Partidos
Luiz Carlos Azedo: Rede de intrigas
O que parecia impensável, passou a ser uma possibilidade, diante do descalabro na saúde: uma aliança entre os partidos de esquerda e o general Mourão contra Bolsonaro
A moral da história não tem muito a ver com o longa-metragem que empresta o título à coluna, por sinal, uma excelente dica para a tarde deste domingo, em tempos de distanciamento social. Lançado em 1976, o filme de Sidney Lumet é uma dura crítica aos meios de comunicação, principalmente a tevê, que arrebatou quatro Oscar: Ator (Peter Finch, entregue de forma póstuma), Atriz (Faye Dunaway), Atriz Coadjuvante (Beatrice Straight) e Roteiro (Paddy Chayefsky). A trama de Rede de Intrigas é uma pequena obra-prima:
Com baixos índices de audiência, o âncora do programa de notícias da rede UBS, Howard Beale (Peter Finch), surta e aparece na televisão afirmando que cometerá suicídio dentro de uma semana, em pleno horário nobre. Seu produtor entra em pânico com a atitude do amigo, acreditando que sua carreira e a de Howard estariam encerradas. Entretanto, o colapso do âncora acaba dando mais audiência ao programa. A ambiciosa diretora de tevê Diana Christensen (Faye Dunaway) e o executivo Frank Hackett (Robert Duvall) não estão nem aí para o surto do apresentador, só querem saber de faturar com o sucesso de público.
Rede de Intrigas se passa logo após a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate, que levou Richard Nixon à renúncia. É um ambiente de muito ceticismo em relação à política e às instituições norte-americanas. Neste cenário, o sisudo âncora Howard Beale se transforma num jornalista sem papas na língua, que não tolera a situação e assume o papel de porta-voz da opinião pública. Controlar o desequilibrado Howard Beale, porém, será bem mais difícil do que qualquer um poderia pensar.
Na política brasileira, a intriga da hora é o estresse entre o presidente Jair Bolsonaro e seu vice, general Hamilton Mourão, provocado por inconfidências de um assessor parlamentar, que acabou demitido. Desde o episódio das “rachadinhas” (devolução de parte dos salários dos assessores para o parlamentar que os nomeou) da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, no qual estão envolvidos o senador Flávio Bolsonaro (PR-RJ), seu filho, e a primeira-dama Michele, Bolsonaro está convencido de que o vice sonha com a cadeira de presidente da República. Demitiu dois ministros, logo após o escândalo vir à tona, por acreditar numa conspiração para apeá-lo do cargo: o ex-secretário-geral da Presidência Gustavo Bebianno, já falecido, e o ex-secretário de Governo Carlos Alberto Santos Cruz, um general reformado — respeitadíssimo na caserna, por sua atuação em missões da ONU no Haiti e no Congo —, que hoje lhe faz uma oposição implacável.
Patente é documento
A crise sanitária e a recessão econômica, que Bolsonaro tenta mitigar no gogó falando barbaridades, jogaram os indicadores de aprovação do governo para baixo e estão desgastando a imagem do presidente da República de forma muito acelerada. O número de mortes provocado pela covid-19 e a indignação da população com o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus, além de desmoralizar os militares à frente do Ministério da Saúde, sob comando do general Eduardo Pazuello, embalaram a agitação a favor do impeachment de Bolsonaro. O que parecia impensável, passou a ser uma possibilidade, diante do descalabro na saúde: uma aliança entre os partidos de esquerda e o general Mourão, homem sabidamente de direita. Com essa, Bolsonaro não contava.
A escolha de Mourão como vice teve por objetivo evitar que a oposição derrotada nas urnas em 2018 embarcasse na canoa do impeachment. A narrativa de que o impeachment de Dilma Rousseff fora um golpe liderado pelo vice Michael Temer, com apoio dos militares, dividia oposição. Mas não é que o impeachment passou a ser o centro da tática tanto da esquerda como dos movimentos cívicos que foram pra rua contra a “presidenta” petista. Bolsonaro trabalha para consolidar sua blindagem no Congresso, com a eleição do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e do deputado Arthur Lira (PP-AL) à Presidência do Senado e da Câmara, respectivamente. É jogo jogado, mas isso não significa corpo fechado.
Mesmo que Bolsonaro obtenha uma vitória consagradora na “guerra de posições” para se manter no poder, isso não altera certas características de seu governo nem do Congresso. A maioria formada para apoiá-lo, tanto na Câmara como no Senado, foi obra silenciosa dos militares que controlam o governo, sobretudo do ministro Luiz Ramos, secretário de Governo, e das velhas raposas políticas do Centrão, entre as quais o senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, e os ex-deputados Valdemar Costa Neto (SP), do PL, e Roberto Jefferson (RJ)), do PTB, e o ex-prefeito Gilberto Kassab (SP), do PSD, com maior ou menor estridência.
São políticos que já apoiaram e abandonaram todos os governos. Por sua vez, os militares têm uma cultura de troca de guarda, ou seja, rodízio nos comandos, que foi uma das características do regime militar. Bolsonaro tem razão ao ver em Mourão uma ameaça. O vice é “imexível” e está preparado para assumir seu lugar em caso de necessidade, com apoio do Centrão e dos militares, caso a popularidade do presidente continue desabando e o impeachment realmente ganhe as ruas, financiado por setores empresariais descontentes com os rumos da economia. Além disso, num governo de características bonapartistas, patente é documento.
Luiz Carlos Azedo: Só falta chamar de Cristiana
Os caciques do MDB “cristianizaram” a senadora Simone Tebet (MS), que se lançou candidata avulsa à Presidência do Senado, sem o apoio formal da bancada
Mineiro de Sabará, Cristiano Monteiro Machado foi prefeito de Belo Horizonte no final da década de 1920. Partidário da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, conquistou uma cadeira na Assembleia Nacional Constituinte em 1933. Renunciou ao mandato em 1936, para ser secretário de Educação e Saúde Pública de Minas Gerais, no governo de Benedito Valadares. Deixou o cargo no início de novembro de 1945, em decorrência da deposição de Getúlio Vargas (29/10/1945) e do consequente fim do governo Valadares. Filiado ao recém-fundado Partido Social Democrático (PSD), foi eleito deputado à Constituinte de 1946.
Em 15 de maio de 1950, Cristiano Machado foi lançado candidato à Presidência da República pelo PSD nas eleições que se realizariam em outubro. Entretanto, a ala getulista do PSD do Rio Grande do Sul era favorável à indicação de Nereu Ramos e se recusou a aceitar Cristiano como candidato. Logo depois, membros do Partido Social Progressista (PSP), de Ademar de Barros, comunicaram ao PSD que não apoiariam Cristiano. A candidatura de Getúlio Vargas, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), já estava sendo articulada e viria a ser apoiada por Ademar. Mesmo com o PSD dividido, Cristiano foi aclamado na convenção nacional do partido. Coube ao Partido Republicano (PR) indicar Altino Arantes para a vice-presidência. Cristiano ainda fez uma aliança com Hugo Borghi, candidato ao governo de São Paulo pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN).
Nas eleições de 3 de outubro de 1950, Cristiano Machado concorreu com o brigadeiro Eduardo Gomes (UDN) e Getúlio Vargas (PTB). Vargas teve uma vitória acachapante, inclusive, nos redutos eleitorais do PSD. A transferência dos votos de Cristiano para Vargas caracterizou um processo de esvaziamento eleitoral que ficou conhecido no jargão político como “cristianização”. Passou a ser uma marca registrada do MDB nas eleições para presidente da República, sempre que a legenda lançou candidato, com aconteceu com Ulyssses Guimarães (1989) e Orestes Quércia (1994).
Ontem, no Senado, os caciques do MDB “cristianizaram” a senadora Simone Tebet (MS), que se lançou candidata avulsa à Presidência da Casa, depois de perder o apoio formal da bancada. Pesaram na balança a maioria dos senadores do PSDB e do PT, que apoiam o candidato governista Rodrigo Pacheco (DEM-MG), numa articulação bem-sucedida do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), aliado incondicional do presidente Jair Bolsonaro. Havia uma expectativa de reversão desses apoios, o que equilibraria muito a disputa, mas isso não ocorreu.
Traições
Simone Tebet tentava virar dois votos do PSDB dos cinco que apoiam Pacheco, mais dois votos do PT e o voto do senador Cid Gomes (PDT). Se essa articulação prosperasse, haveria alguma chance de manter o apoio dos caciques da legenda. Os senadores Eduardo Gomes (TO), líder do governo no Congresso, Luiz do Carmo (GO), Márcio Bittar (AC) e Confúncio Mouro (RO) já estavam com o candidato do DEM. Os senadores Fernando Bezerra (PE), líder do governo no Senado; Eduardo Braga (AM), líder da bancada; Renan Calheiros (AL), Fernando Bezerra (PE), Jarbas Vasconcelos ((PE), Jader Barbalho (PA), Nilda Gondim (PB) e Veneziano Vital do Rego (PB) apoiavam Tebet. Entretanto, Dario Berger (SC), Marcelo Castro (PI) e Rose de Freitas (ES) ainda aguardavam as definições no PSDB e no PT.
Ao contrário da Câmara, que tem 513 deputados, as disputas no Senado são um jogo de cartas marcadas, que se decide de véspera, muitas vezes, em razão do número de senadores (81, três por unidade da Federação). Quando se consolida uma maioria, isso tem um efeito desestabilizador para quem está em desvantagem. Foi o que aconteceu com Tebet, com a decisão da bancada do MDB de não oficializar sua candidatura e liberar seus integrantes para votar como quiserem.
A ocupação de espaços na Mesa Diretora do Senado e a situação eleitoral nos estados também costumam ter um peso decisivo no posicionamento de cada senador. Por exemplo, Eduardo Gomes e Veneziano disputam a primeira vice-presidência do Senado, que ficará com o MDB, porque a bancada abriu mão de apoiar Simone Tebet. Por fim, os dados estão lançados. E é sempre bom levar em conta que a votação secreta dá “uma vontade danada de trair”, como dizia Tancredo Neves.
Luiz Carlos Azedo: O rolo compressor do Planalto
Ao subir o tom contra o presidente Jair Bolsonaro, Maia aposta numa separação mais nítida entre governistas e a oposição. Entretanto, isso estressa a bancada do DEM
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), estima os gastos do Palácio do Planalto para anabolizar a candidatura do deputado Arthur Lira (PP-AL) à Presidência da Casa em R$ 20 bilhões. É muita grana em emendas extraordinárias para um Orçamento já comprometido diante da dívida pública da União, que aumentou R$ 1 trilhão somente no ano passado. O toma lá dá cá é o abre-alas de uma guinada populista do governo para consolidar a base governista na Câmara e no Senado, num ambiente de queda de popularidade do presidente Jair Bolsonaro. A outra opção é não cumprir os acordos, o que também pode acontecer, porque Bolsonaro já deu mostras de que nem sempre honra os compromissos assumidos por seus articuladores políticos.
Às vésperas de deixar o comando da Câmara, Maia queima os navios com o Palácio do Planalto. Tem criticado, duramente, a interferência direta do presidente da República nas eleições da Mesa e está praticamente rompido com o presidente do DEM, o ex-prefeito de Salvador ACM Neto, que fechou com Lira, de olho na sua candidatura a governador da Bahia. O futuro de Maia é incerto, mas seus interlocutores estão convencidos de que o parlamentar fluminense pretende assumir uma posição de liderança no bloco de oposição ao governo. Especula-se até que esteja desembarcando do DEM. Parcela expressiva da sua bancada refuga o apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP), candidato de Maia ao comando da Câmara.
Rodrigo Maia teria sido convidado para assumir o comando da Casa Civil do governo de São Paulo, tornando-se o principal articulador da candidatura do governador João Doria (PSDB) à Presidência da República. Faz sentido, porque o presidente da Câmara assumiu um discurso liberal-democrata radical de oposição ao governo. Com isso, o bloco que lidera vem sofrendo sucessivas defecções em razão do trabalho de sapa dos articuladores do governo e seu candidato, Arthur Lira.
Ao subir o tom contra o presidente Jair Bolsonaro, Maia aposta numa separação mais nítida entre o bloco governista e a oposição. Entretanto, isso estressa a bancada. Lira se aproveita da situação e pressiona para que os deputados do DEM que o apoiam forcem a bancada a romper formalmente com Rossi, o que deixaria Maia pendurado no pincel. Uma situação como essa, praticamente, o empurraria para fora do DEM. Seria até meio desmoralizante, para quem já foi presidente da legenda. Lira já consolidou o apoio de 30 deputados do PSL, que, ontem, se encontraram com o presidente Jair Bolsonaro. Luciano Bivar (PE), presidente da legenda, também teria desembarcado da candidatura de Rossi.
Avulsos
Na guerra de informações sobre o comportamento das bancadas, a incógnita é a densidade dos demais candidatos, que podem levar a disputa entre Lira e Rossi para o segundo turno. Se forem somados todos os votos que os candidatos dizem ter, a Câmara teria muito mais do que 513 deputados. Os demais candidatos são:
Alexandre Frota (PSDB-SP): candidato avulso. Defende uma Câmara independente em relação ao Executivo e à abertura de processo de impeachment de Bolsonaro.
André Janones (Avante-MG): candidato avulso. Promete pautar a volta do auxílio emergencial. Cinco deputados apoiam publicamente sua candidatura, mas calcula que pode chegar a 10 parlamentares nas eleições, que serão realizadas com voto secreto.
Capitão Augusto (PL-SP): candidato avulso. Coordenador da Frente Parlamentar de Segurança Pública, conhecida como a bancada da bala, tem conversado com deputados de “bancadas vocacionadas”, como a evangélica.
Fábio Ramalho (MDB-MG): candidato avulso. Tem investido no contato individual com os parlamentares do baixo clero, em que transita muito bem. Defende a independência da Câmara. Marcel van Hattem (RS): candidato oficial do Novo, partido que conta com oito deputados. Aposta no diálogo e está empenhado em construir pontes com os parlamentares.
Luiz Erundina (PSol-SP): a legenda contesta a aliança dos partidos de esquerda com Baleia Rossi, mas a candidatura da ex-prefeita de São Paulo não unificou a bancada.
Luiz Carlos Azedo: Sobre atalhos e eleições
A eventual vitória de Bolsonaro na disputa pelas Mesas do Congresso lhe dará fôlego para salvar o mandato, mas não será o bastante, caso sua popularidade continue desabando
O Conselheiro Acácio, criação do escritor português Eça de Queiróz (1840-1900) no romance Primo Basílio, com passar do tempo, acabou se tornando maior do que o protagonista que empresta o nome ao livro e os demais personagens, por seu pedantismo e suas obviedades. A expressão “acaciano”, inspirada em suas platitudes e redundâncias, virou até adjetivo na língua portuguesa. Eça descreve-o de forma caricatural: “Alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo, ia-se alargando até a calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto. Tingia os cabelos, que de uma orelha à outra lhe faziam colar para trás da nuca; e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, maior brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo e as orelhas muito grandes, muito despegadas do crânio”.
O que humanizou e fez do Conselheiro um personagem maior e universal foram seu falso moralismo (vivia amancebado com a criada), o burocratismo (adorava carimbos, despachos, fichas e relatórios que para nada serviam) e a bajulação (toda vez que o nome do Rei era pronunciado, erguia-se um pouco da cadeira). Como uma espécie de Barão de Itararé (Apparício Torelly) às avessas, suas frases de efeito tornaram-se famosas, como “a saúde é um bem que só apreciamos quando nos foge”. Tudo para ele era cercado de pompa: “Que maior prazer, meu Jorge, que passar assim as horas entre amigos, de reconhecida ilustração, discutir as questões mais importantes, e ver travada uma conversação erudita…? Parecem excelentes os ovos”.
Conselheiros como ele pululam nos palácios e seus gabinetes. Muita gente gosta desse tipo de colaborador, que dá razão ao chefe em tudo. O presidente Jair Bolsonaro não foge à regra, mas — quanta ironia —, como diria o Conselheiro Acácio, “as consequências vêm depois”. É o que está acontecendo, agora, com a pandemia da covid-19 no Brasil, cuja segunda onda é uma realidade dramática e, tudo indica, está se somando à “quarta onda” a que se refere o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que seriam os efeitos psicológicos das mortes, do desemprego, dos confinamentos e das desesperanças. A diferença é que o general imaginava um desespero individual, que até poderia levar ao aumento dos suicídios, ou a saques e depredações espontâneos, mas que poderiam provocar uma convulsão social.
Impeachment
Pazuello não contava, porém, com o desgaste provocado pelo negacionismo de Bolsonaro e uma resposta política da oposição. É o que estamos vendo agora, com manifestações de protestos se sucedendo com força: panelaços nas janelas e memes nas redes sociais; e as carreatas, como as de ontem e de hoje, pedindo “vacinas já” e o impeachment do presidente da República, que desabou nas pesquisas. Quaisquer que sejam os resultados das eleições das Mesas da Câmara e do Senado, mesmo que vençam os candidatos apoiados por Bolsonaro — Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no Senado —, os políticos governistas também sentiram o cheiro de animal ferido na floresta. A fatura a pagar será alta. Nos casos de vitória de Baleia Rossi (MDB-SP) e/ou Simone Tebet (MDB-MS), principalmente a do primeiro, a agenda de costumes e institucional de Bolsonaro estará definitivamente interditada. As pautas do Congresso serão a crise sanitária, a recessão, a inflação, o desemprego, a renda e o fracasso do governo.
O Brasil já viu esse filme duas vezes, nos governos Collor e Dilma, o primeiro, por causa da inflação, o segundo, em decorrência da recessão, ambos temperados por escândalos de corrupção. Nos dois casos, as insatisfações desaguaram no impeachment. No de Collor, o clamor das ruas foi liderado pelo PT, mas o realinhamento das forças políticas resultou na eleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). No de Dilma, o PSDB trabalhou para apeá-la desde o primeiro dia no cargo. Quando chegaram as eleições, deu Bolsonaro. As circunstâncias do impeachment são crime de responsabilidade e grande insatisfação popular, além da vontade de a oposição atalhar o processo de alternância de poder. Entretanto, o perfil do vice-presidente é dado pelas alianças que viabilizaram a eleição do presidente defenestrado. Itamar era aliado de Collor; Michel Temer, de Dilma. O primeiro não podia se candidatar, o segundo foi inviabilizado por denúncias quando ensaiava a reeleição.
A eventual vitória de Bolsonaro na disputa pelas Mesas do Congresso lhe dará fôlego para salvar o mandato, mas não será o bastante, caso sua popularidade continue desabando. Sua força no Congresso resulta da ação de uma espécie de “subgoverno”, que sempre manteve boas relações no Senado e na Câmara, formado por alguns ministros e o grupo de militares que hoje controla o Palácio do Planalto. São aliados que também podem derivar para o impeachment, se perceberem uma debacle iminente, com o país ladeira abaixo, pois estariam mais bem servidos com o vice Hamilton Mourão, um general de quatro estrelas, um potencial “salvador da pátria” embalado nas casernas e pelo povo nas ruas. E o que viria depois? Ninguém sabe, 2022 já está em aberto.
Luiz Carlos Azedo: Esquenta a disputa no Congresso
Tanto na Câmara quanto no Senado, Bolsonaro aposta alto e joga pesado, para garantir a sua governabilidade e, também, para avançar na sua agenda de reeleição
O PSL deixou, ontem, o bloco de apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP), candidato a presidente da Câmara, apoiado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual ocupante do cargo, para adensar a candidatura do líder do Centrão, Arthur Lira (AL), o candidato do presidente Jair Bolsonaro. A mudança se deu porque quatro parlamentares trocaram de lado, formando uma nova maioria na bancada, com 19 dos 36 deputados.
Foi a mais bem-sucedida manobra de Lira para fortalecer sua candidatura estimulando as dissidências internas nos partidos que apoiam Baleia, que, até agora, vinha sendo pautada por declarações públicas. O presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), que apoia Rossi, mantém uma queda de braço com o presidente Jair Bolsonaro, que deixou a legenda logo após tomar posse. O grupo dissidente do PSL chegou a apresentar uma lista com 32 assinaturas pedindo a saída do bloco de Baleia, mas dela constavam as assinaturas de 17 deputados bolsonaristas suspensos pelo partido em razão de divergências com Bivar e que não poderiam ser contabilizados.
Com isso, a candidatura de Lira passa a contar com o apoio de 10 bancadas, que somam, atualmente, 232 deputados: PSL, PL, PP, PSD, Republicanos, PTB, PROS, PSC, Avante e Patriota. Permanecem no bloco de Baleia as bancadas de 11 partidos: PT, MDB, PSDB, PSB, DEM, PDT, Cidadania, PCdoB, PV, Rede e Solidariedade, que também trocou de lado, deixando o Centrão. Com isso, essas bancadas totalizam 236 parlamentares. O problema é que essa contabilidade formal não reflete os acordos de bastidores, que são individuais.
O deputado Fábio Ramalho (MDB-MG), candidato avulso, que conta com apoio no baixo clero da Câmara, tem se queixado das pressões do Palácio do Planalto para que seus aliados declarem voto a favor de Lira. A polarização complica muito a situação, também, para a candidata do PSol, Luiza Erundina (SP). Marcelo Freixo (RJ) e mais quatro dos 11 integrantes da bancada defenderam o apoio à “frente ampla” liderada por Baleia Rossi.
A candidatura de Lira sempre manteve vantagem em relação a Baleia, mas o agravamento da crise sanitária e a queda da popularidade do presidente Bolsonaro contribuíram para embaralhar a disputa. Em contrapartida, a campanha do impeachment iniciada pela oposição está sendo explorada por Lira, para obter mais apoio do Palácio do Planalto, o que se traduz em mais verbas e cargos, além de retaliações, no caso daqueles que tinham boas relações com o governo, mas são aliados de Baleia.
Senado
A disputa no Senado também está ficando acirrada, porque a radicalização política está colocando em xeque a aliança da bancada do PT com o candidato apoiado pelo governo, Rodrigo Pacheco (DEM-RJ). Suas declarações em apoio a Bolsonaro e contra o impeachment colocaram uma saia justa em líderes históricos do PT, como Jaques Wagner (BA), Humberto Costa (PE), Paulo Paim (RS) e Paulo Rocha (PA), que estão sendo bombardeados nas redes sociais pelos militantes petistas por causa das alianças com os bolsonaristas.
Além disso, velhos cardeais da Casa estão operando para fortalecer a candidata do MDB, Simone Tebet (MS). José Serra pressiona os senadores do PSDB que apoiam Pacheco, liderados por Izalci Lucas (DF), enquanto o tucano Tasso Jereissati (CE) tenta atrair o PDT, a partir de suas relações com Cid Gomes (CE). No MDB, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) desembarcou em Brasília para evitar a “cristianização” de Tebet por senadores emedebistas. O gesto é emblemático, porque Tebet não apoiou a candidatura de Renan contra Alcolumbre. Além disso, os caciques da legenda esperavam apoio do Palácio do Planalto à candidatura do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE), o que não ocorreu.
Tanto na Câmara quanto no Senado, o Palácio do Planalto aposta alto e joga pesado, não apenas para garantir a governabilidade do presidente Jair Bolsonaro, mas, também, para avançar na sua agenda de reeleição. O ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que a vitória dos aliados do governo permitirá que envie para o Congresso sua proposta de reforma tributária, cujo eixo é a criação de um imposto sobre operações financeiras. Essa proposta seria acompanhada do projeto de Renda Cidadã, que substituiria o Bolsa Família e, em tese, garantiria apoio popular para a reeleição de Bolsonaro.
Luiz Carlos Azedo: O vento das mudanças
Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que aposta no impeachment, principalmente depois do colapso da Saúde no Amazonas
Caiu a ficha no Palácio do Planalto de que o vento mudou de rumo, com a posse do presidente Joe Biden, ontem, já anunciando mudanças fundamentais na política externa norte-americana e a volta da Casa Branca ao eixo da democracia e do “sonho americano”. Rapidinho, o presidente Jair Bolsonaro enviou uma longa carta ao presidente dos Estados Unidos, sugerindo o seu próprio reposicionamento em relação ao democrata, para manter a parceria estratégica, enquanto o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em videoconferência — a reboque do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ)—, pedia ao embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, para interceder em favor da liberação dos insumos de que precisamos para produzir as vacinas contra a covid-19. Nada como um dia atrás do outro.
A mudança na política externa dos Estados Unidos não acabou com a soberba no Itamaraty. O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster, por exemplo, ao comentar a troca de ocupantes da Casa Branca, disse que Biden precisa entender a mudança que houve no Brasil com a eleição de Bolsonaro, um país muito diferente daquele que conhecera quando era vice-presidente de Barack Obama. Ora, o novo presidente dos Estados Unidos sabe muito bem o que aconteceu, pois conhece o nosso país. Bolsonaro, o tempo todo, foi uma espécie de espelho de Donald Trump.
Ao mesmo tempo em que complicou a vida de Bolsonaro, a vitória de Biden deu gás para a oposição, que resolveu apostar no impeachment do presidente brasileiro, principalmente depois do colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) no Amazonas. Os partidos de esquerda estão convocando carreatas para o próximo sábado, com o objetivo de protestar contra o governo, devido à falta de vacinas. A crise sanitária agravou-se com a segunda onda da pandemia do novo coronavírus, e Bolsonaro está sendo responsabilizado por causa de seu reiterado negacionismo, em relação à gravidade da doença, à importância do uso de máscaras e do distanciamento social, além da necessidade de vacinação em massa da população.
Chapa quente
Os mesmos movimentos cívicos que embalaram a campanha do impeachment da presidente Dilma Rousseff — MBL, Vem pra Rua, Agora, Acontece etc — também começam a se mobilizar nas redes sociais e a convocar manifestações contra o governo. Os humores da sociedade estão mudando, conforme demonstram as pesquisas de opinião, mas isso não significa que a oposição tenha força suficiente para viabilizar o impeachment. A pandemia tira o povo das ruas, e o Congresso dá sinais de que os aliados de Bolsonaro vão levar a melhor na disputa pelas Mesas da Câmara e do Senado. Enquanto a oposição tenta promover uma “guerra de movimento”, Bolsonaro procura avançar na “guerra de posições”, movendo mundos e fundos, isto é, cargos e verbas, para eleger Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) às presidências da Câmara e do Senado, respectivamente. Caso tenha êxito, o seu impeachment, dificilmente, descerá do telhado.
Docemente constrangido, o vice-presidente Hamilton Mourão ataca a oposição — “deixem o Bolsonaro trabalhar, pô”—, ao mesmo tempo em que não perde uma oportunidade para marcar uma posição diferenciada em relação ao meio ambiente, à vacina e a outros temas nos quais o presidente da República vai na contramão da opinião pública. É um jogo muito sutil, porque o general lida com a desconfiança do clã Bolsonaro desde quando estourou o escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (PR-RJ) e a primeira-dama Michele Bolsonaro, que receberam dinheiro do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz. Militares descontentes veem em Mourão uma alternativa, caso o governo Bolsonaro leve o país ao desastre.
No xadrez da “guerra de posições”, depois da definição do Congresso, Bolsonaro deverá mover mais uma peça: a indicação do substituto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que se aposentará em 12 de julho. As articulações para a vaga já estão em curso. O candidato mais ativo é o procurador-geral da República, Augusto Aras. Na terça-feira, a propósito das representações da oposição contra Bolsonaro, por causa da crise sanitária, Aras soltou uma nota estranhíssima, falando que a calamidade pública era a antessala do “estado de defesa”, sabidamente uma situação que confere poderes extraordinários ao presidente da República. A nota gerou perplexidade e críticas públicas de seis subprocuradores-gerais da República, ou seja, da maioria do Conselho Superior do Ministério Público.
Luiz Carlos Azedo: Embolou a disputa no Senado
Qualquer que seja o resultado da eleição, porém, a ‘política de conciliação’ continuará predominando entre os parlamentares no Senado
A sucessão de Davi Alcolumbre (DEM-AP) na Presidência do Senado está embolada, com ligeira vantagem para o candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que largou na frente. Somente na terça-feira, o MDB escolheu a senadora Simone Tebet (MDB-MS) como candidata da bancada, com a desistência dos demais postulantes. O jogo bruto do Palácio do Planalto, que desprezou as candidaturas de seus líderes no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), levou o líder Eduardo Braga (MDB-AM), que também postulava a indicação, a concluir que a senadora teria melhores condições de equilibrar a disputa do que ele próprio.
Num primeiro momento, a impressão que havia passado era de que as raposas do partido se recolheram para fazer um acordo de bastidor com Rodrigo Pacheco, cristianizando Simone Tebet. Mas, não foi isso que aconteceu: dos 15 senadores emedebistas, somente Luiz do Carmo (MDB-GO) admitiu que ainda não decidiu seu voto. Os caciques da legenda chegam à conclusão de que foram tratados como uma força de segunda classe, embora tenham a maior bancada. A narrativa de Alcolumbre, de que o MDB já teria muita força na Casa, por controlar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e o fato de partido não ter sido consultado na escolha de Pacheco irritaram a cúpula do MDB.
Simone tornou-se competitiva porque conta, supostamente, com o apoio de 34 senadores na largada: além dos 15 do MDB, nove do Podemos, sete do PSDB e três do Cidadania. Não se decidiram, ainda, os três do PDT, dois da Rede, um do PSL e um do PSB. Precisaria de mais cinco votos para vencer. Entretanto, Rodrigo Pacheco conseguiu manter a vantagem, com um bloco muito amplo de partidos, com cinco senadores do DEM, 11 do PSD, sete do Progressistas, seis do PT, três do Pros, dois do Republicanos, um do PSL e um do PL. A grande surpresa foi a adesão do PT à candidatura de Rodrigo Pacheco, mas isso é resultado da longa convivência do senador com os petistas, em Minas.
A disputa do Senado parecia menos polarizada porque a Casa, tradicionalmente, faz uma política de conciliação entre o presidente da República, qualquer presidente, e os governadores, uma vez que o papel do Senado é representar os estados, de maneira equitativa, junto à União. A escolha de líderes governistas do MDB pelo Palácio do Planalto foi uma demonstração de que essa cultura se reproduzira na gestão de Alcolumbre, que havia derrotado o senador Renan Calheiros (MDB-AL), na onda de renovação política do Congresso, com um discurso contra o establishment do Senado.
Conciliação
O arranjo político estava tão consolidado que a eventual reeleição de Alcolumbre, caso fosse permitida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com apoio do MDB e do PT, já era dada como favas contadas. Como o Supremo vetou a reeleição do comando do Congresso na mesma legislatura, com base em dispositivo da Constituição de 1988, o acordão de Alcolumbre com o MDB implodiu, mas se manteve com o PT, em torno do nome de Pacheco, que é um senador de primeiro mandato, mas um político mineiro, com muita cancha de negociação. Qualquer que seja o resultado da eleição, porém, a “política de conciliação” continuará predominando no Senado, que tem grande número de ex-governadores ou candidatos aos governos de seus respectivos estados.
Desde o golpe da maioridade de D. Pedro II, em 1840, durante o Império, liberais e conservadores se revezaram no conselho de ministros. Como tinham a mesma origem social — a maioria era formada por senhores de escravos —, havia muitos interesses comuns. Essa convivência começou logo depois das vitórias liberais nas províncias, porque os conservadores, em oposição aos governos locais, onde foram derrotados nas eleições, permaneceram leais ao Imperador. Em 1853, essa aproximação de interesses resultou no “Ministério da Conciliação”, encabeçado por Honório Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, com a presença simultânea de liberais e conservadores. Desse modo, o Segundo Reinado conseguiu manter a sua estrutura centralizada sem maiores sobressaltos na esfera política, até o fortalecimento do movimento abolicionista, que desaguou na proclamação da República (1889), logo após a Abolição. (1888).
Em momentos decisivos da História republicana, a “política de conciliação” renasceu das cinzas. Por exemplo, na posse do presidente João Goulart, em 1961 — que os militares tentaram impedir —, quando foi adotado o parlamentarismo. O restabelecimento do presidencialismo, por meio de plebiscito, em 1963, trouxe de volta a radicalização política que resultou no golpe de 1964. De certa forma, o presidente José Sarney (MDB), para garantir a transição à democracia, praticou essa política. De igual maneira, com sinal trocado, os presidentes Fernando Henrique Cardoso(PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Luiz Carlos Azedo: Muitas tensões à vista
O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso foram amortecedores dos conflitos gerados pela mentalidade castrense e centralizadora que predomina no Palácio do Planalto
O ano de 2021 começa com sinais fortes de que será marcado por muitas tensões políticas e poucas entregas do governo Jair Bolsonaro. Dois episódios apontam nessa direção: um é a guerra das vacinas, na qual o governo federal, por meio de medida provisória, tentou requisitar vacinas, seringas e agulhas já adquiridas pelos estados para viabilizar a campanha nacional de vacinação; o outro, o jogo bruto do Palácio do Planalto para eleger os presidentes da Câmara e do Senado, com apoio ostensivo, a base de liberação de verbas e loteamento de cargos, ao deputado Arthur Lira (PP-AL), e ao senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), respectivamente. Vamos por partes:
A medida provisória que pongava vacinas, seringas e agulhas dos estados foi uma saída do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para resolver um problema criado por sua própria equipe: a não-aquisição dos insumos básicos para a campanha nacional da vacinação em tempo hábil e a aposta numa única vacina, a de Oxford, que será produzida pela Fiocruz. São tarefas que as equipes do Ministério da Saúde, em todos os governos, e todos os ministros que o antecederam, tiravam de letra, porque havia expertise de gestão no setor para vacinar até 10 milhões de pessoas por dia. Essas equipes foram desmanteladas e substituídas por militares arrogantes e inexperientes, a começar pelo secretário-executivo da pasta, aquele que anda com uma faca ensangüentada na lapela, o broche de ex-integrante de unidade de operações especiais do Exército.
O papel de Robin Hood ensaiado pelo general Pazuello — tirar dos estados com vacinas para dar aos sem vacinas — foi frustrado por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, que proibiu a requisição das vacinas, seringas e agulhas já adquiridas por alguns governos estaduais e prefeituras, entre os quais o de São Paulo. Por ironia, a vacina produzida pelo Instituto Butantan, em parceria com os chineses, a CoronaVac, que o presidente Jair Bolsonaro tentou desacreditar, acabou sendo comprada pelo Ministério da Saúde. São 100 milhões de doses que salvarão o governo federal do vexame de não ter como começar a vacinar imediatamente a população.
O episódio promete ter um final feliz, mas merece uma reflexão mais profunda sobre a natureza do governo Bolsonaro e a relação que pretende manter com os demais entes federados, a imprensa e a sociedade. Primeiro, adota os métodos da caserna em atividades civis, o que não tem chance de dar certo. Segundo, não compreende a natureza democrática do Estado brasileiro, regido pela Constituição de 1988, que é federativo e ampliado, ou seja, garante a independência dos demais poderes, a autonomia de estados e municípios, os direitos dos cidadãos e presta contas aos órgãos de controle e à sociedade. O Ministério da Saúde, muito mais do que o vértice, é o centro do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem uma gestão compartilhada horizontalmente com os demais entes federados e outros órgãos e autarquias, e não uma cadeia de comando vertical e militarizada, ou seja, trabalha na base da coordenação e cooperação. O ministro da Saúde precisa fazer a sua parte e liderar; se achar que manda em tudo, vira rainha da Inglaterra.
Congresso
Em maior ou menor grau, esse tipo de conflito se manifesta em todas as áreas e de todas as formas — inclusive nas Forças Armadas —, e tende a aumentar no decorrer desse ano, em razão das crises sanitária e econômica, além da generalizada baixa performance administrativa. Até agora, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso têm funcionado como amortecedores dos conflitos gerados pela mentalidade castrense e centralizadora que predomina no Palácio do Planalto. No ano passado, o Supremo foi fundamental para barrar os arroubos autoritários do presidente Bolsonaro; o Congresso foi decisivo para aprovação da reforma da Previdência, sem a qual o governo já teria se inviabilizado, e para as medidas emergenciais adotadas durante a pandemia, entre as quais o auxílio emergencial, do qual o presidente Bolsonaro foi o grande beneficiário político.
Entretanto, o Congresso também foi uma barreira à agenda regressiva nos costumes e às medidas que atropelavam ou abduziam prerrogativas de estados e municípios, ampliando a centralização administrativa, política e financeira da vida nacional por parte da União. Esse é o centro do embate em curso nas disputas pelo comando da Câmara e do Senado. No primeiro caso, o líder do PP, Arthur Lira (AL), apoiado abertamente pelo Palácio do Planalto, foi o grande artífice da reestruturação da base parlamentar do governo, qualificando-se como aliado principal de Bolsonaro por ter reunido votos suficientes para barrar qualquer proposta de impeachment do presidente da República.
Sua eleição pode garantir ao presidente Bolsonaro, com apoio do chamado Centrão, passar da defensiva à ofensiva, implementando propostas que visam aumentar o poder do Executivo em relação aos demais poderes, estados e municípios, além de restringir direitos das minorias, razão da unidade que se formou entre as forças de oposição — PT, PDT, PSB e Rede — e o bloco articulado por Rodrigo Maia (DEM-RJ) — MDB, DEM, PSDB, CIDADANIA, PV e PSL —, para eleger o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e garantir a independência da Câmara.
É uma disputa dura, que pode ser levada para o segundo turno devido a existência das candidaturas avulsas do deputado Fábio Ramalho (MDB-MG) e do Capitão Augusto (PL-SP), que trafegam no baixo clero e na antiga base ideológica de Bolsonaro, respectivamente. No Senado, a situação é esquizofrênica: Bolsonaro desprezou os líderes do governo na Casa, Fernando Bezerra (MDB-PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), para apoiar o candidato de Davi Alcolumbre, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que sempre dialogou com esquerda mineira. Com isso, porém, pode ter catapultado a candidatura do líder do MDB, Eduardo Braga (AM), também com amplo trânsito na oposição.
Luiz Carlos Azedo: A nova secessão americana
Trump obteve 74 milhões de votos, dos quais 86% supostamente seriam de eleitores que não acreditam na vitória de Joe Biden, que foi eleito por 81,3 milhões de norte-americanos
Exibidas em tempo real pelas redes de tevê, as cenas da invasão do Capitólio por partidários do presidente Donald Trump, que os incitou, ao alegar fraude nas eleições presidenciais e contestar a vitória do democrata Joe Biden — que seria confirmado na sessão do Congresso —, somente ainda não superaram a deterioração da política norte-americana nos anos 1960 e 1970 porque o presidente eleito continua vivo. Entretanto, ninguém pode descartar a possibilidade de Trump ter tramado um golpe de Estado, por mais inverossímil que isso possa parecer.
Na política norte-americana, é sinuosa a linha divisória entre ficção e realidade. Na trilogia Underwold USA (Submundo USA), o escritor noir James Elrroy, formada pelos romances Tabloide americano (1995), 6 mil em espécie (2001) e Sangue Errante (2011), todos publicados no Brasil pela Record, desnuda os bastidores da política da época. Um time de canalhas conta a história norte-americana, num épico com sinal trocado, em meio aos assassinatos de John Fitzgerald Kennedy, Robert Kennedy e Martin Luther King e o suspeito suicídio de Marilyn Monroe. O sonho americano é visto sob a mira de fuzis e pistolas de ex-policiais convertidos ao crime, membros da Ku Klux Klan, mafiosos e políticos corruptos. A trama se passa no período de crescente envolvimento na Guerra do Vietnã e maior turbulência dos movimentos da esquerda norte-americana, culminando com o impeachment de Richard Nixon.
Os heróis da trilogia são racistas e reacionários, todos brancos: o mafioso Wayne Tedrow Jr., capanga do empresário Howard Hughes; Dwight Holly, agente secreto da confiança de John Edgar Hoover, chefe do FBI; e o ex-policial Don Crutchfield, que presta serviços de detetive a qualquer causa desonrosa. Elrroy não separa ficção de realidade, porém, sua versão para a morte de Kennedy é bem melhor do que a de Oliver Stone, em seu filme JFK. Quem matou Kennedy? Para Ellroy, há um submundo povoado por mafiosos, agentes do FBI, dançarinas de strip-tease, fanáticos religiosos, direitistas raivosos e vigaristas que tramou o crime.
Em entrevista ao Los Angeles Times, disse: “A conspiração não é o coração do meu romance; o centro da história é uma espécie de infraestrutura humana dos grandes eventos públicos, especialmente nesses anos tumultuados da história norte-americana”. Sua trilogia é o fio da meada para entender de onde surgiu uma figura tão abjeta como a de Donald Trump e essa militância armada, truculenta e fanatizada, que, ontem, invadiu o Congresso norte-americano para impedir a confirmação de Joe Biden como legítimo presidente dos Estados Unidos. Foi tudo orquestrado e organizado pelas redes sociais, deixando perplexos não somente os democratas, mas, até mesmo, os parlamentares republicanos.
Maioria democrata
Mesmo depois de instado a se posicionar e pedir a saída dos seus militantes do Capitólio, pelo presidente Joe Biden, em pronunciamento, Trump manteve a narrativa de que ganhara a eleição e que seu adversário seria um presidente ilegítimo, porque as eleições foram fraudadas. Biden venceu no colégio eleitoral por ampla margem — 306 votos a 232 —, mas esse resultado precisa ser chancelado pelo Congresso. Republicanos aliados de Trump promoviam uma espécie de chicana na sessão, questionando o resultado das urnas, quando houve a invasão. O fato de ter questionado a postura legalista de seu vice, Mike Pence, que presidia a sessão, sinaliza que Trump teria a intenção de promover um golpe de estado.
Ontem, acompanhando os acontecimentos, o analista político Creomar de Souza, especialista em política norte-americana, destacou que não existe uma palavra em inglês para golpe de Estado, expressão cuja origem é francesa: coup d’état. Talvez porque não exista esse precedente na democracia norte-americana. Mas existe a palavra secession, que sintetiza a Guerra Civil Americana (1861-1865), na qual os estados sulistas se confederaram contra o presidente eleito Abraham Lincoln, liderados pela Carolina do Sul, antes mesmo que ele tomasse posse. A secessão da Carolina do Sul, em 1860, foi acompanhada pela adesão, entre janeiro e junho de 1861, de outros estados sulistas: Alabama, Flórida, Mississipi, Geórgia, Texas, Luisiana, Virgínia, Arkansas, Carolina do Norte e Tennesse.
Trump obteve 74 milhões de votos, dos quais 86% supostamente seriam de eleitores que não acreditam na vitória de Joe Biden, que foi eleito por 81,3 milhões de norte-americanos. É uma divisão muito profunda, da qual o republicano procura se aproveitar. O que não estava nas suas previsões, porém, é o inédito resultado das eleições para o Senado na Geórgia, que garantiu duas cadeiras para o Partido Democrata, uma delas ocupada por um reverendo negro; com isso, garantiu-se a maioria para Biden nas duas casas legislativas, uma vez que os democratas já controlavam a Câmara. Esse resultado inviabilizou qualquer possibilidade de Trump bloquear a confirmação de Biden no Senado e provocar uma crise institucional mais grave.
Luiz Carlos Azedo: O ano que não começou
No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó
2021 é uma espécie de ano que ainda não começou, perdoem-me o trocadilho com o título do livro de Zuenir Ventura, 1968: o ano que não terminou. Talvez, o sinal mais emblemático de que ainda estamos vivendo no ano passado sejam os passeios do presidente Jair Bolsonaro em Guarujá (SP), nos quais voltou a provocar aglomerações e circular sem máscaras com assessores e seguranças da Presidência. Mais déjà-vu, impossível. 2020 foi um ano perdido, com 196 mil mortos pela covid-19, e parece que não quer acabar.
Para a maioria da população, o ano somente vai começar quando a vacina chegar. O negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e suas declarações sobre a real necessidade de as pessoas se vacinarem são uma cortina de fumaça para a incompetência do seu governo no enfrentamento da crise sanitária. O aumento exponencial do número de casos no mês de dezembro é um recado claro de que é impossível restabelecer plenamente as atividades econômicas sem a imunização em massa da população. A chegada do vírus mutante da Inglaterra é uma preocupação a mais, pela velocidade de sua propagação.
O tempo, porém, não corre igual para todo mundo. Por exemplo, para alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) — Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello —, que resolveram voltar a trabalhar em janeiro, em pleno recesso, o ano começou mais cedo. No Congresso, o ano só começará com a eleição das Mesas da Câmara e do Senado.
Pega fogo a disputa entre o líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo presidente Bolsonaro, e Baleia Rossi (MDB-SP), o candidato de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à sua sucessão no comando da Câmara, que, ontem, recebeu o apoio formal da maioria da bancada do PT. Lira ainda é o favorito, mas ninguém ganha eleição de véspera. No Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) tenta emplacar o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) na Presidência, mas esbarra nas candidaturas do MDB, que tem quatro postulantes cabalando votos: Simone Tebet (MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ); Eduardo Braga (AM), líder da bancada; Fernando Bezerra (PE), líder do governo no Senado; e Eduardo Gomes (TO), líder do governo no Congresso. Quem conseguir mais apoio será o candidato de toda a bancada da legenda, pactuaram.
Entregas
No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó. Além da vacina, não entregou a reforma tributária, as privatizações, a reforma administrativa, a retomada do crescimento etc. Manteve sua popularidade em plena pandemia muito mais em razão do auxílio emergencial do que das suas realizações, à custa da expansão exponencial do deficit fiscal. Como tem a pretensão de se reeleger, agora começará uma corrida contra o relógio, porque o tempo que lhe resta de mandato cada vez será o recurso mais escasso no governo.
No calendário das entregas, a vacina é a principal demanda da população. Seu ano de entregas somente vai começar quando as pessoas forem imunizadas. Mesmo assim, uma parcela enorme da população continuará desempregada, porque a economia somente deve entrar em recuperação no segundo semestre. Sem auxílio emergencial, a vida não será fácil para quase 68 milhões de brasileiros que receberam o benefício no ano passado. Muitos terão que se reinventar, porque as atividades econômicas estão passando por muitas transformações.
Com a pandemia, o trabalho remoto e a concentração de capital avançaram bastante. A maioria das empresas que sobreviveram mudou suas operações, em maior ou menor grau, impactando outras atividades. Por exemplo, o mercado imobiliário e as companhias de aviação sofreram impactos irreversíveis a curto prazo. A concentração de capital também é visível a olho nu, basta entrar num shopping center e ver as lojas que fecharam e as que estão sendo abertas. As empresas de logística também se beneficiaram tremendamente do comércio eletrônico.
Como em todo ano-novo, porém, somos passageiros da esperança. Toda crise é sinônimo de oportunidades. Elas aparecem e é preciso agarrá-las com as duas mãos. Ciência e tecnologia, ao longo da história, sempre abriram novos horizontes para a humanidade. Não será diferente agora. Que 2021 venha logo para todos.
Luiz Carlos Azedo: No fio do bigode
Há meses, Lira vem negociando individualmente com as bancadas de oposição; além de verbas e cargos, oferece para cada grupo de interesse uma pauta específica
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou, ontem, o nome do candidato do seu bloco político ao comando da Casa, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), o jovem presidente do maior partido do país e líder de sua bancada federal, com 34 deputados. Rossi conseguiu reverter as resistências da maioria dos deputados do bloco de esquerda, o que levou o deputado Aguinaldo Ribeiro (PB), um dissidente do PP, a desistir de disputar a indicação no grupo de Maia. Formalmente, juntos, os dois blocos somam 282 deputados, número mais do que suficiente para ganhar a disputa com o candidato governista, Arthur Lira (PP-AL), mas isso é apenas uma projeção otimista. A disputa será no corpo a corpo, voto a voto.
É aí que entra a história do bigode. Quando houve a fusão dos antigos esta dos do Rio de Janeiro e Guanabara, em 1975, o brigadeiro Faria Lima, interventor federal, fez um acordo com o ex-governador Chagas Freitas, cacique do MDB da antiga Guanabara, para que fosse possível formar uma maioria que aprovasse a Constituição do novo estado. Para chegar ao acordo, teve que atropelar a líder do governo, deputada Sandra Cavalcanti (Arena), e entregar a relatoria da nova Constituição a um deputado “chaguista”, José Maria Duarte (MDB). Originário do antigo PSP, Chagas era um político populista, dono dos jornais O Dia e A Notícia.
Duarte era amigo do lendário distribuidor de cinema Luiz Severiano Ribeiro, que o chamava para ver os filmes antes da estreia e sugerir a tradução dos títulos, que muitas vezes não tinha nada a ver com o nome original, como em “A morte não manda recado” (The Ballad of Cable Hogue), “Os brutos também amam” (Shane), clássicos do faroeste norte-americano, ou “Django não perdoa…mata” (L’Uomo, L’Orgloglio, La vendetta), o western italiano inspirado na ópera Carmem, de George Bisset. Frasista de primeira, chamava o anteprojeto de Constituição de “boneca” e mantinha segredo absoluto sobre os acordos envolvendo o interventor Faria Lima, Chagas Freitas e o senador Amaral Peixoto (MDB), velho cacique pessedista, que era o líder da oposição no antigo Estado do Rio.
Nessa época, o time de jornalistas que fazia a cobertura da Constituinte da fusão era de primeira linha: Mauricio Dias, Marcelo Pontes, André Luiz Azevedo, Rogério Coelho Neto, Carlos Vinhais e Dácio Malta, entre outros. Mesmo assim, a crise no dispositivo parlamentar do interventor era mantida em sigilo, até que Sandra Cavalcanti resolveu chutar o balde. Nessa época, o antigo Diário de Notícias ainda era o jornal dos professores e dos militares. Graças a isso, fui escolhido por Sandra Cavalcanti para uma entrevista exclusiva, na qual denunciou o acordo e renunciou à liderança, em caráter irrevogável. Foi então que resolvi perguntar ao líder do MDB, Cláudio Moacir, deputado eleito por Macaé, homem ligado a Amaral Peixoto, se a oposição pretendia formar a nova base do governo. Em off, para minha surpresa, respondeu: “Não, nós vamos ficar como bigode: na boca, mas do lado de fora”.
Traições
Esse é o problema de Baleia Rossi. O Palácio do Planalto está jogando muito pesado para eleger Arthur Lira, o principal líder do Centrão, que articulou a nova base governista na Câmara e sempre teve o apoio dos deputados do baixo clero. Tece sua candidatura com a promessa de liberação de verbas e cargos no governo, acenando com uma reforma ministerial que estaria prevista para o começo do próximo ano. Arthur Lira anunciou sua candidatura com apoio dos 135 deputados do Centrão — PL (41), PP (40), PSD (33), Solidariedade (13) e Avante (8). De imediato, recebeu apoio do PL (41), do PTB (11), do Pros (10), do PSC (9) e do Patriota (6), ou seja, teoricamente, de mais 77 deputados. Tenta montar uma espécie de rolo compressor, já integrado por 212 deputados, que avança nos bastidores para seduzir os deputados de oposição.
O grupo de Maia soma 158 deputados, dos seguintes partidos: DEM (28), MDB (34), PSDB (31), PSL (53), Cidadania (8) e PV (4). O PT, com 54 deputados, lidera a oposição, que soma 124 deputados, com as bancadas do PSB (31), do PDT (28), do PSol (10) e da Rede (1). Esse acordo de bancada precisa ser confirmado por cada deputado, que negocia no fio do bigode; porém, como o voto é secreto, a palavra empenhada não pode ser cobrada depois. Como dizia Tancredo Neves, a vontade de trair é muito grande na cabine de votação.
Ninguém sabe o que vai, de fato, acontecer. Lira vem negociando individualmente há meses, inclusive com as bancadas de oposição, com uma agenda que não pode ser subestimada, porque além de verbas e cargos, oferece pra cada grupo de interesse uma pauta específica. Aos evangélicos, promete levar adiante a agenda dos costumes; aos ruralistas, desmontar a legislação ambiental; aos sindicalistas, a volta do imposto sindical; aos enrolados na Lava-Jato, blindagem contra o Ministério Público Federal (MPF) e a flexibilização da contagem do tempo de ilegibilidade da Lei da Ficha Limpa, na linha da liminar do novo ministro do Supremo Tribunal federal (STF) Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro. Muitos estão comprometidos com Lira.
Em tempo, feliz Natal!
Luiz Carlos Azedo: Cidade Maravilhosa
E não é que, ontem à tarde, já havia virado meme, nas redes sociais, uma marchinha sobre a prisão do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos)
Refrão: “Cidade maravilhosa,/ Cheia de encantos mil!/ Cidade maravilhosa,/ Coração do meu Brasil! (Bis)”. Primeira parte: “Berço do samba e das lindas can- ções/ Que vivem n’alma da gente,/ És o altar dos nossos corações/ Que cantam alegremente”. Segunda parte: “Jardim florido de amor e saudade,/ Terra que a todos seduz, /Que Deus te cubra de feli- cidade, /Ninho de sonho e de luz”. O velho Sérgio Cabral, pai, foi quem me chamou a atenção para o fato de que o famoso hino carioca Cidade Maravilhosa, de autoria de André Filho, começa como se a orquestra fosse tocar uma sinfonia e logo vira marchinha de carnaval.
Coube ao maranhense Coelho Neto — que hoje empresta o nome a um dos subúrbios cariocas da antiga Central do Brasil —, cunhar a expressão “cidade maravilhosa”, num artigo publicado no jornal A Notícia, em 1908. Mais tarde, em 1928, publicaria um livro de contos com esse título. Era época em que a antiga capital da República fervilhava, em todos os sentidos, aspirando à condição de Paris dos trópicos, ambição criada após a reforma urbana do prefeito Pereira Passos, no começo do século. O jornalista Ruy Castro relata essa época no livro Metrópole à beira mar (Companhia das Letras).
A marchinha surgiu logo depois, em 1934, mas somente fez sucesso no carnaval do ano seguinte. A primeira parte da música é realmente sinfônica, plagiada de Mimi é una civetta, o terceiro ato da ópera La Bohème, de Puccini. André Filho era amigo de Noel Rosa, com quem divide a autoria do samba “Filosofia”, gravado por Mário Reis, em 1933. A amizade entre ambos, porém, gerou controvérsias sobre a autoria do hino carioca, que alguns atribuem ao poeta de Vila Isabel, como registrou Jacy Pacheco, em Noel Rosa e sua época: “Aqui nos lembramos de composições que ele deu e que vendeu. Que foram divulgadas com outros nomes… dentro da cidade maravilhosa, cheia de encantos mil…” Pode ser pura maldade.
André Filho morou na casa da mãe do músico Oscar Bolão entre o final dos anos 1950 até início dos 1960. Como sofria de problemas psiquiátricos, acabou internado no hospital da Ordem do Carmo. Ali, quando soube, tempos depois, por meio de um repórter do Diário da Noite, que “Cidade maravilhosa” tinha sido reconhecida como marcha oficial da cidade do Rio de Janeiro — por meio da Lei no5, de5 de maio de 1960—, segundo Bolão, enfiou a cabeça dentro do vaso sanitário e, dando descarga, gritava: “Tô rico, tô rico”. Multiinstrumentista (piano, violão, bandolim, violino, banjo, percussão), compositor, cantor e radialista, ficou órfão muito cedo, sendo, por isso, criado pela avó. Começou a estudar música erudita aos 8 anos, com Pascoale Gambardella, e formou-se em ciências e letras no Colégio Salesiano de Niterói, RJ, onde foi colega de Henrique Foréis Domingues, o radialista Almirante.
Sísifo
Cronista esportivo e historiador do samba, o velho Cabral dizia que Cidade Maravilhosa era uma síntese da alma do Rio de Janeiro: “Tudo vira marchinha de carnaval”. E não é que, ontem à tarde, já havia virado meme, nas redes sociais, uma marchinha sobre a prisão do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). Intitulada “Bispo no xadrez”, a marchinha é muito cruel: “Crivella, Crivella/ Pode entrar / Já abençoamos a sua cela”, diz o refrão. E segue adiante: “É essa aqui que escolhemos pro senhor/ Fica ao lado da do governador/ Tem um palquinho pra fazer os seus sermões/ Os carcereiros são seus novos guardiões (…)”. É mais uma música de carnaval que vai para o acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS), criado por Almirante. A verdadeira história dos cariocas é contada pelo samba e pelas marchinhas de carnaval. Está registrada no acervo do MIS, com cerca de 305 mil documentos, entre discos, partituras, fotos, cartas, textos e vídeos.
Voltando ao prefeito Crivella, havia sérias dúvidas sobre a necessidade de sua prisão, a 10 dias de passar o cargo para o prefeito eleito, Eduardo Paes (DEM). Era preciso comprovar que estava obstruindo a Justiça e tentando eliminar provas. Horas depois, o Superior Tribunal de Justiça acabou por revogar a detenção preventiva, mandando-o para a prisão domiciliar.
A prisão do prefeito carioca abre um novo ciclo de investigações criminais no Rio de Janeiro, envolvendo o partido Republicanos e a Igreja Universal do Reino de Deus. A prisão de Crivella deve ter deixado o presidente Jair Bolsonaro bastante cabreiro, devido às investigações que envolvem seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), e o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), muito próximos de Crivella, também no âmbito do Ministério Público e da Justiça fluminenses. A postagem bolada de Bolsonaro no Twitter, ontem à tarde, alusiva à Síndrome de Sísifo, tem tudo a ver com a cidade maravilhosa.