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Francisco e o trabalho escravo: 'A esquerda deve tratar desses horizontes'

REVISTA IHU ON-LINE

Mario Tronti, um dos últimos intelectuais da esquerda italiana, desde sempre um espírito crítico, mas não destrutivo do universo político, lê assim a carta de Francisco: “Ele é o Papa dos últimos e devemos agradecer pelo seu apelo, mas quem o ouvirá? Eu sou cético porque sobre temas de trabalho se repetem muitas vezes as palavras rituais. A começar pela esquerda, que deveria tratar desses temas: não digo que não fale nada sobre isso, mas certamente não coloca a questão do trabalho no centro da sua atenção e da sua política”.

Nascido em 1931, ex-professor de Filosofia Política, um dos principais teóricos do marxismo operário, na esquerda Mario Tronti é um dos interlocutores naturais de um Papa como Francisco.

A entrevista com Mario Tronti é de Fabio Martini, publicada por La Stampa, 13-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

O Papa usou uma expressão forte que corre o risco de se dissipar na tagarelice cotidiana das mídias: escravidão, também em referência à indústria cultural. Parece-lhe adequada ou excessiva?
Ainda é impressionante ler sobre trabalhadores, na sua maioria imigrantes, que ganham 3 euros por hora, ficando 10 horas sob o sol. Sim, são formas de escravidão. Infelizmente, falar de trabalho escravo faz sentido nesta sociedade que em muitos aspectos é livre apenas na aparência.

Maggiani e o Papa refletem sobre o tema: vale a pena produzir beleza, isto é cultura, graças aos escravos?
Antigamente havia a cultura do trabalho, que atravessava os partidos da esquerda comunista e socialista, e os intelectuais trabalhavam em contato com o mundo do trabalho: hoje essa cultura não existe mais. É por isso que falta sensibilidade em relação a esses temas.

Francisco argumenta: “A caneta e o computador nos oferecem outra possibilidade: a de denunciar, de escrever até coisas incômodas para estimular as consciências”. Por que os holofotes se acendem intermitentemente sobre esses temas?
Estou impressionado com a sequência de mortes no trabalho que ocorrem diariamente e que se intensificam. Estamos diante de um dos fenômenos mais trágicos de nosso tempo. Um problema muito sério que deve ser colocado na ordem do dia. Vejo que o governo prometeu tratar mais a respeito e mesmo que o problema venha de longe, nunca se torna uma questão estratégica.

O Papa diz o que deveria dizer uma esquerda digna desse nome?
Francisco vem de lugares distantes do centro da civilização ocidental, depois de ter amadurecido em seu país de origem uma sensibilidade social que trouxe para Roma, no centro da Igreja, e representa uma grande oportunidade para todos.

Certas declarações do Papa parecem quase da esquerda revolucionária: não deveria bastar uma esquerda rigorosamente reformista?
esquerda? Eu diria de forma mais geral, toda a classe política fala sobre muitos problemas, nunca sobre o tema do trabalho. Muita gente morre ou se cansa demais e é até explorada: a esquerda deveria recomeçar a partir da defesa do trabalho, como tarefa central e não como uma de tantas, que certamente não devem ser esquecidas.

O partido que representa a esquerda está no governo ...
Certamente, o Ministro do Trabalho deveria lançar um grito mais alto e tomar as providências necessárias. O governo tem muitas coisas a fazer, mas nesse campo se pode tomar as iniciativas que forem necessárias. A começar por uma maior presença de fiscais do trabalho nas zonas de exploração selvagem.

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Fonte: IHU Online
http://www.ihu.unisinos.br/612031-francisco-e-o-trabalho-escravo-agradeco-ao-santo-padre-a-esquerda-deve-tratar-desses-horizontes-cruciais-entrevista-com-mario-tronti

*Título do texto original foi alterado para publicação no portal da FAP


Pablo Ortellado: Guerras culturais

Declaração do papa a favor da união civil homossexual não altera engajamento da igreja nas guerras culturais

Causou controvérsia a declaração do papa Francisco a favor da união civil homossexual no documentário "Francesco", que estreou no último dia 21 de outubro na Itália.

Apesar do impacto, a declaração não era nova nem inédita. O papa já tinha dado declarações anteriores em defesa da união civil homossexual e tinha publicamente apoiado uma lei de união civil quando era arcebispo de Buenos Aires.

O posicionamento a favor da união civil na Argentina, porém, era uma tentativa de impedir medida mais ampla, a extensão do direito de casamento, que terminou aprovada no país em 2010.

Já como papa, em 2013, Francisco deu uma declaração demonstrando respeito aos homossexuais no voo de volta de sua viagem ao Rio de Janeiro: "Quem sou eu para julgar?".

A declaração que está no documentário ("O que temos que ter é uma lei de convivência civil. Dessa forma, eles [homossexuais] são legalmente cobertos") foi extraída de entrevista à TV mexicana Televisa, em 2019.

O fato de o trecho não ter ido ao ar em 2019 pode indicar dificuldades políticas. A emissora mexicana alegou que, na época, considerou o conteúdo sem interesse jornalístico, mas a transcrição oficial no site do Vaticano também apareceu editada sem o trecho.

Grupos conservadores reagiram criticamente à declaração publicada agora, dizendo que ela não altera as posições doutrinárias da igreja e cria confusão e incerteza na orientação dos fiéis.

Seja como for, a posição do papa de respeito e acolhimento aos homossexuais tem sido consistente. Mas também tem sido consistente sua batalha em defesa do casamento tradicional entre homem e mulher e contra a chamada "teoria de gênero".

Teoria de gênero é uma construção conceitual da teologia católica que acredita que o feminismo e o movimento LGBTQ —ou pelo menos parte deles— estão engajados em promover na sociedade e nas escolas a ideia de que a distinção entre os gêneros não está assentada na divisão biológica dos sexos, mas que seria apenas questão de opção individual.

Essa crença toma a defesa do respeito à diversidade feita pelos movimentos por uma campanha organizada para embaralhar os papéis de gênero e a orientação sexual das crianças com o intuito de destruir a família.

Embora a declaração do papa no documentário colabore para promover a tolerância com os homossexuais que é bastante presente em países de maioria católica, sua batalha reiterada contra o moinho de vento da teoria de gênero alimenta as guerras culturais e, indireta e involuntariamente, fortalece a posição dos violentos e dos preconceituosos.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Dom Odilo P. Scherer: Papa Francisco, a aposta na fraternidade

Na encíclica ‘Fratelli Tutti’ pontífice convida a repensar o mundo de forma mais aberta

Fratelli Tutti, ou, em português, Todos Sois Irmãos, é o título da nova encíclica do papa Francisco, publicada no último dia 4 de outubro. Trata-se de um documento de ensino social da Igreja Católica, mediante o qual o papa reflete sobre algumas questões sociais atuais, que afligem a humanidade. E o faz partindo do coração do Evangelho, onde o amor a Deus e o amor ao próximo se encontram inseparavelmente vinculados.

É convicção cristã que a humanidade, apesar de suas diferenças, é uma grande família de irmãos, que tem Deus por pai e Jesus Cristo como irmão e mestre de todos. Essa é, por assim dizer, uma cláusula pétrea do ensinamento cristão, que também fundamenta todo discurso social, econômico e político da Igreja.

Francisco parte das situações dramáticas atuais vividas pela humanidade, destacando a fragmentação da consciência solidária e a afirmação sempre maior de uma cultura e de um estilo de vida individualistas. Aponta para a falta de projetos consistentes para alcançar o bem comum local e universal; refere-se à exclusão de amplos grupos de indesejados e descartados; lamenta que os direitos humanos sejam cada vez menos universais e voltados, mais e mais, para a afirmação de interesses particularistas; fala do desvirtuamento dos sonhos da globalização, do progresso e do desenvolvimento, bem como da dignidade negada a tantos seres humanos, da comunicação “sem sabedoria, agressiva e despudorada” e da perda da esperança. E não deixa de se referir à crise ecológica e ambiental, que ameaça a destruição de nossa casa comum e o futuro da vida.

Que fazer diante disso? O papa Francisco convida a repensar o mundo de forma mais aberta, apontando para os valores imprescindíveis do amor e da fraternidade. Não se pode continuar a pensar e planejar o mundo para privilegiados, onde são deixados à margem tantos irmãos, que têm a mesma dignidade de todos. Nem basta continuar a afirmar teoricamente os princípios de liberdade, fraternidade e igualdade: se esses belos princípios estiverem orientados por uma prática individualista, acabarão produzindo o contrário do que, teoricamente, significam. Deveriam estar animados pela força da solidariedade e a própria afirmação dos direitos, para não ser desvirtuada, precisa dar prioridade aos direitos universais, sem fronteiras nem discriminação.

Num capítulo mais propositivo, o papa trata da edificação de um mundo menos fechado e da necessidade de “corações abertos para o mundo inteiro”. A humanidade criou fronteiras de todo tipo, cavou trincheiras e levantou muros com a preocupação compreensível de se proteger contra a invasão indevida do espaço da própria liberdade e contra toda forma de agressão. Mas quando essa preocupação é motivada pela rejeição ao outro, pelo resguardo dos próprios privilégios e pela pouca vontade de partilhar, o mundo torna-se cada vez menos fraterno e mais agressivo. O pontífice fala de abertura ao outro, da gratuidade e do intercâmbio de dons, em que o local e o universal não precisam estar em polos opostos, mas podem ser reciprocamente enriquecedores. Quem se fecha ao outro empobrece e estreita os próprios horizontes.

Inevitável se torna a reflexão sobre o panorama político atual e o papa não poupa críticas aos populismos e liberalismos, que estão na base de muitos dos graves problemas atuais da convivência local e internacional. E acena para a necessidade de um “poder internacional” capaz de moderar adequadamente as questões e os conflitos políticos da comunidade humana inteira. É uma reflexão difícil e a simples abordagem desse tema provoca arrepios em certos ambientes do pensamento contemporâneo, ciosos defensores de poderes locais absolutos. Francisco volta ao tema da caridade política, um tema recorrente no ensino social da Igreja: a verdadeira política requer altruísmo e genuíno amor ao próximo. Não se trata de idealismo utópico, pois faltam testemunhas de verdadeira caridade social e política.

Francisco também foi buscar na filosofia grega antiga dois elementos para uma renovada convivência social e política: a amizade social e o diálogo. A amizade social leva a respeitar e tratar bem cada cidadão, valorizando a sua contribuição para a edificação do convívio social. O diálogo é a arte da superação de rupturas e distanciamentos, para tecer entendimentos e aproximação.

Isso pode soar estranho para quem aposta na dialética do conflito, ou no liberalismo absoluto para a edificação das relações sociais.

No entanto, os princípios da luta e do liberalismo absoluto já deram mostras do que são capazes de produzir: o triunfo do mais forte sobre o fraco, o império da lei da selva, violência, dor e sangue. Por que não apostar no diálogo, na busca do consenso orientado pela verdade e na amizade social, capazes de suscitar nova cultura e nova política, impregnadas de altruísmo, amabilidade e fraternidade? Por que não acreditar numa verdadeira revolução cultural, para tornar a convivência mais fraterna, verdadeiramente humana?

*Cardeal-Arcebispo de São Paulo


Ricardo Noblat: Certamente à falta do que fazer, general ataca o Papa Francisco

Pai, perdoa porque ele não sabe o que diz

Para os padrões que o país se acostumou, ou que pelo menos já não se espanta com tanta frequência, até que foi moderada a reação do presidente Jair Bolsonaro ao encontro privado do Papa Francisco com o ex-presidente Lula, no Vaticano.

Como em recente documento pontifício o Papa referira-se à Amazônia como “nossa” e de “todos nós”, e a chamou de “querida”, Bolsonaro retrucou dizendo que a Amazônia é “nossa”, dos brasileiros. Agradou os militares com isso.

Mas o general Augusto Heleno, ministro do esvaziado Gabinete de Segurança Institucional, resolveu ir mais longe do que seu patrão. Há tempo que se comporta assim. Posto ao lado de Bolsonaro para podar-lhe os excessos, excede-se tanto ou mais do que ele.

Em horário de expediente no Palácio do Planalto, de resto como costuma acontecer, o general sacou do celular e disparou no Twitter:

“Parabéns ao Papa Francisco pelo gesto de compaixão. Ele recebeu Lula, no Vaticano. Confraternizar com um criminoso, condenado, em 2ª instância, a mais de 29 anos de prisão, não chega a ser comovente, mas é um exemplo de solidariedade a malfeitores, tão a gosto dos esquerdistas.”

O mais culto dos militares a servir a Bolsonaro, Heleno deve ter esquecido que Jesus Cristo recebia santos e pecadores, sem discriminar ninguém. E que o Papa João Paulo II visitou na prisão o turco que quase o matou à bala. Abençoou e perdoou.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que um criminoso é só aquele cuja sentença tenha transitado em julgado. A de Lula ainda não transitou. Acusar Francisco de ser solidário com “malfeitores” não é só injusto, é um tiro que o general dá no próprio pé.

São muitos os políticos denunciados por malfeitorias. E Heleno não só cruza com eles por aí como já deve ter recebido alguns em audiência. Por fim, mesmo que indiretamente, insinuar que o Papa é um esquerdista, é ignorar a biografia de Francisco.

Quando superior dos jesuítas na Argentina, Francisco tornou-se suspeito de ter contemporizado com a ditadura militar. A suspeita virou uma cruz que ele carrega até hoje. Ao contrário do general que não se sente culpado pelas mortes que viu de perto no Haiti.


Luiz Gonzaga Belluzzo: O Papa Francisco e o esterco do diabo

Documento aponta males da supremacia dos mercados financeiros e suas consequências sobre a vida dos homens

Em carta aos jovens economistas do mundo, Papa Francisco sugeriu que se reunissem na cidade de Assis, Itália, entre 26 e 28 de março de 2020 para repensar uma nova doutrina econômica para o mundo.

Uma doutrina que vá além das “diferenças de credo e nacionalidade”, inspirada “na fraternidade, sobretudo para os pobres e excluídos”.

Em 2013, o Papa Francisco ofereceu aos cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco abordava as vicissitudes e esperanças da vida cristã no mundo contemporâneo.

Também em 2013, Francisco lamentou o Espírito desse mundo que reduz o Homem “a uma única das suas necessidades: o consumo e, pior ainda, o ser humano é considerado também um bem de consumo que pode ser utilizado e jogado fora. Inversamente, “a solidariedade, o tesouro do pobre, é considerada contraprodutiva, contrária à racionalidade financeira e econômica”. Isto deve-se “a ideologias promotoras da autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, que negam o direito de controle dos Estados”.

Já em 2015, durante outra audiência no Vaticano, o Papa disse que “o dinheiro é esterco do diabo”, acrescentando que, quando o capital se torna um ídolo, ele “comanda as escolhas do homem”. Aprisionado nas engrenagens impessoais da economia sem alma, o Homem sem Escolhas entrega seu destino ao diabo e seus estercos.

Na edição de 17/5/ 2018, o Osservatore Romano registra a divulgação do documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé. O texto de 16 páginas contém “considerações para um discernimento ético acerca de alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”.

O documento foi apresentado na Sala de Imprensa pelo arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson. Já na introdução o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia dos mercados financeiros - os estercos do Diabo - e suas consequências sobre a vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real”.

Embora muitos esforços positivos tenham sido realizados em vários níveis, sendo os mesmos reconhecidos e apreciados, não consta, porém, uma reação que tenha levado a repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. Antes, parece às vezes retornar ao auge um egoísmo míope e limitado a curto prazo que, prescindindo do bem comum, exclui dos seus horizontes a preocupação não só de criar, mas também de distribuir a riqueza e de eliminar as desigualdades, hoje tão evidentes.

Está em jogo o autêntico bem-estar da maior parte dos homens e das mulheres do nosso planeta, os quais correm o risco de serem confinados de maneira crescente sempre mais às margens, se não de serem “excluídos e descartados do progresso... se queremos o bem real para os homens, o dinheiro deve servir e não governar!”.

A palavra da Doutrina da Fé despertou-me a lembrança dos Essays in Persuasion de John Maynard Keynes. O conjunto de ensaios publicado em 1930 espargia esperanças. Keynes sustentou que “o Mundo Ocidental já tem os recursos e a técnica capazes de reduzir o Problema Econômico que agora absorve nossas energias morais e materiais, se pudéssemos criar a organização para usá-los... Acredito que não está longe o dia em que o Problema Econômico vai tomar o banco de trás e a arena do coração e do cérebro será ocupada, ou reocupada, por nossos problemas reais - os problemas da vida e das relações humanas, da criação, do comportamento e da religião”.

Na contramão dos vislumbres otimistas de Maynard, a economia contemporânea, comandada pela finança, excita as esperanças, mas, enquanto destrói a natureza, constrói terríveis realidades humanas. As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das corporações internacionalizadas sobre grandes massas de trabalhadores, permitindo a “arbitragem” entre as regiões e nivelando por baixo a taxa de salários. As fusões e aquisições acompanharam o deslocamento das empresas que operam em múltiplos mercados.

Isso ampliou o fosso entre o desempenho dos sistemas empresariais “globalizados” e as economias territoriais submetidas à regras jurídico-políticas do Estados nacionais. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistem com a tendência ao monopólio e debilitam a força dos sindicatos, fazendo periclitar os direitos sociais e econômicos.

Em seu livro As Ideias e os Fatos, Frederico Mazzuchelli registra a menção de Francisco à concorrência, matriz da “insatisfação e da tristeza individualista que escraviza”. O Papa rejeita as formas de religiosidade que fazem o espírito recuar para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado”. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Os olhares do nosso tempo perderam de vista a utopia da comunidade cristã, forma de convivência incrustrada nas origens do cristianismo.

“Um Jesus Cristo sem carne” é o código de acesso ao mistério libertador da Encarnação, um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e sabedorias do mundo greco-romano.

Na corporeidade do Filho, Deus Pai adquire uma dimensão humana para sofrer as agruras dos mortais e despejar solidariedade incondicionalmente. O tempo assume uma dimensão histórica: Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.


Pedro Fernando Nery: Esmagados pelo presente

Para o papa Francisco, o elevado desemprego jovem é problemático não apenas pela falta de trabalho em si, mas pela falta de esperança

No 1.º ano de seu papado, Francisco apontou como o problema mais urgente que a Igreja enfrentava um tema surpreendente. Era o desemprego dos jovens, também apresentado como um dos mais sérios males do mundo atual. Em mais de uma ocasião o pontífice ecoou a preocupação, apontando o risco de uma “geração perdida” e criticando uma sociedade que descartava os jovens.

Para o papa, o elevado desemprego jovem é problemático não apenas pela falta de trabalho em si, mas pela falta de esperança. Os jovens foram “esmagados pelo presente”. Ao contrário das pessoas mais velhas, não têm lembranças para recordar. Mas tampouco teriam um amanhã para ansiar, como deveria ser na juventude. “Você me diz: é possível viver esmagado sob o peso do presente? Sem uma memória do passado e sem o desejo de olhar adiante para o futuro para construir algo, um futuro? Você conseguiria ir adiante assim?”

Se a crise do desemprego jovem na Europa chamou atenção até do Vaticano, os esmagados seguem largamente menosprezados por aqui. Nas eleições de 2018, tiveram protagonismo, excepcionalmente, apenas na ideia da “carteira de trabalho verde e amarela”. O plano foi apresentado na semana passada e, apesar de desidratado, foi recebido com antipatia pela opinião pública.

A taxa de desemprego ainda é de 27% entre os jovens de 18 a 24 anos. Apesar de alguma melhora desde o pior da crise, ela ainda supera 30% em vários Estados do Nordeste e do Norte. Mesmo no período áureo do mercado de trabalho, sempre foi o dobro da taxa geral, e nunca cedeu abaixo de 14%. Os jovens são, de longe, os mais afetados pelo desemprego. Sem experiência, qualificação ou contatos, são também embarreirados pelas mesmas regras trabalhistas dos demais – ao contrário do que ocorre em países desenvolvidos.

No início do mês, o IBGE divulgou a Síntese de Indicadores Sociais de 2018. Vivem abaixo da linha da pobreza 3 em cada 10 brasileiros entre 15 e 29 anos.

A faixa etária é também destaque em outra estatística, sendo os mais afetados pela violência urbana: são mais de 60% das vítimas de homicídios. Em 2017, quase 36 mil jovens entre 15 e 29 anos foram assassinados – novo recorde. Os nossos esmagados morrem.

É claro que a desgraça da juventude brasileira não deve motivar qualquer intervenção estatal. Mas o contrato de trabalho verde e amarelo está longe de ser uma iniciativa mal concebida. Ao contrário, vai ao encontro da literatura científica mais nova sobre a experiência internacional.

As evidências mais recentes sobre políticas de emprego desse tipo preconizam desonerações seletivas, com foco em grupos específicos (no caso os jovens) e na contratação (apenas novas vagas estão desoneradas, vedada a troca de antigos por novos). Essas são duas ressalvas que diminuem o custo da mudança (e que marcam as principais diferenças da proposta com a desoneração de Dilma).

O badalado Emmanuel Saez – o economista de Berkeley que assessora a democrata Elizabeth Warren – publicou em outubro estudo sobre a experiência recente da Suécia. Ele e coautores mostram que a desoneração feita para jovens melhorou o emprego durante e após sua vigência (foi promovida pela centro-direita, e desfeita pela esquerda). O efeito foi positivo, e crescente, tanto para os beneficiados que saíram do programa porque ficaram mais velhos (por exemplo, pelo ganho de experiência) quanto para os jovens que não foram beneficiados pela desoneração (depois que ela se extinguiu).

A redução do custo lá foi de 12%, bem abaixo da redução do custo de cerca de 30% do contrato verde e amarelo (principalmente INSS e FGTS). Já Alessio Brown, do Instituto de Economia do Trabalho da Alemanha, compila efeitos positivos de subsídios a contratação, focalizados, na Alemanha, Austrália, Áustria, França, Polônia e Reino Unido (além da Suécia). Apesar da maior burocracia e dos custos administrativos da política focalizada, ela teria custo efetivo maior do que uma desoneração irrestrita.

O Congresso pode aperfeiçoar a medida: o financiamento pela arrecadação com a contagem de tempo do seguro-desemprego para o INSS deve ser substituído (afinal vigoram renúncias previdenciárias para faculdades e o agro) e os com mais de 55 anos podem ser incluídos (apesar do baixo desemprego, desligados têm dificuldade de reinserção). Outras políticas também merecem ser discutidas.

O essencial é que os esmagados não percam nossa atenção.

*Doutor em economia


O Estado de S. Paulo: Papa Francisco abrirá em 2020 os arquivos secretos do Vaticano sobre a 2ª Guerra

Organizações judaicas pedem há décadas pela abertura desses documentos e acusam o pontífice da época, Pio XII, de fechar os olhos para as perseguições a judeus promovidas pelos nazistas

CIDADE DO VATICANO - O papa Francisco anunciou nesta segunda-feira, 4, que abrirá os arquivos secretos do Vaticano referentes à 2.ª Guerra e ao papa Pio XII, acusado por alguns historiadores de manter silêncio sobre o Holocausto.

Papa Francisco
“A Igreja não tem medo da História”, disse Francisco a membros dos Arquivos Secretos do Vaticano Foto: Alessandra Tarantino / AP
Organizações judaicas pedem há décadas pela abertura desses documentos e acusam o pontífice da época de fechar os olhos para as perseguições a judeus promovidas pelos nazistas.

“A Igreja não tem medo da História”, disse Francisco a membros dos Arquivos Secretos do Vaticano, acrescentando que os documentos do período do papado de Pio XII (1939 a 1958) serão abertos no dia 2 de março de 2020. Ele destacou que o legado de Pio XII é tratado com “certo preconceito e exagero”.

De acordo com o Vaticano, Pio XII utilizou da diplomacia nos bastidores para salvar judeus diante dos muitos católicos que viviam em regiões ocupadas por nazistas.

Vaticano vai abrir arquivos sobre ditadura argentina
A Comissão de Judeus Americanos (AJC, na sigla em inglês), um dos principais grupos judaicos do mundo, elogiou a decisão de Francisco. “Por mais de 30 anos, a AJC pede pela abertura completa dos arquivos secretos da Santa Sé do período da 2.ª Guerra”, disse o rabino David Rosen, diretor internacional de assuntos inter-religiosos da Comissão.

“É particularmente importante que especialistas dos principais institutos em memória ao Holocausto em Israel e nos Estados Unidos avaliem objetivamente da melhor forma possível os registros históricos da época mais terrível, para reconhecer tantos as falhas como os esforços valentes feitos durante o período de Shoah”, afirmou Rosen, mencionando a palavra hebraica para se referir ao Holocausto.


Cacá Diegues: Um Rio de fé

Em meados de 2013, o Papa Francisco esteve no Brasil para participar da Jornada Mundial da Juventude, encontro de jovens católicos realizado no Rio de Janeiro. O 266º Papa da Igreja Católica, o simpático Jorge Mario Bergoglio, havia sucedido ao misterioso Bento XVI, em fevereiro daquele mesmo ano. Tive a intuição de que, daquela visita, podia sair um filme oportuno e belo. Renata me incentivou a concretizar a ideia. Segundo ela, só nós podíamos realizar um documentário sobre Francisco, pois “o Papa era argentino, mas Deus é brasileiro”. Nosso “Rio de fé”, o título do projeto, foi uma das mais belas experiências cinematográficas de minha vida, infelizmente pouco difundida devido à distribuição precária dos DVDs, plataforma escolhida desde o início do projeto.

Havia algo de original e revolucionário naquele chefe daquela igreja, a mais tradicional da história do cristianismo. Mas não era apenas no que dizia em seus discursos, sermões e conversas com a população. Era sobretudo em seus gestos e iniciativas, que só viravam escândalo depois de praticados, quando finalmente compreendíamos o que havia acontecido. Foi assim o tempo todo, no encontro inaugural com políticos convencionais, depois com fiéis do candomblé, com favelados de uma comunidade considerada perigosa, com meninos, meninas e outros gêneros juvenis, com a multidão que lotou a Praia de Copacabana em sua despedida. Compreendemos que o bem não era monopólio de nenhuma igreja, mas um valor indispensável à sobrevivência da humanidade.

Curiosamente, naquele mesmo ano, o Brasil se mobilizava com as manifestações de rua em defesa dos que não podiam pagar nem mais um centavo pelo transporte que eram obrigados a usar. Um movimento espontâneo que quebrou a ilusão de que um governo “popular” estava provendo tudo de que a nação precisava, que estávamos a caminho da Parusia levados pelas mãos de políticos iluminados. Hoje, parece claro que 2013 marcava a fundação de um novo momento na história social do país. Poucos brasileiros interessados pelo Brasil perceberam isso.

Francisco, ao contrário da intolerância política hoje na moda, dizia que a misericórdia de Deus não tem limites, incluindo aí até quem não crê nele. Esses deviam seguir sua própria consciência para distinguir o bem do mal, o que é imprescindível. O jornalista italiano Eugenio Scalfari, 94 anos, fundador do jornal “La Repubblica” e amigo do Papa argentino, publicou, em 2018, entrevista com Francisco, em que este diz que “não existe um inferno, o que existe é o desaparecimento das almas pecadoras”. Sabemos, por experiência tanto teológica, quanto científica, que Deus criou um universo dinâmico, em constante evolução. Sua preocupação não é apenas com o que é, mas sobretudo com o que virá a ser. A principal linguagem descoberta pelos humanos é a da esperança.

Além da esperança, a humanidade desenvolveu também sua memória histórica, para não se esquecer de como as coisas eram, não se esquecer do que foi bom e do que foi ruim. A memória talvez seja a matéria mais importante da civilização. O corpo do pintor Salvador Dalí, um dos gênios do século XX, foi recentemente exumado para um exame de comprovação de paternidade. A primeira observação do secretário-geral da Fundação Gala-Dalí, assim que havia terminado a exumação, foi a de que o bigode característico do grande artista, morto em 1989, estava “na posição clássica, marcando dez horas e dez minutos”.

Enquanto nossos líderes, como o deputado Rodrigo Amorim, desprezam, subestimam e ofendem os indígenas, desejando que eles deixem o Brasil exclusivo aos herdeiros dos europeus que invadiram com violência e rapinagem o território de todos, o Papa Francisco anuncia seu apoio ao Pacto Global de Migração, proclamado pela ONU, denunciando as restrições a ele como uma volta ao que a humanidade ocidental já foi há mais de cem anos. Esse ataque aos índios é da mesma família de outras discriminações de toda natureza, de raça a ideias. É como se no mundo só coubessem os que são como somos, nosso maior inimigo sendo portanto a diferença. Justamente aquilo que mais enriquece nossa presença no mundo.

Os primeiros homens não sabiam o que era o Sol, para que ele servia. Aí começaram a pensar sobre isso, curiosos a propósito da natureza daquela bola de fogo e o que podiam fazer com ela. A cada descoberta dessa, foi sempre possível melhorar nossa vida material e nos renovar espiritualmente. Aceitar e, eventualmente, vencer o mistério constante levou o homem a se civilizar. É isso que está sempre presente em todas as ideias “chocantes” do Papa Francisco.


Dom Odilo P. Scherer: Política a serviço da paz

Essa é a mensagem do papa Francisco a todos os governantes e altas autoridades mundiais

No dia 1.º de janeiro passado, enquanto no Brasil tomavam posse o novo presidente da República e os governadores dos Estados, o papa Francisco lembrava no Vaticano que “a boa política está a serviço da paz”. Não foi mensagem dirigida especificamente aos governantes brasileiros, embora também eles estivessem incluídos entre os destinatários. Todos os anos, em 1.º de janeiro, o pontífice envia uma mensagem em favor da paz a todos os governantes e altas autoridades dos povos e das organizações internacionais.

O foco da mensagem deste ano é a “boa política”, verdadeiro desafio para todos os governantes. A mensagem leva a refletir sobre os grandes objetivos da política, que nem sempre apareceram claramente nos programas e nas prioridades dos que assumem um mandato. Será que os grandes objetivos da política são a vitória do partido, a afirmação da ideologia e dos interesses dos vencedores e a repressão dos não alinhados com eles?

A boa política, à qual o papa se refere, deve contribuir efetivamente para manter e consolidar a paz em todos os sentidos, ou para restabelecê-la onde ela estiver faltando, ou em situação de risco. Com o poeta Charles Péguy, Francisco lembra que a paz é como uma flor frágil, que procura desabrochar entre as pedras da violência... A paz, de fato, está ameaçada sempre que se busca o poder a todo custo, mesmo com meios injustos, violência e desonestidades.

O papa Paulo VI exortava, em plena guerra fria, que é dever de cada pessoa levar a sério a política nos seus diversos níveis - local, regional, nacional e mundial - em defesa da liberdade e do esforço comum para a realização do bem da cidade, da nação e da humanidade (encíclica Octogesima Adveniens, 1971, 46).

Vícios na política podem torná-la odiosa e desacreditada, incapaz de promover a paz. A política pode ser comprometida pela incapacidade e o despreparo do governante, pela falta de prudência, discernimento sereno e equilíbrio sadio. Certos vícios na condução da vida política enfraquecem o convívio democrático, envergonham a vida pública e põem em risco a paz social.

Entre esses vícios, o papa menciona as múltiplas formas de corrupção e enriquecimento ilícito mediante a apropriação de bens públicos, a negação do direito, a falta de respeito às regras estabelecidas e o recurso arbitrário à força - “por razões de Estado” - para a afirmação no poder. Mas também são expressões de má política o fomento da xenofobia e do racismo, a insensibilidade diante dos sofrimentos dos pobres e dos refugiados, a exploração irresponsável dos recursos naturais para o lucro fácil. Entre as formas de política viciada contam-se também as que se destinam a perenizar privilégios questionáveis ou injustos, ou sustentam regimes na base do medo e da violência. O recurso à guerra, para impor as próprias razões a outros povos, é expressão abominável de política e agride diretamente a paz.

Políticas viciadas precisam ser superadas com políticas boas, que tenham no seu centro a pessoa humana e sua inalienável dignidade, promovam consensos para medidas sociais, econômicas e culturais em benefício de toda a população e tenham uma atenção privilegiada para com as camadas sociais mais vulneráveis. O bem comum deve ser o grande objetivo de políticas sábias, voltadas para as necessidades básicas do povo humilde e pobre, mais do que para a consolidação de vantagens de quem já vive em situação privilegiada. Não é sábia nem prudente, e desencadeia conflitos sociais, a política que se volta, sobretudo, para os interesses de quem já é forte e privilegiado.

Os eleitores votam esperando que o escolhido faça a coisa certa, uma vez chegado ao poder. É impensável que alguém vote intencionalmente para eleger um mau governante. Espera-se que os governantes sirvam ao seu povo, protejam a população e trabalhem de forma abnegada para proporcionar condições de convivência digna e um futuro bom para todos. A boa política é, pois, um dever inerente ao mandato, uma responsabilidade e um desfio permanente para quem governa.

Boa política é aquela que consegue conciliar o necessário desenvolvimento econômico com a demanda por justiça e solidariedade social. Os fechamentos nacionalistas podem ser uma tentação fácil para conquistar consensos e apoios, mas eles são prejudiciais à edificação da verdadeira fraternidade, tão necessária no mundo globalizado. Fechar-se aos migrantes e refugiados é privá-los de esperança e das forças necessárias para superarem os sofrimentos que carregam.

A política não deve ser inspirada em motivações mesquinhas e particularistas, mas em ideais e valores elevados, como a dignidade humana, a equidade, a justiça, a solidariedade social. Essas motivações e esses valores elevados oferecem base sólida para governantes e governados, para quem apoia o governo e quem está na oposição. Sustentada e orientada por esses ideais e propósitos, a boa política será, na prática, a arte do possível numa sociedade pluralista e complexa.

O papa Francisco não deixou de incluir entre as boas políticas duas questões cruciais, indispensáveis para a verdadeira paz: o cuidado do meio ambiente, para manter boa e habitável a “casa comum” de toda a comunidade humana, e a atenção especial às novas gerações. Crianças e jovens serão herdeiros do patrimônio social e cultural que hoje construímos. Que não sejam vítimas de nossas más políticas! Eles têm o direito de alimentar seu sonho e sua esperança.

Só nos resta, pois, desejar ao novo presidente e aos demais Poderes da República, como também a todas as forças políticas, sociais, econômicas e culturais, um período de boa política para que o nosso país fortaleça as bases para a verdadeira paz.

Sonhar nunca é demais.

*DOM ODILO P. SCHERER É CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO