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Cenário internacional: O Brasil, a OCDE e o meio ambiente
Correções e ajustes serão necessários para preencher os requisitos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
Rubens Barbosa / O Estado de S. Paulo
Desde que, em 2017, o Brasil pediu para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o cenário internacional transformou-se de forma acentuada. A mudança do clima passou a ser vista como elemento importante para a política macroeconômica. Bancos centrais, reguladores e ministérios de finanças discutem estabilidade macroeconômica, regulação financeira e sustentabilidade fiscal relacionadas aos riscos climáticos. Organizações políticas multilaterais, como o G-7 e o G-20 passaram a incluir meio ambiente e mudança de clima entre suas prioridades e a União Europeia e os Estados Unidos põem esses temas no centro de reformas econômicas voltadas para o crescimento e a recuperação dos prejuízos causados pela pandemia.
No seu relatório anual, a OCDE faz uma avaliação ampla de reformas para promover o crescimento em longo prazo nos 37 países-membros e alguns emergentes, incluído o Brasil. No tocante ao meio ambiente, a estimativa é de que mais de três quartos da população brasileira está exposta a níveis nocivos de poluição do ar, semelhante ao risco de boa parte dos países examinados. A constatação é de que as emissões de gás carbônico ficaram estáveis em anos recentes antes da crise sanitária. Ao lado do exame da política econômica e social, o relatório inclui a “nova prioridade”, envolvendo a política ambiental para o Brasil preservar os recursos naturais e acabar com o desmatamento, reforçando o apelo global. No documento a OCDE mostra a necessidade de reforçar a proteção efetiva dos recursos naturais, incluindo os da floresta tropical amazônica. Defende a manutenção das leis atuais e de proteções capazes de reduzir o desmatamento no passado, combinadas com mais fiscalização para combater o desmatamento ilegal, o que exigirá recursos adicionais. A OCDE recomenda ao governo brasileiro “evitar um enfraquecimento do atual quadro de proteção legal, incluindo as áreas protegidas, o Código Florestal e concentrar-se no uso sustentável do potencial econômico da Amazônia”. Em outro levantamento comparativo, a OCDE indica que medidas adotadas pelo governo brasileiro para ajudar a economia a passar pela crise da covid-19 subiram a US$ 105 bilhões, mas apenas uma fração desse montante, US$ 351 milhões, ou 0,3%, teve efeito claramente positivo para o meio ambiente. Por outro lado, o governo brasileiro ainda não respondeu ao convite da OCDE para participar do Programa Internacional de Ação sobre o Clima, visando a acelerar a ação dos países na descarbonização de suas economias.
Como explica Vera Thorstensen, coordenadora do Centro de Estudos do Comércio Global e Investimento, “a maioria de suas regras é negociada pelos seus membros como recomendações e orientações não obrigatórias. A OCDE exerce sua função por meio de exames contínuos das práticas de seus membros, realizados pelo seu Secretariado, e um sofisticado processo de comparação entre os participantes, por meio de instrumentos de análise e uma métrica de avaliação sofisticada. O resultado é a apresentação dos mais diversos pontos das atividades econômicas dos membros, comparando-os e estimulando-os a cumprir as regras, sob pressão política de seus pares”. No processo de acesso do Brasil à OCDE, o País passará pelo crivo de seus membros, com base nos indicadores verdes da organização, quais sejam, os de sustentabilidade, os de crescimento verde e os de meio ambiente.
É importante entender como funciona o mecanismo de trabalho da OCDE. Como reiteradamente afirmado pelo governo atual, “a entrada do Brasil na OCDE é uma prioridade da política externa e da estratégia de aprimoramento das políticas públicas nacionais e de maior integração do País à economia mundial”. Para alcançar esse objetivo será necessário não só participar ativamente de seus trabalhos técnicos na área econômica, financeira e comercial, mas também levar em conta outras áreas importantes para os países-membros, incluída a ambiental e de mudança de clima. Os indicadores verdes e as recomendações feitas pela organização devem ser acompanhados pelo governo e pela sociedade civil para que o Brasil esteja em conformidade com as regras e possa ser aceito por todos os países-membros.
Não basta participar dos 246 instrumentos legais existentes no âmbito da OCDE. Correções e ajustes na política ambiental serão necessários para preencher os requisitos exigidos pela organização de Paris e serem avaliados positivamente pelos demais países. O combate aos ilícitos na Amazônia (queimadas, destruição da floresta e garimpo) são medidas que só dependem da vontade política do governo.
Se o desafio da mudança de clima não fosse suficiente, em dezembro passado a OCDE passou a monitorar também a corrupção no Brasil. Pela primeira vez em 27 anos de atividades, o Grupo Anticorrupção da OCDE criou um grupo específico, integrado por EUA, Itália e Noruega, para acompanhar o que acontece no Brasil nesse campo. A criação desse grupo coincide sintomaticamente com o esvaziamento da Lava Jato, o que deverá ser objeto de questionamento dos países-membros na próxima reunião do grupo.
*Presidente do IRICE
Com Bolsonaro, país aumenta risco de ficar fora de negociações da política externa
Avaliação é do professor no Insper Leandro Consentino, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de abril
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O Brasil corre o risco de ficar de fora das principais mesas de negociações por conta da política externa do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), isolando-se da futura governança global. O alerta é do doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) Leandro Consentino, professor no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).
Estados devem reconstruir os organismos internacionais quando a pandemia da Covid-19 tiver fim, segundo Consentino. Ele publicou artigo de sua autoria na revista Política Democrática Online de abril, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. O acesso é gratuito no portal da entidade.
Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021
Bacharel em Relações Internacionais e também professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, o analista de política externa diz que o país interrompeu um "círculo virtuoso” com o mundo após a vitória de Bolsonaro, em outubro de 2018.
Além disso, segundo artigo de Consentino na revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), a situação piorou ainda mais com a subsequente nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de ministro de Relações Exteriores.
“Com uma visão que preconizava completo alinhamento com os Estados Unidos, à época governados por Donald Trump, e outros países governados por populistas conservadores, a política externa brasileira esposou a antítese do paradigma de Azeredo da Silveira, pautando-se por um ideologismo irresponsável”, analisa o autor do artigo na revista mensal da FAP.
Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online
“Governo de turno”
De maneira cada vez mais alheia aos anseios brasileiros, segundo Consentino, “o governo de turno prefere privilegiar suas convicções políticas e ideológicas em detrimento do interesse nacional”.
Assim, conforme acrescenta, o governo coloca em risco os esforços de política externa, conquistados nas últimas décadas e prejudicando a economia e a sociedade brasileira em um momento tão grave como o atual.
“Foi dessa forma que ficamos para trás na corrida pelas vacinas e que tivemos os insumos atrasados por algumas semanas, perdendo centenas de vidas pelo caminho”, lamenta o professor no Insper.
Isolamento
Dessa forma, destaca o autor do artigo na revista da FAP, quando a pandemia tiver fim e os Estados decidirem a reconstrução de organismos internacionais pautados na questão sanitária e na recuperação da economia, o Brasil pode não ser convidado às principais mesas de negociações, isolando-se da futura governança global. “Eis o risco que ora enfrentamos e que precisamos evitar a todo custo”, afirma.
A íntegra da análise de Consentino pode ser vista na versão flip da revista Política Democrática Online de abril. A publicação também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigos de política nacional, política externa, cultura, entre outros, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.
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Fonte:
RPD || Leandro Consentino: O ideologismo irresponsável
Brasil corre o risco de ficar de fora das principais mesas de negociações por conta da política externa do Governo Bolsonaro, isolando-se da futura governança global. Estados devem reconstruir os organismos internacionais quando a pandemia tiver fim
O breve governo de Jânio Quadros, inaugurado e concluído em 1961, não costuma trazer grandes lembranças sobre suas iniciativas políticas internas para além das folclóricas proibições do uso de biquinis, lança-perfumes e rinhas de galos. No flanco externo, contudo, o legado é evidente, com a emergência da chamada Política Externa Independente.
Buscando diversificar os contatos externos e não se alinhar a nenhum dos dois lados da Guerra Fria, evitando a bipolaridade reinante por meio de princípios como a não-intervenção e a auto-determinação dos povos, o novo paradigma de política externa brasileira foi conduzido brilhantemente por nomes como Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas, durante os governos de Quadros e de seu vice, João Goulart.
Com a ruptura democrática e a ascensão do Regime Militar, a Política Externa Independente foi brevemente substituída por um alinhamento automático aos Estados Unidos e, consequentemente, ao bloco capitalista. O interesse nacional acabou, então, subordinado ao interesse norte-americano, o que ficou patente pelas palavras do então embaixador brasileiro em Washington, Juraci Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.
O alinhamento, contudo, não durou muito tempo e, na década seguinte, esta postura subserviente cedeu espaço, paulatinamente, para uma espécie de reedição da Política Externa Independente, cujo ápice ocorreria em pleno governo do general Ernesto Geisel. Sob a batuta do então chanceler Antônio Francisco Azeredo da Silveira, o novo modelo foi batizado de Pragmatismo Ecumênico e Responsável, apontando exatamente para uma política exterior pautada em uma postura realista e pouco afeita a constrangimentos de natureza ideológica, sobretudo no que diz respeito às negociações econômicas e comerciais.
O pragmatismo responsável, como ficou mais conhecido, orientava-se pelo significado semântico de seu título e buscava assegurar, sem maiores preocupações com a orientação política dos governos com quem travava acordos, a primazia de nosso interesse, sobretudo em um ambiente internacional desfavorável, atingido pela escalada da Guerra Fria e pelo primeiro choque do petróleo. Os resultados não tardaram e aprofundaram nossos laços com regiões e países bastante diversos, com especial destaque para a África, o Leste Europeu e o Oriente Médio, além de nos garantir importante participação e até protagonismo em organismos internacionais.
Com o fim do governo Geisel e posteriormente do próprio regime ditatorial, o advento da Nova República não abandonou tais princípios universalistas e legitimou, ao longo dos sucessivos governos democráticos, a inserção do país nos regimes internacionais, sempre pautado pela autonomia quanto às superpotências, em especial os Estados Unidos da América.
Não obstante seus diversos problemas internos, o Brasil logrou posição de destaque na esfera multilateral, principalmente marcada pela continuidade de sua política externa, independente da disputa entre as forças políticas. As conquistas consolidadas por um governo – seja na esfera econômica, comercial, ambiental ou de direitos humanos - alicerçariam as bases para as conquistas posteriores, ainda que o presidente seguinte fosse de oposição ao anterior.
Este círculo virtuoso foi bruscamente interrompido com a vitória de Jair Messias Bolsonaro, em outubro de 2018, e a subsequente nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de Ministro das Relações Exteriores. Com uma visão que preconizava completo alinhamento com os Estados Unidos, à época governados por Donald Trump, e outros países governados por populistas conservadores, a política externa brasileira esposou a antítese do paradigma de Azeredo da Silveira, pautando-se por um ideologismo irresponsável.
De maneira cada vez mais alheia aos anseios brasileiros, o governo de turno prefere privilegiar suas convicções políticas e ideológicas em detrimento do interesse nacional, colocando em risco os esforços de política externa, conquistados nas últimas décadas e prejudicando a economia e a sociedade brasileira em um momento tão grave como o atual. Foi dessa forma que ficamos para trás na corrida pelas vacinas e que tivemos os insumos atrasados por algumas semanas, perdendo centenas de vidas pelo caminho.
Assim sendo, quando a pandemia tiver fim e os Estados decidirem a reconstrução de organismos internacionais pautados na questão sanitária e na recuperação da economia, o Brasil pode não ser convidado às principais mesas de negociações, isolando-se da futura governança global. Eis o risco que ora enfrentamos e que precisamos evitar a todo custo.
Como disse o próprio Azeredo da Silveira: “a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se”. Ainda que sem grandes esperanças para o curto prazo, esperemos que essa renovação venha em breve, retirando a viseira ideológica que nos tolda a visão para buscar os reais interesses de nosso país.
* Leandro Consetino é bacharel em Relações Internacionais, Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor no Insper e na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || Guilherme Casarões: Ser ou não ser um pária mundial?
Isolamento do Brasil sob o governo Bolsonaro não tem precedentes em nossa história. Congresso Nacional e oposição devem se unir para adensar interação com governos e parlamentos estrangeiros, avalia Casarões
O Brasil está por um triz de se transformar em pária internacional. A crise econômica se arrasta há uma década, agravada pela conjuntura mundial. Desmatamento descontrolado e incêndios ilegais colocam o país nas manchetes de todo o planeta. Violência policial, violação de direitos indígenas e assassinatos políticos causam revolta nacional e arranham a já frágil imagem de nossa democracia. Nos altos círculos da diplomacia ocidental, discute-se seriamente a hipótese de isolar política e economicamente o governo brasileiro, cujo presidente, cercado de militares, é visto como prejudicial às boas relações do Brasil com o mundo.
O ano é 1989, mas poderia ser uma boa descrição do que vivemos hoje. Na superfície, a semelhança entre os dois momentos neste intervalo de três décadas é expressiva. Mas há uma diferença fundamental: ao contrário de José Sarney, enfraquecido, prestes a sair da presidência e com pouco controle sobre o que restou da imagem internacional do Brasil, Jair Bolsonaro quer marginalizar o Brasil como parte de seu projeto pessoal de poder.
Nos últimos dois anos, Bolsonaro construiu relações personalistas (e fugazes) com lideranças de extrema direita, hostilizou sócios de longa data, como Argentina, China e França, e abandonou virtualmente todos os tabuleiros multilaterais nos quais o Brasil se firmara como liderança. Tudo isso com a chocante complacência de seu ministro de Relações Exteriores, que ficará para a história como o diplomata que, pela inédita subserviência e obtusidade ideológica, desmoralizou a diplomacia nacional.
Não surpreende, portanto, que as perspectivas da política externa para 2021 não sejam exatamente alvissareiras. Se depender somente do governo atual, a tendência é agravar o isolamento brasileiro sem qualquer precedente em nossa história bicentenária. O país que se orgulhava da ação internacional pragmática e universalista, sem descurar os princípios pacifistas e multilaterais que marcaram a era republicana, fechou o trágico ano de 2020 causando temor, apreensão e até certo deboche ao redor do mundo.
Ainda que não seja tarefa fácil, creio que o Brasil possa virar o jogo. Antes de tudo, é necessário romper o “bunker” ideológico-olavista que se enraizou no governo. Se Bolsonaro tiver juízo – o mesmo que o levou a reconhecer, embora muito tardiamente, a vitória de Joe Biden – ele precisa substituir, com urgência, os dois maiores porta-vozes da péssima reputação brasileira no exterior, Ernesto Araújo e Ricardo Salles. Afeitos a teorias conspiratórias e inimigos dos consensos científicos e da boa diplomacia, ambos se transformaram em vozes radicalizadas que, ao açularem a militância bolsonarista mais aguerrida, são vistas como reais ameaças à cooperação multilateral.
A demissão de Araújo e Salles é simbólica, mas paliativa. O maior entrave à melhoria da imagem do país é o próprio presidente. Mesmo adotando tom mais moderado, Bolsonaro dificilmente abandonará pautas que lhe são caras politicamente, como a negação da vacina, o Foro de São Paulo ou o nióbio amazônico. Por isso mesmo, uma guinada na política externa dependerá de pressão constante sobre o governo por parte de pelo menos dois atores: o parlamento e os entes subnacionais. Nenhum deles conseguirá agir sozinho, mas poderão, juntos, criar uma espécie de diplomacia paralela que permita que o Brasil sobreviva ao governo de turno.
Outrora reativo em temas internacionais, o Congresso Nacional precisa criar e adensar canais de interação com governos e parlamentos estrangeiros. Forças de oposição devem trabalhar para reocupar espaços nas Comissões de Relações Exteriores das casas e construir, sempre que possível, uma agenda positiva em campos abandonados pelo bolsonarismo, como cooperação técnica, integração regional, direitos humanos e meio ambiente.
Durante a pandemia (e graças a ela), governadores e prefeitos conquistaram certa independência para desenvolver laços de cooperação científica, ajuda sanitária e aquisição de insumos. Diante do cenário de acirrada disputa política, cujo objetivo último é viabilizar nomes de oposição ao presidente em 2022, é possível que alguns desses atores movimentem-se no sentido de ampliar ainda mais os espaços de atuação subnacional em política externa, com importantes implicações para o futuro das relações internacionais do país.
Nada disso se concretizará sem o apoio de setores da sociedade brasileira. Industriais, ruralistas, cientistas, acadêmicos, ativistas, entre outros, reconhecendo a emergente correlação de forças na inserção internacional do Brasil, deverão trabalhar lado a lado com parlamentares e outros agentes políticos para resgatar nossa reputação no exterior. A despeito dos esforços do atual governo para fazer do Brasil um pária, o isolamento e o ostracismo certamente não expressam a vontade de maioria da população.
*Cientista político e professor da FGV EAESP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Michigan (2019-2020).
Merval Pereira: Ser pária
O resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos pode ser fundamental para o resto do mundo, mas especialmente para países como o nosso, governado por extremistas de direita que sentem-se protegidos pela “relação carnal” com a administração Trump.
O presidente Bolsonaro ainda tem em mente a ideia de uma China comunista que quer dominar o mundo. Realmente, ela quer, como todo potência, mas com armas capitalistas, investimentos e produção, o que faz parte do jogo do capitalismo internacional. O Brasil tem que se aproveitar da sua importância geopolítica para tirar vantagens dos EUA, da China e da Europa, e não ficar entregue aos EUA, fazendo a política de Trump, que até agora não nos deu nada em vantagem.
Se Joe Biden vencer a eleição americana, vai ficar difícil dar continuidade à política externa brasileira, porque o governo democrata vai exigir contrapartidas importantes do Brasil, especialmente na política ambiental. Com essa briga com a China, corremos o risco de virarmos párias mundiais, sem aliados, se EUA e Europa se unirem e voltarem a nos pressionar na questão do meio ambiente, o que é provável com a vitória de Joe Biden.
O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, um dos pilares da visão extemporânea de mundo que rege esse governo, anunciou ontem aos formandos do Instituto Rio Branco que o Brasil está disposto a ser um ‘pária internacional’ se for pela defesa da ‘liberdade’.
Segundo ele, na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano, os presidentes Bolsonaro e Trump “foram praticamente os únicos a falar em liberdade”. Para Ernesto Araújo, a ONU “foi fundada no princípio da liberdade, mas a esqueceu”. Ele acredita que o Brasil é o porta-voz da liberdade pelo mundo, e “se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.
Para Araújo, “talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos”. Globalismo é como os direitistas mais radicais chamam a globalização, e o “banquete” seriam os organismos internacionais como a ONU ou a Organização Mundial da Saúde (OMS) que representam a ideia de um mundo multipolarizado, mas que a direita internacional critica por, nessa visão, serem controlados por uma orientação esquerdizante do mundo, que quereriam impor a todos os países.
Os organismos internacionais, comandados por pessoas que não foram eleitas, querem impor ao mundo uma visão unificada, impedindo que as nações exerçam sua soberania. Como já disse o chanceler Ernesto Araújo, o globalismo seria “a configuração atual do marxismo”.
Mesmo com essa visão estereotipada das relações internacionais, o Brasil não tem se esquivado de se aliar a ditaduras, mesmo a chinesa, para defender seus pontos de vista sobre direitos humanos no Conselho da ONU, alterando fundamentalmente a posição tradicional brasileira a respeito do tema.
Em junho, apoiou uma resolução proposta por China, Cuba, Venezuela, Irã e Síria, que acabou aprovada, reduzindo o âmbito de atuação do Conselho dos Direitos Humanos, transformando-o em um lugar de debate de cooperação, e não de monitoramento de violações dos direitos humanos no mundo.
Juntamente com essas ditaduras, o Brasil tem recebido muitas críticas com respeito à violação dos direitos humanos, sobretudo de indígenas e minorias. O Brasil também se aliou a governos autoritários como Arábia Saudita , Paquistão, Egito e Iraque sobre direitos sexuais das mulheres, propondo, entre outras coisas, retirar o tema “educação sexual” das prioridades da ONU.
Nos documentos brasileiros, não há mais referências a temas como tortura, gênero, LGBT, desigualdade, e, juntamente com a Arábia Saudita, defende o fortalecimento da família com “pai e mãe”. Os crimes do ditador Duterte, das Filipinas, cometidos na guerra às drogas, não tiveram o voto do Brasil para uma investigação. Já somos, portanto, párias em diversos setores da sociedade internacional, e não acompanhamos mais os países progressistas da Europa ou mesmo da América Latina.