pandemia
Vinicius Torres Freire: Realidade ruim da fome, do ambiente e do Orçamento testam mentiras de Bolsonaro
Não será fácil ocultar realidade no preço da comida, no ambiente e do Orçamento
As mentiras de Jair Bolsonaro sobre a epidemia de Covid-19 até aqui foram de algum modo toleradas por cerca de 30% do eleitorado, que considera o desempenho do presidente “ótimo” ou “bom”. A inflação anual da comida passou de 20%, a maior desde 2003, mas a carestia também parece não ter abalado o ânimo daqueles 30%. Mesmo em assuntos de vida e morte, a realidade dura não afeta o prestígio de Bolsonaro para 3 de cada 10 brasileiros adultos ou algo assim.
Haverá em breve mais testes, o que em outro ambiente mental ou político seriam choques de realidade: inflação persistente, desastre ambiental, penúria e rolos derivados da gambiarra do Orçamento, a CPI e o meio milhão de mortos. Bolsonaro ainda vai passar com nota 30%?
A Cúpula do Clima será o começo do teste do programa de destruição ambiental do governo e mentiras associadas. Bolsonaro não vai conseguir enganar o governo americano, que de resto não está sozinho nisso. Clima é um raro assunto em que EUA e China estão em acordo razoável. Caso não tome atitude alguma, Bolsonaro terá problemas na política mundial, com repercussões econômicas crescentes, o que vai incomodar boa parte dos donos do dinheiro grosso daqui.
A alternativa é demitir Ricardo Salles, vulgo “Boiada”, e mudar a política. Bolsonaro entraria assim em conflito com seus amigos grileiros, desmatadores, mineradores ilegais etc. Teria também de inventar desculpa para suas falanges fanáticas por ter cedido ao globalismo ambiental.
O governo e o Congresso-centrão acertaram uma gambiarra no Orçamento de 2021 (aliás, o que vale um Orçamento aprovado depois de transcorrido 30% do ano?). Essa mumunha evita o risco de conflito político maior e de processo imediato contra Bolsonaro. Mas mumunhas não cobrem buracos. O governo vai cortar no osso. Já corta: ora dizima as bolsas de pesquisa. Vai ser pior. Se não fizer a mutreta de transferir o pagamento de certas despesas para 2022, vai paralisar alguns serviços. Talvez a maior parte da população nem note, dado o estado de miséria ou obnubilação em que já vive. Mas a gambiarra e seus efeitos vão ficar evidentes para quem tem o luxo de poder prestar atenção no buraco em que o país vai se enfiando cada vez mais.
A inflação da comida anda em torno de 19% por ano desde o trimestre final de 2020. Ou seja, quem receber o auxílio emergencial, já reduzido, ainda por cima perdeu um quinto do poder de compra em alimentos, em um ano. Além do mais, milhões não receberão ajuda alguma e a recuperação do emprego (muito bico) vai ser retardada pelo afundamento da economia pelo menos em março e abril.
Bolsonaro não é responsável por boa parte dessa carestia, mas ajudou a piorar a coisa, pois a baderna de seu governo mantém o dólar nas alturas. O atraso do pagamento do auxílio emergencial e o fato de que ainda não foram renovados os auxílios de emprego e para pequenas empresas, no entanto, são resultados da incompetência e da negligência de Paulo Guedes e do presidente. Para os dois, a epidemia estava “no finzinho”, em fins de 2020.
Há uma chance nada desprezível de a epidemia refluir bem a partir de julho, se a zona infecta que é o Brasil não produzir alguma nova variante assassina do vírus. Haverá dezenas de milhões de pessoas com sequelas da Covid, da educação arruinada e da miséria ampliada. Pode bem ser que os 30% não se importem com isso também. Até lá, pelo menos, a mentira perversa e lunática que é Bolsonaro vai passar por testes.
Celso Ming: O pária e a cúpula do Clima
Política ambiental desastrosa do governo Bolsonaro é alvo de críticas e pode produzir efeitos negativos para o País
O presidente Jair Bolsonaro comparece na condição de presidente de um país pária do clima à Cúpula de Líderes sobre o Meio Ambiente convocada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que vai reunir líderes mundiais. Depende exclusivamente de Bolsonaro deixar essa condição e reconduzir o Brasil à linha de frente no combate ao desmatamento ilegal e à redução das emissões de dióxido de carbono (CO2), responsável pelo efeito estufa.
O encontro virtual será realizado nestas quinta e sexta-feira e terá por objetivo a preparação da 26ª Conferência das Partes sobre a Mudança Climática, a ser realizada em Glasgow, em novembro deste ano, com o objetivo de atualizar o Acordo de Paris, de 2015.
Há certa mudança na postura do governo brasileiro no enfrentamento dos problemas ambientais. A posição prevalecente nestes dois anos foi a de que as pressões internacionais para o combate ao desmatamento ilegal, mais do que motivação ideológica, são alimentadas por interesses comerciais e geopolíticos.
Como desculpa para deixar que continuassem as ações predatórias de garimpos, da derrubada de florestas e invasões de terras indígenas, Bolsonaro repetia que aqueles que destruíram impunemente fauna e flora da Europa e dos Estados Unidos não têm moral para agora cobrar a preservação da Amazônia e do Pantanal. Que governos, ONGs e instituições ambientalistas não se metessem em questões de soberania do Brasil.
Nas últimas semanas, Bolsonaro mudou de tom, pediu US$ 1 bilhão para reduzir em até 40% o desmatamento ilegal no prazo de 12 meses. Assim, o governo, que justificava com alegações soberanistas sua omissão nas questões ambientais, agora não vê mais inconveniente em receber dinheiro de potências estrangeiras para cobrir despesas no cumprimento de metas ambientais.
Por trás dessa mudança de postura está a influência de empresários da indústria e do agronegócio que vêm advertindo que o Brasil corre o risco de continuar perdendo grandes negócios e investimentos se continuar permitindo a destruição ambiental.
Relatórios e imagens sobre os desastres no Cerrado e na Amazônia correm o mundo e acirram as pressões para que países adotem represálias econômicas ao governo brasileiro. O desmatamento na Amazônia em março foi o maior em dez anos, segundo o Instituto Imazon.
As pressões de governadores brasileiros e de personalidades mundiais contra o desleixo ambiental do governo Bolsonaro também crescem todos os dias e pode produzir seus efeitos.
Por enquanto, nenhuma promessa sobre mudança concreta da política ambiental do governo merece credibilidade. Com as bênçãos de seu chefe, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, continua permitindo que os desastres ambientais se multipliquem. Dia 14, o superintendente da Polícia Federal do Amazonas, Alexandre Saraiva, acusou o ministro de acobertar os interesses dos responsáveis pela maior apreensão de madeira ilegal já acontecida no País e, por isso, foi exonerado de sua função.
Mais do que com discursos, Bolsonaro terá agora de convencer o mundo e também os brasileiros de que a preservação da Amazônia passou a ser objetivo de seu governo. Mas isso não acontecerá enquanto Ricardo Salles continuar passando sua boiada para o outro lado da cerca já desmatada.
Adriana Fernandes: Pontes ambientais fora de Brasília
'Boiada' de Bolsonaro e Salles deu protagonismo a governadores na política ambiental
A política antiambiental do governo Jair Bolsonaro, liderada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, arrastou o Brasil para o isolamento no cenário internacional, mas acabou servindo para fortalecer as pontes e o canal direto de diálogo dos Estados e municípios com os financiadores internacionais. A turma lá de fora, que tem o dinheiro na mão, e quer apostar em projetos de desenvolvimento sustentável e locais, via governos locais e agências de fomento regionais.
Esse movimento de articulação já estava em gestação antes de Bolsonaro, mas cresceu muito nos últimos dois anos no Brasil, no vácuo deixado pelo governo federal, que preferiu ignorar todos os alertas do prejuízo para a imagem do País e a economia do desmonte da política ambiental.
Bolsonaro e Salles, ao contrário, insistiram no plano de passar a “boiada” na legislação ambiental e, agora, com a troca de presidente dos Estados Unidos tentam contornar o prejuízo ao buscar dinheiro internacional para o combate ao desmatamento.
Só que ninguém acredita na mudança. A ponto de o presidente norte-americano, Joe Biden, ter sido bombardeado por cartas de governadores, ex-ministros, artistas brasileiros, americanos e britânicos que pediram o endurecimento da posição da Casa Branca com Bolsonaro na área ambiental, como mostrou reportagem do Estadão.
Os governadores foram ao ponto: têm fundos e mecanismos criados especialmente para responder à emergência climática, disponíveis para aplicação dos recursos internacionais. Antes, era o governo federal o protagonista e principal catalisador de atração do dinheiro internacional para o meio ambiente.
Um bom termômetro da força desse novo ambiente de financiamento pode ser testado, ao longo da próxima semana, no fórum internacional de desenvolvimento, organizado pela ABDE, a associação brasileira que reúne 31 dessas agências de fomento e bancos de desenvolvimento presentes em todo território nacional.
São bancos conhecidos como “de última milha”, que estão mais próximos dos problemas locais e atuam em parceria numa espécie de cascata em que o recurso vem dos financiadores internacionais e do setor privado nacional para uma aplicação direta na ponta.
Será uma reunião de cúpula das instituições de desenvolvimento do País e certamente o principal evento do ano sobre desenvolvimento, tanto do ponto de vista das lideranças políticas (alguns presidenciáveis), com participação de grandes nomes internacionais da área. Governadores, bancos de desenvolvimento do mundo inteiro, organismos multilaterais e economistas renomados. Mais do que nunca, a área precisa de dinheiro, mas também de bons projetos.
A número dois da ONU e ex-ministra do Meio Ambiente da Nigéria, Anima Mohammed, também falará no fórum.
A criação recente da Aliança Subnacional de Bancos de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe fortaleceu essa ponte. “É importante cuidar das emergências do presente, mas também planejar e preparar o futuro”, diz Sergio Gusmão Suchodolski, organizador do evento e presidente da ABDE.
Gusmão é hoje um dos principais nomes brasileiros lançando mão de ferramentas inovadoras de financiamento na área, utilizando modelos que fazem um mix de diferentes fontes de capital de maneira a mobilizar recursos para projetos atrelados ao tema da sustentabilidade. Ele coordenou, no ano passado, a primeira emissão de bônus sustentável, com DNA ambiental e social, no mercado externo feita por um desses bancos de “milha”, o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais.
Para Gusmão, o Brasil está atrasado: “O que eu sinto falta é uma estratégia de País com consistência. De começo meio e fim para o tema de desenvolvimento sustentável. Um caminho com ações concretas e que tragam recursos para o financiamento”.
Os Estados estão buscando se articular internacionalmente não só porque veem a urgência da agenda climática e de desenvolvimento sustentável, mas também pela preocupação com o impacto negativo do risco reputacional.
Os governadores querem se aproveitar da agenda positiva que Biden está liderando nessa área, catalisando contrapartidas concretas e linhas específicas para investimentos que usam instrumentos adequados para cada região do País. Esse tipo de articulação aconteceu em alguns Estados e capitais americanas durante o governo Trump.
Ninguém quer ficar parado e sofrendo com impacto negativo das políticas que saem de Brasília e afetam a todos. Está todo mundo “correndo atrás do prejuízo” porque ninguém acredita na capacidade de Salles, chamado pelos críticos de ministro do desmatamento, em conseguir atrair dinheiro de Biden. Os americanos sabem o que o governo brasileiro fez no verão passado e continua fazendo para prejudicar o combate pelos órgãos de fiscalização dos crimes ambientais.
José Serra: Flexibilizando patentes na pandemia
O abuso econômico das patentes deve ser encarado como questão de Estado
O Senado Federal vem discutindo, acertadamente, medidas que alteram a Lei de Propriedade Industrial na direção de uma nova agenda global. Pretende-se promover maior escala de vacinação para enfrentar o novo coronavírus a partir da flexibilização dos direitos de patentes. Trata-se de uma decisão relevante, pois os países em desenvolvimento vêm encontrando dificuldades no acesso às vacinas, ficando mais vulneráveis a novas ondas de contágio da doença. E não apenas esses países, mas também a economia global.
Na Organização Mundial do Comércio (OMC), África do Sul e Índia lideram uma agenda que busca flexibilizar regras sobre patentes previstas em acordos internacionais, com o objetivo de promover a vacinação em países não desenvolvidos. Ex-chefes de Estado enviaram recentemente uma carta ao presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, em apoio a essa demanda. Na carta os signatários manifestam sua preocupação com o monopólio da tecnologia das vacinas durante a pandemia. Nota-se que economistas renomados – com Prêmio Nobel – também assinaram o documento encaminhado ao presidente norte-americano.
Três falhas de mercado no setor farmacêutico representam um grande desafio para economistas no debate. Primeiro, a demanda de vacinas em relação ao preço é inelástica, ou seja, a decisão dos países para adquiri-las não depende do preço. Segundo, o consumidor tem poder de decisão reduzido sobre qual vacina adquirir, dado que se trata de questão de vida ou morte. Terceiro, a barreira à entrada de concorrentes na indústria farmacêutica é notoriamente elevada. Se há elevado número de empresas no ramo, também existem diversos expedientes para formação de poderes monopolísticos.
O indiano Prabodh Malhotra analisou o impacto, na Índia e em países em desenvolvimento, do famoso acordo internacional sobre direitos de propriedade, conhecido como Trips – Trade Related Intellectual Property Services –, em seu livro Impact of Trips in India, an access to medicines perspective, que recomendo aos interessados no assunto.
Prabodh observa que o Trips é um instrumento jurídico que favorece desproporcionalmente a indústria farmacêutica, restringe o acesso a medicamentos e tem potencial para causar mortes desnecessárias em países em desenvolvimento. Nações desenvolvidas se beneficiaram efetivamente de invenções e descobertas de outros países, sem limites, mas o Trips nega às nações em desenvolvimento as mesmas oportunidades.
Cabe esclarecer que os lucros auferidos pela indústria farmacêutica são importantes para tornar viáveis investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Sem uma margem de lucro razoável haveria desincentivo à atividade inovativa. Mas também não se pode esquecer que o regime de patentes é uma exceção ao livre mercado, um dos princípios postulados pela nossa Constituição federal. Esse princípio constitucional supõe que toda exceção deve ser aplicada de forma ponderada, especialmente quando há abuso econômico na provisão de produtos e medicamentos durante uma pandemia.
As patentes e o direito às políticas públicas fazem parte da minha trajetória de vida pública, especialmente quando estive à frente do Ministério da Saúde. Coordenei a reforma da Lei de Propriedade Industrial em 2001, que resultou em maior poder do Estado no processo de concessão de patentes. Antes disso já havia assinado o Decreto n.º 3.201, de 1999, com o objetivo de inaugurar no Brasil regras sobre a implementação da licença compulsória, permitindo a quebra temporária de patentes em casos de emergência nacional ou interesse público.
Essas reformas foram feitas observando dispositivos específicos previstos no próprio acordo Trips. Com a licença compulsória no leque de possibilidades, tivemos condições de negociar forte redução do valor dos medicamentos usados no tratamento de aids, hepatite e outras doenças. Vencemos a guerra de preços contra os laboratórios adotando a tese de que ninguém pode gerar superlucros pondo em risco o direito à vida.
O arranjo jurídico em vigor no Brasil autoriza o governo federal a licenciar compulsoriamente a exploração de vacinas ou outros medicamentos patenteados por qualquer instituição pública ou empresa privada no País. Assim, o principal obstáculo para o Brasil ter acesso a vacinas e medicamentos não reside na existência de patentes, mas sim no compromisso e na disposição do governo federal para enfrentar as empresas que estejam usando tais patentes de maneira que permita penalizar a população brasileira, bem como para fazer os investimentos necessários à expansão da produção de vacinas no País.
O abuso econômico das patentes durante a pandemia deve ser encarado como questão de Estado. Na batalha contra o novo coronavírus, o Congresso Nacional deve atuar quando o Poder Executivo revelar-se omisso em relação ao tema, aperfeiçoando a Lei de Propriedade Industrial na parte que regula a licença compulsória. Essa é uma agenda global que interessa profundamente aos países em desenvolvimento na luta contra o vírus.
*Senador (PSDB-SP)
William Waack: Sem projeto e sem maioria
Preso a conspirações fantasmagóricas, Bolsonaro aumenta número de inimigos
O novo ministro da Defesa é um general que passou os últimos dois anos pelos gabinetes e corredores do lugar mais estranho do Brasil: o Palácio do Planalto. É o hábitat de seres vivos que, por sua vez, são dominados por fantasmas criados por eles mesmos. Por vezes parece efeito da ingestão de algum bagulho muito doido.
O general discursou com o jeito de quem não sabe qual é a “punchline” de um texto escrito a muitas mãos. Mas, ao exigir que se “respeite o projeto escolhido pela maioria”, o novo ministro da Defesa repetiu a confusão fundamental dos fantasmas que habitam cabeças no palácio. O verdadeiro respeito devido é à Constituição, à qual tem de estar subordinado qualquer projeto de qualquer maioria.
Talvez por ter sido assessor do presidente do Judiciário, seu antecessor no cargo não se arriscou a insinuar em público o que o novo ministro da Defesa disse de maneira mal disfarçada: que o STF é a causa de desequilíbrio entre os poderes. De fato, é impossível fugir à constatação da judicialização da política e da politização do STF, mas o fantasma que falou pela boca do general abordava outro aspecto.
Reiterava a noção de que o STF não deixa governar pois teria se aliado a uma fantástica conspiração de corruptos, comunistas, bagunceiros e perdedores que não querem respeitar o projeto escolhido por uma maioria. Pode-se debater se o tal projeto escolhido pela maioria consistia em consolidar o poder do Centrão, explodir a dívida pública, manter a economia estagnada e transformar o País em pária internacional do ponto de vista da política ambiental e de saúde pública, mas isso seria ampliar demais o foco.
Os fantasmas do palácio sussurram que os problemas para governar são sempre causados por outros, apesar da explicação para os evidentes fracassos do governo ao enfrentar economia e pandemia constar dos textos lidos por quem passou por boas academias militares. Ali se aprende que não se governa com eficiência se faltam planejamento, estratégia, definição de objetivos, rumos e meios – para não falar da incapacidade de liderança e da subordinação de tudo ao objetivo político da reeleição.
Também não se sabe ao certo se fazia parte do projeto escolhido pela maioria comprar brigas por toda parte, mas é a ordem que os ocupantes do palácio parecem ter recebido dos fantasmas. O conflito mais recente é particularmente perigoso: Bolsonaro foi avisado pessoalmente por um governador amigo (por quanto tempo ainda?) de que acabou criando 23 opositores entre os 27 chefes dos Executivos estaduais. É uma massa política que não se deve negligenciar.
A gota d’água para transformar os últimos governadores amigos em inimigos foi a “esperteza” de utilizar a ambição por uma cadeira vitalícia no STF por parte de ocupantes de altíssimos cargos do MPF para convertê-los à narrativa palaciana de que o governo federal tudo fez no combate à pandemia. Onde houve desastre foi culpa dos governadores e prefeitos – portanto CPI e Ministério Público neles – que desviaram verbas e recursos da Saúde (além de decretar medidas restritivas) em busca de armas na conspiração contra o projeto escolhido pela maioria.
Neste ponto seria injusto atribuir falta de visão do bem público e do interesse da coletividade exclusivamente a Bolsonaro, dominado ou não por seus fantasmas. Esse desinteresse pelo bem comum já era a característica primordial de forças políticas do Centrão, as que hoje estão no poder. É também a de ministros do STF tomando decisões “exóticas” levando em consideração apenas seus interesses ou simpatias políticas imediatas. Característica agora exibida de forma escancarada pelos integrantes da cúpula do MPF que, esfalfando-se por chegar a cargo no STF, ajudam a desmoralizar a instituição.
Quanto ao “projeto” a ser defendido, qualquer que seja, está se dissipando junto com a maioria.
Eugênio Bucci: O golpe em gerúndio
A democracia neste cemitério chamado Brasil já está em pleno desmanche
Uns dizem que o presidente da República é tão despreparado, tão destrambelhado, tão desmiolado e tão desqualificado que não consegue organizar nem mesmo uma quartelada. Dizem que, por aqui, não virá golpe de Estado nenhum. Chance zero. Despreocupados, até reconhecem que o Palácio do Planalto nutre seus delírios com rupturas institucionais, mas desprezam categoricamente a hipótese. Asseguram que não há competência instalada para tanto. Quem planejaria um golpe?, perguntam. Quem montaria a estratégia? O Pazuello? Dão risada. Aparentando segurança e calma, estão certos de que as instituições resistirão até 2022 e o presidente, esse tal que segue no posto, será derrotado nas urnas. Falar em impeachment agora é perda de tempo, desperdício de energia.
Esses uns não são poucos. Gente graúda da oposição está com eles. Esses uns, na verdade, são uns e outros. Dão as cartas. Não há muito que se possa fazer. Só nos resta torcer para que uns e outros estejam certos. Tomara que o avião aguente. No mais, ainda é possível bater panelas, além de levantar o dedo e balbuciar “veja bem”. É disso que trata este artigo: veja bem.
Talvez seja verdade que não virá nenhum golpe de arromba por aí. Oxalá seja verdade. Talvez não nos espere, no calendário próximo, um golpe desses que se deixam fotografar, com tanques de guerra fechando a Rua da Consolação e caças dando rasante na capital federal. Por outro lado, veja bem, é ainda mais verdade que vem vindo, já faz um tempo, um golpe menos espetaculoso, um golpe em processo, um golpe por antecipação, um golpe de cada dia que nos dão hoje, assim como nos deram ontem e anteontem. Enquanto o golpe retumbante não chega, outro golpe vai se adensando, vai se alastrando, vai nos consumindo – em surdo gerúndio.
E vai avançando. Existem bandidos que vêm comemorando sem maiores histrionices: “Está tudo sendo dominado”. A bandidagem aderiu ao gerúndio. Para que o improvável leitor visualize o que se vem passando, é mais ou menos como arrancar do chão toda a flora e toda a fauna na Amazônia. Isso não acontece assim, de uma hora para outra, num repente – vem aos poucos, num acontecendo. Uns milhares de quilômetros quadrados, ou redondos, são incinerados hoje, outros, amanhã, até que a gente vai descobrir que não há mais florestas a proteger.
Algo parecido se vai dando com a democracia brasileira. Enquanto uns e outros pensam que vão comer o bolsonarismo pelas bordas, o bolsonarismo está comendo o Estado por dentro. Enquanto uns e outros se divertem postando piadinhas contra o ministro que falou que passaria com a boiada da desregulamentação ambiental, os boiadeiros do apocalipse ateiam fogo nos fundamentos das instituições democráticas.
Não obstante, uns e outros dizem que as instituições funcionam “normalmente”. “Normalmente” como, cara-pálida? A democracia deste cemitério congestionado chamado Brasil não está mais sob ameaça: já está em pleno desmanche, só estão ficando de pé as fachadas. Por enquanto. O cientista político e professor da USP André Singer vem apontando, também no gerúndio, o descomunal desmantelamento, mas uns e outros não ligam. Em recente entrevista ao site Opera Mundi, Singer afirmou que está em curso “um processo incremental, tão gradual que a sociedade não percebe o que está acontecendo”. No gerúndio.
Exemplos? Ora, todos. Intervenções brandas e brutas na Polícia Federal seguem se acumulando. De quantos escândalos mais você precisa para começar a franzir o cenho? Perseguições ideológicas contra setores da cultura, dentro e fora do Estado: isso por acaso faz parte da “normalidade” democrática? Olhemos para a devastação da ciência, para o seletivo torniquete orçamentário que vai desativando o sustento da educação, para a metamorfose macabra que fez do Ministério da Saúde uma usina de estatísticas sobre cadáveres. Olhemos para o extermínio das melhores tradições diplomáticas do Itamaraty. Estamos imersos num gerúndio massacrante, que vai dizimando até carreiras de Estado, como a dos fiscais que se acreditavam investidos do poder de vigiar crimes contra o meio ambiente.
Quantos anos serão necessários para reconstruir o Brasil, para reflorestar a terra ardente, para reavivar os instrumentos institucionais que fazem uma democracia funcionar? Quanto trabalho teremos de empenhar para cada dia de estrago implementado intencionalmente por esse governo? Quantas vidas teremos de pagar?
Enquanto isso, os fundamentos continuam despencando. No início da semana, a organização internacional Repórteres sem Fronteiras divulgou mais uma pesquisa sobre a liberdade de imprensa. Pela primeira vez, o Brasil figura na chamada “zona vermelha”, onde o trabalho de jornalistas é considerado “difícil”. No mesmo grupo estão Nicarágua, Turquia, Rússia e Filipinas. Também isso não aconteceu de um dia para o outro, foi produto de um longo e árduo trabalho dos golpeantes em gerúndio. Enquanto o estrago se vai expandindo, vai ficando mais “difícil” encontrar jornalistas que possam investigar e contar o que está acontecendo. Em gerúndio, em gerúndio, em gerúndio.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Marco Aurélio Nogueira: Descoordenação geral
A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente.
Enquanto o presidente da República exibe seu peculiar estilo de criar caso e agredir, afundando seu governo no desgoverno, a crise segue corroendo as esperanças brasileiras, sem sinal de superação.
A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente. A crise sanitária e a crise econômica são grandes, terríveis, têm pinta de que se estenderão. A crise da educação mistura-se com elas, e vai ceifando a inteligência nacional a partir de baixo, dos mais jovens, o que sugere a criação de um legado arrasador, que se espalhará pelo tempo. Pode-se dizer o mesmo da crise do saneamento, cujos déficits são escandalosos.
Somente elas são suficientes para explicar por que o País não está dando certo. São crises que se enraízam no chão profundo da história nacional, como se tivessem a ser criadas intencionalmente por mãos humanas. Servindo de base para todas elas, a desigualdade social obscena, chaga exposta a céu aberto, da qual muito se fala mas que segue se reproduzindo.
Nesse tronco principal enroscam-se outras crises, que eventualmente são mais fáceis de serem contornadas. Por comodidade vou chamá-las de “média intensidade”: a crise da federação e a crise dos poderes de Estado. As tensões que estão a ser reprisadas dia após dia têm a ver com isso. Há defeitos de formatação sistêmica no presidencialismo federativo, mas o que mais chama atenção é a ausência de um centro gestor eficiente, com um governante central interessado em defender o País mediante a harmonização de poderes e entes federativos. Nos últimos dias, o Judiciário entrou em rota de colisão com o Senado. O Senado reagiu à altura e assimilou o problema, mas não mostrou saber como processá-lo. Confusão à vista. O Executivo fez questão de deixar suas digitais. Com aquele jeito Bolsonaro de ser, resolveu conspirar com um senador (o inacreditável Kajuru) para pressionar os senadores e o STF simultaneamente. Para além da demonstração de desrespeito à Constituição, à ética pública, à decência e às boas maneiras, a iniciativa presidencial se dedicou, na verdade, a soprar as brasas de uma fogueira que libera gases tóxicos sem cessar. Uma fogueira que lhe queima as penas e o isola, mas que também cria um alvoroço que a todos confunde. Serviu, ao meno
Chamo essas crises de “média intensidade” porque podem ser enfrentadas com os recursos da política prática: a inteligência, a responsabilidade, a seriedade, a disposição ao diálogo, o jogo democrático. Se continuam a latejar é porque tais recursos não estão sendo empregados. Ressentimo-nos da falta deles, da falta de elites políticas dotadas de capacidade de iniciativa e proposição. Talvez não haja uma cultura política (um ethos, um conjunto de valores e convicções) que dê sustentação a boas elites, talvez os partidos não estejam sendo a “escola de formação” de que se necessita, talvez a classe política seja covarde de mais e lúcida de menos. Pode ser tudo isso. O fato é que as instituições democráticas, que se supõe fortes e estáveis, não estão produzindo respostas que amenizem crises e dificuldades, que avancem pactos e soluções positivas. Donde a sensação crescente de descontrole, descoordenação, desgoverno.
O País está sem diretrizes, sem políticas. O meio ambiente é uma tragédia, o Itamaraty marchou para trás, não há política externa, a Cultura foi jogada na sarjeta, o desarranjo atinge todos os segmentos da gestão pública. Carecemos de muitas coisas.
Até onde um País assim conseguirá chegar é uma incógnita. Não há futuros predeterminados. Há muitos caminhos abertos na encruzilhada da História. O fato é que os motores estão engasgando e não se vislumbra no horizonte próximo quem poderá voltar a fazê-los funcionar.
Alon Feuerwerker: Cone Sul
O recrudescimento da Covid-19 no Cone Sul do continente (leia) produz problemas não apenas sanitários, mas também políticos. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro está às voltas com uma CPI. Na Argentina, o prefeito da capital rebelou-se contra as novas medidas restritivas de Alberto Fernández (leia). E no Uruguai acabou a lua de mel com o recém-eleito Luis Alberto Lacalle Pou (leia).
Os três países são governados por distintas correntes políticas. Grosso modo, e com todas as relativizações possíveis, direita no Brasil e esquerda na Argentina. No Uruguai, o que hoje em dia seria aqui chamado de centro. Também foram três modelos diferentes de combate ao vírus. Respectivamente, isolamentos sociais descentralizados (Brasil), tentativa de lockdown nacional (Argentina) e "modelo sueco" (Uruguai).
Uma hipótese para o repique regional é o espalhamento da variante de Manaus, mais contagiosa, disseminada com a ajuda das porosidades fronteiriças do continente. A isso certamente se juntam uma certa desorganização estatal e a ausência da desejável (pelo menos em pandemias) disciplina social encontrada nos países que vêm melhor conseguindo enfrentar o desafio.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Zeina Latif: O presidente não sabe surfar
Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal, e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio
Empolgados com a expressiva alta dos preços de commodities, analistas apostam em um ciclo robusto adiante, em boa medida por conta das perspectivas de vacinação em massa no mundo. Os países emergentes se beneficiariam com o influxo de capitais estrangeiros, para além da melhora do saldo exportador.
Haveria mais investimento nesses setores e em ativos de risco, pela própria percepção de redução do risco nos países - como sugerem as elevadas correlações entre preços de commodities e o custo (spread) da dívida soberana ou o preço do seguro contra calote (credit default swap) de emergentes.
O otimismo tem contribuído para sustentar preços de ativos. Convém, no entanto, conter o entusiasmo, especialmente para o caso brasileiro.
O principal combustível para a alta das commodities é o comércio mundial, que exibiu recuperação em formato de “V” e embalou a alta de 68% nos preços de commodities entre o colapso de abril passado e março último, pelo índice do FMI. Certamente a elevada liquidez mundial tem sua contribuição, por se tratar de um preço de ativo.
A tendência, porém, é de desaceleração do comércio mundial, pois fatores transitórios explicam em boa medida sua recuperação: a recomposição de estoques de commodities pela China, os estímulos monetários no mundo e própria normalização de cadeias de valor.
Avanços adicionais dependerão de mais elementos, sendo que a superação da pandemia significará muito mais a reativação do setor de serviços do que de setores intensivos no uso de commodities, mais preservados na crise.
Vale lembrar que o comércio mundial estava estagnado antes da crise, em função do protecionismo no mundo e da desaceleração na China.
A China acelerou seus planos de rebalanceamento do modelo de crescimento voltado a setores intensivos em tecnologia, em detrimento da indústria tradicional -, aliás, a disputa tecnológica está no cerne da guerra comercial entre China e Estados Unidos. Esses segmentos, no entanto, não são intensivos na utilização de commodities e tampouco o retorno do maciço investimento estatal está garantido, ainda menos de forma tempestiva.
A complexidade da implementação e da maturação de projetos de tecnologia não se compara à de investimentos tradicionais em capital fixo. É natural, portanto, que ocorra uma desaceleração na China, inclusive pela acomodação na oferta de crédito após os estímulos recentes.
Em relação a agendas globais, ainda não chegou o momento do multilateralismo no comércio. O foco tem sido muito mais na questão ambiental, que ganhou ímpeto com Joe Biden. Mantém-se o quadro de protecionismo comercial, inclusive com risco de recrudescimento, por conta das exigências da agenda ambiental.
Mesmo que o ciclo de commodities perdure, é improvável que o Brasil consiga “surfar a onda” como no passado.
No primeiro governo Lula, isso foi possível. A política macroeconômica herdada de FHC foi fortalecida e houve avanço em políticas públicas que contribuíram para aumentar o potencial de crescimento de longo prazo do País e a emergência da nova classe média.
Apesar da crise política que interrompeu precocemente as reformas, o Brasil conseguiu se beneficiar do vento de popa do exterior, decorrente da entrada da China na OMC no final de 2001, e caminhou para conquistar o grau de investimento em 2008.
O quadro atual é outro. Já assistíamos à redução da participação do Brasil no investimento direto estrangeiro mundial e à saída de empresas do País. A má gestão da crise da pandemia agravou bastante a situação, sendo que a deterioração do regime fiscal em curso traz mais incertezas para o comportamento do dólar, das taxas de juros e da própria carga tributária no futuro.
Tudo somado, o cenário eleitoral ganha maior relevância no radar de empresários e investidores.
O governo está em um círculo vicioso de decisões equivocadas. O imbróglio do orçamento reflete erros passados na gestão da crise e sua suposta solução - que amplia os gastos públicos praticamente sem constrangimento, pendurando tudo na conta da covid-19 - produz outros tantos.
Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio.
Esse quadro reduz as opções para correções de rumo. Mesmo se houvesse interesse, o esforço teria de ser enorme diante da perda de credibilidade. As saídas se estreitam e o Brasil perde a onda.
Elio Gaspari: De Zappa@edu para Bolsonaro@gov
O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente
Presidente,
O senhor implica com os diplomatas profissionais e chega a ironizar suas boas maneiras. Como disse um colega, alguns arrumam melhor os talheres numa mesa que os pronomes numa frase. Escrevo-lhe com a autoridade de quem, no século passado, serviu como embaixador em postos para os quais o creme de barbear chegava por mala diplomática (Pequim, Hanói, Maputo e Havana). Eu evitava usar smoking, porque seria confundido com garçom.
Amanhã o senhor começará a participar da Cúpula do Clima e terá momentos difíceis. Acho que posso ajudar com uma ideia simples: deixe a diplomacia com os diplomatas profissionais. Teste-os, enunciando uma tolice. Quem concordar, profissional não é.
Na diplomacia, não há lugar para ganhadores nem para perdedores. Isso é coisa de militares. Às vezes o vencedor finge que perdeu e dá ao perdedor a chance de dizer que ganhou. Conversa de diplomata? Talvez o senhor esteja entre aqueles que consideram o americano Henry Kissinger um grande diplomata. Ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz, mas abandonou o Vietnã à própria sorte depois de massacrar parte de sua população numa guerra perdida. Eu vivi lá e sei o que houve. Grande marqueteiro, isso sim.
O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente. Depois de delirar na virtude de ser um pária, seu governo não deve apresentar contas. Sua carta ao presidente Joe Biden foi longa demais porque muita gente meteu a colher.
Nós já compramos causas perdidas. Apoiamos o colonialismo português na África, ficamos com os chineses de Taiwan, mesmo depois que os americanos se acertaram com a China. Votávamos nas Nações Unidas com Portugal por causa da pressão de meia dúzia de comendadores do Rio de Janeiro. Saímos dessa encrenca. Mais difícil foi aguentar as implicâncias com o restabelecimento de relações diplomáticas com a China. O senhor implicou com a vacina chinesa. Para quê?
Diplomatas consertam vasos quebrados desde os tempos coloniais. Eles sabem lidar com o ritmo e o tom nas crises. Na questão da Amazônia, o Brasil precisa apenas voltar a ser ouvido. Deixamos de sê-lo porque deliramos. A irracionalidade não é invenção nossa. Veja o caso dos Estados Unidos na Amazônia. No século XIX, eles queriam mandar para lá seus negros. No início do XX, Henry Ford delirou querendo transformar um pedaço da floresta em seringal particular. Décadas depois, o bilionário Daniel Ludwig teve uma ideia parecida. Deliraram, deram-se mal e foram-se embora.
Existe um espaço enorme para negociarmos projetos relacionados com a Amazônia. Para um exportador de grãos que compete conosco no mercado internacional, vossa política ambiental é um presente.
Pelo que sei, há malandraços oferecendo pontes com a Casa Branca. Não caia nessa. O presidente Biden tem um jeitão de vovô, mas conhece Washington. Para seu caderno de notas: em abril de 1975, as tropas do Vietnã do Norte estavam entrando em Saigon, e discutiam-se recursos para resgatar os vietnamitas que haviam ajudado os americanos. O então senador Biden avisou:
— Voto qualquer quantia para tirar os americanos, mas não quero me meter com operações para retirar vietnamitas.
Eu servi lá e nos Estados Unidos. Sei quanto isso custou aos dois povos.
Atenciosamente,
Ítalo Zappa.
Bernardo Mello Franco: Os estribos do general
O novo ministro da Defesa está empenhado em agradar o chefe. Walter Braga Netto estreou no cargo com uma exaltação ao golpe de 1964. Em seguida, passou a usar cerimônias militares para endossar o discurso do capitão.
Ontem o general aproveitou a troca de comando do Exército para fazer mais um comício bolsonarista. Às vésperas da Cúpula do Clima, ele tentou rebater as críticas da comunidade internacional pela devastação da Amazônia. “Os brasileiros que estão presentes na região sabem que a floresta continua de pé”, afirmou.
A patriotada não apaga o que as imagens de satélite mostram ao mundo. Ao analisá-las, o Imazon constatou que o desmatamento em março foi o maior para o mês nos últimos dez anos.
Com o governo pressionado pela abertura da CPI da Covid, Braga Netto disse que “é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros”. A frase sugere que a eleição deu um salvo-conduto ao presidente, como se ele não precisasse prestar contas à sociedade e ao Congresso.
O ministro também afirmou que o Brasil passa por um período de “intensa comoção e incertezas, que colocam a prova a maturidade, a independência e a harmonia das instituições”.
Faltou lembrar que os ataques ao equilíbrio entre os poderes partem do Planalto. Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a atacar ministros do Supremo e acionou sua milícia digital para intimidar os senadores que pretendem investigá-lo na CPI.
O general arrematou o discurso com uma advertência pouco sutil. Disse que as Forças Armadas estão “prontas” e “sempre atentas à conjuntura nacional”. A conversa casa com a retórica golpista do capitão, que tem ameaçado adversários políticos com o que ele chama de “meu Exército”.
Braga Netto assumiu a Defesa no momento em que o presidente cobrava mais manifestações de apoio dos militares. Sua primeira medida foi derrubar o general Edson Pujol, que tentava controlar a exploração política da tropa.
Ontem o ministro se despediu do ex-comandante com um bordão da caserna: “Que nossos estribos se choquem em cavalgadas futuras”.
Vera Magalhães: Campeonato do fim do mundo
“Nesse campeonato do fim do mundo, quando você é muito bem-sucedido, você acrescenta meio grau na temperatura do planeta”, disse, de forma contundente, o escritor e líder indígena Aílton Krenak na última segunda-feira no centro do Roda Viva.
Para ele, é este campeonato que o Brasil, tendo Jair Bolsonaro e Ricardo Salles como técnico e auxiliar, resolveu jogar. E é na condição de líder da tabela desse torneio macabro que o país chega à Cúpula de Líderes pelo Clima, proposta por Joe Biden, que será anfitrião virtual de 40 chefes de Estado a partir desta quinta-feira para marcar a volta dos Estados Unidos à mesa das negociações climáticas, depois de quatro anos de abandono desta agenda por Donald Trump.
Todos os olhos do mundo antes da reunião estão postos sobre o Brasil. Os sucessivos recordes de desmatamento da Amazônia, as queimadas na floresta e também no Pantanal, o desmonte da estrutura de fiscalização ambiental e a reiterada disposição de Bolsonaro de liberar a exploração mineral e de madeira em reservas indígenas, rever demarcações e legalizar terras ocupadas ilegalmente na região amazônica são apenas alguns dos "feitos" pelos quais o presidente brasileiro deverá ser questionado por seus pares.
Embora mantenham a absoluta falta de compreensão a respeito da importância econômica central da agenda climática e ambiental em qualquer fórum global hoje, Bolsonaro e seus auxiliares terão mais uma mostra de sua inadequação para esse debate, pois as cobranças para que se endureça com eles vêm não apenas dos adversários de sempre, como lideranças ambientalistas como Krenak ou a jovem Greta Thunberg, ou artistas como Leonardo di Caprio ou Wagner Moura, mas dos empresários.
Escrevi a esse respeito aqui na coluna na semana passada, e retomo o fio desta meada: Salles só será ameaçado no cargo quando Bolsonaro sentir na pele o risco de mantê-lo, ainda que ele sempre tenha feito exatamente o que o chefe mandou.
Grandes empresas brasileiras sabem o quanto de prejuízo reputacional e de negócios enfrentarão quando se tornar um imperativo para vendas a certificação ambiental de produtos, algo cada vez mais comum. Vale sobretudo para o poderoso agronegócio, até aqui ainda um reduto de apoio ao bolsonarismo, mas que não rasga dinheiro.
A pressão mundial é para que Biden endureça o jogo com o Brasil, não aceitando fazer nenhum acordo com o governo do capitão a não ser que o país reveja sua doutrina ambiental e se comprometa com metas objetivas e mensuráveis de redução de desmatamento e de emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa.
Bolsonaro ficará ainda mais exposto pelo fato de que os anfitriões querem marcar sua “volta ao jogo” com a assunção de metas ousadas e o anúncio de investimento pesado em conter o aquecimento global, para além da mera retórica.
Sabemos como o presidente brasileiro costuma se comportar em eventos mundiais como a Assembleia Geral da ONU ou o Fórum Econômico Mundial de Davos: como um peixe fora d’água, alguém que sabe que não tem o que dizer para além das quatro linhas das redes sociais e do cercadinho do Alvorada, onde fica seguro na companhia dos seus seguidores fanáticos.
Sem o “amigo" Donald Trump a chancelar o desdém e o discurso negacionista em relação ao Meio Ambiente, Bolsonaro ficará completamente isolado na cúpula. O discurso proferido nesta terça-feira pelo ministro da Defesa, Braga Netto, na linha “a Amazônia é nossa”, mostra que o nacionalismo mofado é a tônica em todas as áreas do Executivo, não só na pasta de Salles.
Parece ingênua, portanto, qualquer esperança de que o Brasil vá ao encontro munido de novos propósitos para deixar a liderança da peleja do fim do mundo. Só fará isso se levar um cartão vermelho de Biden.