicial enviada pelo governo, mas, depois das alterações na Câmara, a reforma ficou muito mais justa.”

Novo bloco
Os sete deputados fazem parte de um movimento de renovação política que surgiu a partir das manifestações de 2013, desaguando na campanha do impeachment de Dilma Rousseff e no tsunami eleitoral que varreu o Congresso, além de eleger o presidente Jair Bolsonaro. Escolheram seus respectivos partidos por certa afinidade política e muita conveniência eleitoral, mas nunca esconderam o desejo de realizar mandatos diferenciados do ponto de vista da atuação parlamentar. Acabaram como estranhos no ninho, pois tanto o PDT como o PSB são partidos da esquerda tradicional, com uma lógica de funcionamento que não acolhe as ideias do grupo.

O Novo, a Rede e o Cidadania disputarão o passe dos dissidentes, mas nenhum dos parlamentares abre o jogo do destino que pretendem tomar. É possível que façam isso em grupo, mas há uma variável nesse processo muito importante: pretendem escolher uma legenda que tenha regras de funcionamento mais democráticas e transparentes. Tábata quer conversar com todas as legendas, mas pleiteia liberdade para defender sua visão de mundo, regras de compliance e prévias para escolher candidatos.

De certa forma, todos são potenciais candidatos a prefeito de suas cidades, pois obtiveram votação para isso, mas quem conhece o funcionamento dos partidos sabe que existe fila para quase tudo. A precedência é uma regra do jogo que precisa ser respeitada. Se essa for a pretensão de alguns, influenciará a escolha da legenda de destino. Ao recorrer à Justiça, os dissidentes também estão estabelecendo um novo paradigma de relacionamento dos parlamentares com os caciques dos partidos.

Caso o pleito seja aceito pelo TSE, se abrirá uma janela de oportunidade para outros insatisfeitos. Tanto no PDT como no PSB, dirigentes atacam os dissidentes, acusando-os de estarem migrando para a direita. Na verdade, está ocorrendo um processo de formação de um novo bloco de centro-esquerda na Câmara, com parlamentares de diversos partidos, cuja influência nas decisões da Casa vem aumentando.

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Luiz Carlos Azedo: Doria ou Huck, eis a questão

“Uma coisa é certa: não há lugar para Doria e Huck na mesma disputa; se ambos forem candidatos, o centro democrático acabará derrotado nas eleições de 2022”

O melhor mesmo seria citar a frase célebre “Ser ou não ser, eis a questão” (em inglês, “To be or not to be, that is the question), de Hamlet, no monólogo do terceiro ato da peça homônima de William Shakespeare. A frase não exige nenhuma erudição. Trata-se simplesmente de viver ou morrer: “Será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou nos insurgir contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim? Morrer.. dormir”, continua o monólogo.

O drama de Hamlet é a dúvida sobre o que fazer diante dos tormentos e sofrimentos, perante os quais o pensamento suicida surge como uma possível opção. Entretanto, a morte também traz indagações. A consciência inibe o suicida, com a interrogação sobre o que pode existir após a morte: inferno ou paraíso? O suicídio é condenado pela maioria das religiões. “Ser ou não ser” eternizou o clássico da dramaturgia universal, porque representa de forma ampla o como agir diante das circunstâncias.

“Ser ou não ser” sintetiza o drama dos dois principais nomes aventados para ocupar o espaço político do centro democrático nas eleições de 2022, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o apresentador de tevê Luciano Huck, sem partido. O primeiro já demonstrou que não é de esquentar nenhuma cadeira por muito tempo, pois largou no meio o mandato de prefeito de São Paulo para disputar o governo do maior do estado do país. Está preparado para enfrentar o presidente Jair Bolsonaro e seu possível adversário à esquerda, o ex-prefeito Fernando Haddad, que é seu freguês de carteirinha, pois derrotou-o quando disputava a reeleição. Haddad também perdeu para Bolsonaro, e não seria capaz de atrair o centro democrático para derrotar o “mito”, se houver outra opção.

Entretanto, o Palácio dos Bandeirantes é a joia da coroa da Federação, sede do governo do estado mais poderoso do país. A proposta orçamentária de São Paulo para 2020 é de R$ 239 bilhões. Para chegar a esse valor, Doria terá que efetivar seu programa de privatizações de rodovias, aeroportos e outros ativos. São Paulo, porém, ganhou de presente a divisão dos recursos do megaleilão de petróleo do pré-sal, marcado para novembro. Saltou de R$ 94 milhões para R$ 632,6 milhões, um aumento de 573% na expectativa de arrecadação, com a lei aprovada na quarta-feira pelo Congresso.

Do ponto de vista econômico e financeiro, São Paulo se basta. É o estado que menos serviços recebe do governo federal e mais paga impostos. Historicamente, colhe os frutos de sua elite agrária ter apostado na industrialização, enquanto as demais permaneceram aferradas ao velho patrimonialismo. Sofre até hoje, porém, as consequências da Revolução Constitucionalista, combatida como um movimento separatista pelos revolucionários de 1930. Vem daí a facilidade com que o estado acaba isolado em certas disputas políticas. O Palácio dos Bandeirantes é o vértice de um poderoso sistema de poder, por isso seu ocupante é um candidato natural à Presidência, porém o último que conseguiu chegar lá foi Jânio Quadros, em 1960.

Largada
No PSDB, quem governa São Paulo tem a hegemonia na legenda, será candidato ao que quiser. O problema é que João Doria está no primeiro mandato, tem que decidir entre manter a fortaleza ou tentar tomar o castelo de Bolsonaro, que também está no primeiro mandato. No caso de alto risco, o tucano não será candidato. É preferível manter a posição atual e aguardar 2026, com calma.

Desde as eleições passadas, Huck anda costeando o alambrado, como diria o falecido Leonel Brizola. Não tem estrutura de poder nas mãos, mas goza da imagem consolidada de jovem comunicador criativo, generoso e preocupado com o bem comum. No seu caldeirão, desempenha o papel de bom samaritano — no Novo Testamento, a única pessoa que se dispôs a ajudar um judeu indefeso, numa estrada solitária e perigosa. Samaritanos eram homens maus para os judeus, na parábola bíblica, porém, o bom samaritano foi o único que ajudou o pobre necessitado, era aquele de quem menos se esperava.

Funcionário da TV Globo, Huck queimou a largada, começou a apanhar dos adversários por causa das intensas articulações que vem fazendo, ao lado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do economista Armínio Fraga. Conversa com lideranças do PSDB, do DEM e do Cidadania, o antigo PPS, que mudou de nome com objetivo de atraí-lo: um novo partido para um grande candidato, diria Roberto Freire, líder da legenda.

Huck tem menos a perder em termos políticos, mas sua decisão estratégica será abandonar a carreira de bem-sucedido e milionário apresentador de tevê e se lançar de peito aberto no jogo bruto da política, com adversários que chutam do pescoço pra cima. Vai apanhar muito, precisa de casca grossa e pode ficar muito tempo no sereno se antecipar a saída da Globo. Uma coisa, porém, é certa: não há lugar para Doria e Huck na mesma disputa; se ambos forem candidatos, o centro democrático acabará derrotado.

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Luiz Carlos Azedo: Lava-Jato na ofensiva

“Embora no Rio de Janeiro, o juiz federal Marcelo Bretas mira os tucanos paulistas, por suspeita de superfaturamento e desvio de recursos públicos na ampliação da Marginal Tietê”

No último dia de recesso do Judiciário, a Operação Lava-Jato retomou a iniciativa, com nova denúncia contra o ex-diretor da Dersa (estatal paulista de rodovias) Paulo Vieira de Souza, pelo Ministério Público Federal (MPF), por corrupção, lavagem de dinheiro e fraude de licitação. Preso em Curitiba, Paulo é apontado como suposto operador financeiro do PSDB e responsável pela lavagem de milhões de reais a favor da Odebrecht.

Paulo Vieira é réu por suspeita de superfaturamento de uma obra de R$ 71,6 milhões que foi paga pela estatal Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa) ao consórcio Nova Tietê, cuja liderança pertencia à Delta, empresa de Fernando Cavendish. A denúncia foi oferecida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, mas foi enviada à 7ª Vara Federal do Rio em julho de 2016 porque os réus e os crimes são semelhantes aos da Operação Saqueador, um desdobramento da Operação Lava-Jato.

Embora no Rio de Janeiro, o juiz federal Marcelo Bretas mira os tucanos paulistas. A ampliação da Marginal Tietê custou R$ 360 milhões. As obras foram realizadas entre 2009 e 2011, na gestão de José Serra (PSDB-SP). Paulo Preto está sob forte pressão da Lava-Jato para fazer uma delação premiada. Ontem, Cavendish disse ao juiz Bretas que conheceu Paulo Vieira de Souza em 2008, durante uma reunião em São Paulo sobre a participação da Delta em obras do governo paulista.

O ex-diretor da Dersa teria pedido R$ 8 milhões em espécie para garantir a entrada da empresa carioca nos contratos. Cavendish disse que, além desse pagamento, depois do início das obras foram feitos outros, no valor de R$ 20 milhões, ao longo do contrato. O operador financeiro Adir Assad, que também prestou depoimento, aumentou a carga contra Paulo Vieira: disse que entregou a ele, em mãos, R$ 1,5 milhão.

Em outra frente de investigações, o doleiro Dario Messer foi preso em São Paulo, pela Polícia Federal. Estava foragido desde maio de 2018, quando foi deflagrada a Operação Câmbio Desligo, desdobramento da Lava-Jato no Rio de Janeiro. O doleiro estava no apartamento de uma amiga, Mary Oliveira Athayde, na Avenida Pamplona, nos Jardins. A prisão foi efetuada durante cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão expedidos por Bretas, com base em informações da inteligência da Superintendência da PF do Rio de Janeiro.

Lavagem de dinheiro

Messer vivia entre São Paulo e Paraguai. Engenheiro, é citado em inquéritos policiais desde os anos 1980, quando foi apontado como operador financeiro do banqueiro de jogo do bicho Waldomiro Paes Garcia, o Miro, então patrono da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, que morreu assassinato numa guerra com outros chefões da contravenção fluminense. Também foi o operador do envio irregular de US$ 33 milhões para o exterior por fiscais da Fazenda do RJ e auditores fiscais. O escândalo ficou conhecido como “Propinoduto”.

No “Mensalão”, é apontado como responsável pelo envio de US$ 1 bilhão de forma irregular para o exterior e entregar o dinheiro, em reais, no Banco Rural, para integrantes do PT. Além de ser dono de uma offshore no Panamá citada no caso do Swissleaks, Messer coleciona citações em relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sobre operações suspeitas, entre 2010 e 2015.

Na operação “Câmbio, desligo”, Messer é citado como o “Cagarras”, alusão ao Arquipélago das Cagarras, defronte ao qual tem uma cobertura em Ipanema. Os doleiros Claudio Barbosa, conhecido como “Tony” ou “Peter”, e Vinicius Claret, o “Juca Bala”, apontaram Messer como o “doleiro dos doleiros”, por ser dono de um sistema de compensação on-line no Uruguai que conectava doleiros de 52 países e operava contas em 3 mil empresas “offshore” de paraísos fiscais. A expectativa é de que também faça delação premiada, como outros doleiros presos pela Operação Lava-Jato.

Para completar a ofensiva, foi decretada a prisão do empresário Valter Faria, presidente do Grupo Petrópolis, dono da cerveja Itaipava. Com outros executivos do Grupo Petrópolis, teria atuado na lavagem de cerca de R$ 329 milhões em contas fora do Brasil. Segundo a Lava-Jato, o presidente do Grupo Petrópolis usou o programa de repatriação de recursos de 2017 para trazer ao Brasil cerca de R$ 1,4 bilhão obtido.

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Nas entrelinhas: Sarcófago do passado

“Quando um governo começa a promover rupturas com a sociedade civil e impor diretrizes verticais às políticas públicas, como vem ocorrendo, gera tensões sociais e políticas desnecessárias”

Das muitas faces do fascismo como regime político, a que determina a essência de sua natureza é o terrorismo de Estado. A existência de um partido de massas organizado e militarizado, com um braço armado, que foi a característica principal dos partidos de Benito Mussolini, na Itália, e de Adolf Hitler, na Alemanha, não seria suficiente para a caracterização do regime se não houvesse implementado, de forma sistemática, o terrorismo de Estado.

A supressão de liberdades e garantias individuais e a perseguição sistemática de oposicionistas são suficientes para caracterizar um regime autoritário, seja de direita, seja de esquerda, como na Hungria e na Venezuela, respectivamente. O fascismo aberto se instala, porém, quando a repressão policial é acionada de forma sistemática contra a população em geral, a pretexto de manter a ordem pública, e a perseguição seletiva aos oposicionistas se estabelece com objetivo de eliminar fisicamente os adversários, por meio de prisões, sequestros, torturas e assassinatos.

Foi o que aconteceu, por exemplo, nos regimes militares que se instalaram na América Latina nas décadas de 1950 (Guatemala e Paraguai), 1960 (Argentina, Brasil, Bolívia, República Dominicana, Nicarágua e Peru) e 1970 (Uruguai e Chile), com forte apoio dos Estados Unidos, em razão da guerra fria com a União Soviética e demais países da então chamada Cortina de Ferro. A maioria desses países transitou para a democracia e se manteve na órbita do Ocidente, a partir do governo de Jimmy Carter, o presidente norte-americano que adotou a defesa dos direitos humanos como vértice de sua política externa, no fim dos anos 1970.

No Brasil, o processo de democratização foi uma longa transição, iniciada nessa época, com a “anistia geral, ampla e recíproca” aprovada pelo Congresso em 1979, depois de muita negociação entre os militares e a oposição. A redemocratização do país foi concluída em 1985, quando os militares deixaram o poder, com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral e a convocação de uma Constituinte pelo presidente José Sarney, o vice que assumiu devido à morte do presidente eleito.

A chave desse processo foi, de um lado, a volta dos exilados e a libertação dos presos políticos; de outro, a impunidade dos torturadores e assassinos que, nos porões do regime militar, fizeram o serviço sujo para os generais que ocuparam o poder. Esse é nó górdio da democracia brasileira, assunto pacificado entre as Forças Armadas, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) pela Constituição de 1988. Todas as tentativas de rever a Lei da Anistia fracassaram, inclusive nos governos Lula e Dilma; agora, com sinal trocado, para o bem da democracia, não deve ser diferente.

Fantasmas

No lamentável episódio dos comentários do presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre o sequestro e o assassinato do líder estudantil Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, Fernando Santa Cruz, o mais grave não é o desrespeito para com a família do desaparecido e a insensibilidade do presidente Bolsonaro diante de um tema tão delicado (a perda de um parente próximo), é a defesa que fez do terrorismo de Estado praticado durante o regime militar, na contramão de tudo o que já foi feito para cicatrizar essa ferida purulenta. Revelou um viés autoritário que confronta a Constituição de 1988, suas instituições e compromisso claro com os direitos humanos. A rigor, confrontou o decoro e a responsabilidade do próprio cargo que exerce por vontade popular: a Presidência da República.

Não cabe ao presidente Bolsonaro, no âmbito das suas atribuições, fazer a exegese da Lei da Anistia, muito menos da Constituição que jurou cumprir e defender ao tomar posse, assunto sobre o qual quem se pronuncia é o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Sua insistência em revisitar, no sarcófago da ditadura, os fantasmas de um passado que não deve ser resgatado como modelo político, embora jamais deva ser esquecido, revela uma personalidade que se coloca acima do Estado democrático de direito, confundindo as próprias idiossincrasias com as prerrogativas do cargo.

Grosso modo, o atual governo tem características bonapartistas, por se colocar acima das classes sociais e se sustentar no “partido das armas”. Mas foi eleito num processo democrático, legitimamente, e a oposição precisa aprender a conviver com isso, sem abrir mão do direito ao dissenso e de lutar pelo poder. Entretanto, o presidente Bolsonaro também precisa aprender a respeitar as regras do jogo democrático e valorizar mais os consensos construídos ao longo de décadas para garantir a coesão da sociedade.

Quando um governo começa a promover rupturas com a sociedade civil e impor diretrizes verticais às políticas públicas, como vem ocorrendo em diversas áreas, gera tensões sociais e políticas desnecessárias, que podem dificultar e até agravar a solução dos verdadeiros problemas do país.

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Luiz Carlos Azedo: O terceiro turno

“Cada declaração polêmica de Bolsonaro provoca uma onda de protestos na sociedade civil e no exterior, além de frustrar eleitores que esperavam um presidente mais focado nos problemas do país”

O presidente Jair Bolsonaro, ao insistir numa agenda motivada por razões ideológicas e religiosas, mas descolada dos problemas prioritários da população, está protagonizando um debate político no qual sua imagem de presidente da República pode sair desgastada. Bolsonaro foi eleito sem debater suas ideias, ficou fora da campanha depois da facada que levou em Juiz de Fora (MG). A partir daquele trágico episódio, o “mito” se tornou imbatível, mesmo num leito de hospital. Afora os seguidores de carteirinha, porém, a maioria dos seus eleitores não conhecia as ideias polêmicas do presidente da República sobre assuntos em há um amplo consenso na sociedade, como a questão do desmatamento, por exemplo.

Com o Congresso Nacional e o Judiciário em recesso, Bolsonaro ficou absoluto na cena política, sem que nenhuma outra personalidade disputasse espaço na mídia. Nesse período, no jargão jornalístico, florescem as “flores do recesso”, temas que tomam conta do noticiário político e morrem quando o Parlamento e os tribunais voltam a funcionar. Ocupava a cena a divulgação de conversas entre o ministro da Justiça, Sérgio Moro, quando era juiz em Curitiba, e os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, pelo site The Intercept Brasil, do jornalista americano Green Grenwald.

Essa seria a mais exuberante “flor do recesso”, mas o presidente Bolsonaro irrompeu em cena, diariamente, com declarações e atitudes polêmicas a cada entrevista ou tuitada. Ontem, Bolsonaro afirmou em uma rede social que o estudante de direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi morto pelo “grupo terrorista” da Ação Popular do Rio de Janeiro, e não pelos militares, uma afirmação no mínimo leviana. Segundo a Comissão da Verdade, Santa Cruz foi morto por agentes dos órgãos de segurança do regime militar.

Mais cedo, ao criticar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, filho do estudante desaparecido, Bolsonaro havia chocado a opinião pública com a seguinte declaração: “Um dia, se o presidente da OAB [Felipe Santa Cruz] quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”. Sua declaração gerou repulsa nos meios jurídicos e políticos. O governador de São Paulo, João Doria, por exemplo, filho de um parlamentar cassado e obrigado a se exilar, considerou a declaração inaceitável.

Lava-Jato
Bolsonaro já chamou a jornalista Miriam Leitão de terrorista e os nordestinos de “paraíba”; anunciou que discriminaria o Maranhão, porque o governador Flávio Dino (PcdoB) é comunista; garantiu que ninguém passa fome no Brasil; desqualificou os dados sobre desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), voltou a dizer que só os veganos se preocupam com a questão ambiental e voltou a defender a transformação da Baía de Angra numa nova Cancún.

Entre uma declaração e outra sobre Fernando Santa Cruz, Bolsonaro também defendeu a prisão do jornalista americano Grenn Greenwald, que divulgou as mensagens trocadas pelo ex-juiz Moro e os procuradores da Lava-Jato. Bolsonaro já havia feito referência à possível prisão do diretor do The Intercept Brasil, ao negar a intenção do governo de deportá-lo. A ligação de Greenwald com os quatro hackers presos suspeitos de invadir celulares de Moro, procuradores e outras autoridades dos três poderes está sendo investigada pela Polícia Federal. O inquérito foi prorrogado por mais 60 dias. Greenwald alega que recebeu os documentos anonimamente e sem nenhuma compensação financeira.

Para completar o dia, Bolsonaro cancelou uma audiência com o chanceler da França, Jean-Yves Le Drian, e foi cortar o cabelo. A França é uma grande parceira no acordo do Mercosul com a União Europeia. Talvez o presidente da República não tenha se dado conta, ainda, de que está promovendo uma espécie de terceiro turno das eleições, no qual oferece à crítica ideias que sempre defendeu, mas que não foram apresentadas à sociedade na campanha eleitoral, muito menos confrontadas pelos adversários. Cada declaração polêmica provoca uma onda de protestos na sociedade civil e no exterior, além de frustrar uma parcela dos eleitores que esperavam um presidente mais focado nos problemas do país, mais moderado na política e eficiente na gestão administrativa.

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Luiz Carlos Azedo: Nova esquerda pede passagem

“Dissidentes do PDT e do PSB podem protagonizar a emergência de uma nova esquerda no Congresso, de caráter democrático e liberal, sem o viés nacionalista e socialista que caracteriza historicamente a esquerda brasileira”

O presidente do PDT, Carlos Lupi, anunciou ontem a suspensão dos oito deputados que votaram a favor da reforma da Previdência contra a orientação do partido: Alex Santana (BA), Flávio Nogueira (PI), Gil Cutrim (MA), Jesus Sérgio (AC), Marlon Santos (RS), Silvia Cristina (RO), Subtenente Gonzaga (MG) e Tabata Amaral (SP). Todos desafiaram os caciques da legenda, inclusive o ex-governador Ciro Gomes, que exigiu punição dos rebeldes em caráter pedagógico. Segundo ele, os deputados não podem servir a dois senhores, numa referência aos movimentos Acredito e RenovaBR, dos quais fazem parte.

Esses parlamentares são alinhados ao programa de renovação política de alguns movimentos aos quais estão ligados, como Acredito e RenovaBR, antes mesmo de terem se filiado à legenda. É o caso da jovem deputada Tabata Amaral, uma estrela em ascensão na política nacional, que escolheu o PDT como legenda por lhe oferecer melhores condições do que o Cidadania e a Rede para disputar uma vaga de deputada federal por São Paulo. É jogo jogado, ninguém foi enganado.

O comentário de Ciro Gomes lembra a famosa polêmica que deu origem ao “centralismo democrático”dos partidos comunistas, entre o líder bolchevique Vladimir Lênin e o social-democrata Julius Matov, na fundação do Partido Socialista Operário Russo (PSOR), em 1902. Martov era um importante líder da União Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia, que havia aderido aos bolcheviques. Pretendia manter sua organização, mas foi impedido por Lênin, que proibiu a dupla militância com o argumento de que um partido revolucionário não poderia abrir mão de um “centro único” dirigente.

Curiosamente, no Brasil, o antigo PCB, que mudou para PPS e, agora Cidadania, aboliu o centralismo democrático e se tornou uma Babel de tendências políticas, o que se reflete no posicionamento contraditório da bancada em relação ao governo Bolsonaro. Entretanto, seus oito deputados votaram unidos a favor da reforma da Previdência e agora abrem as portas da legenda para os dissidentes do PDT, acusados de serem neoliberais. Outras siglas, como o Novo e a própria Rede, também disputam corações e mentes desses dissidentes.

Entretanto, pode ser que estejamos presenciando um outro fenômeno: a gênese de uma nova esquerda, em ruptura com a esquerda tradicional, da qual o PDT e o PSB fazem parte, como partidos mais moderados do que o PT e o PSol, por exemplo. É preciso atenção também para os 11 dissidentes do PSB, contra os quais o presidente do Conselho de Ética da legenda, Alexandre Navarro, abriu um processo disciplinar.

Os deputados Átila Lira (PI), Emidinho Madeira (MG), Felipe Carreras (PE), Felipe Rigoni (ES), Jefferson Campos (SP), Liziane Bayer (RS), Luiz Flávio Gomes (SP), Rodrigo Agostinho(SP), Rodrigo Coelho (SC), Rosana Valle (SP) e Ted Conti (ES) também votaram a favor da reforma da Previdência, contrariando a orientação da direção do PSB, cujo eixo dominante é o clã Arraes, em Pernambuco. A maioria também faz parte dos movimentos Acredito e Renova BR.

Fundo eleitoral

Somados, esses 19 deputados podem protagonizar a emergência de uma nova esquerda no Congresso, de caráter democrático e liberal, sem o viés nacionalista e socialista que caracteriza historicamente a esquerda brasileira. A agenda desses parlamentares, na verdade, está em choque com os programas e as estruturas partidárias das quais fazem parte. Democracia interna, ética, diversidade, pluralismo e transparência são valores dessa nova esquerda que nasce, sem os dogmas dos movimentos nacional-libertadores e socialistas. Falta-lhes um partido que ofereça essa possibilidade.

Obviamente, tanto o PDT como o PSB não têm nenhum interesse em que haja esse descolamento, por vários motivos, entre os quais o impacto que isso pode vir a ter no fundo eleitoral das duas legendas (os deputados carregam os recursos para onde forem). Por isso mesmo, não haverá expulsão. Se esses deputados deixarem o partido por causa do constrangimento que estão passando, os suplentes poderão pleitear as suas respectivas vagas na Justiça Eleitoral.

Até nova janela partidária, no próximo ano, haverá tensão entre os deputados dissidentes e as cúpulas partidárias. Pode ser até que haja alguma acomodação, em razão dos interesses regionais, que foram determinantes para a presença desses deputados nas respectivas legendas. O mais relevante, entretanto, é que a votação da reforma da Previdência revelou um choque de concepções entre o velho e novo nesses partidos de esquerda. Um choque que vai se reproduzir em outras votações, em razão da agenda de modernização da economia e reforma do Estado.

Esse choque não se resolve em termos de um conflito de gerações, que ele também reflete, mas dentro de cada geração. Esse é o fato novo do processo: no bojo da renovação promovida pelo tsunami eleitoral de 2018, uma nova esquerda germinou. Ela agora ganha sua própria cara no Congresso, assim como existe também uma nova direita, mais democrática e reformadora que os setores reacionários que defendem uma agenda regressista em relação aos costumes, à educação, aos direitos humanos, à saúde e à segurança pública. Mas essa já é outra história.

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Luiz Carlos Azedo: A mágica da política

“Ontem, vivemos uma inflexão no processo de confrontação que havia se instalado entre o Executivo e o Legislativo, um momento de afirmação da nossa democracia e do Congresso”

Por que a política exerce tanto fascínio, ainda que uma parte considerável da sociedade tenha repulsa aos políticos e nem sequer saiba que essa é uma atitude política, muito mais afirmativa do que a simples indiferença? Talvez a explicação seja seu poder de transformar a vida em sociedade, de viabilizar ambições e projetos coletivos. Essa é a grande mágica da política, embora sua definição básica, do ponto de vista clássico, seja a da ciência prática que tem por objetivo a felicidade humana.

Dizia Aristóteles: “Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras, tem, mais que todas, este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política”. Ou seja, é a arte das artes e a ciência das ciências.

Há, portanto, dois campos num mesmo universo: o da ética, associada à felicidade individual do homem; e a política propriamente dita, que se preocupa com a felicidade coletiva. O problema é que nem sempre as duas andam juntas, e esse divórcio costuma ser muito perigoso. O próprio filósofo grego, discípulo de Platão, provou desse veneno quando caiu em desgraça e foi parar no exílio. Isso não impediu, entretanto, que, milênios depois, seu pensamento metafísico fosse um dos pilares do processo civilizatório ocidental.

Embora defendesse a existência de um Deus único acima de tudo, base da teologia católica, Aristóteles considerava a existência de um mundo único, um só objeto. E que, para ser feliz, é preciso fazer o bem a outrem. Por isso, o homem é um ser social e, portanto, um ser político. Por consequência, cabe ao Estado “garantir o bem-estar e a felicidade dos seus governados”. Testemunha da crise da democracia escravagista, escreveu a Política, seu grande tratado sobre o tema, no qual discorreu sobre a democracia, a aristocracia e a monarquia.

No fundo, essa é uma visão otimista, que se faz necessária no momento em que estamos vivendo, de certa forma sombrio e até atemorizante, por essa razão, impregnado de pessimismo. Sob certos aspectos da atual crise da democracia representativa e de uma onda regressista em relação aos costumes, a política é a nossa grande esperança. A aprovação da reforma da Previdência pela Câmara, ontem, por 379 votos, contra 131, portanto, um escore bem maior do que os 340 previstos pelos governistas, ainda que existam muitos destaques a serem apreciados, é demonstração de que a política ainda é o caminho para resolver os problemas da nossa sociedade.

Há muitas críticas à reforma, e uma justa oposição dos setores que por ela se consideram mais prejudicados, porém, a votação de ontem foi um daqueles momentos mágicos da política, no qual o Congresso brasileiro encontra saída para os desafios da nação. Ao contrário do que alguns defendem, sem a política não há soluções pactuadas na sociedade, ainda que reflitam o melhor do Iluminismo. O que há é imposição.

Ontem, vivemos uma inflexão no processo de confrontação que havia se instalado entre o Executivo e o Legislativo, um momento de afirmação da nossa democracia e do Congresso. É óbvio que se avultam os líderes que protagonizaram esse processo, em particular, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-DF), o grande artífice da aprovação da reforma. Seu papel como articulador da maioria é conhecido, mas há que se destacar o papel de negociador com o Executivo e interlocutor com a oposição, pois sua atuação tem se pautado pelo diálogo, a moderação e a prudência, além do respeito às ideias divergentes e às minorias.

A nuvem se mexe

Não fossem certas atitudes do presidente Bolsonaro e de seu grupo ideológico, de confrontação e fustigação constante do Congresso, os méritos seriam mais compartilhados com o Executivo, que também teve um papel relevante ao priorizar a reforma, principalmente, o ministro da economia, Paulo Guedes. Na verdade, o Palácio do Planalto abriu mão de ser sócio majoritário da reforma em razão de atitudes nas quais mirou muito mais a sua base eleitoral originária do que os interesses majoritários da sociedade.

Como disse certa vez o ex-governador mineiro Magalhães Pinto, a política é como uma nuvem: você olha uma vez, ela está de um jeito, olha de outro, já mudou sua configuração. Está em curso um reequilíbrio de forças nas relações entre os Poderes da República. Provavelmente, após o recesso do Judiciário, veremos qual será o reposicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF).

Voltando à divisão aristotélica entre ética e política propriamente dita, que foram duramente contrapostas nas eleições passadas, sobretudo em razão da Operação Lava-Jato, em torno dessa questão terá que haver também um reposicionamento. O Congresso também terá protagonismo nesse terreno, talvez maior do que muitos gostariam. Na verdade, a discussão do chamado pacote anticrime e da lei de abuso de autoridade chama à responsabilidade todas as lideranças envolvidas nesse processo, entre as quais o ministro da Justiça, Sérgio Moro, que não está acima do bem e do mal, e os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)

Nesse aspecto, a surpresa de ontem foi o relatório do senador Marcos Do Val (Cidadania-ES), que se reposicionou em relação ao tema e mitigou muitas propostas polêmicas de Moro. O relatório foi claramente pactuado com seus pares e sinaliza certo protagonismo que o Senado assumirá nessa questão. No mesmo sentido, a aprovação da proposta que criminaliza o crime de caixa dois, com base no relatório do senador Márcio Bittar (MDB-AC), aponta para a busca de um reencontro da política com a ética, a partir do Congresso, e não dos tribunais.

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