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William Waack: A cor da vacina

Bolsonaro ignora que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa

Por ter muita raiva da China ou de João Doria, o rompante de Jair Bolsonaro prometendo que não vai comprar a vacina chinesa – desautorizando o general da Saúde – ajuda a entender a razão de capitães comandarem uma companhia, enquanto generais comandam divisões, exércitos, grupos de exércitos. É a falta de visão de conjunto.

Bolsonaro submeteu tudo ao projeto de reeleição, confundindo seu destino político com o do País. É postura comum a políticos de várias colorações, mas, no caso de Bolsonaro, a obsessão com o ganho eleitoral de curtíssimo prazo paradoxalmente ameaça seu próprio projeto de reeleição. A popularidade desse presidente, como a de outros, está diretamente ligada ao desempenho da economia, e esse desempenho (até o fim de 2022, digamos) é função de uma série de decisões políticas difíceis que ele está protelando – em nome do conforto da popularidade no curto prazo.

Da mesma maneira, mais atrapalha do que ajuda a economia brasileira, que depende em grande parte do agronegócio, que depende em grande parte da China, alinhar-se à agenda pessoal do atual presidente americano, Donald Trump. Nem é o caso de se perguntar se esse personagem estará ainda na Casa Branca daqui a menos de duas semanas. Mesmo que Trump produza um excepcional milagre eleitoral e se reeleja, ao abraçá-lo da forma subserviente e bajuladora, Bolsonaro comete um erro básico de política externa: ignorar o fato de que países não têm amigos, só têm interesses.

Ao que tudo indica, está perdida a aposta bastante simplória de que o “laço pessoal” com o homem mais poderoso do mundo presidindo o país mais rico do mundo traria ao Brasil imediatas vantagens em acesso a tecnologia, mercados, instituições multilaterais e projeção no cenário internacional. No caso específico da China (que hoje é quem tem o homem mais poderoso do mundo e a maior economia), a pressão de Trump sobre o Brasil evidentemente leva em conta apenas os interesses dos Estados Unidos, enquanto Bolsonaro sacrifica um vantajoso ponto de partida, que é a possibilidade de jogar entre os dois no grande confronto do século.

Aqui entra também a questão da “diplomacia da vacina”, na qual os chineses já demonstram notável vantagem sobre os americanos. Ao contrário dos Estados Unidos, a China está anunciando “acesso preferencial” à vacina produzida pela Sinovac a países em desenvolvimento. Washington tem à disposição produtos semelhantes desenvolvidos por empresas privadas de sólida reputação mundial, mas demonstrou pouco interesse em distribuir vacinas fora dos EUA.

O Brasil é parte dessa abrangente ofensiva chinesa, com a qual Xi Jinping pretende ampliar ainda mais peso e influência do país, mas o que parece motivar Bolsonaro a falar mal da vacina comandada pelo governo comunista chinês não é o espectro (sim, esse absurdo transita em franjas do bolsonarismo) de uma “inoculação” de ideias esquerdistas via vacina. Ele teme uma candidatura para competir com ele “pela direita” e, seja qual for a razão, enxerga em Doria esse personagem.

Essa visão de túnel considerando apenas a reeleição é o que faz Bolsonaro ignorar um provérbio… chinês. Usado, aliás, de maneira célebre por um importante dirigente comunista, Deng Xiaoping, iniciador das reformas que fizeram da China o que ela é hoje, e que virou lição de pragmatismo. “Não me importa a cor do gato, contanto que pegue o rato”, respondeu, quando indagado sobre o melhor sistema econômico.

Para uma parcela importante do eleitorado também no Brasil, assustada com pandemia, pouco importa a origem da vacina, contanto que ajude a resolver uma questão literalmente de vida ou morte. Bolsonaro parece ignorar que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


El País: A pandemia empodera as Forças Armadas e policiais na América Latina

Do Brasil, onde militar comanda até a Saúde, à Colômbia e México, necessidade de controle social fortalece as forças de segurança enquanto abre debate sobre seus riscos

BEATRIZ JUCÁ|JAVIER LAFUENTE|FEDERICO RIVAS MOLINA|ROCÍO MONTES
Buenos Aires / São Paulo / Cidade Do México / Santiago 

Um general está à frente até do Ministério da Saúde no Brasil. O estado de exceção vigora no Equador, Peru e Chile. A polícia de Buenos Aires se rebela por melhores salários. A morte de um advogado pelas mãos da polícia acende a ira popular em Bogotá. Uma operação contra uma festa clandestina termina com 13 mortos em Lima. No México, o Governo se apoia no Exército para quase tudo. As medidas extraordinárias contra a propagação da covid-19 conferiram um inesperado protagonismo a policiais e militares. Apesar da lembrança ainda fresca das ditaduras dos anos setenta e oitenta, as forças de segurança se apresentam agora como garantidoras da ordem e, sobretudo, “eficientes”. Esse papel dos quartéis, entretanto, desperta muitas desconfianças ―não só no Brasil―, pelas possíveis consequências futuras de acumularem tanto poder.

A necessidade de controle social empoderou as armas. O fenômeno não é homogêneo na região, mas segue como padrão que os soldados tomaram o controle das ruas. “Nos países onde as Forças Armadas já tinham um papel importante, como Brasil, México, Peru, Bolívia e Colômbia, o coronavírus acentuou esse papel. No caso do México, por exemplo, cederam-lhes até portos e rodovias”, diz o cientista político argentino Fabián Calle, especialista em questões de segurança. Os militares ganharam protagonismo silenciosamente, como se as pessoas vissem no novo status quo uma consequência natural e inevitável da pandemia.

O caso mais paradigmático deste crescente poder é o Brasil. O flerte do presidente Jair Bolsonaro com os militares lhes deu uma visibilidade sem precedentes na democracia. Seu vice, Hamilton Mourão, é um general da reserva, e 10 de seus 23 ministros passaram pelos quartéis. No gabinete militar destaca-se o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuelloum militar especialista em logística que pouco sabe de política sanitária. Todo o núcleo político do Planalto também é de generais, que se tornaram uma espécie de eixo de sustentação do Governo e, mesmo com a crise, conseguiram preservar o orçamento para a Defesa. A relação de Bolsonaro com os quartéis vem de seus anos de juventude. No início de sua carreira militar (reformou-se como capitão) encabeçou um motim. Foi assim que conseguiu o apoio político das forças de segurança e criou uma base que o ajudou a se manter no Congresso por 30 anos.

Nas eleições de 2018, quando chegou ao Planalto, o número de militares e policiais eleitos para cargos legislativos quadruplicou em relação a 2014. O setor mais radicalizado, formado principalmente por jovens soldados, não para de crescer. Só em São Paulo, o número de policiais e militares na ativa que tiraram licença para disputar eleições municipais aumentou 62% em comparação a 2016. Enquanto greves (não autorizadas legalmente) sacudiram Estados como o Ceará e Espírito Santos recentemente e avança a politização dos quartéis, especialistas alertam sobre os possíveis riscos de que os militares se tornem um vetor de ruptura democrática.

Fabián Calle não acredita nessa possibilidade, mas reconhece que as coisas já não serão como antes da pandemia. “Há Estados frágeis, burocracias pouco eficientes e crescentes problemas. Todos os Governos terminam recorrendo a uma das poucas burocracias ordenadas e com cadeia de mando que, além disso, funciona. Mas não há nenhum salto ao poder. O que haverá serão mais recursos econômicos e mais influência, porque isso não será grátis”, adverte.

Outro país onde as Forças Armadas sem dúvida adquiriram mais preponderância é o México, onde os militares nunca tiveram o mesmo peso de outros lugares da região. O presidente Andrés Manuel López Obrador, que na campanha defendia a volta deles aos quartéis diante do fracasso da chamada guerra ao narcotráfico, depois de empossado lhes concedeu o controle de diversas instâncias da Administração, como as alfândegas e os portos. Durante a pandemia, as Forças Armadas se encarregaram de montar hospitais de campanha e distribuir suprimentos por todo o país. A isso se soma uma maior presença nas ruas, com a nova Guarda Nacional, autorizada por lei a agir em assuntos de segurança pública.

A polícia da província de Buenos Aires, na Argentina, já cobrou a conta. Durante três dias, policiais armados fizeram uma greve sem precedentes que terminou com um aumento de salários. A Bonaerense, como é conhecida, é uma força de 90.000 homens da ativa com um longo histórico de excessos e corrupção que nenhum governo conseguiu controlar. Desde a volta à democracia, em 1983, as diversas administrações retiraram progressivamente as verbas das Forças Armadas, que pagaram assim por seu passado ditatorial, e transferiram recursos às corporações policiais. A de Buenos Aires se rebelou agora com o argumento de que a pandemia desbastou seus ganhos (sem futebol e espetáculos, acabaram-se as horas extras), enquanto seu trabalho se multiplicou por causa do controle da quarentena.

Não foi só o coronavírus que deu um papel de destaque às forças de segurança no último ano. Na Bolívia, a pressão da polícia foi o estopim para a renúncia do presidente Evo Morales, no final de 2019. Enquanto isso, na Colômbia, o assassinato de um jovem alvejado pela tropa de choque voltou a expor os excessos policiais. Os alarmes nesse país voltaram a se acender nesta semana, quando um advogado foi morto por uma arma de choques elétricos usada por um policial. O desencanto da população com a polícia só cresce, e a necessidade de uma reforma parece muito inevitável.

A polícia militar chilena também está na rua, mas por ordem do Governo. Nesta sexta-feira, o presidente Sebastián Piñera decidiu prorrogar por 90 dias o estado de exceção em todo o território. A medida começou a vigorar no Chile assim que a pandemia começou, por isso o país passará nove meses com os militares impondo as restrições de trânsito e reunião. O Executivo justificou a decisão pela covid-19, mas paira o fantasma da desordem pública. Em 18 de outubro completa-se um ano das revoltas sociais no Chile, e no dia 25 do mesmo mês terá lugar um plebiscito sobre uma nova Constituição, com mais de 14 milhões de pessoas convocadas às urnas. Será um referendo sob condições inéditas, como toque de recolher vigorando entre 23h e 5h.

“A crise sanitária não se resolve com militares nas ruas. É um excesso e, ao mesmo tempo, revela a incapacidade das autoridades para estabelecer normas básicas de segurança pública”, afirma o chileno Gabriel Gaspar, analista político e ex-subsecretário para as Forças Armadas do segundo Governo de Michelle Bachelet (2014-2018). Para o diplomata, em seu país os militares foram empurrados a “patrulhar os chilenos, quando as Forças Armadas estão desenhadas mais para defendê-los”. Podem os militares ficar tentados pelo poder? Fabián Calle opina que é pouco provável que alcancem o protagonismo dos anos de Pinochet, mas não descarta que “levantem o perfil” se a violência crescer. “Não será para tomar o poder”, diz, “mas marcarão terreno”.