pandemia
Ricardo Noblat: Justiça deve um pedido de desculpas a Lula
Erro judicial é para ser reconhecido
Se ao Supremo Tribunal Federal cabe errar por último, como ministros da Corte, em tom de galhofa, costumam dizer, a ele cabe, portanto, pedir desculpas ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelos processos que respondeu na 13ª Vara Federal de Curitiba, e os 580 dias que passou preso por lá.
Não importa o que eu penso ou você pensa a respeito da decisão do Supremo que anulou as condenações de Lula porque a 13ª Vara Federal de Curitiba não seria o foro natural para julgá-lo. Decisão judicial é para ser cumprida, e ponto final. Tanto mais se ela carrega a rubrica da Suprema Corte de justiça do país.
Também pouco importa se a decisão se sustenta em tecnicalidades como muitos juristas observaram. Ou que tenha vindo com atraso. Ou que revele o vai e vem do aparelho judicial. Sem o império da lei, a sociedade voltaria à Idade da Pedra. É melhor uma justiça imperfeita e por vezes contraditória a nenhuma.
Sem o erro, apontado pela defesa de Lula ao longo de anos, a história do país poderia ter sido outra. Lula liderou todas as pesquisas de intenção de voto para presidente em 2018 até um mês antes da eleição. Impedido de ser candidato, cedeu a vez a Fernando Haddad, e Jair Bolsonaro o derrotou.
Caso Lula venha de fato a ser candidato a presidente no ano que vem, seus adversários dirão que ele roubou ou se beneficiou do roubo dos seus parceiros, muitos deles condenados, alguns que até já cumpriram pena. Lula responderá que foi perseguido, injustiçado e que o Supremo de certa forma reconheceu isso.
O discurso de Lula ganhará um forte reforço se na sessão marcada para a próxima quinta-feira, o Supremo considerar suspeita a maneira como o ex-juiz Sérgio Moro conduziu os processos contra ele. A anulação das condenações se deu pelo placar elástico de 8 votos contra três. Na quinta-feira, não se espera nada parecido.
Mas prevaleça ou não o entendimento da Segunda Turma do Supremo que julgou Moro suspeito, ainda assim continuará faltando um pedido de desculpas pelo erro cometido.
Engana-se Bolsonaro se pensa em levar Biden no papo
Sérgio Moro tinha razão
Ao pedir demissão do Ministério da Justiça, o ex-juiz Sérgio Moro acusou o presidente Jair Bolsonaro de tentar intervir na Polícia Federal. O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, logo se apressou a pedir ao Supremo Tribunal Federal a abertura de inquérito para apurar o que havia de verdade na acusação.
O inquérito ainda não foi concluído, mas é certo que Aras, bolsonarista fiel, recomendará seu arquivamento por falta de provas – ou por excesso delas se não se recusasse a enxergá-las. Mas se a intervenção de Bolsonaro na Polícia Federal naquela época ainda não se consumara, de lá para cá só fez aumentar.
A Polícia Federal ganhou há pouco um novo chefe. E o fato mais escandaloso da semana foi a demissão que ele se viu obrigado a fazer do seu colega Alexandre Saraiva, superintendente da Polícia Federal no Amazonas. Saraiva perdeu o cargo porque denunciou Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente.
Segundo Saraiva, amigo dos filhos de Bolsonaro e que no início do governo chegou a ser cotado para ministro do Meio Ambiente, Salles aliou-se a empresários flagrados na maior apreensão de madeira ilegal realizada pela Polícia Federal na região amazônica. Por isso apresentou contra ele notícia-crime ao Supremo Tribunal.
Salles é o queridinho de Bolsonaro. Só faz o que ele quer. E por ser assim, aumentou o desmatamento na Amazônia, a invasão de áreas indígenas por garimpeiros, e a máquina governamental de combate a tais desmandos segue em processo de desmonte. A aplicação de multas agora foi centralizada nas mãos de Salles.
Garimpeiros, desmatadores e contrabandistas de madeira votam em Bolsonaro. E isso é o que de fato importa para ele. O descaso de Bolsonaro com a preservação do meio ambiente lhe será cobrado na próxima semana durante um encontro internacional convocado por Joe Biden, presidente dos Estados Unidos.
Se Bolsonaro imagina que levará Biden no papo, engana-se.
Ascânio Seleme: O Supremo imprescindível
Fazendo apenas a leitura do que determina a Constituição, o STF mandou que o presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco, instalasse a CPI da Pandemia
Mais uma vez o Supremo Tribunal Federal precisou intervir para que uma das casas do Congresso Nacional cumprisse sua obrigação. Fazendo apenas a leitura do que determina a Constituição, o STF mandou que o presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco, instalasse a CPI da Pandemia. Julgando-se acima de 32 senadores que assinaram o pedido de instalação da CPI, Pacheco considerou que a hora não era adequada e sentou-se sobre o requerimento. Foi o ministro Luís Roberto Barroso, mais adiante referendado pelo plenário do tribunal, quem mandou que ele se levantasse e pusesse a comissão em andamento.
Rodrigo Pacheco imaginava que poderia fazer como seu xará da Câmara, Rodrigo Maia, que por dois anos engavetou mais de 30 pedidos de impeachment por 12 crimes de responsabilidade cometidos por Jair Bolsonaro. Não podia. Para instalar CPIs, a Constituição não lhe deu o poder conferido ao presidente da Câmara nos casos de impeachment. Pacheco fez beicinho, tentando revitalizar aquela sua cara de bom menino, mas engoliu a ordem judicial e mandou abrir a CPI.
O argumento do senador para não instalar a comissão, além de inconstitucional, era torto na lógica. Ele disse que a hora era inoportuna para discutir os crimes cometidos na pandemia porque estávamos no meio da pandemia. Mais ou menos como dizer não vamos atrás de quem está dando os tiros que matam tanta gente porque ele está atirando.
A ordem de Barroso serviu também como um pito no senador, e a vergonha que Rodrigo Pacheco passou provou mais uma vez o valor do Supremo. Não foi a primeira vez que a mais alta Corte da justiça brasileira se viu na contingência de mandar outro Poder da República fazer ou deixar de fazer alguma coisa por ser fora da lei ou inconstitucional. Muito recentemente impediu que o presidente da República nomeasse o delegado Alexandre Ramagem para a direção da Polícia Federal, impedindo que o órgão fosse usado explicitamente como instrumento da ação inescrupulosa de Bolsonaro e de seus zeros.
Na decisão que anulou as condenações de Lula na Lava-Jato, o Supremo não entrou no mérito da questão ao atender argumento da defesa do ex-presidente que alegou ter sido usado foro inadequado, que os crimes pelos quais Lula é acusado não teriam origem na Petrobras. Você pode dizer que foi um desaforo à Lava-Jato. Foi. Mas, mesmo tardia, a decisão baseia-se em fatos incontestáveis. As acusações julgadas pela Lava-Jato não diziam respeito exclusivamente aos desvios na Petrobras.
Lula terá outra chance para tentar explicar o tríplex com a cozinha da OAS, o sítio de Atibaia, com a mesma cozinha, o apartamento vizinho ao seu comprado sabe-se lá com dinheiro de quem, e as questões do Instituto Lula, mas não em Curitiba. No julgamento da suspeição do juiz Sergio Moro, o Supremo já indicou o caminho que provavelmente tomará. Mais uma vez, evidências conformadas por escutas telefônicas depõem contra o ex-juiz, o que facilita a decisão.
Em ambos os casos, Bolsonaro e sua tropa vão alegar decisão política. Não foi, mas fez bem para a política e deixou o tresloucado capitão ainda mais baratinado. Por isso, aliás, ele instrumentalizou um senador exótico para tentar forçar o STF a mandar o Senado abrir processo de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes. Era um movimento tão fora da curva que nem mesmo Kassio Nunes, o mais fiel ministro de Bolsonaro, comprou a ideia.
O leitor pode dizer que o STF já errou muitas vezes em temas importantes para a nação. Pode ser. Mas, é mais provável que os erros existam a partir do seu ponto de vista, ou mesmo do ponto de vista da maioria dos cidadãos, e que muito certamente não terão sido erros à luz da lei. Para se mudar o entendimento dos ministros do Supremo sobre determinado fato, deve-se antes mudar a lei ou o artigo da Constituição que tratam do assunto. O fato inarredável é que o STF é imprescindível para o país. E o Brasil é melhor com um Supremo corajoso e atuante.
Reconstrução
Renan Calheiros quer aproveitar a CPI da Pandemia para recalibrar sua biografia. Não vai ser fácil, dado o volume das denúncias que pesam contra ele. Apenas no Supremo Tribunal Federal o senador responde a 17 inquéritos. Mas, claro que a oportunidade é boa. Se fizer um relatório que realmente aponte os crimes cometidos pelo presidente e seu ministro-general, ele pode sair da CPI maior do que entrou. Bolsonaro sabe que Renan gosta de negociar, mas preferia outro na relatoria da CPI.
Foco único
A ampliação do escopo da CPI da Pandemia não vai tirar o seu foco dos crimes cometidos pelo governo federal na condução da crise sanitária. Até porque usos indevidos de dinheiro público nos estados, repassado ou não pelo governo federal, já estão sob investigação nas assembleias, ministérios públicos e tribunais regionais, inclusive com o afastamento de governadores. E as alianças dos senadores nos estados são muito importantes, sobretudo porque o ano que vem é eleitoral.
Hora da conta
Coloquem barreiras de acrílico, convoquem somente os servidores vacinados, chamem os senadores suplentes com mais de 60 anos e também já vacinados (são 40, segundo levantamento, nome por nome, feito por Eliana Caruso). Façam sessões virtuais tanto quanto possível. Só não atrasem a CPI da Pandemia. Está passando da hora de apresentar a conta.
Segunda Dose
O brasileiro é um caso muito sério mesmo. Um milhão e meio de nacionais não voltaram aos postos de saúde para tomar a segunda dose da vacina contra a Covid dentro do prazo estabelecido. Desinformação? Claro, mas não adianta querer culpar apenas o governo por falta de campanha adequada. Evidentemente ele é culpado, mas a ignorância e a estupidez espalhadas pelos quatro cantos do Brasil também são responsáveis. Foram elas, aliás, que elegeram Bolsonaro.
Coletivo pode
Desde que não se aglomerem, os cariocas estão liberados para se reunir coletivamente nas praias e nos clubes do Rio. Pode rir, mas a prefeitura sugere que as pessoas se juntem sem se aglomerar. Como fazer isso? Só se for separando a coletividade. Como disse o prefeito Eduardo Paes, depois de constatar que fora reinfectado pelo vírus: “Essa história não é brincadeira”.
Coletivo manda
Diante do colapso do transporte público do Rio, não custa perguntar mais uma vez quem manda nesta porcaria. São os prefeitos da capital e dos demais municípios da Região Metropolitana? É o governador do estado? Ou seria a Fetranspor? Ao que parece, quem dá as ordens é mesmo a federação das empresas de coletivos, como de hábito. E vamos em frente enchendo as latas de sardinha.
Grotesco
Jair Bolsonaro é um covarde. Dizer que só sai do Palácio morto e pedir abertamente ao povo para “dar uma sinalização” que lhe permita “tomar providências” é repetir o brado por saques e confusão nas ruas contra as restrições que, na sua cabeça vazia, não salvam vidas e geram fome. Ele não fala com o povo, obviamente, mas sim com os idiotas que se enrolam em bandeiras do Brasil para pedir o fechamento do Supremo e do Congresso. Como já percebeu que dificilmente terá um segundo mandato, e que talvez nem o primeiro chegue ao fim, o capitão baderneiro sonha com uma ditadura, que nunca virá.
Vacina e voto
Me vacinei no sábado passado. Não demorou mais do que quatro minutos. Três minutos para o registro no comprovante de vacinação e mais um para a aplicação da primeira dose da AstraZeneca, que foi a que me coube. Foi no Jockey Club, mesmo lugar em que voto a cada dois anos. Para votar, levo dois minutos. Fora Nova Iguaçu, ocorre mais ou menos o mesmo em todo o país. É mais fácil e rápido votar do que ser vacinado. Se não houver solução antecipada, logo à frente a urna será o melhor caminho para mudar o Brasil. Vapt-vupt, em oito horas o eleitor transforma sua Nação. É pela urna que o povo manda suas sinalizações.
Araújo no DEC
Quem diria, duas semanas depois de ser demitido do Ministério das Relações Exteriores, Ernesto Araújo ainda aguarda um posto para se agarrar enquanto durar este governozinho. Por ora, ele perambula pelo DEC. Para quem não conhece, trata-se do Departamento de Escadas e Corredores do Itamaraty, apelido dado ao limbo no qual são jogados desafetos do ministro de plantão. Araújo mandou para o DEC alguns dos melhores e mais qualificados quadros do ministério, muitos por razões ideológicas, alguns por ciúmes, outros por inveja intelectual.
Madoff no Brasil
Idealizador da maior fraude financeira da História, Bernard Madoff morreu esta semana na prisão. O esquema que montou desviou mais de 65 bilhões de dólares, desmoronou a economia global e custou alguns trilhões para governos e contribuintes de todo o mundo. Ele foi condenado a 150 anos de prisão em 2009. Se fosse no Brasil, com bons advogados e juízes amigos, Bernie já estaria solto.
Pró deficiente
Uma carreata do bem parte hoje, às 9h, do Leme ao Posto 6, pedindo que pessoas com deficiência sejam consideradas como grupo de risco e sua vacinação contra a Covid seja antecipada. Estudos comprovam que pessoas com deficiência são mais vulneráveis à Covid-19 e têm maior probabilidade de morrer quando infectadas. Várias entidades convocam a manifestação, entre elas o Juntos, o Movimento Inclusão e o grupo Operação do Bem.
Tasso Jereissati: 'Não há dúvida da culpa do governo no desastre da pandemia'
Para senador, é difícil que Bolsonaro alegue desconhecimento de decisões equivocadas ou omissões no combate à Covid
Thiago Resende e Renato Machado, Folha de S. Paulo
BRASÍLIA - Indicado para fazer parte da CPI da Covid, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) é crítico da condução do Palácio do Planalto na crise do coronavírus e prevê um cenário árduo para o governo na comissão.
“Não há dúvida nenhuma que um dos principais culpados pela situação a que nós chegamos é o governo federal”, disse o tucano à Folha. Para o senador, o país vive um momento de verdadeiro desastre.
Tasso também acha difícil que eventuais erros e omissões no combate à Covid a serem constatados pela CPI sejam completamente dissociados do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Ele cita inclusive a teoria do domínio do fato, usada no mensalão e que prevê que autoridades devem responder por eventuais crimes, mesmo que não cometidos de mão própria, se tiveram conhecimento e controle da situação. No entanto reforça que, antes de apontar culpados, a CPI terá que investigar.
Sobre eleições de 2022, o tucano é otimista e acredita até em coalizão com PDT. Para ele, uma terceira via é “mais do que possível; [é] viável”.
Apesar da aproximação entre PSDB e PT, Tasso acha improvável uma aliança, mas vê um canal de diálogo mais amplo. “Hoje o PT percebe que o grande inimigo dele não somos nós”.
A CPI foi instaurada após determinação do Supremo Tribunal Federal. A decisão, na sua avaliação, foi uma intervenção no Poder Legislativo?
Eu não acho que há interferência nenhuma do Supremo. O Supremo tomou uma decisão em cima de uma provocação feita por nós, pelo Senado. Foi tudo perfeitamente legal, esperado. Tem jurisprudência.
O Senado demorou a abrir a investigação relacionada à pandemia?
O presidente [do Senado, Rodrigo] Pacheco [DEM-MG] é mineiro. E como bom mineiro ele é muito cauteloso nas suas iniciativas e decisões. E ele tinha uma opinião de que era inoportuno, no auge da pandemia, se instalar uma CPI porque poderia tirar o foco das discussões no Congresso e criar uma nova crise. Posição que discordo frontalmente dele.
A CPI foi ampliada e vai investigar a atuação do governo federal e os repasses federais a estados e municípios. Isso vai acabar desviando o foco da comissão? A estratégia do governo de tumultuar as apurações deve dar certo?
Vejo essa inclusão como uma maneira de tirar o presidente e o governo federal do foco e colocar todo mundo no mesmo balaio. Não há a menor possibilidade de que uma CPI de 11 membros possa investigar 27 governadores e mais de 5.000 prefeitos.
O espírito dessa CPI desde o início foi de investigar fatos e omissões na condução da pandemia, quais as razões que fizeram que o país chegasse ao ponto em que nós estamos hoje, esse verdadeiro desastre [foram registradas mais de 365 mil mortes]. O mundo nos está tratando como ameaça global. E [a CPI] começaria evidentemente pelo governo federal, que é o coordenador de uma situação nacional como essa. E não especificamente procurar um ato de desvio de recursos pontual aqui e ali.
Na sua avaliação, a responsabilidade pela situação atual da pandemia é dividida entre governo federal, estadual e municipal ou a gestão federal tem uma responsabilidade maior?
Olha o que aconteceu nos Estados Unidos simplesmente com a mudança de liderança nacional. Eles eram, até o fim do governo [do ex-presidente Donald] Trump, um grande fiasco em função dos números da pandemia em relação à potência que são.
Em semanas, com outra liderança [a de Joe Biden], com outra postura, isso mudou. O líder é sempre uma referência, é aquele que conduz e dá rumo aos seus governados. Então, não há dúvida nenhuma que um dos principais culpados pela situação a que nós chegamos é o governo federal. Isso foi constatado por organizações mundiais. É quase unanimidade.
O senhor acha que a CPI pode mudar a atuação de Bolsonaro diante da pandemia?
Com certeza, alguma mudança eu vejo. Só com a perspectiva de que haveria uma CPI, o governo Bolsonaro tomou duas atitudes importantes. Uma foi a troca do [ex-ministro da Saúde Eduardo] Pazuello. A outra foi a substituição de Ernesto Araújo no Ministério de Relações Exteriores.
Acho que ele [Ernesto] foi o pior ministro da história do Brasil. O que não mudou ainda para melhor? O próprio Bolsonaro. O presidente parece que mudou em relação à vacina, mas não mudou em relação ao afastamento social. Na vacinação nós estamos avançando, eu reconheço. Mas para o distanciamento social, nós dependemos de uma campanha ampla, como todos os outros países fizeram.
A CPI pode provocar essa mudança. Se no andamento da CPI, por exemplo, houver provas de que a atuação da Presidência da República obstruiu e boicotou um processo de afastamento social, isso pode realmente forçá-lo ou, pelo menos, pensar duas vezes para se portar de maneira diferente.
Em caso de comprovação de falhas e omissões do Ministério da Saúde ou de outras pastas do governo, é possível separar isso da atuação de Bolsonaro ou não tem como dissociar a responsabilidade do governo e a do presidente?
Isso só os juristas podem responder. Mas me lembro que no julgamento do mensalão, houve uma teoria nesse sentido: mesmo que ele não seja o mandante, ele tinha provavelmente —isso vai ter que ser discutido— o domínio do fato.
Mas é difícil para ele alegar desconhecimento de decisões equivocadas ou omissões em áreas do governo no combate à pandemia?
Dificílimo. Os fatos estão aí.
Qual deve ser o foco inicial da CPI? O atraso da vacinação, por exemplo?
O relator vai apresentar o plano de trabalho. Eu começaria pelo início, que é o tema mais recorrente até agora que é o distanciamento social. O [ex] ministro [da Saúde Luiz Henrique] Mandetta já falava sobre isso e do uso da máscara. E o Bolsonaro quase que de uma maneira ostensiva ia para rua com manifestantes, se misturando à multidão sem máscara e contradizendo o Mandetta. Aquele período foi de intensa confusão na cabeça dos brasileiros. Bolsonaro disse que era uma gripezinha. Então nós já começamos errado.
Aí depois entrou um ministro [Pazuello] que disse: “Um manda e o outro obedece”. Assim, não dá para dizer que ele [Bolsonaro] não sabia [das decisões do Ministério da Saúde], porque o próprio ministro Pazuello disse isso. Depois chegou a questão de desacreditar a vacina. Eu tentaria fazer uma cronologia das omissões e erros até chegar aqui.
Na CPI, o governo terá a minoria das cadeiras. Isso retrata um enfraquecimento político do governo no Senado?
Se não fizermos as investigações de maneira muito técnica e imparcial, não estaremos fazendo nosso papel. Eu acho que quem está mais preocupado que a CPI seja política é o próprio presidente Bolsonaro. A maioria dos senadores não está vendo isso com perspectiva eleitoral. Temos que enfrentar e olhar para a história; qual julgamento que a história vai fazer desse episódio que é o maior morticínio da história do Brasil.
A CPI pode servir de base para a abertura de um processo de impeachment?
Eu sou contra o impeachment. É um processo demorado e perderíamos o foco completamente do combate à pandemia. Se ficar comprovado, de uma maneira bastante técnica, a influência dessas atitudes do presidente [como gerando aglomerações e desincentivando o uso de máscaras] no aumento do número de mortes, esse seria o único fundamento que poderia levar a um pedido de impeachment. Até a CPI concluir os trabalhos e, se um processo desses for aberto, aí já é quase eleição de 2022. Essa CPI não pode ter caráter eleitoreiro, porque ela perde a credibilidade.
As eleições de 2022 se aproximam. O senhor acha possível uma terceira via?
Eu acho perfeitamente possível; mais do que possível, viável. O que devemos fazer é ter o menor número de candidatos possível disputando esse espaço. Isso depende da nossa habilidade política e do nosso desprendimento.
Qual a aliança possível? O PDT entraria?
O PDT tem exceções, mas, de maneira geral, é um partido que está mais para o centro. Eu chamaria de centro-esquerda. E com esse espectro todo cabem alianças.
Sobre a aproximação entre PSDB e PT, qual deve ser o resultado? Alianças em eleições estaduais ou até mesmo uma nacional?
Ainda no primeiro governo Lula, eu mesmo fui jantar com ele ao menos duas vezes para discutir política econômica. Com a chegada do [ex-ministro da Fazenda Guido] Mantega, começou a haver um distanciamento cada vez maior, e maior, até que chegou o governo Dilma [Rousseff].
Hoje o PT percebe que o grande inimigo dele não somos nós. O grande inimigo dele é a extrema direita. E há uma mudança de percepção. Isso virar uma aliança agora e ainda em 2022? Eu acho quase que impossível. Mas uma abertura maior de diálogo eu acho perfeitamente possível.
Quando acuado, Bolsonaro dá declarações que às vezes são vistas como uma ameaça à democracia. O senhor acredita que, se ele se ver contra as cordas, ele pode tomar uma medida autoritária?
Eu sempre tive medo disso. Ele sempre teve essa tendência, revelada durante anos de atuação na Câmara. Hoje eu tenho menos medo dessas frases de efeito dele e acho mais que são bravatas. Estão perdendo credibilidade essas ameaças que ele faz.
*Tasso Jereissati, 72, é empresário, formado em administração de empresa, já foi governador do Ceará por três vezes. Foi senador de 2003 a 2010 e retornou ao Senado em 2015. É um dos principais líderes do PSDB.
Rubens Ricupero: ‘Uma chance de ouro para o Brasil, mas sem chantagem’
Paula Bonelli, O Estado de S. Paulo
Com a experiência de seus 36 anos no Itamaraty e outros 9 na ONU, o embaixador Rubens Ricupero vê, na reunião da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, uma chance de alterar a imagem negativa do País, criada pelo impacto do desmatamento ilegal na Amazônia e de queimadas no Pantanal.
A seu ver, “se o presidente tivesse o mínimo de bom senso, seria uma oportunidade de ouro para o País melhorar suas contribuições ao combate do aquecimento global. Mas ele adverte que isso “é difícil”. O Brasil “tem que dizer que precisa de dinheiro mas não colocando como uma chantagem”. Assim, poderia receber em troca a boa vontade dos Estados Unidos em relação à doação de vacinas excedentes ao Brasil contra covid-19, acredita Ricupero. O presidente Jair Bolsonaro está entre os 40 chefes de Estado convidados para o evento virtual nos dias 22 e 23.
Ricupero inaugura em maio curso da história da Diplomacia Brasileira no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) sobre a política externa brasileira do Império até os dias de hoje. “Se o Ernesto Araújo fosse chanceler ainda, eu não teria ânimo para falar de uma tradição que foi degradada. Ele deixou uma terra arrasada, agora precisa plantar, adubar, regar, fazer um esforço de reconstrução”, diz o ex-ministro da Fazenda.
Qual o balanço, a seu ver, da gestão de Ernesto Araújo?
É completamente negativo. No caso da pandemia da covid-19, ao invés de reconhecer que é um grande problema e colaborar com a Organização Mundial de Saúde, sua atitude desde o início foi de negá-la. Eles só entraram no consórcio Covax Facility porque a nossa embaixadora lá em Genebra os convenceu; mas, no final, o Brasil ficou com a cota menor.
Carlos Alberto França, o novo ministro das Relações Exteriores, pode mudar essa trajetória?
Se depender dele e da máquina do Itamaraty, sim. Mas se depender do presidente, do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, aí eu duvido. O primeiro teste do França é na reunião de cúpula do clima quando Biden pedirá que cada país melhore a proposta que tinha feito no Acordo de Paris, de 2015. Se o presidente tivesse o mínimo de bom senso, seria uma chance de ouro para o País melhorar suas contribuições no combate ao aquecimento global. E isso explicando que é difícil, que precisa de dinheiro, mas não colocando como uma chantagem. Agora, se o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles não fizer isso, o França não pode fazer porque não é a pasta dele. A cúpula do clima terá países que têm maior responsabilidade nas emissões. O Brasil é o sexto maior gerador de gases do efeito estufa. Com uma característica, os gases vêm do desmatamento e do uso da terra, da pecuária extensiva. Nos outros países eles se devem ao carvão para gerar energia.
Como vê os sinais iniciais do ministro França?
Ele provou que é capaz de fazer coisas boas porque tanto nos discursos de posse como na mensagem que enviou aos funcionários toca em todas as teclas corretas e não fala naquilo que não deve falar.
ONGs dizem que há negociação secreta do Brasil com o governo Biden, sobre temas ambientais.
A falta de transparência do que está se discutindo preocupa. Agora, o que preocupa mais é a falta de credibilidade do interlocutor do nosso lado, Ricardo Salles. O Fundo Amazônia tem, parados no BNDES, quase R$ 3 bilhões – por causa de um problema criado por ele, que discordou da governança do fundo. As doações vêm da Noruega principalmente e da Alemanha.
Bolsonaro enviou carta a Biden prometendo zerar o desmatamento ilegal até 2030.
A carta de Bolsonaro diz tudo o que Biden gostaria de ouvir, só que é o contrário do que o governo crê e pratica.
Biden esquecerá da demora de Bolsonaro em cumprimentá-lo quando venceu a eleição?
Eles são realistas. Sabem que terão que lidar com Bolsonaro e com seu governo até o final de 2022. Eu não acredito que os americanos vão adotar qualquer ação negativa mas também não vão fazer esforço para ajudar. O Brasil tem apelado por vacinas e os EUA adotado atitude evasiva. Eles já doaram vacinas ao México e ao Canadá mas ao Brasil não.
Bolívar Lamounier: A semente do mal
O presidente faz questão de demonstrar insensibilidade social e desprezo pela lógica
Para o poeta Manuel Bandeira, o verso “tu pisavas nos astros distraída”, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, é o mais bonito da língua portuguesa. Sem pretender contestar sua avaliação, atrevo-me a pôr o verso de Nelson Cavaquinho mais ou menos no mesmo plano.
A grande diferença é que o verso de Orestes e Sílvio é estritamente lírico; o de Nelson Cavaquinho pode ser lido em qualquer plano, inclusive no social e no político. É essa a linha que tentarei desenvolver neste artigo. Quais são, no momento, os males que precisamos queimar para que o amor de todos em relação a todos possa prevalecer pelo menos como aspiração?
A indagação, como se vê, já traz implícita uma afirmação: a quadra em que nos encontramos não é a do bem. É a do mal.
Começa pela pandemia, sobre a qual poderíamos ter feito muito mais, mas que, estritamente falando, não decorre da maldade que todos temos na alma.
Suponhamos, então, que sejamos capazes de vencer a pandemia em mais alguns meses. A partir daí, qual ou quais males deveremos combater com todas as nossas forças? A estagnação econômica, sem dúvida; a desigualdade de renda e riqueza; os milhões de crianças que mal e mal conseguimos tirar das trevas do analfabetismo. Tudo isso é certo.
Arrisco-me, entretanto, a afirmar que não iremos muito longe se antes não compreendermos o que vem acontecendo no plano das instituições e da política. O mal, como esclareceu Thomas Hobbes (1651), é antes de tudo “a guerra de todos contra todos”, e não há como queimá-la senão construindo e respeitando a institucionalidade política. O homem é o lobo do homem.
Não por acaso, a tradução mais expressiva do verbo latino rebellare é a que surge como nos séculos 17-18, com a doutrina contratualista. Fazendo contraponto com rebelar-se, pegar em armas contra o governo, acepções mais estreitas, os contratualistas passaram a entender rebellare em seu sentido mais literal: “voltar ao estado de guerra”. O contrato social, geralmente codificado em Constituições, estabelece os termos mediante os quais os homens se poriam ao abrigo de instituições de governo, com a condição de que estas também respeitem e cumpram o pacto.
O “amor”, ou pelo menos a paz, o respeito mútuo e a civilidade, permanece como aspiração na medida em que essa condição for observada; se não o for, cedo ou tarde sobrevirão a anarquia, o caos e a guerra civil. A recaída no estado de guerra poderia ser causada por qualquer um dos principais grupos ou instituições que compõem a sociedade, em especial por um governo tirânico, ou por súditos que se recusassem a reconhecer a legitimidade de um governo que fizesse por merecê-la.
Deixando para trás a argumentação abstrata, cumpre-nos, pois, indagar onde, no Brasil de hoje, estão as sementes do mal. Há multidões armadas ocupando as ruas e praças, atacando autoridades, destruindo propriedades e patrimônios? Não, não há. E, no entanto, nenhum cidadão na plenitude de suas faculdades mentais dirá que estamos em paz, convivendo e colaborando uns com os outros como devemos.
É certo que nem todos os males decorrem da ação ou omissão dos atuais titulares das mais altas esferas institucionais. Alguns deles foram em mau momento insculpidos no próprio texto constitucional de 1988, o melhor exemplo sendo, sem dúvida, o inciso LVII do artigo 5.º: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Salta aos olhos que esse dispositivo estabelece que nossa sociedade será regida por duas justiças, uma para os ricos e outra para os pobres. Os que dispuserem de meios para remunerar advogados caros podem protelar indefinidamente, até a prescrição, os processos em que forem enquadrados. Os que não dispuserem caem na categoria dos três pês (pobres, pretos e putas), cujo destino é se amontoarem em masmorras sub-humanas, não raro se entrematando ou se decapitando uns aos outros. Temos como mudar isso? Sim, convocando outra assembleia constituinte, dado que tal alteração exigiria a convocação de outro poder constituinte originário.
A antípoda do trânsito em julgado é a conduta do atual presidente da República, e não só em conexão com o combate à pandemia de covid-19. Nesse particular, o presidente Bolsonaro já defendeu todas as posições concebíveis, como que fazendo questão de demonstrar não só sua insensibilidade social, mas também seu desprezo pela lógica. Contrapondo-se de forma flagrante ao que a Constituição estabelece no tocante à competência da União, dos Estados e municípios, Sua Excelência sabota as ações dos agentes de saúde, movido não só por um instinto semelhante ao de Iago no Otelo de Shakespeare, mas também com o objetivo, claramente, de se manter bem visível no meio do pandemônio da pandemia. A liturgia do cargo, a obrigação de se pôr como símbolo e exemplo para as demais instituições e para a sociedade não parecem passar-lhe pela cabeça.
*Sócio-Diretor da Consultoria Augurium, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
RPD || Hussein Kalout: O rastilho de destruição da diplomacia brasileira
Ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar com a saída do ex-Ernesto e a posse do novo chanceler, o embaixador Carlos França, avalia Hussein Kalout, sobretudo se a influência olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro
Ernesto Araújo, o sombrio ex-chanceler do governo Bolsonaro, também conhecido como “ex-Ernesto” nas mais do que inspiradas palavras da Senadora Katia Abreu, foi finalmente defenestrado. A experiência de misturar religião com política externa e a intentona de condicionar o futuro do Brasil a um governo estrangeiro, impingiu ao país severos danos. O rotundo fracasso e a consequente derrocada da finda gestão de Araújo, é bom ressaltar, somente teve ponto final após o levante coordenado pelo Senado da República que, altivamente, decidiu dizer: basta!
Setores do estamento estatal acreditaram ou quiseram acreditar que o tempo iria, paulatinamente, moldar a política externa em consonância com a realidade, de tal modo que a distopia em andamento na nossa diplomacia fosse naturalmente corrigida. Já o empresariado, por sua vez, acreditou que, com uma pressão aqui, outra acolá, poderia insular as insanidades ideológicas do governo, para imunizar os interesses político-comerciais brasileiros das diatribes dos “condutores” das relações exteriores do país. Nada se encaminhou como imaginado, e ambos os espectros se equivocaram regiamente.
Pressionado com a reação do Senado, o presidente da República encontrou, no embaixador Carlos França, os predicados para comandar a diplomacia nacional no mais grave período da história recente do país. Muito se argumentou que o novo chanceler não assumiu o cargo em virtude de experiência comprovada no campo da política externa, mas fruto de uma lealdade já demonstrada no Palácio do Planalto – isso sem falar que a indicação foi subscrita pelos cônsules da ideologização bolsolavista. Essa circunstância, na visão de vários parlamentares, não deixa de lançar dúvida sobre a capacidade do novo ministro de moldar decisões e moderar o ímpeto do próprio presidente.
Uma percepção não foge ao olhar daqueles que acompanham pari passu a política externa brasileira. O método que comandou a escolha do novo chanceler obedeceu ao mesmo réquiem da primeira experiência: diplomata recém-promovido à posição de embaixador, de trajetória discreta, sem nunca ter exercido funções de mais alta responsabilidade e chefia no Brasil e no exterior, desprovido de amplitude política e de denso arco de apoio no espectro nacional. A inferência natural que se fez dentro e fora da chancelaria – ainda que de forma talvez apressada – é a de que a escolha se encaixa naquilo que a ala ideológica do governo buscava assegurar: o controle sobre a diplomacia brasileira.
Apesar da lógica do método, contudo, cumpre ressaltar que a temperança e o bom senso do novo ministro da Relações Exteriores, Carlos França, são inversamente proporcionais aos de seu antecessor, o ex-Ernesto. Não obstante, é importante por ora não elevar as expectativas em demasia sobre quaisquer mudanças essenciais nas linhas da política externa. Apesar do estilo sóbrio e profissional do embaixador Carlos França, ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar, sobretudo se a espada de Dâmocles olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro.
Aliás, o discurso de posse do ministro França centrou-se em ilustrar como a diplomacia poderá contribuir na solução dos principais problemas do país e, especialmente, naqueles que o governo vem fragorosamente falhando em endereçar como: combate à pandemia, preservação do meio ambiente e crescimento da economia. A efetividade e o possível sucesso do trabalho do Itamaraty na solução de tais problemas, à par da boa intenção do discurso, dependem da moderação de uma única autoridade: o presidente da República. E é justamente aí que reside o perigo.
Profundas mudanças nas linhas da política externa somente devem ser aguardadas, portanto, a partir do dia 1 de janeiro de 2023 – se o Brasil eleger, obviamente, um novo presidente. Porém, até lá, é preciso ficar atento aos temas que são – e sempre serão – vitais ao interesse nacional.
Nesse sentido, China e EUA não deveriam seguir sendo opções excludentes no mapa geoestratégico da política externa do atual governo. Um país com vocação universalista como é a do Brasil, definidamente, não pode se condenar a escolher entre um ou outro lado. O pragmatismo e o bom senso recomendam extrair de ambos, chineses e americanos, os maiores benefícios para a sociedade brasileira e para os nossos interesses estratégicos – seja nas áreas comercial, tecnológica, ambiental, sanitária ou política.
Não menos importante, a América do Sul é um imperativo estratégico. O Brasil precisa com urgência redimensionar seu papel como um indutor do processo de desenvolvimento da região e país promotor da paz. Uma “liderança natural” não sobrevive por inércia quando há vácuo de poder. É preciso retomar o diálogo com os países sul-americanos, e cabe ao Itamaraty articular, liderar e impulsionar boas políticas de cooperação regional – saúde e meio ambiente são os fios condutores no momento.
A África, lamentavelmente, inexiste no mapa cartesiano da política externa bolsonarista. É um grave equívoco de avaliação achar que contaremos sempre com apoio dos países africanos mesmo estando ausentes do teatro diplomático e dos principais temas do continente. Aparições esporádicas e ações pontuais não ajudarão a consolidar as relações com a África. De maneira geral, o crescimento econômico dos países africanos, nos últimos anos, tem sido consistente, e as oportunidades econômicas e comerciais têm-se aberto àqueles países que estão sendo capazes de mensurar o valor estratégico do continente africano tais como: China, Turquia, Índia e Alemanha.
O sistema multilateral, por sua vez, sempre foi a melhor raia em que a política externa navegou. É onde construímos nosso prestígio e ampliamos nossa influência desde os tempos de Oswaldo Aranha ou até antes, com a participação marcante de Rui Barbosa na segunda Conferência de Paz na Haia, em 1907. É preciso evitar mais desgaste e recobrar a capacidade do país de evitar o isolamento que se auto impôs nos mais variados foros. É preciso repensar alguns posicionamentos, especialmente, em matérias concernentes ao meio ambiente e aos direitos humanos.
Se conseguir recolocar a política externa minimamente nos trilhos, na linha do que sinalizou em seu discurso de posse, o novo ministro das Relações Exteriores já estaria contribuindo para amainar o rastilho de destruição e minorar os graves prejuízos impostos ao país. A força do Brasil nas relações internacionais sempre foi sedimentada em sua dedicada capacidade de articular e de participar dos grandes palcos globais. Construído a duras penas, esse capital diplomático foi dilapidado nos últimos dois anos. Esperamos que o novo chanceler estanque a hemorragia e estabilize o doente. Diante da crise que nos acomete e das inclinações do presidente da República, isso seria sem dúvida um grande êxito e, quem sabe, um primeiro passo para a recuperação futura de nossa capacidade de defender nossos interesses no cenário internacional. Ao novo chanceler, desejamos boa sorte. Ele vai precisar.
* Hussein Kalout é cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || José Luís Oreiro: O retorno do dilema Juros-Câmbio?
Decisão do Banco Central de aumentar a taxa Selic em 0,75% em março passado, no contexto da maior crise econômica da história do Brasil, foi a prova cabal que o país ainda não se livrou da armadilha juros-câmbio, avalia José Luís Oreiro
A sociedade brasileira tem uma patologia grave. Ela se mostra refratária a aprender com os inúmeros erros que vem cometendo nos últimos 40 anos. Trata-se da incapacidade de nossa sociedade, e particularmente dos economistas ditos “ortodoxos”, de reconhecer o estrago que a combinação entre juros altos e câmbio sobrevalorizado tem causado ao tecido produtivo da economia brasileira desde o início do Plano Real e mantido, quase incólume, durante as sucessivas administrações petistas.
A partir de 2017, com o nível de atividade econômica no fundo do poço devido à grande recessão de 2014-2016, o Banco Central do Brasil iniciou processo de (sic) redução lenta, gradual e segura da taxa Selic. Com a pandemia do covid-19, em 2020, a taxa Selic chegou à mínima histórica de 2% a.a em termos nominais, ao passo que a taxa de câmbio apresentava desvalorização de mais de 40% ao longo do ano.
Finalmente, o Brasil parecia ter-se livrado da combinação maldita entre juros altos e câmbio baixo, causa principal da desindustrialização prematura da economia brasileira, conforme mostro no livro Macroeconomia da Estagnação Brasileira, escrito em coautoria com Luiz Fernando de Paula e lançado neste mês pela Alta Books.
A decisão do Banco Central do Brasil em meados de março de aumentar a taxa Selic em 0,75 p.p - no contexto da maior crise econômica da história do Brasil e com contração fiscal já contratada para o ano de 2021 em função de redução de 75% do valor do auxílio emergencial – foi a prova cabal que o país ainda não se livrou da armadilha juros-câmbio.
A decisão “técnica” para o ajuste da taxa de juros – a qual deverá prosseguir nas próximas reuniões do Copom – era que a elevação do IPCA, acumulado nos últimos 12 meses de um patamar abaixo de 2% em junho de 2020 para mais de 5% em fevereiro de 2021, colocava em risco a obtenção da meta de inflação para o ano de 2021, definida em 3,75% a.a pelo Conselho Monetário Nacional, com um intervalo de tolerância de +/- 1,5 p.p. A autoridade monetária reconhece, contudo, que a elevação da inflação se deveu a um choque de oferta adverso – basicamente a elevação dos preços dos alimentos e combustíveis, devido à combinação de aumento dos preços internacionais das commodities e desvalorização da taxa de câmbio – que deverá ser revertido no segundo semestre de 2021. Tanto é assim que a previsão de inflação do mercado financeiro no início de março para o ano de 2021 se encontrava em 3,98%, ligeiramente acima da meta de inflação para o ano, mas confortavelmente dentro do intervalo de tolerância do regime de metas de inflação.
A teoria econômica e a prática da política monetária mostram que elevações da taxa de juros não devem ser usadas para conter uma aceleração inflacionária produzida por um choque de oferta, pois (i) a aceleração da inflação será de caráter temporário e (ii) uma elevação da taxa de juros irá amplificar, ao invés de amortecer, o efeito negativo do choque de oferta sobre o nível de atividade econômica. Nesse caso, a melhor política é acomodar o aumento temporário da inflação no intervalo de tolerância definido no regime de metas de inflação.
Essa não foi a decisão do Banco Central. Preferiu aumentar a Selic e já deixou claro que deverá continuar aumentando a taxa básica de juros até que a política monetária apresente (sic) o grau de estímulo compatível (sic) com o que é exigido pela situação atual da atividade econômica.
Essa explicação parece basear-se na premissa de que existe relação positiva entre a taxa de juros e o nível de atividade econômica, ou seja, de que por algum mecanismo que só existe na economia brasileira, um aperto na política monetária poderia levar a um aumento, ao invés de redução, do nível de atividade econômica.
Parece que a atual diretoria do Banco Central foi infectada com o vírus do “populismo cambial”, endêmico tanto entre os economistas ortodoxos, como em parte da heterodoxia brasileira. A ideia é a seguinte: elevações da taxa Selic levam a uma apreciação do câmbio, que permite uma redução da inflação, a qual leva a um aumento do salário real e do consumo das famílias. Dessa forma, um aumento da Selic seria compatível com a recuperação do nível de renda e emprego.
Essa política foi adotada ad-nauseam durante os dois mandatos do Presidente Lula e o resultado foi desindustrialização e perda de dinamismo econômico. Campos Neto quer repetir o mesmo experimento fracassado, na esperança de que agora ele finalmente vai funcionar. Irá colher os resultados de sempre.
* José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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RPD || Leandro Consentino: O ideologismo irresponsável
Brasil corre o risco de ficar de fora das principais mesas de negociações por conta da política externa do Governo Bolsonaro, isolando-se da futura governança global. Estados devem reconstruir os organismos internacionais quando a pandemia tiver fim
O breve governo de Jânio Quadros, inaugurado e concluído em 1961, não costuma trazer grandes lembranças sobre suas iniciativas políticas internas para além das folclóricas proibições do uso de biquinis, lança-perfumes e rinhas de galos. No flanco externo, contudo, o legado é evidente, com a emergência da chamada Política Externa Independente.
Buscando diversificar os contatos externos e não se alinhar a nenhum dos dois lados da Guerra Fria, evitando a bipolaridade reinante por meio de princípios como a não-intervenção e a auto-determinação dos povos, o novo paradigma de política externa brasileira foi conduzido brilhantemente por nomes como Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas, durante os governos de Quadros e de seu vice, João Goulart.
Com a ruptura democrática e a ascensão do Regime Militar, a Política Externa Independente foi brevemente substituída por um alinhamento automático aos Estados Unidos e, consequentemente, ao bloco capitalista. O interesse nacional acabou, então, subordinado ao interesse norte-americano, o que ficou patente pelas palavras do então embaixador brasileiro em Washington, Juraci Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.
O alinhamento, contudo, não durou muito tempo e, na década seguinte, esta postura subserviente cedeu espaço, paulatinamente, para uma espécie de reedição da Política Externa Independente, cujo ápice ocorreria em pleno governo do general Ernesto Geisel. Sob a batuta do então chanceler Antônio Francisco Azeredo da Silveira, o novo modelo foi batizado de Pragmatismo Ecumênico e Responsável, apontando exatamente para uma política exterior pautada em uma postura realista e pouco afeita a constrangimentos de natureza ideológica, sobretudo no que diz respeito às negociações econômicas e comerciais.
O pragmatismo responsável, como ficou mais conhecido, orientava-se pelo significado semântico de seu título e buscava assegurar, sem maiores preocupações com a orientação política dos governos com quem travava acordos, a primazia de nosso interesse, sobretudo em um ambiente internacional desfavorável, atingido pela escalada da Guerra Fria e pelo primeiro choque do petróleo. Os resultados não tardaram e aprofundaram nossos laços com regiões e países bastante diversos, com especial destaque para a África, o Leste Europeu e o Oriente Médio, além de nos garantir importante participação e até protagonismo em organismos internacionais.
Com o fim do governo Geisel e posteriormente do próprio regime ditatorial, o advento da Nova República não abandonou tais princípios universalistas e legitimou, ao longo dos sucessivos governos democráticos, a inserção do país nos regimes internacionais, sempre pautado pela autonomia quanto às superpotências, em especial os Estados Unidos da América.
Não obstante seus diversos problemas internos, o Brasil logrou posição de destaque na esfera multilateral, principalmente marcada pela continuidade de sua política externa, independente da disputa entre as forças políticas. As conquistas consolidadas por um governo – seja na esfera econômica, comercial, ambiental ou de direitos humanos - alicerçariam as bases para as conquistas posteriores, ainda que o presidente seguinte fosse de oposição ao anterior.
Este círculo virtuoso foi bruscamente interrompido com a vitória de Jair Messias Bolsonaro, em outubro de 2018, e a subsequente nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de Ministro das Relações Exteriores. Com uma visão que preconizava completo alinhamento com os Estados Unidos, à época governados por Donald Trump, e outros países governados por populistas conservadores, a política externa brasileira esposou a antítese do paradigma de Azeredo da Silveira, pautando-se por um ideologismo irresponsável.
De maneira cada vez mais alheia aos anseios brasileiros, o governo de turno prefere privilegiar suas convicções políticas e ideológicas em detrimento do interesse nacional, colocando em risco os esforços de política externa, conquistados nas últimas décadas e prejudicando a economia e a sociedade brasileira em um momento tão grave como o atual. Foi dessa forma que ficamos para trás na corrida pelas vacinas e que tivemos os insumos atrasados por algumas semanas, perdendo centenas de vidas pelo caminho.
Assim sendo, quando a pandemia tiver fim e os Estados decidirem a reconstrução de organismos internacionais pautados na questão sanitária e na recuperação da economia, o Brasil pode não ser convidado às principais mesas de negociações, isolando-se da futura governança global. Eis o risco que ora enfrentamos e que precisamos evitar a todo custo.
Como disse o próprio Azeredo da Silveira: “a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se”. Ainda que sem grandes esperanças para o curto prazo, esperemos que essa renovação venha em breve, retirando a viseira ideológica que nos tolda a visão para buscar os reais interesses de nosso país.
* Leandro Consetino é bacharel em Relações Internacionais, Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor no Insper e na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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RPD || Lilia Lustosa: Cinema feminino e plural
Apesar da tragédia da pandemia do novo coronavírus, 2021 marca positivamente a história do cinema ao destacar a presença feminina, com duas mulheres concorrendo à categoria de Melhor Direção
Quantas diretoras de cinema você conhece? Dá para encher uma mão? E diretores? Muito mais fácil de lembrar, não? Eles são tantos!
A verdade é que a indústria cinematográfica sempre foi dominada pelos homens, embora as mulheres tenham tido participação fundamental em sua consolidação. No entanto, como costuma acontecer em outras áreas, muitas dessas personagens femininas foram apagadas, esquecidas, editadas ou simplesmente cortadas da História. Ora, todos já ouvimos falar dos Irmãos Lumière, de Méliès, de Edison, certo? Mas quem conhece Alice Guy ou Lois Weber? Mulheres que, desde os primórdios do cinema, já atuavam por detrás das câmeras, mas cuja passagem pelos estúdios e salas escuras ficou perdida lá no passado!
No Brasil, também foram muitas as que atuaram na construção do nosso cinema, como Carmem Santos, atriz, roteirista, diretora e produtora, que, já nos anos 20, criou a Film Artistico Brasileiro (F.A.B.) e, nos anos 30, com a chegada do sonoro, a Brasil Vita Filmes. Ou ainda Cléo de Verberena, atriz e produtora, primeira mulher a dirigir um longa de ficção no país, o desaparecido O Mistério do Dominó Preto (1931). Isso sem falar de Adélia Sampaio, Helena Solberg, Helena Ignez… Tantas, mas das quais sabemos tão pouco!
Ao que tudo indica, porém, o ano de 2021, apesar de seu roteiro mais para cyberpunk ou filme-catástrofe, parece que vem para marcar positivamente a história do cinema. Pelo menos no quesito conquista feminina! Isso porque o filme que vem roubando todas as atenções e levando os prêmios mais importantes da temporada é Nomadland, dirigido, roteirizado, montado e produzido por Chloé Zhao, uma chinesa radicada nos Estados Unidos. Um roadmovie que mistura realidade e ficção, ao percorrer o oeste dos EUA retratando a vida dos novos nômades do país, tendo como protagonista a já oscarizada Frances McDormand.
A origem asiática da diretora chama também a atenção, já que estamos assistindo, na vida real, a um aumento da violência contra essa gente, a quem muitas vezes tem sido atribuída a culpa pelo surgimento do coronavírus. Um cenário macabro de uma ficção científica rasa e injusta! Mas enquanto o movimento Stop Asian Hate ganha forças nas ruas, Cloé Zhao brilha absoluta nos palcos dos festivais e nas telas de cinema, televisores, computadores, tablets ou smartphones de todo o mundo. Em fevereiro último, ela se tornou a primeira diretora a ter uma produção premiada com o Globo de Ouro de melhor filme, além de ser a segunda a levar a estatueta de melhor direção e a primeira asiática a conseguir esse feito. No Critics Choice Award, Zhao também saiu com o prêmio de direção, e Nomadland, com o de melhor filme. Fato que se repetiu no PGA Awards, premiação do Sindicato dos Produtores de Hollywood, em que seu filmefoi laureado mais uma vez como o melhor do ano.
Resta agora o prêmio mais badalado da terra do tio Sam: o Oscar. No dia 25 deste mês, Nomadland concorrerá ali em seis categorias: melhor longa, direção, roteiro adaptado, montagem, fotografia e atriz. Dessas indicações, quatro levam a assinatura de Zhao. Uma proeza e tanto para tempos em que a desigualdade de gênero ainda é a regra do mercado!
E o melhor de tudo é que a diretora nascida em Pequim não está sozinha nessa empreitada, já que a britânica Emerald Fennell também concorre ao prêmio de direção por seu inusitado Bela Vingança (2020), sendo este o primeiro Oscar a ter duas mulheres disputando essa categoria. Até então, em suas 93 edições, apenas cinco haviam sido indicadas por direção, mas nunca duas ao mesmo tempo. Fennell concorre ainda por roteiro original, e Bela Vingança, que tem a violência contra mulher como tema central, por melhor filme e montagem. Uma trama cheia de dores, cores e dissabores, e que traz uma Carey Mulligan esbanjando talento no papel da vingativa Cassandra, o que lhe rendeu, aliás, a indicação ao Oscar de melhor atriz.
Fora Zhao e Fennell, outras tantas profissionais estão concorrendo nas mais diversas categorias. Sem dúvida, um grande passo para a tão almejada igualdade, mas que não deixa de sublinhar o triste fato de que, em pleno século 21, ainda tenhamos que aplaudir de pé a indicação de duas mulheres às categorias principais do Oscar. Pergunto-me então o que teria gerado essa “evolução”? A luta de tantos anos? Mudanças na composição dos boards dos prêmios? Ou será que o confinamento levou à reflexão, fazendo-nos entender de uma vez por todas que há espaço para talentos de todos os gêneros e raças nos sets de filmagem?
Que venham as estatuetas!
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).
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RPD || Mauro Oddo Nogueira: Auxílio Emergencial - A boia no meio da tormenta
Benefício manteve acesa parte da demanda, evitando uma queda ainda maior do PIB em 2020 e permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda
O cenário brasileiro das últimas semanas foi marcado por tal quantidade de fatos relevantes que chega a ser difícil acompanhá-los, digeri-los, analisá-los. Dentre eles, sublinho a renovação do Auxílio Emergencial, com início programado para a primeira semana de abril. Acredito, porém, que o destaque não tenha sido o merecido. Digo isso por conta da dimensão dos impactos do programa na economia nacional. A rigor, não há como se fazerem avaliações precisas desses impactos, uma vez que ainda não se produziram os dados estatísticos que o permitirão. Uma dose de bom senso, contudo, somada a um olhar atencioso para a realidade, permite uma estimativa razoável.
O número mais esclarecedor é o do PIB. As estimativas para o PIB de 2020 quando do início da pandemia variavam, dependendo do otimismo de quem as fazia, entre uma queda de 6% até mais de 9%. Mas o resultado final foi de “apenas” 4,1%. E, por óbvio, isso não se deveu à pandemia ter sido menos virulenta ou duradoura do que se supunha. Muito pelo contrário.
O que impediu, então, que o PIB desmoronasse em um grau ainda maior do que o dessas previsões? A explicação que parece fazer sentido – principalmente cotejando-se o PIB com os índices de desemprego e desalento – é a de que o Auxílio Emergencial manteve acesa parte da demanda. Lembremo-nos de que os principais atingidos pelos fakedowns(modalidade tupiniquim de lockdown) são exatamente os autônomos e os informais. Ou seja, os que não têm reserva de capital, não conseguem mecanismos outros para se manterem de algum modo operando e atuam majoritariamente nos segmentos mais impactados. O Auxílio permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda. Isso certamente evitou uma convulsão social – inclusive com a possibilidade de distúrbios de massa e saques – que se chegou a ver desenhada no horizonte.
Para a felicidade de quase todos, a pífia proposta de Auxílio inicialmente elaborada pelo governo foi ampliada pelo Congresso por pressão da sociedade. Não fosse isso, por render graças à Sua Majestade o Equilíbrio Fiscal (dogma abandonado desde o início da pandemia pelas economias mais liberais do planeta, como os EUA, Alemanha e Reino Unido), suas condições não teriam evitado a catástrofe.
Acontece que, para além dos impactos econômicos, há ainda três impactos de ordem moral.
O primeiro foi tornar visíveis os invisíveis. Houve susto generalizado quando cerca de 60 milhões de pessoas se apresentaram para receber o Auxílio. A despeito desse contingente de concidadãos aparecer claramente nas bases estatísticas – como a Pnad Contínua do IBGE, por exemplo – e ser objeto de numerosos estudos e publicações científicas, parece que os gestores públicos e a mídia em geral os desconheciam.
O segundo está condicionado a se admitir como verdadeira a hipótese que muitos economistas têm defendido, a de que parte da inflação – especialmente dos gêneros alimentícios – é consequência da elevação do dólar. E que parte decorre da pressão de demanda sobre esses itens de consumo (leite, arroz, feijão etc.), resultado dos efeitos positivos do auxílio emergencial sobre a renda das pessoas. Ocorre que tais produtos são classificados como bens com elasticidade-renda da demanda menor ou igual a zero. Trocando em miúdos, trata-se daquelas coisas que as pessoas não compram mais porque estão ganhando mais. Trocando mais em miúdos ainda, ninguém se empanturra de arroz e feijão porque teve um aumento salarial. Em alguns casos, até se compra menos desses produtos porque os substitui por outros mais caros. Esse comportamento da elasticidade só não se verifica em uma situação: quando a renda anterior do indivíduo não era suficiente para que adquirisse esses tais alimentos “básicos”. Portanto, admitir a veracidade desse componente inflacionário é reconhecer o nível de miséria a que estão submetidos milhões de brasileiros e que se traduz em uma amarga palavra de quatro letras: fome.
O terceiro, por fim, tem origem nas indefinições que se arrastaram por semanas. Nas idas e vindas em relação à sua renovação, valores que serão concedidos, critérios de elegibilidade, data de início e duração. Esse impacto moral é bem mais simples de se compreender. Basta que a gente se coloque no lugar de quem depende desse dinheiro para colocar comida nos pratos de seus filhos.
*Doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. É autor do livro Um pirilampo no porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil.
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RPD || Paulo Baía: O Brasil não respeita o sagrado ventre de um sorriso
Imagem de Marielle Franco vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre o crime, escreve Paulo Baia em seu artigo. “Um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro”
Eu, Marielle Franco, mulher, preta, favelada, eleita vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, levei quatro tiros no dia 14 de março de 2018.
Era a expressão de alegria. Nosso país não suporta uma mulher com um sorriso largo e sincero. Aberto e franco. O Brasil é o país da misoginia. Marielle subverteu não só pelas origens pobre e negra, mas também por seu currículo, seu brilhantismo profissional e acadêmico. Sua subversão maior era o sorriso escancarado. Brasil que estupra mulheres indígenas e pretas. Sou filho e neto de tais mulheres. Desejo suas vozes ouvidas. O Brasil não respeita o ventre de um sorriso.
Eu, Marielle Franco, fui assassinada no dia 14 de março de 2018, levei três tiros na cabeça e um no pescoço por um carro que me encurralou no Estácio. Como a música de Luiz Melodia: Se alguém que matar-me de amor, que me mate no Estácio, Bem no compasso, bem junto ao passo, Do passista da escola de samba, Do Largo do Estácio, O Estácio acalma o sentido dos erros que faço, Trago, não traço, faço, não caço, O amor da morena maldita domingo no espaço, Fico manso, amanso a dor, Holiday é um dia de paz... Os assassinos dispararam com uma submetralhadora. Queriam me executar para calar as minhas vozes: mulher, preta e favelada.
Eu já quero ser a segunda voz dela. Quero ser aquele que escuta. Como um velho, menos analista e mais antropólogo.
Peço permissão à ancestralidade feminina escravizada e violada nesse nosso torrão, a terra como Gaya, para ouvir Marielle. Desejo falar do lugar do feminino. Embora não possa incorporar o lugar de fala exclusivo dela. Desejo reunir forças para poder realizar esta homenagem. Somos seres simbólicos. É deles que marcamos o nosso compasso neste chão árido, seco, desértico e que machuca feito pelas dores de muitas mulheres. A terra é a simbologia mais antiga do feminino. Ela gira em torno do sol. E Marielle foi apagada antes de terminar a sua própria gira carregada de brilho e cheia de potência em defesa das mulheres faveladas. Das pretas. Ela lutava contra a perpetuação de um movimento de opressão cometido há séculos contra os pretos desde a colonização - a eterna escravidão que nos assombra cotidianamente.
Marielle era a terra fértil que ria e celebrava. Poderia uma mulher rir e celebrar? Sacralizar o riso, o corpo e a força do feminino é o meu desejo neste artigo. Tanto já foi dito a respeito de sua morte, sobre os assassinos, quem mandou matar que até hoje, no dia 02 de abril de 2021 (data que o autor escreveu o artigo), ainda não sabemos quem mandou executá-la. Os dias passam. O tempo corre. E a imagem vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre este crime político.
Eu, Marielle Franco, fui assassinada, os tiros vieram de repente com força e não restou tempo para reação, caí morta, perdi a minha vida em meio à barbárie.
Permaneço preso ao ensaio antropológico e mágico. Feito um ritual de despedida e com o desejo de que sua morte não tenha sido em vão como tantas outras. O momento mais forte veio com a lavagem do chão cheio de sangue. No local onde a mataram no Estácio. Foi uma limpeza feita com ervas. E tambores. Marielle era a terra fértil que ria e celebrava o direito de vida dado a todos pela constituição de 1988, promulgada após a redemocratização. Nossa miscigenação é o fruto de estupros coletivos e continuados de mulheres indígenas e negras por séculos. É o machismo reprodutor assassinando mulheres vandalizadas e matáveis. Pai perverso e assassino de filhos mestiços pretos, quase pretos. Marielle é o retrato perfeito de séculos de violações aos corpos femininos.
Eu, Marielle Franco, fui morta de forma brutal sem direito à defesa. Nasci com a marca da exclusão e com a certeza de que deveria permanecer calada, distante do jogo político feito entre homens misóginos e racistas. A política feita para poucos que lutam por seus negócios embolados aos prazeres espúrios. E certamente com muitas garotas de programa em suas festinhas regadas a comida, bebidas, entre outras coisas.
Permaneço no meu ritual vivenciando uma eterna despedida de um antropólogo que se despe e veste a roupa do cientista político para dizer que a morte de Marielle foi o fim de um sonho e um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro.
Eu, Marielle Franco perdi a voz, mas renasço em todas as mulheres pretas, pobres e faveladas que trabalham e enfrentam o cotidiano de opressão. A vida é circular. E a Terra é redonda e gira em torno do sol.
O ritual de despedida homenageou o sorriso largo de uma mulher potente, vibrante, capaz de no sorrir rodopiar as energias, realizando a gira no meio do chão de terra das favelas cariocas. E é deste sagrado sorriso que o país precisa girar para recuperar a sua força e potência.
* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.
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RPD || Vinícius Müller: A pedagogia do centro
Vinícius Müller avalia que, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por candidatos polares como Lula e Bolsonaro, que o usam apenas de modo instrumental
Há uma expressão, comum e ingênua, que revela um modo particular de nosso entendimento sobre a História: ‘o problema é que nunca tivemos uma guerra para, de fato, resolvermos nossas feridas mais profundas’. Ou, especificamente, ‘se tivéssemos feito uma guerra de independência ou uma revolução contra escravidão teríamos um país mais justo e desenvolvido’.
A ingenuidade desta premissa reside na própria História. Os EUA, por exemplo, fizeram uma guerra para acabar com a escravidão e nem por isso resolveram a desigualdade racial que até hoje revela que esta ferida é muito maior do que uma guerra pode ser.
Contudo, esta premissa revela uma pedagogia, e sua instrumentalização resulta na condenação moral de qualquer tipo de ajustamentos ou negociações que porventura tenham sido feitos no passado ou que possam se efetivar no futuro.
É assim que há muito tempo temos oferecido nossa história pública: uma soma de arranjos feitos por quem, no fundo, não quer mudar nada. E se há – e certamente há – alguma verdade nisso, não parece razoável que essa seja a única versão da História. O outro lado é a glorificação, tão justa quanto supervalorizada, da ideia de que por seu ‘passado de luta’, por si só, alguém deva nos servir como referência. Muitas vezes, e pelo contrário, é o ‘passado de negociações e capacidade de fazer acordos’ que deve, por ser tão ou mais relevante à nossa trajetória, servir-nos de referência.
Pensar sobre isso nos ajuda a superar alguns de nossos atuais desafios: como criar uma outra pedagogia que rompa com esse modo parcial de contar a História? Como criar uma narrativa que envolva, primordialmente, os arranjos e acordos? E como fazer isso sem parecer oportunista?
Estas são barreiras na medida em que a declaração conjunta feita por possíveis candidatos de centro à presidência da República (Ciro, Doria, Amoedo, Huck, Mandetta e Leite) pode ser esvaziada se duas lacunas não forem rapidamente preenchidas. A primeira é a fragilidade da proposição que vê o problema apenas na inexistência de um projeto comum entre eles. Não é o futuro que conta, e sim o passado. Ou seja, o que precisam fazer é, antes de um projeto comum, encontrar um passado que os una ou que, no mínimo, justifique este ensaio de aproximação. A segunda é que, sem isto, os laços serão frágeis e, consequentemente, o fortalecimento do centro não significará nada de muito diferente do que é para os candidatos polares, Lula (PT) e Bolsonaro (Sempartido). Ou seja, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por aqueles que o usam apenas de modo instrumental.
Para tanto, é necessária a criação de uma pedagogia do centro, que não só repudie a narrativa histórica da ’luta’ - característica daqueles que atiçam a polarização e usam o centro apenas como ferramenta -, mas também identifique os valores que são vistos no passado e transferíveis ao futuro. E esta pedagogia pode seguir alguns passos: a) leitura do contexto não pode ser capturada pela tentação da polarização. O esforço é achar, no contexto, os elementos que engrandecem a narrativa do ‘acordo’ e condenam a viciada e, hoje irresponsável, narrativa da ‘luta’; b) exaltar em nossa trajetória exemplos de arranjos e acordos que nos ajudaram a avançar e, ao mesmo tempo, enfrentar a narrativa que encontra em nossa trajetória apenas os acordos e arranjos que nos atrasaram; c) nomear os riscos e problemas criados em nossa trajetória pela ética da ‘luta’. Ela não pode, porque efetivamente não é, ser vista como moralmente superior à ética do ‘acordo’; e d) encontrar uma linguagem que facilite o entendimento de que ser do centro é a definição de um valor enraizado em nossa trajetória e que, mesmo responsável por alguns resultados ruins, também foi elemento fundamental para grandes avanços.
São esses os passos, em resumo, que criarão um ambiente favorável para que o centro deixe de se posicionar como o ‘negativo’ à polarização e seja o ‘positivo’ de nossa trajetória e de nosso futuro. Ou seja, aquele que carrega - porque identifica, valoriza e comunica - os avanços que tivemos em nossa história quando conseguimos anular a retórica da ‘luta’; e não o refúgio daqueles que só querem reproduzir nossos males.
Assim não seremos engolidos por aqueles que fazem do centro um instrumento oportunista. Ou alguém tem dúvida de que Bolsonaro acena ao centro apenas por uma lógica tática e de curto prazo? Ou de que o discurso de que Lula é o verdadeiro centro é só oportunismo?
*Vinícius Müller é doutor em História Econômica, professor do Insper e do CLP (Centro de Liderança Pública)
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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