pandemia

RPD || Editorial: A fadiga das instituições

No cenário de incerteza em que o país mergulhou após as eleições de 2018, apenas uma percepção clara se consolida mês a mês, para um número crescente de observadores: a progressão acelerada da crise, em suas diferentes dimensões. 

No plano sanitário, a pandemia avança de forma galopante e, com ela, o número de óbitos evitáveis. Ultrapassamos a marca de trezentas e cinquenta mil mortes, a média de falecimentos ao dia segue em curva ascendente e não dispomos ainda de uma previsão confiável a respeito do ponto aproximado de reversão dessa situação. Devemos essa situação de catástrofe exclusivamente à omissão do governo federal na contratação das vacinas e sua oposição sistemática às práticas recomendadas pelo consenso da ciência na sua falta: uso de máscaras e distanciamento social. 

A expectativa do caos sanitário no curto prazo empurra, por sua vez, a perspectiva de retomada da economia para o médio e longo prazo. A redução concomitante do valor e abrangência do auxílio do governo aos mais necessitados abre as portas para o aprofundamento da insatisfação popular, com consequências imprevisíveis no momento. 

Finalmente, temos a dimensão política da crise. Está claro hoje que a hipótese de enquadramento do Poder Executivo por parte de sua base parlamentar, fundamentalmente o grupo conhecido como “centrão”, não passou de esperança vã, alimentada por alguns dos atores do processo e seus apoiadores na esfera pública. Crises continuam a ser provocadas; as instituições, tensionadas; as práticas formais e informais da democracia, erodidas.  

No espaço de poucos dias, assistimos à fabricação de uma crise militar, à retomada da ofensiva contra os Poderes Legislativo e Judiciário, e ao inacreditável chamamento de manifestações em favor das “liberdades” de culto e de locomoção, liberdades que, cumpre esclarecer, jamais sofreram até o momento qualquer ameaça. 

As instituições encontram-se sob forte fadiga: seu desenho não incorporou a hipótese de mandatários de má fé democrática, em postos de relevância política. 

Às oposições resta perseverar na clareza quanto a suas tarefas fundamentais, na cooperação cada vez mais indispensável na sua consecução, na resiliência democrática permanente. A hora é de concentrar o esforço de todos no combate às ameaças que rondam a democracia. 


RPD || Entrevista Especial - José Gomes Temporão: ‘Pandemia terá impacto central no futuro da Nação’

Ausência de medidas e negacionismo do presidente Jair Bolsonaro contribuíram drasticamente para a situação crítica que o país enfrenta atualmente no combate à pandemia do novo coronavírus, acredita Temporão

Por Caetano Araújo, Luiz Santini e Renato Ferraz

O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira em relação ao combate contra a pandemia do novo coronavírus são inúmeros, incontáveis, avalia o ex-ministro da Saúde  José Gomes Temporão, entrevistado especial desta 30ª edição da Revista Política Democrática Online.

Temporão aponta três medidas que deveriam ter sido feitas pelo Governo Bolsonaro para evitar a situação em que o país se encontra atualmente: 1) Deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. 2) Optou apenas pelo número mínimo de doses do mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, que é de 10% da população. O Brasil vai receber, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. País tinha direito de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   3) Se tivesse fechado acordos compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás, teríamos tido vacinas a partir de janeiro e já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas.

“A sociedade brasileira, o povo brasileiro, foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandemia”, critica Temporão. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Revista Política Democrática Online.  

Revista Política Democrática Online (RPD): A pandemia está tendo o impacto de uma tragédia social, sanitária, emocional. Mas pode ter favorecido o reconhecimento da importância do Sistema Único de Saúde para a saúde dos brasileiros por parte de toda a sociedade, independentemente de níveis sócioeconômicos, tanto quanto a percepção da relevância do papel da ciência e da qualidade dos pesquisadores e cientistas nacionais na condução das graves questões sanitárias que vêm ameaçando o país. Como valorizar esses sentimentos de forma permanente?  

José Gomes Temporão (JGT): Que bom começarmos a conversa falando de coisas boas também. A situação difícil, dramática e trágica que nosso país vive nesse último ano tem e seguirá tendo impacto central no futuro da nação. Importa destacar, no entanto, que, ao longo desse período pandêmico, o SUS ganhou novo contexto, um novo olhar da sociedade. Está lá na Constituição de 1988, no Artigo 196: “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, alcançando através de políticas econômicas e sociais”. Quer dizer, uma visão bastante abrangente da questão da saúde. Nós também sabemos que, no curso dessas três décadas, se de um lado o SUS conseguiu se estruturar, ampliou cobertura, reduziu desigualdades entre classes sociais e regiões e teve um impacto nos indicadores sanitários extremamente importante, por outro lado se fragilizou do ponto de vista do financiamento, da gestão, do modelo assistencial. E através de uma política deliberada de subsídio ao mercado, o que nós assistimos foi um crescimento proporcional muito importante do percentual da população brasileira que dispõe de um plano seguro de saúde para o atendimento de suas necessidades corriqueiras de exames, consultas e internações – maior parte, provida pelo empregador. Ou seja, é uma cobertura privada financiada majoritariamente pelo empregador e ligada, portanto, ao vínculo laboral. Então essa visão do SUS ao longo dessas décadas sofreu, digamos assim, algumas fragilizações.   

A primeira para a qual eu queria chamar a atenção é uma certa visão que se consolidou na sociedade do SUS como muito importante para as pessoas pobres, para os mais pobres. Trata-se de um desvio, uma visão equivocada. Porque, na verdade, o SUS prescrito na Constituição reflete a visão da construção de um sistema universal para todos os brasileiros.   

A segunda, que também se difundiu de maneira muito forte na sociedade, é essa visão de que ter um plano de saúde faz parte do processo de ascensão social, e de que a medicina privada, portanto, terá um padrão de qualidade superior à da medicina pública – o que, aliás, não se sustenta em nenhum ponto de vista analítico. Temos hospitais, instituições, programas e políticas de excepcional qualidade no SUS e no setor privado. Temos problemas dramáticos de qualidade no SUS e no setor privado. A discussão está equivocada, porque, quando a pandemia começa e o impacto dela na sociedade se expressa dessa maneira tão pungente, real e concreta, uma série de setores da sociedade que, antes via o SUS um pouco assim à distância – como “uma coisa que não faz parte do meu cotidiano, do meu dia a dia, talvez tenha muito peso para os meus empregados, ou para as pessoas que trabalham na minha casa” – passou a avaliá-lo em uma dimensão distinta. Basta imaginar, como mera hipótese, o que seria dos praticamente 50 milhões de brasileiros que não têm nenhum tipo de proteção social estruturada, subempregados, que trabalham por conta própria, e os 15, 16 milhões de desempregados, portanto a grande maioria da população brasileira, sem o SUS?   

"TIVEMOS UMA FRAGMENTAÇÃO DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA. O GOVERNO FEDERAL, NA VERDADE, SE TRANSFORMOU EM UM POLO DE RESISTÊNCIA ÀS MEDIDAS PRESCRITAS PELA CIÊNCIA E PELA SAÚDE PÚBLICA"

Felizmente, essa avaliação de senso comum da sociedade se expressou também na grande mídia. Nunca se falou tanto nos jornalões, nas TVs abertas e nos programas de TV fechada sobre o SUS, sobre suas dificuldades, suas qualidades, um reconhecimento do trabalho importantíssimo dos profissionais que ali labutam todos os dias. Atingiu inclusive setores com uma visão desenvolvimentista, progressista, mas que viam também o SUS um pouco distante. Registrou-se todo um movimento da área da ciência brasileira de aproximação com o SUS. Multiplicaram-se as experiências de articulação, integração e de reflexão conjuntas entre instituições e entidades do campo da saúde pública, da medicina, da ciência brasileiras no sentido de buscar orientar a população, esclarecer a sociedade, reivindicar, criticar o governo.   

Estou seguro, assim, de que, apesar das dificuldades estruturais que o SUS enfrenta, ganhamos espaço político e temos de saber como aproveitar isso para fortalecê-lo no futuro. Essa questão do SUS e do que eu chamo da construção de uma consciência política, de uma consciência coletiva, de uma consciência social do valor dos sistemas universais e do SUS, é uma questão central da nossa agenda nos próximos tempos.   

Isso vem junto com a questão da ciência. Em maio do ano passado, já ressaltávamos em debates que só conseguiríamos sair dessa situação quando tivéssemos uma ou mais vacinas que funcionassem. Mas ouvíamos: “vacina?, esquece. Vacina, só em 2021, 2022. É coisa para um ano e meio, dois anos”. Citava-se o caso anterior do período mais curto de desenvolvimento de uma vacina, a da caxumba, que levou quatro anos para chegar ao mercado. E a ciência nos colocou não uma, mas várias vacinas antes de um ano do início da pandemia.   

A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus; cinco dessas vacinas, que já estão no mercado, foram testadas na população brasileira, em que foram realizados ensaios clínicos. Nós sabemos que, para fazer ensaio clínico, você tem de ter uma estrutura de ciência e de hospitais de ensino e pesquisa; uma estrutura regulatória – nós temos uma das melhores agências reguladoras do mundo, a ANVISA. E os brasileiros publicaram inúmeros artigos, e participaram de inúmeras iniciativas no campo da ciência extremamente importantes no enfrentamento dessa doença.   

Outra dimensão que tem muito a ver com ciência, embora não se limite a ela, na verdade a transcende, é a questão do desenvolvimento tecnológico que depende da ciência e que entrou de novo na agenda. Todos nos lembramos do que aconteceu em março do ano passado: não tínhamos testes, não tínhamos respiradores, nem equipamentos de proteção individual, e a nação perplexa chegou à seguinte conclusão: a gente compra tudo da China. Ora, por que não fazemos aqui? Existiriam barreiras tecnológicas ou de conhecimento intransponíveis? De maneira alguma. Isso é reflexo de décadas de uma visão totalmente equivocada do que deva ser o processo de desenvolvimento brasileiro, o que se repetiu no início deste ano, quando se tentou justificar a falta de vacinas pela dependência da importação da China dos princípios ativos para produzi-las.   


"Temos hospitais, instituições, programas e
políticas de excepcional qualidade no SUS e no
setor privado. Temos problemas dramáticos de
qualidade no SUS e no setor privado"

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil


Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde. Quando eu estava no ministério, entre 2007 e 2010, implementamos, de maneira pioneira, durante o segundo mandato do presidente Lula, uma política voltada exatamente para essa prioridade: como internalizar e aumentar a capacidade brasileira de produzir aqui tecnologias que até então importávamos. Fizemos isso no campo das vacinas, de medicamentos para transplante, de medicamentos para distúrbios psíquicos, de medicamentos para doenças reumatológicas, de testes para diagnóstico. Chegamos a desenvolver cerca de 80 projetos de parcerias entre laboratórios de capital nacional, multinacionais e laboratórios públicos. Mas, a partir de 2016, tudo se interrompeu, e agora no governo Bolsonaro, simplesmente não temos a menor perspectiva de que esse projeto possa seguir adiante. Em resumo: SUS na agenda, ciência na agenda e a redução da vulnerabilidade tecnológica da saúde brasileira na agenda dos próximos anos.   

RPD: Para quem não é da área, é grande a influência das versões difundidas pela imprensa e redes sociais, essencialmente que estamos em uma situação catastrófica e que vamos bater todas as marcas negativas em relação a essa pandemia. É procedente essa visão? Como chegamos a esse quadro? Onde erramos? Onde o governo federal, os governos subnacionais, a sociedade civil, enfim, erraram? E o que fazer para superar isso no curto prazo, para, senão superar, pelo menos minimizar os estragos que se anunciam?  

JGT: Havia, no início do ano passado, uma expectativa nacional e internacional sobre o desempenho do Brasil no contexto da pandemia, que eu qualificaria de positiva. Baseava-se na existência do SUS, um sistema universal que ampliou muito o acesso da população aos serviços – claro, com todas as dificuldades que conhecemos. Incorporava, também, a percepção internacional, construída ao longo de muitas décadas, da liderança que o Brasil exercera em alguns foros multilaterais, na área da saúde global. A Organização Panamericana da Saúde foi dirigida ao longo de décadas por brasileiros. O primeiro diretor geral da Organização Mundial da Saúde foi brasileiro, o Marcolino Candau, que ficou lá mais de dez anos. O Brasil teve papel importantíssimo na aprovação da legislação de TRIPs, na OMC, que regula a proteção patentária em medicamentos e produtos de saúde. O Brasil foi líder na aprovação da Convenção-quadro para o controle do tabagismo, o primeiro tratado de saúde pública internacional. Ou seja, o Brasil era visto como país dotado das ferramentas e as condições necessárias para enfrentar a pandemia.  

Faltou nessa análise, porém, considerar um componente que terminaria por evidenciar a grande vulnerabilidade brasileira. É bem distinto mobilizar o sistema de saúde, mobilizar a ciência e ter um governo que enfrente uma situação como essa de maneira competente ouvindo a ciência e saúde públicas se você tem uma grande homogeneidade social – caso da Europa. Mas, em um país estruturalmente desigual, como o Brasil, a complexidade das ações requeridas é bem maior. Teríamos de ter tido algumas iniciativas, decisões, o que não ocorreu.   

"O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis"

Por exemplo: desde o início, uma política econômica a serviço da saúde e a serviço da defesa da vida. Contamos, na verdade, única e exclusivamente com o benefício emergencial de R$ 600, graças ao Congresso Nacional, e que foi interrompido em dezembro. Isso foi pouco. Houve muitas iniciativas da sociedade civil, organizações não governamentais, movimentos culturais, movimentos de mulheres, população negra e jovens, para tentar enfrentar de alguma maneira, minimizar o impacto dramático dessa doença e, inclusive, de viabilizar que esses estratos mais vulneráveis da população pudessem manter distanciamento e permanecer em casa. Mas foram claramente insuficientes. O setor privado também ensaiou um apoio, em situações localizadas, desestruturado, desorganizado.   

Além disso, deveríamos ter tido, também desde o começo da pandemia, como implementei quando dirigi o ministério da saúde em 2009 e 2010 ante o surto do H1N1, a liderança do governo federal para coordenar e elaborar um plano de ação, elaborado por um comitê permanente onde o governo federal, os estados e os municípios juntos com a ciência e a saúde pública, construíssem as estratégias. O objetivo seria mobilizar a sociedade, com base em um projeto de comunicação pesado, para orientar, informar, educar, segundo as prescrições da saúde pública e da ciência, vale dizer: evitar aglomerações, manter o distanciamento, uso universal de máscaras, higiene das mãos, e agora as vacinas.   

E o que tivemos? Tivemos uma fragmentação da federação brasileira. O governo federal, na verdade, se transformou em um polo de resistência às medidas prescritas pela ciência e pela saúde pública. O presidente liderou esse processo criminoso repetidas vezes, como o atestam dezenas de exemplos, fatos, declarações e comportamentos públicos.  

Somente em dezembro último, o presidente aceitou, a contragosto, a inclusão da vacina do Butantan no PNI e nunca cessou de prescrever falsos tratamentos, estimulando as pessoas a um comportamento irresponsável. Minimizou a gravidade da pandemia e apostou na curta duração de seus efeitos, para fortalecer sua oposição ao isolamento social e abrir espaço à difusão de fake news. Debilitou o comando as operações do governo no campo da saúde pública ao militarizar o ministério da Saúde, comprometendo sua capacidade técnica, sua respeitabilidade e credibilidade. Deixou o país um ano à deriva, sem ministro e sem ministério. Construiu, na prática, uma autoridade sanitária paralela informal. Quebrou uma das pernas centrais da nossa capacidade de enfrentamento, ao debilitar o pacto federativo, jogando a responsabilidade sobre os governadores e prefeitos. Não orientou nem cobrou uma política econômica que estivesse em total sintonia com a política de saúde.   

Esse comportamento do presidente não deve ser julgado de maneira isolada. Juntam-se, cúmplices, o ministro da saúde, o ministro da economia e o conjunto do governo como um todo, que devem também solidariamente ser responsabilizados pela tragédia que nos levou a mais de 330 mil óbitos, em começos de abril (País superou a marca de 350 mil mortes em 12/04/2021). É o epílogo sangrento, dramático, pungente de um ano de negação, de mentiras, de quebra da federação, de ataque à ciência, à saúde pública e a Organização Mundial da Saúde.   

RPD: Como vê o horizonte da vacinação no Brasil?  

JGT: Tivemos as primeiras vacinas chegando ao mercado internacional em dezembro do ano passado, e o Brasil tem dois dos maiores produtores de vacinas do mundo, resultado, inclusive, de décadas de investimento na Fundação Oswaldo Cruz e no Butantan. O Butantan por conta própria, e em uma luta incrível, insana, contra o presidente da República, fechou acordo com os chineses e desenvolveu sua vacina usando plataforma que o Butantan já domina há muito tempo, a mesma plataforma tecnológica da vacina da gripe que usamos todos os anos, a vacina da influenza. E a FIOCRUZ optou por algo mais ousado: fez um acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford de uma plataforma tecnológica nova: é a primeira vacina no mundo que usa essa plataforma tecnológica, que usa o veículo adenovírus de chimpanzé, que coloca a proteína da espícula do vírus no nosso organismo, e, a partir daí, a gente desenvolve os anticorpos. Dispomos, assim, de duas grandes fábricas de vacinas, mas uma limitação: ainda dependemos da importação dos princípios ativos.   

"A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus"

Considerando esse contexto, o que deveríamos ter feito? Erramos onde não poderíamos ter errado, para além dos erros que já listei aqui, mas no campo das vacinas, especificamente. Sabedores de que tanto o Butantan como FIOCRUZ teriam dificuldades no início do ano de produzir em larga escala por essa dependência de insumos, e também porque o processo de transferência de tecnologia é complexo – é normal não se cumprirem prazos restritos do cronograma –, deveríamos ter feito três coisas que não fizemos:  

- Desde abril do ano passado, o PNI – considerado como um dos melhores do mundo, que vacinou, em 2010, 90 milhões de brasileiros contra o H1N1 em três meses – deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. Não só não fizemos isso, mas também rejeitamos a oferta da Pfizer de 70 milhões de doses. Isso ocorreu no tempo em que o presidente atacava as vacinas o tempo todo.   

- O mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, constituído por um pool de produtores, um fundo financiado por doações e com recursos de países desenvolvidos, foi de início rechaçado pelo Brasil. Quando o governo aderiu, optou apenas pelo número mínimo de doses, que é de 10% da população. Receberemos, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. Só que teríamos direito, e não exercemos, de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   

- Tivéssemos fechado acordos de compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás e garantido um volume de doses que se somariam a ainda incipiente capacidade brasileira do Butantan e FIOCRUZ, neste momento praticamente 10% da população brasileira receberiam a primeira dose, isto é, de 19 a 20 milhões de pessoas. Tivéssemos vacinas a partir de janeiro, já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas. E o impacto disso na redução da circulação do vírus, das pessoas infectadas, internadas, mortas teria sido dramática. Por isso, afirmo: a sociedade brasileira, o povo brasileiro foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandeia.  

RPD: Diante disso tudo, da má gestão política, sanitária, diplomática e econômica, como responsabilizar a quem de direito e evitar que esses crimes fiquem impunes?  

JGT: Já são inúmeras as iniciativas, dentro e fora do país. Eu, mesmo, ao lado de vários outros ilustres sanitaristas e cientistas, subscrevi um pedido de impeachment do presidente da República, pedido que se adiciona a mais de uma centena de outros ora hibernando na gaveta do presidente da Câmara dos Deputados, para não mencionar a representação de ex-ministros da saúde, ex-juristas, juristas advogados, apresentada ao Tribunal de Haia contra o presidente Jair Bolsonaro. O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis.   

Mas o governo federal cooptou, para usar um termo educado, o chamado Centrão para impedir que esses processos avancem. Por isso, não conseguimos garantir que essas iniciativas conduzam à abertura de um processo de impedimento do presidente, o principal obstáculo a um adequado, responsável e sério manejo do enfrentamento da pandemia, onde a ciência e a saúde pública têm que prevalecer. Não conseguimos até o momento transformar esse conjunto de denúncias inclusive junto ao Ministério Público, a Advocacia Geral da União e ao Supremo, em fatos que transcendam a decisão política da denúncia em si. Não conseguimos sequer abrir o processo de impedimento, porque, segundo nossa Constituição, cabe ao presidente da Câmara a decisão monocrática de submeter a matéria à apreciação de seus pares no plenário, o que não ocorreu na gestão do Rodrigo Maia nem parece vir a ocorrer na da Artur Lira. O Ministério Público tem sido omisso diante das dezenas denúncias recebidas não se manifestando. No âmbito do Tribunal de Haia, ainda não se decidiu sobre o acolhimento da representação.  

"Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde"

Não tenho dúvida, porém, de que as evidências são muito contundentes: os crimes estão aí, os números estão aí, os vídeos estão aí, as manifestações estão aí; a tipificação de crimes contra a Constituição e o Código Penal está aí. E todos esses senhores e senhoras serão responsabilizados pelos crimes cometidos contra a população brasileira, contra a segurança nacional. Inclusive, contra o próprio desenvolvimento da nação e a frustração no campo da educação; a fome voltou; a mortalidade por doenças que tinham sido reduzidas, aumentou. Os responsáveis terão de ser punidos. Não apenas nas urnas em 2022: punidos criminalmente por cometimento de crimes contra a vida e a saúde da população.  

RPD: É muito preocupante quando se fala da perda da liderança do Brasil no sistema de saúde global. Mas também é possível dizer que o sistema global também está muito frágil, mesmo com as declarações quase diárias e emocionais, dramáticas, muitas vezes, do diretor geral da OMS. Falta uma coordenação global. Tudo indica que esta não será a última pandemia. Outras virão, no rastro de novos desastres sanitários e sociais, no rastro da questão da migração e do desrespeito à questão ambiental. Tudo isso prenuncia novas pandemias. Para que não sejam tão devastadores como o atual, será necessária uma coordenação sob uma liderança global. O que pensa a esse respeito?   

JPT: Essa é uma questão fundamental para nosso futuro. Começo com o que Brasil conseguiu fazer no exterior no cenário da saúde global. Estive há dois anos em Maputo, em Moçambique, e visitei um projeto desenvolvido pela FIOCRUZ, no âmbito de ações semelhantes lançadas para os países portugueses africanos lusófonos. Era o Instituto de Saúde Pública local, um prédio imponente, construído pelos Estados Unidos, cheio de equipamentos de última geração, fornecidos pela China, e operado por mestres, doutores e especialistas, treinados no Brasil. A importância do projeto refletia a diferença da abordagem da ajuda prestada pelos Estados Unidos e pelo Brasil na capacitação do sistema de saúde. Enquanto os Estados Unidos priorizaram doações para a montagem de programas verticais de combate a doenças escolhidas, como malária, chagas ou tuberculose, o Brasil privilegiava um olhar da cooperação em saúde estruturante, vale dizer, ajudando os países a organizar seu sistema de saúde, suas instituições permanentes de saúde.  

Isso foi alcançado pela associação entre o Ministério da Saúde, pelo menos de 2000 à gestão do ex-ministro Serra até 2016, e do Itamarati, por intermédio da ABC – Agência Brasileira de Cooperação. E nós perdemos tudo isso quando o Michel Temer entra, e principalmente agora com o Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores virou motivo de chacota nos corredores do Itamarati e acabou saindo, não sem antes contribuir para destruir a projeção visão internacional do Brasil, também no campo da saúde. Teríamos podido ajudar muito mais os países em desenvolvimento.  

Não devemos esquecer, por outro lado, que, a reboque da visão de Trump, Bolsonaro atacou frontalmente a OMS justo quando o mundo precisava de uma agência forte, nos planos técnico, financeiro e político. Falando em coordenação internacional, a OMS é absolutamente fundamental, haja vista a realidade nua e crua das vacinas. Atualmente, a questão da distribuição e consumo, a disponibilização de vacinas em termos globais, repete o mesmo padrão de desigualdade das outras tecnologias da saúde ao longo de décadas. Mais de 60% de todas as doses de vacinas destinam-se a atender cerca de 15 países, os países ricos.   

Tudo isso clama por uma OMS fortalecida. Fortalecida, inclusive para começar a discutir outros temas: a questão de patentes. A proteção patentária está na OMC, mas deveria estar na agenda de discussão e trabalho da OMS. Não há dúvida de que teremos situações de vulnerabilidade sanitária e outras pandemias no futuro. Impõe-se, portanto, uma OMS cada vez mais forte. E que o Brasil reocupe o papel tão importante que ocupou ao longo das últimas décadas, infelizmente, conspurcado, apagado pelo governo Bolsonaro.  

Saiba mais:

*José Gomes Temporão é médico sanitarista, membro da Academia Nacional de Medicina, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz.

*Luiz Antonio Santini é médico, professor da UFF de Cirurgia e de Saúde Pública, ex-diretor do INCA e pesquisador associado da Fiocruz.

*Caetano Araújo é consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP).

*Renato Ferraz é jornalista profissional desde 1988. Trabalhou em veículos como Veja, Correio Braziliense, Congresso em Foco e outros. É pós-graduado pelo UniCeub e pela ISE Business School/Universidad de Navarra.

  • ** Entrtevista realizada para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Fernando Gabeira: O som e a fúria em Brasília

Com um governo negacionista como o de Bolsonaro despontamos para o atraso

Não é fácil entender a política brasileira, mas quem se detiver, esta semana, nos dois mais intrincados nós a serem desatados em Brasília talvez chegue a algumas conclusões interessantes. Os dois nós são a CPI da pandemia e a inadequação do Orçamento da União.

No primeiro, o governo é acusado de omissão no processo de combate ao vírus que já nos custou mais de 360 mil vidas e poderá custar 600 mil até julho, segundo prognósticos da Universidade de Washington. Acusações e mesmo investigações sobre a atuação de Bolsonaro na pandemia não são novas. Há processos no Tribunal Internacional de Haia e inquéritos como o das mortes em Manaus, em que Eduardo Pazuello é o principal investigado.

Bolsonaro é acusado de negacionismo e, realmente, tem negado a importância da pandemia desde o início. Era previsível que surgisse uma CPI sobre o tema no Congresso, uma vez que os parlamentares estavam de quarentena, mas não mortos.

Eleito com apoio de Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, bloqueou a instalação da CPI. Quando, numa entrevista, perguntei a razão do bloqueio, ele respondeu com os argumentos usais de que é preciso união, foco no combate à doença. Na verdade, usou o argumento da própria pandemia para negar direitos legais, algo que muitos governos autoritários tentam fazer no mundo.

A reação de Bolsonaro à CPI foi uma nova forma de demonstrar seu negacionismo. Ele sabe que CPI, além do número legal de assinaturas, precisa de fato determinado. Na conversa gravada com o senador Kajuru, ele pede que a investigação seja estendida aos prefeitos e governadores. É preciso investigar tudo, diz ele. E nós sabemos que essa é a senha para não investigar nada.

A proposta é quase tão absurda quanto chamar a covid-19 de gripezinha ou insinuar que a vacina transforma gente em jacaré. O Senado teria de usar seus recursos limitados para investigar todo o Brasil, sabendo que 11 Estados já fazem essa investigação e em dois, Rio de Janeiro e Santa Catarina, os governadores investigados já foram afastados do cargo.

Isso tudo sem contar o fato de que a Polícia Federal trabalha no tema em nove Estados e já recuperou em torno de R$ 7 milhões desviados, até com incursões em gabinetes de governador, como no caso de Helder Barbalho, no Pará.

Bolsonaro convidou o Senado à dispersão de esforços para se proteger. E não satisfeito em lançar mão de Estados e municípios como escudo, quer que se abram processos contra ministros do Supremo.

São duas lições importantes sobre a política no Brasil. Acusados tentam sempre ampliar as investigações para desaparecerem nela, e quase sempre alegam que todos estão errados. No caso, a ideia é pôr a limitada estrutura do Senado a investigar todo o Brasil e, simultaneamente, tentar cassar membros do Poder Judiciário.

Em outras palavras, a melhor maneira de investigar a omissão criminosa de Bolsonaro é uma ofuscante e laboriosa atividade cujo resultado pode ser nulo. É uma nova pirueta do negacionismo. Não houve pandemia, muito menos responsáveis pela mortandade. A CPI seria apenas, como em Macbeth, uma história, contada por idiotas, cheia de som e fúria, significando nada.

O nó do Orçamento também é interessante, por mostrar que se tornou um instrumento tão precário que não serve nem para um desgoverno como esse que existe hoje no Brasil. Negociações medíocres entre governo e Congresso acabaram fazendo a balança pender para alguns ministérios e, sobretudo, para o lado dos parlamentares.

Não se sabe onde vai parar parte do dinheiro da Previdência, do seguro-desemprego, do financiamento da agricultura familiar. O próprio Paulo Guedes afirma que com esse Orçamento é impossível prosseguir e teme até o impeachment de Bolsonaro. Como sempre, a conta está um pouco mais alta: R$ 33 bilhões.

O que é esclarecedor sobre o Brasil são as soluções discutidas nos bastidores. Aí, sim, o observador conhecerá um pouco da nossa cultura, seguindo o debate. Uma das propostas para livrar Bolsonaro de processo é uma viagem ao exterior. O Orçamento seria assinado por Arthur Lira, que já está queimado mesmo e serviria de escudo para o presidente.

Também muito didática é a troca de ideias entre Guedes e os parlamentares. O ministro propõe que sejam cortados os R$ 33 bilhões e se façam ajustes lá na frente. Os parlamentares propõem que sejam mantidos e se façam ajustes lá na frente. Uma ausência tão completa de planejamento é também uma espécie de negação do governo. O Orçamento é apenas para tocar os assuntos correntes.

O problema é que essa ausência de governo real assusta até o mercado. Hoje apenas por ser uma dispendiosa ausência. Logo o próprio mercado sentirá falta de um governo com projetos de renovação pós-pandemia.

Nos Estados Unidos discute-se uma nova relação entre governo e forças produtivas, trabalha-se com a consciência de um desastre climático, aprofunda-se a experiência digital. O Brasil costuma levar alguns anos para se sintonizar com o mundo. Quase sempre foi assim, mas com um governo negacionista certamente despontamos para o atraso.

*Jornalista


Monica de Bolle: O plano Biden

Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente

Diretamente de Washington D.C., vejo com curiosidade a maneira como a imprensa brasileira tem repercutido o plano do presidente Joe Biden para aprimorar a infraestrutura do país e deslanchar sua dupla agenda de proteção social e combate às mudanças climáticas. Curiosidade e também alguma graça. Persiste no Brasil a ideia de que os Estados Unidos são o exemplo de país em que o desenvolvimento se deu pela iniciativa privada, sem protagonismo do Estado. A ideia é errada e mostra um profundo desconhecimento da história do país. E o desconhecimento histórico, nesse caso, não é inofensivo, porque acaba servindo para afastar os aspectos positivos do Estado indutor, em argumentos simplórios, que apresentam apenas seus aspectos negativos, que de fato existem. Tenta-se revitalizar, com esse tipo de construção, a noção de que o Estado protagonista só traz ineficiências, como se o mundo pudesse ser simplificado para caber no que tenho chamado de “liberalismo à brasileira”.

Os Estados Unidos se industrializaram tardiamente, assim como a Alemanha e o Japão, quando se tem o Reino Unido como termo de comparação. A industrialização americana aconteceu na segunda metade do século XIX e foi extremamente rápida: no fim do século, os EUA já rivalizavam com o Reino Unido no comércio internacional. A industrialização no país seguiu alguns dos princípios estabelecidos por Alexander Hamilton — o primeiro secretário do Tesouro — no final do século XVIII. Em sua obra Report on the subject of manufactures, publicada em 1791, Hamilton elabora os princípios da industrialização destacando que o desenvolvimento nacional requeria medidas que discriminassem a favor dos produtores locais.

Portanto, argumentava Hamilton, o processo de industrialização teria de se ancorar em dois eixos principais: o protecionismo e a substituição de importações. Alguns anos mais tarde, Friedrich List iria se valer de argumentos semelhantes para tratar da industrialização alemã. O interessante é que List o faria a partir de suas observações em relação ao que se passava nos Estados Unidos, onde residira antes da publicação de Sistema nacional de economia política, em 1841. Tanto Hamilton quanto List exerceram grande influência sobre o papel do Estado na industrialização americana. Ao final do século XIX, os grandes conglomerados industriais deveriam sua existência ao Estado indutor do desenvolvimento.

Para o desgosto de alguns no Brasil, o “desenvolvimentismo” marcou, assim, a ascensão da economia americana e continuaria a se fazer presente, em maior ou menor intensidade, nas muitas décadas que se seguiram. Em 1934, estaria lá o Estado para socorrer o país da Grande Depressão. A corrida espacial e o complexo tecnológico que a possibilitou durante a Guerra Fria não teriam sido possíveis sem o papel do Estado. Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, a internet foi concebida e desenvolvida pelo governo americano. Todo o setor de tecnologia de informação hoje existente não teria se formado sem o financiamento do Estado. Por fim, e essa não é uma lista exaustiva, os Estados Unidos não seriam dominantes na área de biotecnologia sem o papel do Estado. Esse domínio, hoje, está mais visível do que nunca no desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19: as vacinas gênicas da Pfizer e da Moderna, que usam tecnologia mais sofisticada, foram possíveis graças a financiamento e contratos de compra no âmbito da Operação Warp Speed.

É nesse contexto que se insere o Plano Biden. Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente.

Ele prevê investimentos maciços em áreas diversas e seu tamanho — todo o PIB do Brasil — deixou alguns assombrados. É curiosa essa reação. Trata-se do país emissor da moeda de reserva internacional, o dólar, anunciando um plano ambicioso e caro, como fez em diferentes momentos ao longo de sua história. Mas, para muitos, parece que essa história não existe, ou foi reinterpretada à luz de um punhado de anos em que reinou suprema a ultraortodoxia da Escola de Chicago, que não mais existe aqui nos Estados Unidos.

Os “liberais à brasileira” vão ter de se conformar com o “desenvolvimentismo” de Biden. O mais saboroso? Serão testemunhas do quão acertado o plano é para o momento atual.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkin


Andrea Jubé: Está em curso uma operação de minimização de danos

Objetivo de parte dos ministros é salvar Lava-Jato

A maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu ontem o salvo-conduto para que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concorra à Presidência da República em 2022, prerrogativa que lhe foi negada pela mesma Corte em 2018.

“Três anos depois” - dirá o PT, repetindo o comentário irônico do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas à nota de repúdio divulgada pelo ministro Edson Fachin.

O relator da Lava-Jato reagiu à revelação, no livro de memórias do general, de que a cúpula do Exército atuou para pressionar a Corte a barrar a candidatura do petista naquele ano.

Em contrapartida, o voto de Fachin blindou a Lava-Jato, como fez questão de deixar claro o presidente do STF, Luiz Fux. Em seu voto, ele explicitou que os efeitos do julgamento de ontem não são “sistêmicos”, e que a operação está preservada.

O julgamento de ontem foi uma operação de redução de danos: se a maioria do plenário confirmar, na semana que vem, a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos contra Lula, conforme decisão da Segunda Turma, somente nesta hipótese a Lava-Jato estaria à deriva.

A maioria em torno da parcialidade de Moro anularia integralmente os processos contra Lula. A prevalecer exclusivamente a declaração de incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, os processos serão retomados no juízo federal do Distrito Federal ou em São Paulo, conforme tese levantada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Nessa hipótese, entretanto, é pouco provável que haja tempo hábil para nova condenação que tornasse Lula novamente inelegível. “A candidatura de Lula agora é de difícil reversão”, sentenciou o secretário-geral do PT e advogado de formação, deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Ele avalia que o julgamento de ontem evidenciou que foi montada uma “farsa” para inviabilizar a candidatura de Lula em 2018.

“Ele só foi julgado lá atrás porque tinha um juiz suspeito, a incompetência é derivada da suspeição”, afirmou. Nem a defesa de Lula nem a cúpula petista espera para a próxima semana a reedição do placar de 8 a 3 em relação à análise da imparcialidade de Moro. Contudo, há expectativa por um placar favorável de 6 a 5. Três votos contra Moro são conhecidos por causa do julgamento na Segunda Turma: os de Gilmar, Lewandowski e Cármen Lúcia. A aposta para formar maioria volta-se para os votos de Dias Toffoli, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. A conferir.

Talvez para evitar que à demora de três anos se somasse mais uma semana, os ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, e Ricardo Lewandowski anteciparam ontem os seus votos, tornando fato consumado a decisão em relação à incompetência da 13ª Vara Federal para julgar os processos contra Lula. Do contrário, o impasse se estenderia até a retomada do julgamento no dia 22. O suspense ficou reservado ao desfecho da suspeição de Moro.

A esperança também move os petistas, embalados por uma declaração sintomática de Fachin, em agosto do ano passado, de que a candidatura presidencial de Lula em 2018 “teria feito bem à democracia”.


César Felício: A aposta de Lula no front externo

Apoio internacional é arma para se esquivar de mazelas

Em uma charge do jornal suíço “Neue Zürcher Zeitung”, publicação que está longe de ser de esquerda, o presidente Jair Bolsonaro foi retratado dentro de uma escavadeira, derrubando uma árvore. Atrás do presidente, em um gigantesca escavadeira vermelha, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva prepara-se para remover o rival, enquanto um pequenino tucano revoa apavorado.

Nesta semana, o francês “Le Monde” publicou um extenso material em que busca demonstrar que a Operação Lava-Jato foi muito influenciada por integrantes do governo e da Justiça dos Estados Unidos.

Em conversa por WhatsApp com o jornalista John Lee Anderson, da “New Yorker”, publicada dia 13, Lula pontificou: “É preciso que os países ricos esqueçam as divergências para discutir a produção de vacinas e a vacinação de todos”. Ao falar com o espanhol “El País”, no mês passado, abusou da soberba. “A Europa desapareceu na política. Tudo são comissões. Comissão para isto, comissão para aquilo... todos uns burocratas”, e arrematou: “Sejamos sinceros, meu tempo foi o melhor momento da América Latina desde Colombo”.

Se no Brasil o ex-presidente até o momento evitou conversar com veículos de imprensa de expressão nacional, salvo quando as entrevistas são conduzidas por jornalistas com quem tem afinidade pessoal no momento, no exterior o petista tem se sentido à vontade para falar, mesmo quando é contestado de modo mais contundente, como foi o caso de sua entrevista para a portuguesa “RTP” ou a italiana “Tg2 Post”. Na última, chegou a fazer um mea culpa, algo muito raro, por não ter extraditado o terrorista Cesare Battisti. O episódio faz com que sua imagem na Itália seja pior do que a que desfruta em outros países. Sobre Battisti, ele disse que se surpreendeu com a delação do italiano. “Mi sono sbagliato” [eu estava errado] disse Lula, na tradução livre feita por portais daquele país.

As entrevistas de Lula lá fora são semeaduras em um terreno já arado e adubado faz tempo. Um paciente trabalho de cultivo de relações fez com que o ex-presidente tenha vencido no exterior a disputa de narrativa com os artífices da Lava-Jato. O relato que prevalece é que a principal liderança de oposição ao atual presidente brasileiro foi alvo de perseguição judicial e política. Ele não é visto como o presidente em cujo governo se desenvolveu o maior esquema de corrupção conhecido no planeta.

Sua tarefa é ainda mais facilitada pelo fato de o Brasil ter um presidente como Bolsonaro. Segundo levantamento feito pela consultora política Olga Curado, com apoio da Universidade Federal de São Carlos, um grupo de sete publicações (“New York Times”, “Le Monde”, “El País”, “Der Spiegel”, “The Guardian”, “Economist” e “Washington Post”) editaram 1.179 matérias sobre o Brasil. Destas, 92% ressaltando aspectos negativos do país.

Em 52% dos casos, eram matérias sobre erros de gestão de Bolsonaro na condução da pandemia. Em 23% das situações, notícias sobre a fragilidade das instituições, em função de atos e palavras do presidente. Foi a tal personagem, com este tipo de imagem no exterior, que Sergio Moro serviu como ministro por um ano e meio. Não há como a Lava-Jato ser vista de maneira positiva no âmbito internacional, já que a sua consequência política concreta se chama Jair Messias Bolsonaro.

Isso contribui para que o ex-presidente se esquive de responder pelas mazelas de sua gestão e do governo da sua sucessora. Mais: ele se apresenta de volta ao cenário pautando o debate que lhe interessa.

É evidente que o brasileiro médio pouco se importa com a imprensa internacional e provavelmente nunca leu nada sobre o Brasil apresentado a estrangeiros. Mas Olga Curado ressalta que para o público doméstico a cobertura internacional de Lula serve como um reforço de argumento àqueles que já têm simpatia pelo presidente.

No imaginário de certos públicos, a grande mídia nacional carece da credibilidade que possui a mídia estrangeira, supostamente não envolvida com as circunstâncias domésticas. São validadores. Auditores independentes, por assim dizer.

Se os bolsonaristas lançam mão de blogueiros para responder ao noticiário negativo, Lula prefere dar recados em inglês, francês, espanhol ou italiano do que se submeter ao escrutínio da grande imprensa nacional.

O prestígio internacional de Lula é escorado no passado. Estão com ele ex-mandatários que foram seus contemporâneos, como o francês Nicolas Sarkozy e o espanhol José Luis Zapatero, o paraguaio Fernando Lugo, o equatoriano Rafael Correa e o panamenho Martín Torrijos. Os quatro últimos reunidos no Grupo de Puebla, que soltaram no mês passado uma nota definindo a decisão do ministro Luiz Edson Fachin em anular as sentenças de Curitiba como “um sopro de esperança no restabelecimento do devido processo legal”.

Mas Lula também tem seus aliados do presente. Ter sido recebido pelo papa Francisco não é trivial. E um conterrâneo, do pontífice, o presidente argentino Alberto Fernández soltou no dia 11 uma série de tuítes que, caso fossem de autoria de um general brasileiro, provocariam de certo uma crise com o Supremo, uma vez que publicados na antevéspera de um julgamento na corte.

“Vemos com preocupação que pretende reiniciar-se a perseguição a Lula utilizando as mesmas más práticas já usadas”, afirmou o argentino. “Dar marcha a ré na decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal por pressões midiáticas e políticas significaria um retrocesso institucional para o Brasil e um dano incalculável para os que reivindicam o Estado de Direito como base de sustentação à democracia”.

Correntes como esta para Lula são importantes porque há uma possibilidade de que ele se torne em 2022 um candidato a presidente que polarize com Bolsonaro tendo que se defender na Justiça de modo constante. O julgamento de ontem no STF, em que venceu por 8 a 3, em nada indica vida tranquila. O voto de Fux, por exemplo, sugere que a suspeição de Moro não é tema pacificado. Pode fazer uma campanha em meio a petições, liminares, alegações iniciais, alegações finais, sustentações orais, pronúncias, agravos, quem sabe sentenças em primeira instância. O petista precisará usar a vitimização como uma estratégia perene.


Ricardo Noblat: Um presidente assombrado pelo fantasma do impeachment

Bolsonaro impõe condições a Deus para deixar a presidência

Se não bastassem os problemas que ele mesmo cria em volume considerável, além dos naturais que costumam afligir qualquer governante, o presidente Jair Bolsonaro ganhou mais um de bom tamanho que certamente lhe subtrairá o sono até que se resolva.

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, deu um prazo de cinco dias para que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), explique por que não aceitou até agora nenhum dos pedidos de processo de impeachment contra Bolsonaro.

São mais de 60 pedidos que repousam numa gaveta desde quando Rodrigo Maia (DEM-RJ) era o presidente da Câmara. Outros quatros foram arquivados pelo não cumprimento de formalidades. Maia sempre disse que não era a hora de examiná-los.

Lira, eleito presidente da Câmara contra a vontade de Maia, pensa a mesma coisa. A seu juízo, e por falta de conveniência no momento, o melhor é que fiquem adormecidos. A acordarem, só quando o governo estiver caindo pela tabela, o que ainda não está.

Foi por pensar nessa mesma linha que Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, havia deixado sem resposta o pedido de instalação da CPI da Covid, um direito da minoria parlamentar reconhecido pela Constituição.

Até que, na semana passada, o ministro Luís Roberto Barroso mandou que a CPI fosse instalada. O plenário do Supremo confirmou a ordem de Barroso. O requerimento de instalação foi lido em sessão do Senado, e indicados os 11 membros da CPI.

Há, de fato, um vácuo na legislação sobre o impeachment. Não cabe ao presidente da Câmara arquivar pedidos a seu gosto, mas não há prazo para que delibere a respeito. Se arquivar, abre brecha para que um recurso seja interposto e o plenário consultado.

O vácuo na legislação poderá ser preenchido se Cármen Lúcia determinar o exame dos pedidos de impeachment acumulados. É isso o que teme Bolsonaro e que o fez reagir na live semanal das quintas-feiras nas redes sociais. Bravateou:

– Eu não quero me antecipar e falar o que acho sobre isso, mas digo uma coisa: só Deus me tira da cadeira presidencial e me tira, obviamente, tirando a minha vida. Fora isso, o que estamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar. Mas não vai mesmo.

Como cristão fervoroso que fez questão de se batizar nas águas do rio Jordão, Bolsonaro está cansado de saber que Deus concedeu ao homem o livre arbítrio. Pode observar tudo à distância segura, mas não se mete. Bolsonaro cairá ou não independente dele.

A frase “só Deus me tira da cadeira presidencial” é nada. Impor a Deus a condição de só tirá-lo da presidência tirando antes sua vida é escárnio com Deus. Bolsonaro não foi esfaqueado porque Deus deixou, nem Getúlio Vargas suicidou-se porque Deus quis.

Bolsonaro sente que o cerco se estreita em torno dele, e que talvez não se reeleja no ano que vem. É difícil, mas já não é mais impossível que seu mandato acabe abreviado. A culpa, a máxima culpa será sua, somente sua, e de mais ninguém.

Escaldado, Bolsonaro oscila no uso de pronomes sobre o Exército

Uma medida das dificuldades que ele enfrenta

O presidente Jair Bolsonaro pode não saber, ou porque faltou à aula ou porque nunca leu um livro como confessou, mas pronomes são palavras que acompanham os substantivos podendo substituí-los (direta ou indiretamente), retomá-los ou se referir a eles.

No momento, ele está às voltas com pronomes possessivos para designar o Exército ou as Forças Armadas. O que lhe causará menos problemas? Referir-se ao Exército como “meu Exército”? Ou como “nosso Exército”? Ou ainda como o “seu Exército”?

Há poucas semanas, ao demitir o ministro da Defesa, um general, e forçar a saída dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, ele chamou o Exército de “meu Exército”. Apanhou muito por isso e detonou uma crise militar.

Mais recentemente, valeu-se da expressão “nosso Exército”, mas ainda assim causou desconfiança. Ontem, finalmente, em discurso de passagem do comando militar do Sudeste,  em São Paulo, evoluiu para “seu Exército”, como se nada tivesse a ver com ele.

Como presidente da República, quer se goste disso ou não, ele é o comandante das Forças Armadas, apesar de ter sido afastado do Exército por indisciplina e má conduta ética nos anos 1980. Chegou a planejar atentados terroristas a quartéis.

Cobrou dos novos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica que o tratem como “Supremo Comandante das Forças Armadas”. Só o comandante da Aeronáutica, um brigadeiro bolsonarista, já o fez.


Bernardo Mello Franco: Plano de desmonte

No início da pandemia, Ricardo Salles expôs um plano para desmontar o sistema de proteção ao meio ambiente. Segundo ele, era preciso aproveitar as atenções voltadas para o coronavírus e “ir passando a boiada”. O ministro pode ser acusado de muita coisa, menos de não fazer o que prometeu.

Desde a célebre reunião de abril de 2020, Salles revogou normas de licenciamento, perseguiu servidores e se aliou abertamente aos devastadores da Amazônia. O resultado foi o maior desmatamento da floresta em dez anos, de acordo com os dados do Imazon.

Encorajado pelo chefe, o ministro continuou a tabelar com os algozes da floresta. Em março, ele se solidarizou com os alvos da maior apreensão de madeira da história do Brasil. A atitude revoltou os investigadores que comandaram a operação. “Na Polícia Federal não vai passar boiada”, reagiu o superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva.

O delegado não se limitou a protestar. Apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma notícia-crime contra Salles e o senador Telmário Mota. O documento acusa a dupla de advocacia administrativa, participação em organização criminosa e infração contra a lei de crimes ambientais.

Para Saraiva, o chefe do Ministério do Meio Ambiente atacou a PF “de forma parcial e tendenciosa, comportando-se como verdadeiro advogado da causa madeireira”. A descrição também serve para ilustrar as relações do ministro com grileiros de terra e garimpeiros ilegais.

A ousadia de Salles mostra que ele não age sozinho: cumpre tarefas combinadas com Jair Bolsonaro. Ontem o presidente deu mais um sinal de apoio à devastação. Em vez de demitir o ministro, mandou afastar o superintendente da PF que o acusou.

Saraiva fez o que o procurador Augusto Aras se recusa a fazer: denunciou o desmonte ambiental e tentou laçar a boiada de Salles. O Congresso também tem sido cúmplice do ataque à Amazônia. Agora, o Supremo tem uma chance de frear as motosserras.

A Corte ainda ganhou novos elementos para o inquérito que apura a interferência do presidente na PF. A investigação completa um ano no próximo dia 28. Ao derrubar o superintendente, Bolsonaro escancarou, mais uma vez, o plano de capturar a polícia para defender seu grupo político.


Eliane Catanhede: O que Bolsonaro quis dizer com ‘providência’ e ‘sinalização’ contra o ‘barril de pólvora’ no Brasil?

Brasil convive com os absurdos e ameaças praticamente diárias do presidente, que ninguém leva a sério, mas irritam

 “O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar uma providência. Estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego está (sic) aí”, disse o presidente da República, Jair Bolsonaro, que vê um “barril de pólvora” no País. Atenção! Ele não estava falando dos mortos, nem de providências e sinalizações contra a covid-19.

Alvo do Supremo, da CPI do Senado, do TCU, do Ministério Público, da mídia, de epidemiologistas, psiquiatras e cientistas, de economistas e sociólogos, da OMS, de toda a comunidade internacional e, agora, de parte do empresariado, do mundo financeiro e até do Centrão, Bolsonaro reage à la Bolsonaro: ameaça.

O que ele quis dizer com essa frase enigmática? Quem é o “pessoal” que sugere providências? Filhos, olavistas, militares, poloneses, húngaros e Donald Trump? Que “providências” seriam essas? Atacar um ou todos os poderes, assumir o controle de polícias e milícias? Quem é “o povo”? O do Twitter, do Facebook, as vivandeiras virtuais? E, afinal, que “sinalização” o presidente está esperando?

É estranho, absurdo, obtuso e doentio que Bolsonaro ainda não consiga, nem queira, compreender qual é o real barril de pólvora no Brasil: uma pandemia que já provocou 360 mil mortes, colapso dos hospitais, pressão no sistema funerário, falta de medicamentos, impacto sobre indústria, empresas e serviços, desemprego e fome.

Ele fecha os olhos para todas as evidências, não tem capacidade para compreender a origem e o desenrolar da crise e nunca conseguiu sair da trilha da “gripezinha” nem admitir o óbvio, que a crise econômica e social não é resultado das medidas de isolamento social, mas sim do fracasso no combate à pandemia.

O Brasil se acostumou com uma rotina de contagem macabra de corpos, pessoas asfixiadas, sem oxigênio, sem leito, amarradas a macas por falta de medicamentos para intubação. E, além disso, convive com os absurdos e ameaças praticamente diárias do presidente, que ninguém leva a sério, mas irritam. Se há um “barril de pólvora”, é culpa dele.

A covid se fortalece, Bolsonaro se enfraquece. A CPI vem no pico da pandemia e na pior fase do presidente, com maioria para apurar de fato tudo o que ele deveria fazer e não fez e tudo o que ele não deveria fazer e fez. O material é farto e irrespondível: uma profusão de vídeos e áudios com aglomerações, “gripezinha”, “frescura”, “maricas”, “mimimi”, implicâncias com a China e nenhuma providência, campanha ou bom exemplo pelo isolamento, máscaras, vacinas.

Há, ainda, os depoimentos de quatro ministros da Saúde, de especialistas em vírus e epidemias, de médicos e enfermeiros, numa realidade de desdém, erros, incompetência e, sobretudo, de obsessão em favorecer o vírus, as infecções e as mortes. Ai do Brasil se dependesse do governo Bolsonaro para a imunização, ai do Brasil se não tivesse “a vacina chinesa do Doria”!

A CPI deixa Bolsonaro tonto, o STF está atento, o TCU e o MP estão na cola do general Eduardo Pazuello, que só obedeceu. A OMS, a revista Science, o parlamento europeu, a mídia internacional e até o papa apontam o dedo para o Brasil. O parlamento da França dá gargalhadas com Bolsonaro e sua cloroquina. E o neurocientista Miguel Nicolelis grita: “Basta!”.

Bolsonaro não ouviu os alertas, arrebentou a corda, exauriu a paciência nacional, destruiu a imagem do País e, na comparação, amenizou a ojeriza de muitos a Lula, que ontem confirmou sua elegibilidade no Supremo. Em 2018, a frase mestra foi: “Voto no Bolsonaro para derrotar o PT”. Em 2022, tende a ser: “Contra Bolsonaro, voto até no Cabo Daciolo”. A dúvida é o que acontecerá, até a eleição, no “barril de pólvora” chamado Brasil.


Vera Magalhães: Salles não é Ernesto nem Weintraub

Quem imagina que a pressão internacional pela adoção de políticas mais firmes no combate ao desmatamento, a demissão do superintendente da Polícia Federal no Amazonas ou os sucessivos indicadores de aumento dos desmates e das queimadas colocam em risco imediato a permanência de Ricardo Salles no governo deve atentar para uma diferença importante: Salles não tem nada a ver com Abraham Weintraub ou Ernesto Araújo.

A começar pela origem. Salles não é um fanatizado seguidor de Olavo de Carvalho, nem mesmo um cultor da imagem de Jair Bolsonaro como um “mito”. A associação entre ambos é uma conveniência de agenda, pragmática para ambos os lados.

O ministro não era o preferido do presidente eleito na transição. As primeiras reuniões entre eles foram cercadas de desconfiança, pelo fato de Salles ter integrado o governo de Geraldo Alckmin.

O paulista ganhou o posto ao se comprometer a implementar à risca a agenda de Bolsonaro, que logo nas primeiras conversas reclamou do excesso de fiscalização e de multas aplicadas por órgãos como o Ibama a madeireiros e produtores rurais. Disse que seu ministro teria a incumbência de acabar com a “indústria da multa” e enfraquecer o papel das ONGs, inclusive suas conexões no Inpe, no Ibama e no ICMBio.

Este é um ponto fulcral: diferentemente de Araújo e Weintraub, cujo comportamento caricato e cuja mente persecutória não permitiam que cumprissem nenhum planejamento de desmonte de seus órgãos sem que isso naufragasse como um plano infalível do Cebolinha, Salles sabe planejar e executar a agenda de Bolsonaro. Tem feito isso com extrema eficácia ao longo de dois anos e três meses.

O que ele propugnou na famosa reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, aproveitar a pandemia para “passar a boiada” do desmonte da estrutura de fiscalização e a legislação ambiental, inclusive do arcabouço legal, está sendo implementado à risca. Basta pegar a lista de normas revogadas nos últimos meses, inclusive as concernentes à concessão de licença ambiental.

Salles não se furta a defender a agenda de Bolsonaro em entrevistas, reuniões com outros países e fóruns internacionais. Faz isso sem alterar a voz ou a fisionomia, supostamente esgrimindo dados, que distorce sem nem corar. Aperta os botões certos para demitir ou mandar afastar quem cruza seu caminho, como acaba de acontecer com o superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva — algo “já planejado”, segundo os envolvidos.

A queda de Salles dependeria de alguns fatores combinados. Primeiro, uma evidência que o ligasse à defesa dos interesses de empresas privadas que agem ilegalmente nos ramos de madeira, extração mineral ou agropecuária, como acusou Alexandre Saraiva na notícia-crime que enviou ao Supremo Tribunal Federal.

Portanto, se o STF abrir mais um inquérito para investigar um ministro de Bolsonaro, e exigir, como Alexandre de Moraes garantiu no caso das denúncias de Sergio Moro, um delegado da PF destacado para isso que não possa ser removido pelo diretor-geral Paulo Maiurino, a situação do titular do Meio Ambiente poderia se complicar.

O segundo fator que pode atrapalhar a permanência do extremamente eficiente (para Bolsonaro) Ricardo Salles é uma sanção mais concreta da União Europeia, da China ou dos Estados Unidos às exportações brasileiras pela nossa trágica gestão ambiental.

Isso faria com que o prejuízo pela manutenção do ministro se fizesse sentir no bolso daqueles que apoiam Bolsonaro: o agronegócio, o setor da mineração e os madeireiros. O presidente já perdeu sustentação em segmentos importantes, como o mercado financeiro e o empresariado industrial, em razão do desastre na resposta à pandemia e da economia que não decola. Se sentir que a própria cabeça estará na guilhotina, não se furtará a colocar a de seu dileto ministro no lugar.


Murillo de Aragão: O momento pré-eleitoral

O ambiente é de total indefinição e surpresas devem acontecer

Uma das lições de 2018 foi tirada do início prematuro da pré-campanha e da curta duração da campanha presidencial em si. A campanha curta decorreu da imposição de limites de gastos por candidatura e do fim das doações milionárias de empresas, bem como da decisão do Congresso Nacional de reduzir pela metade o tempo da campanha.

As decisões do Legislativo e o ambiente polarizado por causa da Operação Lava-Jato e pelo processo de impeachment de Dilma Rousseff aqueceram a pré-campanha. Ao mesmo tempo, a Lava-Jato, com seus acertos e exces­sos, devastou o mundo político.

Poucos, além de Jair Bolsonaro, perceberam o alcance das mudanças e o início prematuro da corrida eleitoral. No começo de 2017, ele já estava em plena atividade eleitoral. Aproveitava-se de três fatores: não ser levado a sério pelo mundo político como candidato, do desgaste do establishment político com o avanço das investigações de corrupção e o uso intensivo e eficiente das redes sociais.

Fato é que, às portas das eleições de 2018, remanesceram duas narrativas: Bolsonaro como o candidato anti-establishment e Fernando Haddad como o “procurador” do lulismo. O centro e as periferias não conseguiram se posicionar. Ficaram pelo meio do caminho.

“O espaço para candidaturas e alianças potencialmente improváveis ainda está em aberto”

Considerando o quadro atual, como estamos em termos de pré-campanha? Vale lembrar Juan Manuel Fangio, multicampeão argentino de Fórmula 1, que dizia: “Carreras son carreras, y terminan cuando se baja la bandera de cuadros”. A máxima é reforçada pelo fato de as circunstâncias de 2018 não mais estarem presentes. Temos um ambiente político muito diferente. Mas, como sempre, cheio de eventos inesperados.

Dois deles se destacam. O primeiro é a pandemia de Covid-19, tema que entrou na agenda no início de 2020 e que continuará a afetar a política e a economia até as vésperas das eleições. Tanto pelo aspecto sanitário quanto pela questão econômica. O outro é a entrada de Lula no rol de pré-candidatos.

A potencial polarização Bolsonaro versus Lula — que existiu em 2018 — e a desorganização política dos partidos de centro nos remetem a uma história conhecida. Mas, talvez, o cenário não seja tão óbvio.

A demora na queda da taxa de mortalidade e a lentidão no processo da vacinação terão reflexos sérios na construção de narrativas. E a CPI da Pandemia, mesmo que, eventualmente, seja tutelada por uma maioria governista, servirá de palanque para ataques ao governo. O governo, pelo seu lado, ainda enfrenta a indefinição sobre como a economia vai se comportar em 2022. No centro, a falta de um candidato natural e a desunião dos partidos são enigmas a ser resolvidos. A fragmentação da esquerda também é uma questão.

Todos os problemas hoje estão ocorrendo da porta para dentro nos arraiais políticos. Enquanto isso, o eleitor não polarizado assiste ao desenrolar da história e aguarda a passagem do tempo para tomar a sua decisão. O espaço para eventuais candidaturas surpreendentes e alianças potencialmente improváveis ainda está em aberto. Afinal, o Brasil não cansa de surpreender.

Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734