Partidos

Luiz Carlos Azedo: O espelho côncavo

“No Brasil republicano, sempre houve grande influência do americanismo, em contraposição ao nosso iberismo. Essa contradição está no DNA das nossas jabuticabas institucionais”

As eleições nos Estados Unidos estão sendo vistas como uma encruzilhada do destino do mundo, na qual o “sonho americano” está em risco e, com ele, a democracia em várias partes do planeta. O presidente Donald Trump, que disputa a reeleição, defende teses regressivas em relação à democracia norte-americana e um nacionalismo que contrasta com o globalismo que sempre pautou a atuação da Casa Branca na cena mundial; não por acaso, o ex-presidente Barack Obama, num pronunciamento inédito para quem já comandou o país, em apoio a Joe Biden na convenção democrata, acusou Trump de ser uma ameaça à democracia e aos direitos humanos.

O sonho americano é a grande invenção política da Independência dos Estados Unidos. Seu ethos sintetiza o comportamento social e cultural dos norte-americanos ao longo de sua história. Liberdade, segurança, oportunidades iguais e justas para o sucesso pessoal, bem-estar para as famílias e perspectivas de futuro ainda melhor para as crianças, graças ao trabalho duro, numa sociedade capaz de superar qualquer obstáculo e na qual qualquer um pode chegar ao topo. Essa é a ideia-força do The American Dream. A crise de 2008 e as mudanças em curso no mundo, com a emergência da China como grande concorrente dos Estados Unidos, porém, frustraram os norte-americanos.

Sem dúvida, o sonho americano foi ressignificado pela eleição de Barack Obama, mas foi amesquinhado com a chegada de Trump ao poder, que pôs a imagem dos Estados Unidos de cabeça para baixo, como num espelho côncavo. Em antropologia, o ethos é constituído pelos traços e modos de comportamento que formam o caráter e a identidade de um povo, ou seja, uma identidade social. Do ethos deriva a ética, isto é, as normas e regras de conduta que devem ser observadas pelos membros de uma sociedade.

Trump subverte o ethos do sonho americano, com uma narrativa na qual exalta o pior e não o melhor da sociedade e da história dos Estados Unidos. O problema é que não está sozinho no mundo, sua narrativa negacionista e reacionária, que reforça as autocracias, estimula retrocessos na ordem política de muitos países democráticos, inclusive, o Brasil.

Americanismo
Do ponto de vista objetivo, a força do americanismo estava diretamente associada ao fordismo. Forma mais avançada de organização da produção, o fordismo teve impacto mundial e serviu até de inspiração para o modelo soviético, cujo Estado reproduzia a estrutura organizacional da grande indústria mecanizada, assim como o funcionamento do partido comunista. O fordismo nasceu na fábrica e se expandiu para toda a sociedade americana; se projetou mundo afora depois da II Guerra Mundial. Foi a base material do americanismo, um conjunto de ideias de caráter ideológico, político, cultural e comportamental. As ideias puritanas tiveram um papel fundamental na organização do trabalho e da vida doméstica das famílias norte-americanas e estão na gênese da formação e consolidação das instituições da democracia americana, mas foram suplantadas pelo americanismo, que exacerbou a liberdade individual.

No Brasil republicano, sempre houve grande influência do americanismo, em contraposição ao nosso iberismo, o que gera muitas polêmicas nos meios acadêmicos. Essa contradição está no DNA das nossas jabuticabas institucionais. Historicamente, a influência do americanismo foi determinante para o nosso processo de modernização conservadora. A influência de Trump, porém, como no espelho côncavo, é a negação do sonho americano e uma espécie de americanismo do mal para a democracia brasileira, pois reforça o viés autoritário do governo Bolsonaro. Se o que é bom para os Estados Unidos for bom para o Brasil, perdão pelo trocadilho, melhor torcer para o democrata Joe Biden.

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El País: A miragem de Dilma, ou por que faltam brasileiras em cargos eleitos

Partidos burlam a cota de 30% para mulheres, que são cerca de 15% no Congresso Nacional, Assembleias Legislativas, prefeituras e Câmaras Municipais

Naiara Galarraga Gortázar, do El País

Senado brasileiro aproveitou um recesso natalino para fazer uma pequena reforma de transcendência histórica. Quando as obras acabaram, o plenário teve finalmente um banheiro feminino. Foi há poucos anos, em 2016. Até então, as 12 senadoras daquela legislatura eram obrigadas, como todas as suas antecessoras, a utilizar o banheiro do restaurante ao lado. Depois de anos de reivindicações, as representantes da soberania popular conseguiram que o banheiro masculino fosse dividido em dois. A longa luta para conseguir esse banheiro em Brasília − com edifícios projetados pelo genial Oscar Niemeyer como símbolo de modernidade − reflete melhor a presença de mulheres eleitas nas instituições brasileiras do que o fato de o Brasil ter tido uma presidenta. Como é possível que um país com cotas de 30% para mulheres há 25 anos tenha apenas 15% de congressistas?

Sim, Dilma Rousseff fez história. A primeira brasileira na chefia de Estado. Mas aquela conquista não foi reflexo de uma presença feminina significativa nos escalões inferiores do poder. Na verdade, ela chegou lá graças ao voto popular e a Luiz Inácio Lula da Silva, que a colocou na linha de largada. Sua presidência também não se traduziu em um aumento significativo de mulheres em política.

Agora, com um presidente que foi condenado por dizer a uma deputada que era tão feia que não merecia ser estuprada, as condições são mais adversas. Não é que os ministérios de Dilma Rousseff fossem paritários, mas Jair Bolsonaro tem apenas duas ministras. Ou seja, cinco vezes menos que os ministros militares. Além disso, o presidente considera que a igualdade de gênero é uma perigosa ideologia comunista.

Mas, sob essa fachada, existe um problema estrutural. Dilma foi, em grande parte, uma miragem, porque o Brasil continua nas últimas posições do mundo em deputadas, senadoras, governadoras, prefeitas e vereadoras. Algumas iniciativas da sociedade civil estão formando candidatas para as eleições municipais de novembro.

Porque a realidade em 2020 é que as mulheres são cerca de 15% em todos esses cargos eleitos nas urnas, uma proporção semelhante à do Bahrein e a anos-luz da Suécia, mas também da Bolívia (53% de deputadas) e do México (48%).

“É uma situação vergonhosa que coloca ao Brasil entre os piores países do mundo no que diz respeito à participação política das mulheres e à defesa de seus direitos”, assinala por telefone Áurea Carolina de Freitas Silva, 36 anos, deputada federal do PSOL desde o ano passado e pré-candidata à prefeitura de Belo Horizonte. “Ter cotas não é suficiente”, acrescenta essa mulher negra que é uma autêntica raridade em um Congresso que pouco tem a ver com a diversidade que caracteriza o Brasil. Os homens brancos são a esmagadora maioria.

Elas ganham presença e poder político a passo de tartaruga, apesar de existirem há 25 anos cotas legais para incentivar sua entrada na política. E, embora 15% de deputadas seja uma proporção pequena em comparação com o resto do mundo, a verdade é que é um recorde: nunca houve tantas na Câmara dos Deputados. Onde está a armadilha?

A explicação breve é que a resistência dos partidos − de todos, embora um pouco mais dos direitistas do que dos esquerdistas − tem sido feroz nestes anos. Os homens brancos que dominam as siglas não querem renunciar ao seu poder. “Os partidos aproveitam cada brecha que encontram para driblar as cotas”, ressalta Hannah Maruci Aflalo, uma pesquisadora da Universidade de São Paulo especializada na representação política feminina. “Inicialmente, usaram o argumento semântico, depois criaram as candidaturas fraudulentas...”, diz a professora, cuja explicação detalhada pode ser resumida assim: os partidos, com suas arraigadas estruturas machistas, começaram argumentando que as normas só os obrigavam a reservar 30% das candidaturas para mulheres, não que elas ficassem efetivamente com essas candidaturas. Diziam que procuravam aspirantes, mas não as encontravam. Quando as regras foram reformadas para obrigá-los a ter um terço de candidatas, proliferaram as candidaturas fraudulentas. Colocavam qualquer nome feminino e pouco importava se recebiam algum voto, cumpriam a letra da lei. Um terço das candidaturas femininas à Câmara dos Deputados nas últimas eleições foram falsas, segundo um estudo. Além disso, quase todos os partidos tiveram alguma candidata que não recebeu um único voto. Candidatas que votaram em outra pessoa.

Em uma guinada perversa, os partidos recebiam dinheiro do contribuinte para apoiar as mulheres, mas elas continuavam sem ganhar poder. Assim se chegou, explica Maruci Aflalo, à reforma de 2018, pela qual 30% dos fundos públicos eleitorais vão para as campanhas das candidatas. Para a especialista é uma mudança positiva, porque agora se trata de financiamento. “Os partidos não vão querer jogar dinheiro no lixo”, diz. Mais uma vez, alguns partidos interpretaram essa reforma à sua maneira para reduzir ao máximo as mudanças. Em vez de feminilizar suas listas de candidatos, investiram em apenas uma, e de repente se multiplicaram as candidatas a vice nas últimas eleições: vice-presidenta, vice-governadora...

As brasileiras conquistaram o direito ao voto em 1932, e Dilma Rousseff governou de 2011 a 2016, mas hoje, entre os 27 governadores, há apenas uma mulher − do Partido dos Trabalhadores, de Lula e Dilma. Mas isso não é o pior. Na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, não há mulheres. Nenhuma. Os 24 deputados estaduais são homens.

A deputada Áurea Carolina em um ato parlamentar no ano passado. (Pablo Valadares / Câmara dos Deputados)
A deputada Áurea Carolina em um ato parlamentar no ano passado. (Pablo Valadares / Câmara dos Deputados) /

A política brasileira é tão masculina que é raro o domingo em que a seleção de frases da semana feita pelo jornal mais lido do país inclua alguma dita por uma mulher. Uma ausência que contrasta com a presença marcante de mulheres analistas na imprensa e na televisão, ou no comando de investigações policiais.

Uma deputada bolsonarista acaba de apresentar um projeto de lei para acabar com a cota de 30% por ser, segundo ela, uma “carga ideológica”. Existe outro projeto de lei que pede, por outro lado, que metade das cadeiras seja reservada para mulheres, incluindo 27% para negras. Porque embora as negras sejam 27% da população, são insignificantes 2% das deputadas.

“Tivemos de construir trajetórias excepcionais para estar aqui”, diz a deputada Áurea Carolina, referindo-se a si mesma e a colegas de partido como a assassinada Marielle Franco, vereadora do Rio, e a também deputada Talíria Petrone. Mulheres negras (e feministas) que antes de chegar à primeira linha da política construíram sólidas trajetórias em movimentos sociais ou no mundo acadêmico. No ano e meio em que está no Congresso, teve que aturar atitudes e comentários discriminatórios. Mas não quer se concentrar nisso. Prefere destacar seu trabalho para que as necessidades, reivindicações e desejos das mulheres e dos negros, é claro, mas também dos brasileiros LGBT, com deficiência ou indígenas sejam ouvidos nos espaços de poder.

Essa deputada esquerdista conta que às vezes, mesmo em um Brasil tão polarizado, há momentos de sororidade, de cumplicidade entre as deputadas, apesar do muito que as divide. “São momentos pontuais. Lembro do dia em que uma deputada do PSDB presidia a sessão plenária e um deputado fez um comentário machista. Todas nos solidarizamos com a agredida”, assinala.

Se chegar é difícil, manter-se firme no cargo também é. O fato de Bolsonaro ser conhecido por seus comentários machistas não o impediu de vencer entre o eleitorado feminino. E embora o Ministério Público o investigue por misoginia, sua popularidade bate recordes. Isso dá uma medida do ambiente. Mensagens pornográficas, campanhas difamatórias sexistas, piadas machististas, ameaças e as críticas à aparência são constantes para as políticas brasileiras. Muitos defensores da ex-presidenta veem elementos misóginos na campanha que levou à sua destituição. Além de “puta”, ela ouviu muitas vezes “Dilma, vai pra casa”, “Dilma, vai lavar roupa”. O grito de guerra agora é “fora Bolsonaro”. Ninguém o manda ir para casa ou lavar roupa.


Luiz Carlos Azedo: A modernização autoritária

“Cingapura virou uma referência em desenvolvimento em todos os quadrantes, da Europa à América Latina, da África à Ásia. Muitos sonham com a longevidade do poder de Lee Yew”

Ao contrário do que muitos imaginam, o paradigma do projeto comunista da China não é o velho livro vermelho com as ideias de Mao Zedong, é o pensamento modernizador de Xi Jinping e o modelo de Cingapura, estudado na nova escola de quadros do Partido Comunista chinês. Fundada há 86 anos numa caverna da província de Jiangxi, o complexo da academia hoje ocupa centenas de hectares junto ao Palácio de Verão de Pequim e abriga 1,5 mil alunos. Em 2018, a escola se fundiu com a Academia Chinesa de Governo para incorporar um novo objetivo: “investigar e disseminar o pensamento de Xi sobre o socialismo com caraterísticas chinesas para uma nova era”.

A grande preocupação dos dirigentes chineses continua sendo vencer a desigualdade social na China de hoje, uma contradição com as teses históricas do PCCh. Centenas de milhões de chineses saíram da pobreza nas últimas décadas, mas as grandes fortunas acumuladas na economia de mercado coexistem com salários baixíssimos e condições de vida precárias, em muitas regiões do país. O medo dos comunistas é que o avanço tecnológico e as vertiginosas mudanças possam afastar os jovens do regime. O massacre de Tiananmen, de 1989, e a Revolução Cultural (1966-1976) são temas proibidos nos currículos da escola de quadros, vértice de um sistema com 2,5 mil centros distribuídos por todo o país. Onde Cingapura entra nessa história?

Com seus arranha-céus, jatinhos particulares e carros de luxo, a cidade-estado, apesar de ter apenas 5,6 milhões de habitantes — contra 1,393 bilhão da China —, é o quarto país mais rico do mundo em poder de compra de seus habitantes, superado por Catar, Luxemburgo e Macau. Tornou-se um dos principais centros financeiros do Oriente, com número crescente de milionários e o custo de vida mais alto do mundo. Há 50 anos, porém, era apenas uma ilha pobre e sem recursos naturais, uma ex-colônia britânica que se separou da Malásia em 1965, sob a liderança de Lee Kuan Yew, cofundador do Partido da Ação Popular (PAP, na sigla em inglês), que governa o país desde 1959. Lee foi primeiro-ministro de Cingapura por 31 anos, vencendo sete eleições, até deixar o poder em 1985. Vem daí o paradigma político que interessa aos chineses: o regime de partido dominante, hoje comandado por Lee Hsien Loong, seu filho mais velho.

O sistema legal de Cingapura é baseada em leis herdadas do colonialismo britânico na Índia, sem seus valores liberais. Não existe tribunal de júri, por exemplo. Há castigos físicos e até a pena de morte para homicídios e tráfico de drogas, o que leva à maior taxa de execuções do mundo por habitante. Entretanto, é considerado um dos países menos corruptos do mundo, embora seja um notório paraíso fiscal para lavagem de dinheiro. Não existe ampla liberdade de expressão nem de reunião. Qualquer manifestação com mais de cinco pessoas precisa de autorização policial. Entretanto, o modelo econômico que viabilizou a modernização de Cingapura é estudado em todo mundo, principalmente nos países emergentes.

Corrida mundial

Advogado formado na Universidade de Cambridge, Lee foi uma espécie de déspota esclarecido moderno. Comandou o país durante sua fusão e a subsequente separação da Malásia, com a ambição de construir uma nação meritocrática e multirracial. Elaborou um extenso programa de reformas para tirar Cingapura do “buraco negro da miséria e da degradação” e transformá-la em um país industrializado e moderno, sob um modelo capitalista com controle estatal rígido. Beneficiou-se do fabuloso porto que abrigava a esquadra britânica da Ásia e sua localização estratégica, na rota comercial da China, da Índia e do Sudeste Asiático, além da proteção dos Estados Unidos.

O governo promoveu grandes programas de geração de emprego e a construção de moradias sociais, ao lado de uma política que acompanhava o controle da vida privada e a supressão de liberdades individuais, incluindo a prisão de opositores sem levá-los a julgamento e a aplicação de castigos corporais. Impressiona pelos altos níveis de educação, saúde e competitividade econômica, saltando de uma economia baseada na manufatura tradicional para um centro financeiro e tecnológico, com grandes investimentos estrangeiros, com uma população que fala quatro línguas: malaio, inglês, mandarim e tamil. Suas forças armadas são modernas, seguem o modelo israelense, e consomem 4,5% do orçamento, com bases aéreas na Austrália, Estados Unidos e França.

Cingapura virou uma referência para a modernização autoritária em todos os quadrantes, da Europa à América Latina, da África à Ásia. Muitos governantes sonham com a longevidade do poder de Lee Kuan Yew, como Vladimir Putin, na Rússia, e Tayyip Erdogan, na Turquia, sem falar nos ditadores de antigas repúblicas soviéticas e da África, além dos xeiques árabes. Tornou-se um ponto de referência na corrida mundial para reinventar o Estado, na qual o Ocidente enfrenta os problemas da economia de mercado aliados às disputas próprias dos regimes democráticos. Por isso, é melhor é ficar de olho no que acontece na política brasileira. Historicamente, sempre estivemos numa encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente.

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Luiz Carlos Azedo: O projeto conservador

“A dois anos do bicentenário da independência, as ideias de Oliveira Viana parecem renascer das cinzas, como fênix, diante da grande interrogação: que país seremos daqui a 100 anos?”

Há 100 anos, o livro de um autor até então desconhecido, com 37 anos, fez estrondoso sucesso literário e político: Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Viana. Escrito entre 1916 e 1918, levou dois anos para ser publicado, pela livraria José Olympio. Somente um intelectual da época ousou contestá-lo, Astrojildo Pereira, um dos grandes biógrafos de Machado de Assis, jornalista, crítico literário e anarquista, que se converteria ao marxismo e, dois anos depois, fundaria o Partido Comunista. O que dizia Viana? Ele definia três arquétipos para o povo brasileiro: o sertanejo, o matuto e o gaúcho, os quais pretendia analisar, desenvolvendo um projeto de pesquisa ambicioso, ao qual deu sequência com a publicação meteórica de mais quatro ensaios: O Idealismo da Constituição (1920), Pequenos Estudos da Psicologia Social (1921), Evolução do Povo Brasileiro (1923) e O Ocaso do Império (1924). O primeiro volume de Populações Meridionais do Brasil dedicou aos paulistas, fluminenses e mineiros; o segundo, ao campeador rio-grandense. Partia do homem para criticar as instituições da época.

“O sentimento das nossas realidades, tão sólido e seguro nos velhos capitães gerais, desapareceu, com efeito, das nossas classes dirigentes: há um século vivemos praticamente em pleno sonho. Os métodos objetivos e práticos de administração e legislação desses estadistas coloniais foram inteiramente abandonados pelos que têm dirigido o país depois da independência. O grande movimento democrático da Revolução Francesa; as agitações parlamentares inglesas; o espírito liberal das instituições que regem a república americana, tudo isto exerceu e exerce sobre nossos dirigentes, políticos, estadistas, legisladores, publicistas, uma fascinação magnética que lhes daltoniza completamente a visão nacional dos nossos problemas. Sob esse fascínio inelutável, perdem a noção objetiva do Brasil real e criam para uso deles um Brasil artificial e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europa, sorte de Cosmorama extravagante. Sobre o fundo de florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e repassam cenas e figuras tipicamente europeias.”

Oliveira Viana faz um ataque frontal aos liberais brasileiros, corroborado pela iniquidade social que havia sido desnudada por Euclides da Cunha, ao descrever a Guerra de Canudos, n’Os Sertões. Concluía que era preciso “coragem infinita” para “contravir ostensivamente às ideias de liberdade e construir um poderoso Estado centralizado, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional”. Ao dizer que era impossível reproduzir aqui no Brasil o parlamentarismo inglês, o liberalismo democrático à francesa, ou o federalismo e descentralização republicana ao estilo americano, como lembra o falecido jornalista e cientista político Gildo Marçal Brandão, em Linhagens do Pensamento Político Brasileiro (Hucitec), Oliveira Viana recomendava uma intervenção radical pelo Estado, destinado a promover a industrialização e criação de bases sociais aptas a sustentar governos liberais, o que alguns viram como uma espécie de “autoritarismo instrumental”.

Estado Novo

Música para a jovem oficialidade do Exército, que daria início às rebeliões tenentistas, e para o castilhismo gaúcho, o suprassumo do nosso republicanismo positivista mais autoritário, que desaguariam na Revolução de 1930. A consagração das ideias antissistema de Oliveira Viana viria com o Estado Novo, do qual foi o grande ideólogo, e a “Polaca”, a Constituição de 1937, redigida por Francisco Campos e outorgada pelo ditador Getúlio Vargas. Ironicamente, Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), destaca que o colapso político da República Velha interrompe mudanças importantes que estavam em curso, alavancadas por nosso mercado interno e a economia do sertão, como o aumento de rentabilidade da exportação de café, a grande acumulação de capital dos cafeicultores paulistas, que apostaram na industrialização, e não no patrimonialismo, ao contrário das oligarquias rurais que Viana enaltecera.

Segundo Caldeira, em 1920, o Brasil tinha 30 milhões de habitantes, 13,3 mil indústrias, 275 mil operários, produzia 775Gwh de energia elétrica. O Correio transportava 642 milhões de itens. Havia 28,5 mil quilômetros de ferrovias, que transportavam 16,5 milhões de toneladas. Os investimentos, estagnados durante a guerra, eram de 1,1 milhão de libras esterlinas e chegariam a 2,8 milhões, em 1929. Exportava-se 11,5 milhões de sacas de café, cujo rendimento era de 40,4 milhões de libras esterlinas. O percentual da população alfabetizada chegava a 28,8%. Era uma época em que o Estado arrecadava 6% do PIB, ou seja, o setor privado ficava com 94%. A União era responsável por 3,5% desse montante, os Estados com 2,% e os municípios com 0,5%. O país crescia graças ao desenvolvimento capitalista, a conexão entre a economia do sertão e a economia de exportação financiava a industrialização.

Entretanto, o Centenário da Independência desencadearia o questionamento de quase tudo, com a Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista, as rebeliões tenentistas, como a Revolta Paulista de 1924 e a Coluna Prestes, no mesmo ano. Qual seria o projeto de país para os 100 anos seguintes? À época, esse debate foi hegemonizado pelas ideias de Oliveira Viana, que tiveram sua grande recidiva após o golpe de 1964, no Sesquicentenário da Independência, no auge “milagre econômico” do regime militar. Agora, no governo Bolsonaro, a dois anos do bicentenário da independência, elas parecem renascer das cinzas, como fênix, diante da grande interrogação: que país seremos daqui a 100 anos?

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Luiz Carlos Azedo: A âncora da estabilidade

”Embora desanuviada, a crise permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro, sem reformas”

Foi um dia de muito nervosismo no mercado e no Palácio do Planalto, a ponto de o presidente Jair Bolsonaro ter de chamar uma reunião de ministros e parlamentares de sua base, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, em razão da péssima repercussão da saída de dois integrantes da equipe econômica, que jogaram a toalha devido à falta de compromisso do governo com a reforma administrativa e as privatizações. Os secretários especiais de Desestatização e Privatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, pediram demissão na terça-feira, o que pegou Guedes de surpresa. O ministro abriu o jogo para opinião pública: há uma “debandada” na equipe, por causa dos rumos do governo.

Guedes não escondeu seu desconforto e revelou a crise interna do governo na terça-feira, após uma reunião com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), hoje o seu principal aliado na defesa do chamado “teto de gastos”, que vincula as despesas do Orçamento da União à inflação passada, como uma maneira de conter e reduzir, ao longo do tempo, o deficit fiscal. O que era um deficit previsto de R$ 134 bilhões neste ano, com os gastos decorrentes das medidas emergenciais para enfrentar a pandemia, deve chegar à casa dos R$ 800 bilhões, fazendo a dívida pública se aproximar dos 100% do PIB no fim do ano. Esse é o tamanho do problema. O mercado vê com desconfiança a capacidade de Guedes administrar essa dívida.

Colabora para isso o fato de que outros cinco integrantes da equipe econômica já haviam deixado o governo desde o ano passado: Marcos Cintra (ex-secretário da Receita Federal), Caio Megale (ex-diretor de programas da Secretaria Especial de Fazenda), Mansueto Almeida (ex-secretário do Tesouro Nacional), Rubem Novaes (ex-presidente do Banco do Brasil) e Joaquim Levy (ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES). Mas nenhum deles tinha a mesma proximidade de Mattar e Uebel com Guedes, com o agravante de que o primeiro é um líder empresarial carismático, cuja saída teve muito mais repercussão no mercado.

Nos bastidores do Ministério da Economia, a avaliação é de que o grupo de executivos e empresários liberais que cercava Guedes não aguentou o giro da moenda da administração pública federal e o jogo bruto de poder na Esplanada dos Ministérios, principalmente com os militares. A saída dos dois auxiliares e amigos deixou Guedes muito abalado, mas o ministro amanheceu, ontem, disposto a partir para a briga pela manutenção do teto de gastos contra seus colegas de Esplanada, aparentemente com a solidariedade do presidente Jair Bolsonaro. A reunião de ontem à tarde, no Palácio do Planalto, com Guedes e seus desafetos na Esplanada, os ministros Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, que foi seu secretário de Previdência, e o ministro Tarcísio Freitas, da Infraestrutura, foi para Bolsonaro pôr ordem na tropa e começar a negociação da manutenção do teto com o Congresso.

Novo líder
Também participaram do encontro os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP); e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); os deputados Arthur Lira (PP-AL) e Ricardo Barros (PP-PR), e os senadores Eduardo Gomes (MDB-TO) e Fernando Bezerra (MDB-CE). A novidade foi a presença de Barros, ministro da Saúde no governo Michel Temer, que será o novo líder do governo na Câmara. Bolsonaro trocou o deputado Major Vítor Hugo (PSL-GO), seu fiel escudeiro, por um dos quadros mais importantes do Centrão na Câmara, unificando o grupo, cuja liderança Barros divide com Arthur Lira, o líder da bancada do PP.

Embora a crise tenha sido desanuviada, permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro. Na equipe econômica, a avaliação é de que a antecipação da estratégia de reeleição de Bolsonaro está sendo um fator perturbador da política econômica. De certa forma, Guedes também tem culpa nesse cartório: na polêmica reunião ministerial de 22 de abril, foi um que pôs pilha em Bolsonaro, ao vincular o abono emergencial ao projeto eleitoral de 2022. Todo o problema, agora, é o fato de que Bolsonaro já está em campanha.

Há uma conta que não fecha. Guedes não consegue fazer as privatizações, seja porque os militares que comandam as estatais fazem obstrução, seja por falta de investidores, ou as duas coisas. Não faz a reforma administrativa porque Bolsonaro não quer confusão com os servidores públicos. Não consegue aprovar a nova CPMF porque essa sigla é palavrão para a opinião pública e para a maioria do Congresso. Sem reforma administrativa nem aumento de impostos, não tem teto de gastos que resista.

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Luiz Carlos Azedo: O gosto da governabilidade

“A disputa em torno da manutenção ou não do ‘teto de gastos’, apontada como condição para ‘achatar a curva’ da dívida pública, está instalada dentro do próprio governo e no Congresso“

Houve uma mudança na relação do presidente Jair Bolsonaro com a política. É evidente que o convite, prontamente aceito, ao ex-presidente Michel Temer, para chefiar a missão de solidariedade ao Líbano, aproxima do seu governo de forma irreversível uma força política que sempre teve um papel decisivo para a governabilidade do país: o MDB. Simboliza outra estratégia de governo, que deixa a rota de colisão com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), ainda que as tensões com o Judiciário tendam a se manter ao longo do processo, por causa do caso Fabrício Queiroz. Onde há política, há salvação para a democracia representativa.

A postura humanitária de Bolsonaro em relação ao Líbano é até um contraponto à espantosa falta de empatia com as mais de 100 mil famílias enlutadas por causa da covid-19. O luto oficial decretado pelo Congresso e pelo STF não mereceu o mesmo tratamento do Executivo. “Nos próximos dias partirá do Brasil, rumo ao Líbano, uma aeronave da Força Aérea Brasileira, com medicamentos e insumos básicos de saúde, reunidos pela comunidade libanesa radicada no Brasil. Também estamos preparando o envio, por via marítima, de 4.000 toneladas de arroz para atenuar as consequências das perdas de estoque de cereais destruídos na explosão”, anunciou o presidente da República, que até hoje não nomeou um ministro efetivo para a Saúde. Em algum momento, a pandemia cobrará seu preço.

Mais uma razão para a avaliação de que o gesto em relação ao Líbano vai além das motivações humanitárias e mira o futuro da relação do governo com o Congresso, uma vez que o MDB tem chances reais de liderar tanto a Câmara como o Senado. O deputado federal Baleia Rossi (SP), atual presidente do MDB, pode vir a ser o nome apoiado pelo deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) à própria sucessão. Além disso, no Senado, embora o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) tenha a ambição de se reeleger –– quebrando a tradição —, a bancada do MDB já é a principal força de sustentação do governo na Casa. O líder do governo, Fernando Bezerra (PE); o líder da bancada, Eduardo Braga (AM); e a presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Simone Tebet (MT), são nomes capazes de liderar uma maioria robusta, mais governista ou mais independente, dependendo de quem for capaz de manter o partido unido e tecer uma aliança ampla.

Novas bases
Bolsonaro está descobrindo as vantagens da governabilidade, depois de quase pôr seu governo a perder numa trajetória suicida de confronto com os demais Poderes, ameaçando as instituições da democracia representativa. Por muito pouco não pautou o seu próprio afastamento pelo Congresso. Parece que os militares que ocupam o centro do poder no Palácio do Planalto, finalmente, conseguiram levar o governo a um ponto de equilíbrio institucional, na medida em que Bolsonaro colhe os frutos do pacote de medidas de emergência aprovadas pelo Congresso para combater os efeitos dramáticos da crise. Esse é outro elemento que explica os novos rumos adotados. Está havendo uma mudança de composição na base social de apoio ao governo: ao mesmo tempo em que perde apoio da classe média, cresce o prestígio de Bolsonaro com a população mais pobre do país, principalmente do Norte e do Nordeste.

De um lado, o caso Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho, e amigo do presidente da República, afasta cada vez mais a bandeira da ética do atual governo e, consequentemente, uma grande parcela da classe média. Blindado pela Constituição, Bolsonaro não pode ser investigado, mas a primeira-dama Michelle Bolsonaro pode. Além disso, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro é identificado como o grande protagonista da Lava-Jato; seus adversários, dentro e fora do governo, não conseguem desconstruir essa imagem. Em contrapartida, a aliança com o Centrão juntou a fome com a vontade de comer: o inesperado apoio popular conquistado com a migração das parcelas mais pobres da população do Bolsa Família para o abono emergencial e a aliança com os políticos patrimonialistas do Norte e Nordeste, que sempre souberam manipular as carências populares dessas regiões.

Toda calmaria, porém, precede a tempestade. O cenário da economia para o segundo semestre e 2021 não é nada bom. Com uma dívida interna de R$ 6,1 trilhões, que equivale a 85,5% do PIB, a dívida pública deve saltar de 75,8% para mais de 100% em 2022. A disputa em torno da manutenção ou não do “teto de gastos”, apontada pela maioria dos economistas como condição para “achatar a curva” da dívida, está instalada dentro do próprio governo, entre a equipe econômica e os ministros militares, e no Congresso. A linha que separa um governo conservador do populismo de direita está sob forte pressão, exacerbada ainda mais pela aproximação das eleições municipais. Os dados estão sendo lançados.

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Luiz Carlos Azedo: As pedras no caminho

“Bolsonaro terá de suar muito a camisa, abraçar criancinha, andar de jegue, fazer acordos que até ontem dizia que não faria, posar para fotos com políticos enrolados na Lava-Jato”

O presidente Jair Bolsonaro entrou em modo reeleição. Há uma bipolaridade nessa atitude: o lado negativo é perder o foco na gestão para priorizar a disputa política, dois anos e meio antes do pleito de 2022; o positivo, a aposta na eleição, ou seja, na política, o que significa uma mudança de rumo, se considerarmos a escalada de confrontos com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso em que vinha, uma ameaça real à democracia. Não há novidade nenhuma nessa antecipação, o mesmo foi feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando se sentiu ameaçado pelo mensalão; e pela presidente Dilma Rousseff, depois dos protestos de maio de 2013. É óbvio que a campanha antecipada merece críticas, mas daí negar a aposta nas eleições como uma mudança em relação à postura golpista em que vinha é um grave equívoco.

Desde a aprovação do instituto da reeleição, no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), todo governante é favorito nas disputas eleitorais. Mesmo em situações dificílimas, como aconteceu com Lula, no pleito de 2006, e Dilma Rousseff, em 2014. A força de inércia do Estado brasileiro é formidável, seja por causa da centralização crescente da arrecadação tributária nas mãos da União, e que o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer centralizar ainda mais, seja pelo fato de termos um Estado ampliado, que mexe com a vida dos cidadãos em todo o território nacional. A rigor, somente o estado de São Paulo, que também tem muitos tentáculos, se basta em relação ao governo federal do ponto de vista dos serviços que oferece aos seus cidadãos. Não à toa é o único em condições de sustentar frontal e permanentemente oposição ao governo federal, sem colocar em risco a própria governabilidade.

Para ir direto ao assunto, quem quiser que se iluda, o presidente Jair Bolsonaro é o favorito nas eleições de 2022. Quando nada porque o governo federal é a forma mais concentrada de poder, e isso pesa na balança quando o governante concorre à reeleição. Significa que Bolsonaro seja imbatível? Não. Mas é preciso levar em conta que, historicamente, desde a adoção da reeleição, nenhum presidente deixou de renovar seu mandato. O sujeito precisa fazer muita trapalhada para perder a reeleição, ou ser apeado do cargo, como aconteceu com Fernando Collor de Mello, quando não havia ainda reeleição, e Dilma Rousseff, que estava no segundo mandato. Isso explica, de certa maneira, a deriva dos partidos do Centrão em direção ao governo, numa articulação dos militares do Palácio do Planalto com os caciques Ciro Nogueira (Progressistas), Roberto Jefferson (PTB), Valdemar Costa Neto (Republicano) e Gilberto Kassab (PSD).

A reeleição de Jair Bolsonaro será favas contadas? É claro que não, ninguém ganha eleição de véspera. Bolsonaro terá de suar muito a camisa, abraçar criancinha, andar de jegue, fazer acordos que até ontem dizia que não faria, posar para fotos com políticos enrolados na Lava-Jato etc. Aliás, sua estreia nesse quesito foi durante a semana que passou, no Piauí, onde posou ao lado do senador Ciro Nogueira no santuário arqueológico da Serra da Capivara, bem ao lado do emblemático desenho rupestre conhecido como “Cena do beijo”. Mais do que isso, porém, precisará acertar o rumo de seu governo, que se encontra à beira da insolvência em razão da dívida pública astronômica e do deficit fiscal crescente.

Obstáculos
Há variáveis no meio do caminho da reeleição que Bolsonaro não controla, precisa adaptar-se a elas. A primeira é a recessão mundial, que parece mais profunda e duradoura do que se imaginava, se considerarmos os resultados econômicos do primeiro semestre deste ano, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha, que tinham uma expectativa de recuperação em V. A outra variável nesse terreno é a China, nosso maior parceiro comercial, com a qual o governo tem uma relação esquizofrênica, com alguns ministros trabalhando para aumentar as vendas do agronegócio e atrair investidores em infraestrutura, e outros só atrapalhando. A terceira é a eleição dos Estados Unidos, na qual o presidente Donald Trump corre o risco de não se reeleger, pois o democrata Joe Biden continua na liderança. De tão desesperado, Trump já pensa em adiar as eleições. Se o democrata vencer, o Brasil terá de ajustar sua política externa.

Entre as variáveis controláveis por Bolsonaro, a mais importante é a política econômica. Todos os economistas fazem um diagnóstico sombrio sobre a capacidade de recuperação da economia brasileira nos próximos dois anos. A narrativa de que teremos uma recuperação econômica espetacular, do ministro da Economia, Paulo Guedes, não se sustenta nos fatos. O xis da questão é a dívida pública, que pode chegar a 100% do PIB, o que a torna um fator inflacionário inequívoco. A alta do dólar está aí para mostrar que o dragão está acordado e ruge, somente não dando as caras porque a atividade econômica é muito baixa. As saídas são uma reforma tributária competente e a reforma administrativa, mas isso não costuma dar votos para os governantes a curto prazo. Pelo contrário, tiram.

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Luiz Carlos Azedo: Efeito Lava-Jato

“Assim como o ‘partido fardado’ que emergiu das eleições de 2018 na garupa do presidente Bolsonaro, nada impede que surja um partido togado, ‘lavajatista’, mirando o pleito de 2022”

Armou-se em Brasília um cerco à Operação Lava-Jato, cujas forças-tarefas de Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília estão com os dias contados. As polêmicas declarações do procurador-geral da República, Augusto Aras, contra a atuação de seus integrantes foram tão categóricas que não lhe permitem um recuo sem que se transforme numa espécie de rainha da Inglaterra no Ministério Público Federal (MPF). Além disso, foram coadjuvadas pela proposta apresentada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, de quarentena de oito anos para magistrados e procuradores ingressarem na política, tema que prontamente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se dispôs a pôr em pauta no Parlamento.

À margem da discussão sobre os fundamentos jurídicos e a legitimidade das ações mais polêmicas da Lava-Jato, é óbvio que o plano de fundo de toda essa discussão são a liderança e a influência do ex-ministro da Justiça Sergio Moro junto às forças-tarefas. O ex-juiz de Curitiba se mantém como potencial candidato a presidente da República, mesmo fora do governo Bolsonaro. Sua passagem pelo Ministério da Justiça pode ter sido um grande erro do ponto de vista de sua trajetória como magistrado, se ambicionava uma vaga no Supremo, mas funcionou como a porta de sua entrada na política, provavelmente sem volta. A própria crise que o levou a desembarcar do governo Bolsonaro faz parte do roteiro de quem transita para o mundo da política como ela é. Moro é candidatíssimo, e a narrativa da Lava-Jato é o leito natural do rio caudaloso que pode levá-lo à Presidência.

Nesse aspecto, a proposta do ministro Toffoli, que parece estapafúrdia e foi desdenhada pelo vice-presidente Hamilton Mourão, mira a candidatura de Moro, sem dúvida. Não no sentido de tornar inelegível o ex-titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex de Guarujá: qualquer nova lei sobre inelegibilidade para magistrados e procuradores não pode ter efeito retroativo. Mas existe, sim, um clima no Congresso para aprovação de uma lei que tire das eleições de 2022 magistrados e procuradores da Lava-Jato que vierem a deixar a carreira para mergulhar de cabeça na luta política eleitoral.

Assim como o “partido fardado” que emergiu das eleições de 2018 na garupa do presidente Jair Bolsonaro, até agora, nada impede que surja um partido togado, “lavajatista”, na expressão de Augusto Aras, para disputar as eleições de 2022. Seria o caminho natural a tomar por parte dos procuradores da Lava-Jato, se forem desmobilizados e marginalizados pelo procurador-geral da República. A Lava-Jato, mesmo que venha a ser desmantelada pela Procuradoria-Geral e o Supremo, continuará sendo um divisor de águas na política brasileira, pelo menos para as atuais gerações. É muito difícil tomar a bandeira da ética das mãos de seus protagonistas, procuradores e juízes que promoveram o maior expurgo de políticos enrolados em escândalos de corrupção da vida nacional da nossa história.

Colaterais

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito num tsunami eleitoral, na qual a Lava-Jato foi o fator decisivo. Entretanto, o presidente da República tomou outro rumo na condução de seu governo, desde o rompimento com Moro. Embora não se tenha registro de nenhum grande escândalo de corrupção na administração federal, a bandeira da ética se perdeu com o rompimento com Moro e, sobretudo, por causa do caso Fabrício Queiroz, amigo do presidente da República e ex-assessor do seu filho mais velho, senador Flávio Bolsonaro (Progressistas-RJ), investigado no escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa fluminense. Consciente da situação, Bolsonaro já opera uma mudança de eixo eleitoral, agora estribado na força do poder central e nas políticas de transferência de renda, como ficou evidente, ontem, na viagem ao Piauí, na companhia do senador Ciro Nogueira (PI), presidente do Progressistas e um dos caciques do Centrão. Por sinal, um político denunciado pela Lava-Jato.

Um bom termômetro da força de inércia da questão ética na campanha eleitoral teremos nas eleições de São Paulo, sobretudo na disputa pela prefeitura da capital. Embora não esteja envolvido em nenhum escândalo, o prefeito Bruno Covas, que vem liderando as pesquisas, começa a ter que pôr no seu planejamento para gestão de crises os efeitos da Lava-Jato na disputa da Prefeitura de São Paulo, em razão das denúncias contra o senador José Serra (PSDB-SP) e o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), fundadores e principais líderes da legenda no estado. Alvo de operações recentes, os dois estão sendo investigados por lavagem de dinheiro e uso de caixa dois eleitoral, o que tem um efeito deletério para a candidatura à reeleição do prefeito paulistano.

Extrapolando as eleições municipais — o que as urnas podem confirmar ou não —, é muito provável que o desgaste sofrido pelo PSDB, por causa desses escândalos, venha a criar dificuldades para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), viabilizar sua candidatura a presidente da República. Conspiram contra esse projeto a recuperação de imagem do presidente Bolsonaro e a resiliência eleitoral do PT, o que pode levar Doria à opção pela reeleição, ou seja, é melhor um Palácio dos Bandeirantes nas mãos do que os do Planalto e da Alvorada nos sonhos.

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Luiz Carlos Azedo: A desagregação do Centrão

“Os líderes do MDB, Baleia Rossi (SP), e do DEM, Efraim Filho (PB), também são potenciais candidatos ao comando da Câmara, mas é muito cedo para se lançarem à disputa“

O MDB e o DEM anunciaram, ontem, que deixarão o Centrão, bloco de 221 parlamentares formado pelos seguintes partidos: PTB, PP, Solidariedade, PRB, PSD, MDB, PR, Podemos, Pros e Avante. Com a saída das duas legendas, a bancada comandada pelo líder do Progressistas, Arthur Lira (AL), nome de preferência do presidente Jair Bolsonaro para substituir Rodrigo Maia (DEM-RJ) na Presidência da Câmara, passará a contar com 158 deputados. Ocorre que o PSD, com 35 deputados, e o PTB, com 11, também estão se preparando para desembarcar do Centrão. A candidatura de Lira ao comando da Casa virou suco.

Um dos artífices da aproximação do bloco com o Palácio do Planalto, Lira se lançou à sucessão de Maia antes da hora e acabou no sereno. Seu principal concorrente era o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP- PB), líder da maioria e relator da reforma tributária, que agora está cotado para ser o líder do governo na Câmara, no lugar do Major Vitor Hugo (PSL-GO). A operação é comandada pelo ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Ramos, como uma forma de acomodar a situação dentro do Progressista, mas a necessidade da troca de líder ainda não convenceu Bolsonaro.

A candidatura de Lira, porém, se tornou tóxica, por causa da Operação Lava-Jato, na qual é acusado de ter recebido R$ 1,6 milhão em propina da empreiteira Queiroz Galvão. De acordo com a denúncia, teria recebido o dinheiro em troca do apoio do PP à manutenção de Paulo Roberto Costa na diretoria da Petrobras. Costa foi preso em março de 2014, quando a Lava-Jato foi deflagrada. Segundo a defesa do parlamentar, o delator fez a denúncia porque Lira teria afastado Costa da legenda. Mas acontece que a ex-mulher de Lira, Jullyete Lins, no fim do ano passado, ao cobrar na Justiça R$ 600 mil de pensões em atraso, acusou o parlamentar de ocultar patrimônio no valor de R$ 40 milhões, construído por meio de propina. Lira nega.

O desembarque do PSD, de Gilberto Kassab, e do PTB, de Roberto Jefferson, do Centrão sinaliza um realinhamento de forças na Câmara. Esses partidos, que agora ocupam espaços na Esplanada dos Ministérios, se movimentam por conta própria. Aparentemente, Kassab e Jefferson não têm interesse que o novo presidente da Câmara seja um “pau mandado” do presidente Jair Bolsonaro. Isso reduziria o poder de barganha que ambos têm hoje, tanto na estrutura da Câmara como nas negociações com o Palácio do Planalto. Kassab e Jefferson, cada qual com o seu estilo, são raposas velhas da política. Operam nos bastidores defendendo seus próprios interesses na Câmara, para depois negociar com o governo numa posição de força.

Trocando em miúdos, o Palácio do Planalto deve esquecer o jogo de damas, precisa jogar xadrez na Câmara. Isso ficou claro na votação do Fundeb, na semana passada, que Artur Lira tentou adiar, a pedido do governo, mas acabou atropelado por Maia. Os líderes do MDB, deputado Baleia Rossi (SP), e do DEM, deputado Efraim Filho (PB), também são potenciais candidatos ao comando da Câmara, mas ainda é muito cedo para se lançarem à disputa. O grande beneficiado pela desconstrução do Centrão, por enquanto, é o presidente da Câmara. Maia estava sendo tratado como “pato manco” por Bolsonaro, o que é um erro crasso.

Aviões de carreira
Há mais coisas entre o céu e o cerrado do que os aviões de carreira, diria o Barão de Itararé, a propósito da saída de integrantes da equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes. Depois do secretário do Tesouro, Mansueto de Almeida, deixaram a equipe, nos últimos dias, o presidente do Banco do Brasil, Rubens Novaes, e o secretário especial de Fazenda, Caio Mengale, que anunciou sua decisão ontem. Todos alegaram motivos pessoais, mas o ex-presidente do BB deixou no ar uma interrogação, ao revelar incômodo com o “compadrio”. Pode ser uma referência às pressões para manter a publicidade do banco nos sites e blocos que estão sendo investigados pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), por causa das fake news.

No mercado financeiro, comenta-se que estaria havendo divergências na equipe econômica em relação ao programa Mais Brasil, que o governo prepara para substituir o programa Bolsa Família. O governo caminha para aumentar impostos e fazer mais transferências de recursos para a população de baixa renda, contrariando tudo o que Guedes pretendia inicialmente. Ou seja, a pandemia e a recessão puseram em xeque o projeto ultraliberal de Guedes e sua equipe.

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Luiz Carlos Azedo: Esfera pública e fake news

“A investigação é polêmica, porque envolve a liberdade de expressão e a quebra da imunidade parlamentar. Mas esse debate sobre fake news deve resultar num novo marco legal ”

Até o século XVIII, a cultura europeia era uma representação da aristocracia da época, que traduzia a imagem de si mesma e dos súditos conforme seus interesses, com demonstrações de poder, desfiles militares, grandes palácios. Até que às tabernas somaram-se os cafés, teatros e salões literários, espaços fora da esfera de poder do Estado, lugares onde as pessoas podiam conversar e debater qualquer assunto de seu interesse, sem os filtros dos cerimoniais. Essa ampliação da “esfera pública” criou oportunidades para o questionamento da cultura representativa do Estado. A literatura e a pintura da época –– não existiam fotografia, cinema, rádio e televisão, muito menos internet — registram essa mudança.

Surgiu um espaço entre a esfera privada e o controle do Estado, que criou oportunidades para o enlace de interesses comuns dos indivíduos, até então contidos no âmbito familiar ou individual, e completamente à margem da esfera oficial. Esse foi um fator decisivo para a Revolução Francesa, em 1789, e suas consequências principais: o surgimento de instituições políticas democraticamente eleitas, tribunais independentes, declarações de direito etc. Um dos estudiosos da esfera pública é o filósofo Jungen Habermas, o teórico da “razão comunicativa”, hoje com 91 anos, um dos representantes vivos da famosa Escola de Frankfurt. Segundo ele, a sociedade é dependente da crítica às suas próprias tradições: os indivíduos precisam questioná-las e mudá-las, via a critica racional. Por isso, na “esfera pública”, surgem novos consensos e possibilidades de mudanças. E a sociedade se fortalece.

Essa conquista parece ameaçada, ironicamente, pela ampliação da própria “esfera pública”, via redes sociais. Esse é um debate que ocorre no mundo, por causa da suspeita de utilização de redes para manipulação da opinião pública e interferência nas eleições, como ocorreu na do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. A “esfera pública” foi ampliada por esse “espaço virtual”, à margem das instituições políticas tradicionais, porém, sob controle dos novos protagonistas da globalização: Google, Facebook, Twitter, Microsoft, Apple, Huawei. Ou seja, empresas em rede constituídas como estruturas supranacionais gigantes.

Blogueiros e parlamentares
Aqui no Brasil, a polêmica também esquentou bastante. Discute-se no Congresso uma legislação de combate às fake news, e o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu tirar do ar blogueiros radicais de extrema direita, ligados ao presidente Jair Bolsonaro, cuja eleição também é resultado da emergência das redes sociais na política brasileira e, em parte, da atuação desses blogueiros, financiados por alguns empresários. A decisão cita como titulares das contas a serem suspensas, além do ex-deputado Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB, novo aliado de Bolsonaro: Luciano Hang, empresário; Edgard Corona, empresário; Otávio Fakhoury, empresário; Edson Salomão, assessor do deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia; Rodrigo Barbosa Ribeiro, assessor do deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia; Bernardo Küster, blogueiro; Allan dos Santos, blogueiro; Winston Rodrigues Lima, militar da reserva; Reynaldo Bianchi Júnior, humorista; Enzo Leonardo Momenti, youtuber; Marcos Dominguez Bellizia, porta-voz do movimento Nas Ruas; Sara Giromini; Eduardo Fabris Portella; Marcelo Stachin e Rafael Moreno.

Morais também investiga parlamentares governistas, que tiveram os sigilos fiscal e bancários quebrados: Beatriz Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP), Daniel Silveira (PSL-RJ), Filipe Barros (PSL-PR), Junio Amaral (PSL-MG), Luiz Phillipe de Orleans e Bragança (PSL-SP), deputados federais, e Douglas Garcia (PSL) e Gil Diniz (PSL), deputados estaduais paulistas. A investigação é polêmica, porque envolve a liberdade de expressão e a quebra da imunidade parlamentar. Mas esse debate sobre fake news, no Congresso, deve resultar num novo marco legal sobre o tema.

Recentemente, antevendo a mudança, o Facebook cancelou 35 contas, 14 páginas e um grupo na sua rede social; no Instagram, eliminou 38 contas. O grupo reunia, aproximadamente, 350 pessoas, que eram seguidas por 883 mil bolsonaristas no Facebook e 917 mil no Instagram. As contas canceladas estavam envolvidas com a criação de perfis falsos e “comportamento inautêntico”. Segundo a empresa, foi possível identificar as ligações dessas pessoas com funcionários dos gabinetes do presidente Jair Bolsonaro, do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e também dos deputados estaduais Anderson Moraes e Alana Passos, do PSL no Rio de Janeiro. Tudo junto e misturado.

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Luiz Carlos Azedo: Como um romance noir

“As delações premiadas da Odebrecht vincularam até as doações legais da empresa às campanhas eleitorais ao seu gigantesco esquema de desvio de recursos públicos”

Mestre do romance policial, o professor Luiz Alfredo Garcia-Roza — que durante 40 anos lecionou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) —, somente aos 60 anos resolveu recorrer aos seus conhecimentos de psicologia, filosofia e psicanálise para se tornar escritor. Dedicou-se à literatura noir. Faleceu em abril passado, aos 84 anos, mas nos legou 12 romances — entre os quais O silêncio da Chuva e Uma janela em Copacabana —, e um grande personagem, o detetive Espinosa.

Amigo do falecido escritor Rubem Fonseca, de quem era grande admirador, ao lado escritor norte-americano Edgar Allan Poe, numa entrevista ao jornalista Alberto Dines, Garcia-Roza resumiu seu estilo: “O assassinato puro e simples dá a chave daquilo que vai constituir o fundamental da literatura policial. (…) acabo me colocando frente esta morte no lugar que não me caberia como escritor, que é o do investigador, que pode ser policial ou não”. O embaixador André Amado, estudioso da sua obra, no recém publicado A História de Detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza, um belíssimo ensaio sobre literatura policial, destaca o método lógico-dedutivo do detetive Espinosa como fio condutor de uma obra literária que não fica nada a dever aos grandes escritores do gênero.

Espinosa é um personagem excêntrico, um delegado meio filósofo, em conflito com a profissão. Na sua última obra, vive um jogo de gato e rato com um cafetão, sua nova prostituta e um policial corrupto, entre outros seres do submundo da Lapa, o tradicional bairro boêmio do Rio de Janeiro. O delegado Espinosa entra no caso quando começam a surgir mulheres mortas com requintes de crueldade. Precisa descobrir quem é o assassino antes que ele faça sua nova vítima. Obviamente, o personagem se inspira, também, em Baruch Spinoza (ou Benedito Espinoza),o filósofo holandês descendente de judeus expulsos de Portugal pela Inquisição, que foi excomungado pela comunidade judaica de Amsterdã, da qual fazia parte, por causa de suas ideias racionalistas.

Não faltam personagens na Operação Lava-Jato que se inspiram em heróis noir, como Espinosa, para desempenhar suas funções. A grande diferença para os bons romances policiais é que não existe nenhum caso de assassinato puro e simples até agora, apesar do grande número de delações premiadas, que muitos condenados veem como grande traição. Por exemplo, nos casos das investigações sobre o assassinato de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, no Rio de Janeiro, e do escândalo das rachadinhas, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no qual estão envolvidos o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, o capitão Adriano Nóbrega, suspeito de ser o mandante do crime, que estava foragido, morreu em confrontos com a polícia na Bahia.

Tucanos
Mesmo assim, a Lava-Jato produz histórias policiais em série, com a generosidade de um Georges Simenon, o criador do Comissário Maigret, protagonista de 78 novelas e 28 contos, escritos entre 1931 e 1972. A nova novela da operação foi lançada ontem, como a denúncia apresentada pela Polícia Federal contra ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB), indiciado por suspeita de três crimes: lavagem de dinheiro, caixa dois eleitoral e corrupção passiva. O inquérito investiga, no âmbito da Justiça Eleitoral, as doações da empreiteira Odebrecht. Em depoimento aos procuradores da Lava-Jato na época da investigação, Carlos Armando Paschoal, então diretor da empreiteira em São Paulo, disse ter repassado mais de R$ 10 milhões, via caixa dois, às campanhas de Alckmin. O ex-tesoureiro do PSDB Marcos Monteiro e o advogado Sebastião Eduardo Alves de Castro também foram indiciados. Alckmin foi governador de São Paulo entre 2001 e 2006 e de 2011 a 2018.

No início deste mês, a força-tarefa da Operação Lava Jato em São Paulo também denunciou o senador José Serra (PSDB) e sua filha, Verônica Allende Serra, por lavagem de dinheiro. Quem acreditava que a Operação Lava-Jato estava morta, pode pôr as barbas de molho. As delações premiadas de Emílio e Marcelo Odebrecht, assim como de todos os executivos da empresa envolvidos com as chamadas “operações estruturadas”, vincularam até as doações legais da empresa ao gigantesco esquema de desvio de recursos de obras e serviços públicos da empreiteira, que mantinha um caixa 2 para financiar campanhas eleitorais, investigado a partir de uma planilha apreendida em poder de uma das secretarias do grupo. Os casos considerados caixa dois eleitoral foram remetidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) à Justiça Eleitoral, que tem no atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Barroso, um dos principais defensores da Lava-Jato.

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Luiz Carlos Azedo: O grande jogo

“A intenção do Palácio do Planalto é conquistar o comando da Câmara, via articulação com o Centrão, para limitar o protagonismo do Congresso”

Em meio à tragédia da pandemia do novo coronavírus, discute-se intensamente o que virá depois da covid-19. Existem várias dimensões nesse debate, do cotidiano doméstico ao novo mundo das inovações tecnológicas, mas a política não perdeu centralidade. Destaco as eleições nos Estados Unidos e a escolha do novo comando do nosso Congresso, principalmente da Câmara dos Deputados. Nosso futuro imediato dependerá muito desses dois eventos.

A pandemia de coronavírus colocou em xeque a reeleição do presidente Donald Trump, republicano, no pleito de 3 de novembro. Joe Biden, vice-presidente de Barack Obama, hoje lidera a disputa com uma vantagem de 14 pontos. Trapalhadas no combate à pandemia e a recessão jogaram Trump para baixo. A sua esperança é a recuperação da economia em V, mas o coronavírus se espalha por todo o território e Trump terá mais dificuldades. Além disso, a violência policial, que estimulou, provocou forte reação da sociedade, principalmente dos jovens.

Os sinais de que a recuperação acelerada da economia norte-americana seria possível vinham da China, após dominar a pandemia, e também da Alemanha, que segue a mesma trajetória, o que ainda pode se reproduzir em outros países da Europa com economias fortes, principalmente a Inglaterra e a França. Entretanto, a projeção do PIB dos EUA aponta para uma queda de 6,5% em 2020.

A disputa comercial entre os Estados Unidos e a China pelo controle das cadeias de comércio mundiais, cujo eixo se deslocou para o Pacífico, pauta a política mundial. Com a eventual derrota de Trump, não deixará de existir, mas sofrerá mudança radical na forma de atuação dos Estados Unidos. A política de Trump tensiona as relações do Brasil com a China, nosso principal parceiro comercial, porque a atual política externa é esquizofrênica: o alinhamento automático com os EUA está em contradição com nosso lugar na divisão internacional de trabalho. Por isso mesmo, a eventual derrota de Trump terá reflexos na nossa política externa. Como os democratas, hoje, têm melhores relações com a oposição, isso acabará influenciando o governo Bolsonaro.

Sucessão

Vamos à política interna. Nossas eleições municipais serão em 15 de novembro. É pouco provável que a polarização política nacional se reproduza em nível municipal, embora seja previsível o surgimento de candidatos bolsonaristas na maioria dos municípios. Entretanto, a recíproca não é verdadeira: os resultados das eleições municipais repercutirão fortemente na política nacional, principalmente no Congresso.

Depois do tsunami de 2018, que promoveu grande renovação no Congresso, nossa elite política reagiu com muito protagonismo, principalmente nas reformas econômicas. Resgatou para si o grande jogo da política, enquanto o presidente Jair Bolsonaro se enredava na pequena política. Foi uma inversão de tendências, pois sempre coube ao Executivo a iniciativa de reformar o Estado e a economia. Muito desse protagonismo se deve ao desempenho do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cujo mandato está acabando, não pode ser reeleito nem tem um sucessor consolidado para o cargo.

É aí que o presidente Jair Bolsonaro pode passar da defensiva à ofensiva em relação ao Congresso. A intenção dos militares que ocupam o Palácio do Planalto, principalmente do ministro da Secretaria de Governo, o general Luiz Ramos, é conquistar o comando da Câmara via articulação com o Centrão: PP (40 deputados), PL (39), PSD (36), Republicanos (31), Solidariedade (14), PTB (12), PROS (10), PSC (9), Avante (7) e Patriota (6). Por ora, o governo joga com pau de dois bicos: Arthur Lira (PP-AL), o preferido do “baixo clero”, e Marcus Pereira (PP-S), bispo da Igreja Universal e atual vice-presidente da Casa. O MDB (34), o DEM (28) e o PSDB (31), apesar da liderança de Maia, ainda não têm um candidato competitivo, que possa dividir o Centrão e obter votos da oposição, para manter a autonomia da Casa.

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