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'Segurança jurídica é elemento de importância quase espiritual', diz advogada
Em artigo publicado na revista mensal Política Democrática Online, a também consultora legislativa do Senado avalia decisão envolvendo caso Lula
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
“Vivemos tempos difíceis e nossa democracia não caminha a passos largos, mas, sempre teremos no devido processo uma das mais importantes armas contra o arbítrio”. A declaração é da consultora legislativa do Senado Federal em direito penal e processo penal, Juliana Magalhães, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de abril (30ª edição).
Na avaliação dela, é preciso considerar que “a segurança jurídica é um elemento de importância quase espiritual para as nações, pois o homem toma decisões diuturnas com base no seu resultado futuro dessas decisões”.
Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021
Mestre em direito e políticas públicas, especialista em direito processual e sócia do escritório Trindade Câmara Advogados, Juliana analisou os aspectos processuais da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin no habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Incompetência
Fachin declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o julgamento de ações penais (Triplex de Guarujá, sítio de Atibaia, sede do instituto Lula e doações ao mesmo instituto) em desfavor do ex-presidente, determinando a remessa daqueles autos ao Distrito Federal.
No dia 15 de abril, o STF decidiu rejeitar o recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR) que buscava reverter a anulação das condenações de Lula impostas pela Justiça Federal do Paraná, na Operação Lava Jato.
Além de Fachin, sete ministros (Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Luís Roberto Barroso) votaram pela rejeição do recurso e três pela aceitação (Nunes Marques, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux).
Com a rejeição do recurso, as anulações das condenações foram mantidas, e Lula continua elegível.
“A decisão do ministro [Fachin], tal como se tornou comum na comunidade jurídica, causou estranhamento”, afirma Juliana. “Não em razão da matéria de fundo, isto é, se, de fato, não há correlação entre os fatos narrados naquelas ações e os diversos episódios de corrupção em desfavor da Petrobrás, cujo mérito não será objeto do artigo”, ressalta.
Menoscabo
No entanto, segundo ela, o problema da questão são as sucessivas manifestações de menoscabo em relação às normas processuais penais pela justiça brasileira, especialmente pelo STF.
Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online
“O Estado Democrático de Direito deve estar baseado no devido processo legal, conquista da civilização moderna que sabe, com razoável previsibilidade, a sequência dos atos processuais e suas consequências”, assevera a consultora legislativa.
A análise de Juliana pode ser vista, na íntegra, na versão flip da revista Política Democrática Online de abril. A publicação também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigos de política nacional, política externa, cultura, entre outros, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos
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Presidente da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo é vacinado contra Covid-19
“Nunca me senti tão cidadão quanto hoje. Fui vacinado contra o Coronavírus. Vacina Astrazeneca. Daqui a 90 dias volto pra concluir minha imunização”, anunciou Zulu, celebrando a primeira dose.
Presidente da Fundação Pedro Calmon (FPC), instituição vinculada à Secretaria de Cultura, responsável por coordenar o sistema de Arquivos e Bibliotecas Públicas da Bahia, Zulu Araújo (68) foi imunizado contra a Covid-19, nesta sexta-feira (26), em Salvador.
“Esse deveria ser um direito de todos e todas. Lamentavelmente a irresponsabilidade do Governo Federal está transformando esse direito num privilégio de poucos”, protestou o gestor público. “Vacina é vida. Viva a vida”, completou.
Marcio Santilli: Cartas ao Biden
Nunca antes na história deste país tantas cartas foram escritas para o presidente de um outro país. Nesses dias, Joe Biden tem recebido um monte de mensagens sobre a Amazônia e o Brasil. Sentimentos de esperança e de preocupação misturam-se na busca, meio aflita, por um canal de comunicação. Esperança de mudança no padrão das relações, preocupação com o risco e as consequências de uma frustração.
Biden convocou uma reunião de cúpula, que começa hoje, para reafirmar, em alto nível, a retomada dos compromissos dos Estados Unidos com os esforços internacionais para enfrentar as mudanças climáticas. Ele pretende ampliar as metas de redução das emissões de gases que provocam o efeito estufa. Para isso, espera que outros grandes emissores globais, como o Brasil, também façam mais.
Nas últimas semanas, a equipe de John Kerry, assessor especial de Biden para a política climática, manteve negociações reservadas com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em busca de um acordo bilateral para que o Brasil reduza o desmatamento na Amazônia em troca de compensação financeira por parte dos EUA ou de empresas americanas.
A princípio, tudo normal. Governos negociam com governos e os EUA têm poder de pressão para convencer qualquer um ‒ até Jair Bolsonaro ‒ a optar pela via da negociação. No mérito, nada muito diferente de outros acordos passados, como o do Brasil com a Noruega, que resultou no Fundo Amazônia, cujo funcionamento foi paralisado pela atual administração federal. A novidade, então, seria a mudança de postura do Brasil, atrás de uma saída para o seu inédito isolamento político, agravado com a derrota de Trump e a posse de Biden.
Cuidado, Biden!
A esperança começou a ceder espaço para a preocupação quando circularam informações de que hoje, ou até o final da cúpula, já seria anunciado o tal acordo bilateral, sem que qualquer outra parte interessada tivesse conhecimento sobre seus termos. Por exemplo, os governos dos estados amazônicos, alijados do Conselho Nacional da Amazônia e afetados com a paralisação injustificada do Fundo Amazônia. Ou os povos indígenas e outras populações tradicionais, que têm direitos sobre grande parte da floresta e são essenciais para qualquer projeto de desenvolvimento sustentável da região.
Mas a preocupação não se limita à falta de transparência nas tratativas e à precipitação de um eventual acordo bilateral, estendendo-se a questões de fundo. Enquanto o governo sinaliza reduzir o desmatamento nas conversas, sua bancada move-se, no Congresso, para legalizar o roubo de terras públicas, a exploração predatória dos recursos naturais das Terras Indígenas e diminuir o rigor no licenciamento ambiental das obras de infraestrutura, inclusive na Amazônia.
Foi neste contexto que atores interessados enviaram cartas a Biden, reconhecendo a legitimidade da sua intenção de fortalecer a agenda climática, mas fazendo-o ver que, para a efetividade de uma iniciativa para reduzir o desmatamento, é imprescindível a participação dos diversos segmentos envolvidos.
Na semana passada, 24 governadores, inclusive os da Amazônia, enviaram carta a Biden propondo parcerias em questões ambientais. Eles têm interesse em programas bilaterais de cooperação com estados americanos, previstos na política de clima do presidente dos EUA.
Um mês antes, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) já havia enviado carta ao Biden, pedindo que os índios sejam diretamente ouvidos nas discussões sobre a Amazônia. Como detentores de direitos originários reconhecidos sobre 25% da região, eles têm sido agredidos pelas ações do governo, que se nega a demarcar e proteger as suas terras, como exige a Constituição. No início do mês, 200 organizações da sociedade civil brasileira também enviaram carta a Biden, advertindo-o dos riscos para a sua própria política ao negociar com Bolsonaro a portas fechadas.
As mensagens dos índios e das ONGs repercutiram com força nos EUA, abrindo os olhos dos negociadores para os riscos inerentes às propostas brasileiras. Assessores de Kerry abriram diálogo com a Apib sobre a questão climática, embora o governo brasileiro tenha exigido a presença, nessa conversa, de índios cooptados, que não tinham muito o que dizer.
Ainda no início do mês, 15 senadores norte-americanos, inclusive ex-candidatos à Presidência e dirigentes de comissões-chave no Congresso, escreveram a Biden, opondo-se tanto ao anúncio de acordos sem consulta prévia a índios e ONGs como à destinação de recursos ao governo brasileiro antes de reduções efetivas do desmatamento.
Nesta semana, Leonardo DiCaprio, Katy Perry, Caetano Veloso e muitos outros artistas também se dirigiram a Biden no mesmo sentido.
Na cara dura
Aqui entre nós, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem dito que espera receber US$ 1 bilhão de empresas americanas, por meio do mercado de carbono, para investir no pagamento por serviços ambientais. Porém o “Floresta Mais”, programa que ele desenhou para este fim, assume-se como de caráter “voluntário”, sem relação com metas de redução do desmatamento, e privilegia proprietários e empresas agropecuárias para remunerar, inclusive, a conservação de Reservas Legais e Áreas de Preservação Permanente (APPs), uma obrigação legal.
Em troca, Salles oferece zerar o desmatamento ilegal até 2030, uma proposta capiciosa em vários sentidos. Legalizando atividades predatórias, como pretende o governo, o desmatamento poderia continuar em alta sem afetar essa meta. A ilegalidade que restasse continuaria sendo oficialmente tolerada por quase uma década, sendo que o mandato de Bolsonaro só vai até o ano que vem, o que não o obrigaria à entrega de resultados.
Cobrado por resultados imediatos, Salles propõe a adoção, como parâmetro de cálculo para reduções e compensações, da taxa média de desmatamento dos últimos cinco anos, inflada pelo salto promovido no próprio mandato de Bolsonaro. Dá uma média 18% maior do que a dos anos anteriores aos do governo atual. Ou seja: Salles quer licença para continuar desmatando e compensações por eventuais oscilações na sanha devastadora.
A carta mais emblemática enviada a Biden foi assinada pelo próprio Bolsonaro. Com sete páginas e muitas generalidades, chega a afirmar que povos indígenas e ONGs ‒ um câncer a ser extirpado, segundo a retórica presidencial ‒ serão ouvidos sobre as políticas para a Amazônia. Pode ser que esteja se referindo a índios cooptados por frentes predatórias e a certos grupos evangélicos pentecostais. Ora sugere rendição, ora empulhação.
O significado maior da carta presidencial está no fato de ter sido enviada, e não no que está nela escrito. Bolsonaro está acuado e a reunião com Biden, assim como a negociação com Kerry, têm um ganho imediato por si. É um recuo tático, para ganhar algum tempo e aliviar a pressão. Embora a carta reafirme a expectativa de compensação financeira, o que importa é enrolar Biden durante este ano. Em 2022, já teremos eleições e fim de mandato.
Fatos ocorridos durante as negociações e logo antes da reunião de cúpula reforçam a suspeita de falta de seriedade na posição brasileira. Salles confrontou a Polícia Federal para liberar milhões de metros cúbicos de madeira apreendidos por exploração ilegal e está sendo acusado, no Supremo Tribunal Federal (STF), de advogar em favor de interesses privados e contra o patrimônio público.
Bolsonaro, por sua vez, recebeu, em palácio, índios agenciados por empresários da mineração ilegal para pressionar contra operações de fiscalização e pela legalização das atividades predatórias. Salles e Bolsonaro estão se lixando para o impacto desses episódios nas negociações. Além disso, o desmatamento na Amazônia, em março ‒ dado oficial mais recente disponível ‒ foi o maior da década para este mesmo mês.
Day after
O conjunto das cartas a Biden, que têm significados próprios e diversos, revela um país dividido, abalado, desprovido de projetos e à procura de um oráculo, ou de qualquer luz, ou ajuda, para sair do fundo do abismo. Mas também mostra que a nova iniciativa climática dos EUA, com as devidas cautelas, pressiona governos e ajuda a alavancar mudanças no Brasil e no mundo, urgentes e essenciais.
Vamos ver o que acontece na reunião desses dois dias. É improvável o anúncio de qualquer acordo bilateral. Devem haver sinalizações dos 40 países convidados sobre o que levarão à próxima conferência internacional sobre o clima, prevista para novembro, em Glasgow, Escócia. O avanço na posição dos EUA alimenta esperanças e estimula as negociações, mas novos acordos ainda dependerão de empenho, transparência e credibilidade para amadurecer.
Por outro lado, os povos da floresta, organizações civis, artistas, cientistas e comunicadores, que têm sido duramente atacados desde o início do atual governo, estão emergindo dos embates como protagonistas políticos qualificados para a construção do “day after” da tragédia nacional. Nesse caso, articularam-se em redes parceiras com pessoas e organizações dos EUA, muito atentas aos primeiros movimentos do governo que elegeram. Exercício de aliança para novos tempos!
Felipe Betim: Bolsonaro diz que vai eliminar desmatamento ilegal até 2030, mas condiciona ações a recursos do exterior
Presidente brasileiro muda discurso na Cúpula do Clima, exalta avanço de outros Governos e reafirma compromisso do país de preservar meio ambiente, reduzindo pela metade as emissões até esse mesmo ano
Em uma Cúpula do Clima marcada por compromissos ambiciosos dos Estados Unidos e por palavras como “união”, “multilateralismo” e “descarbonização”, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, usou nesta quinta-feira seus três minutos de discurso para exaltar o avanço de Governos anteriores na questão ambiental e pedir dinheiro para a comunidade internacional com o objetivo de proteger a Amazônia. A reunião, convocada pelo presidente norte-americano, Joe Biden, reúne de forma virtual os líderes de 40 países. Em sua fala, Bolsonaro também afirmou que o Brasil se compromete a reduzir suas emissões de gás carbônico em 40% até 2030. Também reafirmou seu compromisso de eliminar o desmatamento ilegal até o mesmo ano, o que poderia, inclusive, reduzir as emissões em até 50%. Já a neutralidade climática deve ser alcançada até 2050, uma antecipação de 10 anos com relação ao compromisso anterior. “O Brasil está na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global”, afirmou.
Porém, os 28 meses de mandato do mandatário brasileiro são marcados por retrocessos na área ambiental e pelo desmonte de organismos de controle. Ao longo desse período, seu Governo boicotou ações de fiscalização do Ibama na Amazônia, reduziu seu Orçamento, estimulou o garimpo ilegal e desmoralizou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que faz o monitoramento de queimadas. O desmatamento da Amazônia bateu recordes e registrou importantes aumentos em 2019 e 2020 —em 2021, o mês de março foi o pior dos últimos 10 anos. Paralelamente, seu Governo bloqueou verbas destinadas a políticas para reduzir as emissões de gás carbônico.PUBLICIDADE
Em contradição com esse pano de fundo, o presidente brasileiro destacou em sua fala que o Brasil conserva “84% de nosso bioma amazônico e 12% da água doce da Terra”, evitando nos últimos 15 anos a emissão de mais de 7,8 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera. Disse que proteger a Amazônia é uma tarefa complexa, mas que “medidas de comando e controle são parte da resposta”. E mentiu: “Medidas de comando e controle são parte da resposta. Apesar das limitações orçamentárias do Governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando os recursos destinados a ações de fiscalização.”https://platform.twitter.com/embed/Tweet.html?dnt=false&embedId=twitter-widget-0&features=eyJ0ZndfZXhwZXJpbWVudHNfY29va2llX2V4cGlyYXRpb24iOnsiYnVja2V0IjoxMjA5NjAwLCJ2ZXJzaW9uIjpudWxsfSwidGZ3X2hvcml6b25fdHdlZXRfZW1iZWRfOTU1NSI6eyJidWNrZXQiOiJodGUiLCJ2ZXJzaW9uIjpudWxsfX0%3D&frame=false&hideCard=false&hideThread=false&id=1385231170833616896&lang=pt&origin=https%3A%2F%2Fbrasil.elpais.com%2Fbrasil%2F2021-04-22%2Fbolsonaro-diz-que-vai-eliminar-desmatamento-ilegal-ate-2030-mas-condiciona-acoes-a-recursos-do-exterior.html&sessionId=df62d527088b73cc2e343d997b383de71bdc24cb&siteScreenName=elpais_brasil&theme=light&widgetsVersion=ff2e7cf%3A1618526400629&width=550px
Bolsonaro também recordou que mais de 23 milhões de brasileiros vivem na Amazônia, “região mais rica do país em recursos naturais, mas que apresenta os piores índices de desenvolvimento humano”. Resolver esse paradoxo, segundo ele, é essencial para alcançar o desenvolvimento sustentável. E isso deve ser feito a partir da bioeconomia, valorizando a floresta e a biodiversidade e contemplando os interesses a população, incluindo indígenas e comunidades tradicionais. Em seguida, pediu ajuda financeira para a comunidade internacional: “Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental podermos contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostos a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas”, discursou. “Neste ano, a comunidade internacional terá oportunidade singular de demonstrar seu comprometimento com a construção de nosso futuro comum.”
Sobre os desafios climáticos, Bolsonaro destacou que o Brasil possui metas de reduzir as de emissões em 37% para 2025 e em 43% até 2030. “Nesse sentido, determinei que nossa neutralidade climática seja alcançada até 2050, antecipando em 10 anos a sinalização anterior”, discursou. Em contraste com os cortes orçamentários feitos em sua gestão, afirmou que o Brasil está “na linha de frente” do combate ao aquecimento global. Porém, enfatizou que “o Brasil participou com menos de 1% das emissões históricas de gases de efeito estufa” e que, atualmente, responde “por menos de 3% das emissões globais anuais”.
Malu Gaspar: Anular processos não apaga a história
É dos anos 90 uma das mais bem-sucedidas operações-abafa de um escândalo de corrupção na história brasileira. Numa quinta-feira de 1993, agentes da Polícia Federal descobriram no banheiro da casa de um diretor da Odebrecht em Brasília pilhas de documentos incriminadores. Havia de tudo nas 18 caixas e centenas de disquetes levadas pelos policiais: relatórios sobre negociações subterrâneas, contabilidade de doações não declaradas para campanhas eleitorais, listas de obras com os nomes de políticos, acompanhados de porcentagens e valores, até pedidos de liberação de verbas com assinaturas de prefeitos e governadores, já prontos para ser apresentados pelas próprias empresas à Caixa Econômica Federal.
Vivia-se o auge da CPI do Orçamento. A papelada deu origem a um relatório bombástico, lido em plenário pelo senador José Paulo Bisol, do PSB do Rio Grande do Sul. Bisol, porém, cometeu um erro primário ao propagar que um documento com o organograma formal da empreiteira era, na verdade, um mapa de organização criminosa.
Em sua reação, Emílio Odebrecht explorou o deslize ao máximo. Numa entrevista coletiva tão performática quanto a leitura de Bisol, acusou o senador de perseguição, ignorância e má-fé. O argumento colou na imprensa da época e mobilizou mais de 300 deputados e senadores para enterrar a CPI. Conseguiram. A única consequência prática do escândalo foi a popularização da expressão “trezentos picaretas”, cunhada pelo então oposicionista Luiz Inácio Lula da Silva para designar os parlamentares.
Dezesseis anos e um mensalão depois, em 2009, os alvos da Polícia Federal foram executivos e dirigentes de outra empreiteira, a Camargo Corrêa. A operação, batizada Castelo de Areia, pilhou um esquema de pagamento de propinas e desvios de recursos de obras como a Refinaria Abreu e Lima, da Petrobras. Segundo a investigação, o dinheiro desviado era remetido ao exterior por doleiros, usando empresas de fachada e contas offshore em paraísos fiscais. Mas a investigação acabou anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A corte considerou que as provas coletadas não eram válidas porque a apuração começara a partir de uma denúncia anônima.
Em 2014, o esquema voltou à tona. Descobriu-se, de novo, que as empreiteiras patrocinavam campanhas eleitorais e interesses particulares de políticos de todos os calibres e partidos com o dinheiro desviado de estatais como Petrobras, Eletrobras e Transpetro. Batizado petrolão, o escândalo deu impulso à Operação Lava-Jato.
Dessa vez, as investigações foram mais longe. Renderam 295 prisões, 140 delações premiadas, a devolução de R$ 4,3 bilhões aos cofres públicos e impulsionaram um processo de impeachment. Mas, como nos outros casos, o dia da desforra chegou. A revelação dos desvios indicados nas mensagens de celular trocadas por procuradores — e captadas ilegalmente por um hacker — criou um clima favorável à anulação de condenações e denúncias.
Sob o argumento de que o foro em que tramitavam não era o correto, foram anuladas as condenações dos ex-presidentes Lula e Michel Temer e do ex-ministro Moreira Franco. O mesmo argumento levou à suspensão de ações contra o atual presidente da Câmara, Arthur Lira. Questões processuais já tinham enviado para a gaveta o processo contra o senador José Serra.
Todas essas decisões, comemoradas efusivamente por uns, discretamente por outros, têm enorme serventia político-eleitoral, ajudam a construir narrativas. Mas, embora a morte dos processos por inanição seja bastante provável, ainda é cedo para dizer que a Justiça tenha decretado a inocência de quem quer que seja. Fernando Collor de Mello, afastado da Presidência da República em 1992, só foi declarado inocente pelo Supremo — por falta de provas —em 2014.
Por ora, tais desfechos só provam mesmo duas coisas.
A primeira é que, no Brasil, quando o assunto é corrupção, a história se repete. Escândalos abalam a política, as investigações apontam culpados e, mais cedo ou mais tarde, os processos são sepultados por decisões judiciais que raramente entram no mérito das acusações.
A segunda, e mais importante, é que a história não se anula, muito menos a canetadas. Por mais que se queira esquecê-la ou distorcê-la, de tempos em tempos ela volta a nos assombrar. Quando isso acontece, acumulam-se os prejuízos, aumenta a insegurança jurídica e se reforçam narrativas políticas cada vez mais simplistas e muitas vezes irresponsáveis.
A história cobra um preço alto quando se ignoram suas lições. Quem paga somos todos nós. E não só com dinheiro, mas com um pedaço do nosso futuro.
Merval Pereira: Cabeça de juiz
A novela do julgamento de Lula pode chegar a um fim hoje, se o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entender que a Segunda Turma, que decidiu pela suspeição do então juiz Sergio Moro, poderia fazê-lo mesmo antes de ser definida a questão da competência da Vara de Curitiba nos julgamentos da Lava-Jato.
Mas, como em cabeça de juiz ninguém sabe o que se passa, a dizer que julgam com independência — a evolução da tecnologia médica não permite mais dizer que não se sabe o que tem em barriga de grávida nem em fralda de bebê —, existem algumas situações peculiares neste julgamento de hoje.
O decano do STF, ministro Marco Aurélio, não concordou com a afetação do processo ao plenário, mas, vencido pela “douta maioria” — nesse caso não tão douta assim, na sua opinião —, já votou a favor da manutenção dos processos em Curitiba, e pode votar outra vez, já que disse que a suspeição de Moro é bem mais importante. O ministro é sempre elogioso ao trabalho de Moro na Operação Lava-Jato e, com seu voto, pode ajudar a impedir que seja confirmada a suspeição dele.
O ministro Alexandre de Moraes disse na sessão anterior que não é possível afirmar que o julgamento pelo plenário significa desrespeito ao princípio do juiz natural: “A estrutura da Corte privilegia o plenário, e as turmas só foram criadas devido ao excesso de trabalho do tribunal”. Com essa posição, é provável que defenda que o plenário tem preferência às turmas. Mas não significa que concorde ou não com a suspeição de Moro.
A ministra Rosa Weber convocou para assessorá-la durante o julgamento do mensalão o juiz Sérgio Moro, que era famoso apenas no círculo jurídico como especialista em combate à corrupção, não a celebridade de hoje. Ela tem melhores condições que qualquer outro para julgar se Moro é um juiz suspeito.
O ministro Nunes Marques é contabilizado como um dos quatro votos certos a favor de que a Segunda Turma tinha condições de julgar a suspeição naquela sessão, pois votou na ocasião, embora contra, para surpresa do ministro Gilmar Mendes. Mas pode alegar que, hoje, com a decisão tomada pelo plenário sobre a incompetência da Vara de Curitiba, considera que aquela questão se sobrepõe à suspeição.
Como ressaltou a ministra Cármen Lúcia, o plenário não é órgão revisor das turmas. Mas, nesse caso, seria uma análise técnica, não uma revisão. *
Nesse caso, o resultado é imprevisível. Já temos três votos pela suspeição dados na Segunda Turma —Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski — e um a favor de Moro, por Nunes Marques. Alguns ministros já se pronunciaram favoravelmente em várias oportunidades sobre a Operação Lava-Jato, como o presidente Luiz Fux e os ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello. Assim como fizeram, contra, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.
Na visão de Fux, a discussão envolvida no caso é relevante, pois pode afetar outros processos da Lava- Jato e “atingir um grande trabalho feito pelo Supremo Tribunal Federal no combate à corrupção”. A sombra que paira sobre o julgamento, os diálogos entre os procuradores de Curitiba e o juiz Sergio Moro divulgados depois de ter sido roubados por um hacker, sofreu um golpe com o laudo da Polícia Federal afirmando que não há possibilidade técnica de atestar sua veracidade ou origem. O laudo não apagou da mente dos ministros a impressão causada, mesmo que digam que não o usaram nas decisões, mas colocou concretamente a possibilidade de que tenham sido alterados.
A suspeição de Moro no caso do triplex do Guarujá criará uma situação esdrúxula: o ex-presidente da empreiteira OAS Léo Pinheiro, que confessou ter dado o apartamento a Lula em troca de benefícios recebidos durante seu governo, será também absolvido, assim como o ex-executivo Agenor Franklin Medeiros, ambos condenados no mesmo processo. O mesmo acontecerá nos demais processos contra Lula, caso o benefício seja estendido a eles pelo ministro Gilmar Mendes, novo relator da Lava-Jato na Segunda Turma do STF.
Míriam Leitão: O Brasil pode ser o verde da Terra
Não há palavras que desatem os atos de Bolsonaro e de Ricardo Salles na área ambiental. O Brasil vai se sentar na reunião de hoje como vilão, quando poderia ser respeitado por ser o país que é: uma potência ambiental, dono da maior parte da maior floresta tropical, o G1 da biodiversidade. O presidente brasileiro prometerá aumentar a fiscalização mas, na verdade, ela está sendo desmontada. A carta dos servidores do Ibama mostra que eles estão sofrendo assédio. O ministro os impede de trabalhar. É também por cumprir seu dever que Alexandre Saraiva foi exonerado da Superintendência da Polícia Federal no Amazonas.
Ibama, ICMBio, Funai estão sob ataque do presidente e do ministro do Meio Ambiente. O INPE foi ameaçado. O projeto de Bolsonaro de interferir na Polícia Federal deu certo e a exoneração de Saraiva é prova cabal. Com esse histórico, Bolsonaro não poderá falar que vai aumentar as ações de comando e controle na região. Não será crível.
Uma alta autoridade do governo brasileiro foi a uma reunião com um grupo de embaixadores dos Estados Unidos e países europeus. Várias autoridades foram chamadas no último mês. O relato do que foi dito lá mostra que não adianta ter conversa para inglês ver.
– Para minha surpresa o tom dos embaixadores foi duríssimo. A gente tem que agir rápido, a narrativa de que eles destruíram as florestas deles, e nós, não, é muito ruim. Se a conversa for pedir dinheiro, não vai pra frente. É preciso pôr em duas páginas quais são os compromissos para os próximos dois anos. Tem que levar algo concreto. Essa é a única forma de apaziguar e virar essa página — afirmou a autoridade.
O governo brasileiro foi avisado. Pelos embaixadores, pelos gestores dos grandes fundos globais, pelos bancos privados brasileiros, pelas grandes empresas, pelo agronegócio exportador. Bolsonaro insiste em seu projeto e tem ajuda. Salles é a motosserra. Ele diariamente derruba uma pedaço do edifício regulatório brasileiro com portarias e instruções normativas. Usa o espaço infralegal para conspirar contra as leis ambientais do país. Exatamente como avisou que faria naquela famosa reunião ministerial. A instrução normativa que obriga o fiscal a submeter a multa que aplicou a um superior hierárquico foi apenas uma de inúmeras normas. O vice-presidente Hamilton Mourão tem sido usado como um biombo. Ele conversa, ouve, impressiona bem, mas é deixado de lado. E, quando cobrado por algum interlocutor, diz que não tem poderes.
Salles usa também o truque de se apropriar de termos para impressionar. Quando ele fala de “bioeconomia”, não está se referindo ao conceito desenvolvido por alguns especialistas, como o climatologista Carlos Nobre, para defender uma nova economia a partir da nossa rica biodiversidade. A “bioeconomia” que Salles quer é a dos madeireiros e garimpeiros ilegais.
Quando Bolsonaro falar de regularização fundiária, os governantes estrangeiros devem saber que ele está se referindo aos projetos de legalizar a grilagem, como os que já apresentou ao Congresso. Quando falar em apoio às populações indígenas, ele está se referindo ao projeto já enviado ao Congresso que permite mineração, exploração de petróleo e pecuária em terras indígenas.
Apesar de tudo, a sociedade brasileira tem encontrado seu caminho para falar com o mundo. A Carta dos Governadores é resultado de lenta costura entre os chefes de executivo estaduais, iniciada pelo governador Renato Casagrande, do Espírito Santo. Na carta, eles fazem valer o princípio federativo. Lembram que representam mais de 90% do território nacional, propõem aumentar a “ousadia das NDCs”, (as metas nacionais), e dizem que os estados possuem fundos e mecanismos criados para “responder à emergência climática”.
Sugerem uma parceria para deter o desmatamento e para restaurar. Lembram que será preciso “reflorestar uma área do tamanho do território dos Estados Unidos” e, completam, “O Brasil pode ampliar o verde da Terra não apenas na Amazônia, mas também em biomas de grande capacidade de captura de carbono, inestimável biodiversidade e relevância socioeconômica como o Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e o Pantanal”. Os governadores entenderam. A mudança climática é também a oportunidade da nova economia. É o “green new deal”, um tempo aberto pra nós.
Maria Cristina Fernandes: Mentiroso e cínico
Se falhar na Cúpula do Clima, Bolsonaro se vitimizará com floresta e vacina
A quem interessar possa na turma de censores da Lei de Segurança Nacional, ele tem 84 anos, uma única dose da vacina da AstraZeneca e usa os dois atributos para definir a participação do presidente Jair Bolsonaro na Cúpula de Líderes sobre o Clima.
Ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) e ex-ministro do Meio Ambiente, Rubens Ricupero até aceita que o estrago poderia ser maior se Ernesto Araújo ainda fosse o chanceler. Não acredita, porém, que a mudança no tom convença o mundo na conferência virtual promovida pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a partir de hoje.
Para sustentar a primeira de suas adjetivações, Ricupero baseia-se na análise, feita pelo “Observatório do Clima”, da carta enviada pelo presidente Jair Bolsonaro para Biden. O aludido compromisso brasileiro com o combate à mudança do clima e com o desenvolvimento sustentável é desmontado em duas tacadas:
O desmatamento na Amazônia teve a maior elevação percentual do século em 2019 (34,5%) e, em 2020 o Brasil liderou, mais uma vez, a destruição de florestas primárias do mundo. É esse desmatamento, mais do que o uso de combustíveis fósseis, que leva o país a ter a quinta maior participação mundial para o efeito estufa;
A exemplo do que aconteceu no Orçamento, a nova proposta de redução na emissão de gases está baseada numa pedalada. O governo elevou o nível de emissões de 2005 em 700 milhões de toneladas para que possa atingir a meta de 43% de redução em 2030 emitindo 400 milhões de toneladas de gás carbônico a mais do que havia prometido.
Fundamentada a mentira, vem o cinismo. É um atributo adquirido. Bolsonaro não foi o único a fazer vista grossa ao desmatamento, mas foi o primeiro a defendê-lo. Só mais recentemente, diz Ricupero, a necessidade de salvar a imagem do Brasil, do ministro Ricardo Salles e a sua própria, mudou o discurso sem mexer na prática.
É com esse cinismo que reclama US$ 1 bilhão para pagar diárias a policiais da Força Nacional de Segurança. Não apenas despreza o desmonte de órgãos de fiscalização como o Ibama, como ainda cria um subterfúgio para o fato de que o Brasil, longe metas de redução de desmatamento, tem acesso vetado aos R$ 2,9 bilhões doados pela Noruega e pela Alemanha adormecidos no Fundo Amazônia no BNDES.
Como este binômio da mentira e do cinismo já correu o mundo, o embaixador aposta que o presidente não vai convencer ninguém. Até porque Estados Unidos, China, Reino Unido e União Europeia vão anunciar metas mais ambiciosas para amarrar os compromissos a serem acordados em Glasgow, em novembro, quando acontece a 26ª Conferência do Clima das Nações Unidas. Se as águas de março não foram suficientes para evitar que se registrasse o pior desmatamento deste mês dos últimos dez anos, é de se esperar que depois da seca que está por começar a coisa só piore.
O Brasil não é o único a chegar com o zoom embaçado na conferência de hoje. A Austrália e o Canadá, diz Ricupero, também estão aquém das metas acordadas no acordo de Paris, de 2015. Nenhum deles, porém, tem um governo que dependa tanto de uma recauchutagem em sua imagem externa. A repercussão da carta de Bolsonaro a Biden já mostrou que não vai dar. De Greta Thunberg aos senadores americanos que alertaram Biden sobre as pretensões bolsonaristas, passando pelo #ForaSalles que mobilizou as redes sociais no Brasil ao longo do feriado, reina o ceticismo.
Se Biden quer lustrar seu mandato, interna e externamente, com um certo ideário de “liderança moral” em pautas como meio ambiente e democracia, Bolsonaro se vale do discurso recauchutado para tentar sobreviver. Não abre mão do que Ricupero chama de agro-lumpen, essa base de madeireiros, grileiros e garimpeiros que, ao contrário do que diz o governo, não devastam porque são pobres mas porque querem ficar mais ricos. Estimativa do “Observatório do Clima” indica que o hectare desmatado pode custar até R$ 2 mil. A devastação brasileira não é uma soma de pequenas áreas mas o ajuntamento de blocos de 100 hectares para cima.
Mal-sucedido, Bolsonaro não capitulará. Vai se valer do cerco mundial para reforçar o discurso de vitimização que ainda ecoa entre seus seguidores. A cartada ambiental na política externa é uma boia de salvação na qual o presidente tenta se agarrar para não ser engolfado por uma conjuntura interna cada vez mais incontrolável. Ao entregar o Orçamento para o Congresso estraçalhar sem ganhar alívio concreto na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, Bolsonaro mostrou uma cartucheira com pouca munição.
O levantamento que a CPI fará sobre atos e atitudes que marcaram o desleixo de seu governo com a vacinação receberá dele a mesma resposta que se anuncia para os parceiros internacionais que se mantêm incrédulos em relação à sua conversão verde. Da mesma maneira que buscará convencer seus eleitores de que o Brasil ocupa a rabeira dos países que menos imunizaram sua população porque o mundo não vende vacina ao país, ficará tentado a usar a cartada do complô mundial contra o Brasil.
Tome-se, por exemplo, a declaração da vice-presidente americana Kamala Harris de que se, no passado, se fizeram guerras por óleo, as próximas o serão por água. Mas enquanto a contenda amazônica era com o presidente francês, Emmanuel Macron, ficava mais fácil para o presidente tentar sensibilizar "seu Exército". Com os americanos, a brincadeira de forte apache na foz do rio Amazonas é tiro n'água.
Mais do que enquadrar o Brasil na nova ordem climática mundial, os Estados Unidos avançam sobre a maior fonte de divisas externas do país. A China importou 85% a menos da soja brasileira em relação a março do ano passado. Foi o patamar mais baixo de venda neste mês em quatro anos. Enquanto isso, os Estados Unidos tiveram uma alta nas vendas do grão para a China de 320% no mesmo período.
Pode ser apenas o reequilíbrio de uma situação que foi muito favorável ao Brasil ao longo de toda a pandemia, período em que a China descumpriu acordo que prevê aumento nas compras de produtos agrícolas dos EUA. Mas se a uma economia estagnada, com desemprego e inflação em alta, se somar uma perda de divisas do único setor que tem-se mantido incólume à tragédia nacional, o #ForaSalles já não vai mais dar conta de quem tem que sair.
Mariliz Pereira Jorge: Bolsonaro é a raposa
Não adianta tirar Salles se Bolsonaro vive com a boca cheia de penas
Jair Bolsonaro, que não tem o dom da oratória, terá que se esforçar ao discursar na Cúpula de Líderes sobre o Clima, na tentativa de provar que o governo brasileiro não está destruindo o próprio quintal. O presidente apresentará um plano cheio de nomes bonitos, como "zoneamento ecológico e econômico", "comando e controle", "regularização fundiária", "promoção da bioeconomia".
Na prática, a agenda do dia é acabar com o Ibama e o ICMBio e substituí-los pelo que já vem sendo chamado de "milícia ambiental", permitir que reservas possam ser exploradas pela iniciativa privada, travar as demarcações de terras indígenas, derrubar árvores, transformar a floresta em pasto e deixar passar a boiada. É a festa do gado.
A prova de que Bolsonaro não está preocupado com as cobranças é que Ricardo Salles ainda é titular do Meio Ambiente, porque apenas faz o que o chefe manda. Nesta quarta (21), véspera da abertura da cúpula, em que o Brasil já deveria chegar pedindo desculpas, o ministro falou a empresários como se fôssemos um exemplo a ser seguido.
Pela sua disponibilidade de tempo, parece estar sem muito serviço. Com o filme mais queimado que a floresta Amazônica, Salles passou horas no Twitter arranjando confusão e retuitando mensagens de apoio que recebeu. Tretou com a cantora Anitta, desdenhou de Sônia Guajajara, importante líder indígena, alisou políticos governistas. Prioridades.
Cuidasse dos interesses da biodiversidade do país da mesma forma que se engajou em tentar mostrar que tem apoio político e popular, não teríamos que provar ao mundo que o governo brasileiro não é a raposa tomando conta do galinheiro. Mas a verdade é que não adianta tirar Salles se Bolsonaro também vive com a boca cheia de penas. Resta saber se não vai se engasgar numa delas a cada mentira que contar sobre os crimes que comete contra um de nossos maiores patrimônios.
Gabriela Prioli: Disfarçando a passagem da boiada
O risco do discurso sem prática
Era abril de 2020 quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu "passar a boiada" e mudar regras ambientais enquanto a atenção da mídia e da população estava voltada para a Covid-19. Manter o descontrole da pandemia, por esse raciocínio, parecia ser bom negócio para o nosso desgoverno --no meio da gritaria, ninguém ouve os segredos ditos pelos cantos.
Se, no ano passado, o contexto internacional favorecia os arroubos de Bolsonaro, o mundo mudou. E não mudou só no Brasil, onde a CPI da Covid, ao enfraquecer Bolsonaro, aumenta o preço do centrão: o novo presidente americano, Joe Biden, fez da questão ambiental uma de suas principais plataformas. A preocupação é, em especial, com o Brasil. Poucos países foram citados nos debates presidenciais nos EUA.
O Brasil e a Amazônia apareceram como motivo de grande inquietação. O Itamaraty, recentemente livre de Ernesto Araújo, aconselha que a Cúpula do Clima seja uma virada de discurso e de prática. Nada mais difícil para um governo que se recusa a melhorar.
A preocupação, entretanto, não pode ser compreendida no singular. Há "preocupações" distintas quando se fala em meio ambiente. Há quem esteja de fato aflito com a preservação. Há, entretanto, aqueles para os quais a aparência de preservação vale mais do que a preservação em si. Para esses, uma mudança de discurso sem prática pode já ser suficiente, desde que convença os gringos.
Essa distinção entre ser e parecer é o que permite acomodar interesses e manter intacto o núcleo mais sensível das políticas de governo. A eventual mudança de tom assim, como em relação à pandemia, pode se dar na teoria para disfarçar a permanência na prática, desde que a aparência dure até o próximo ciclo eleitoral.
A aceleração das mudanças climáticas é um assunto multifacetado e de longo prazo, que depende de uma compreensão que leve em conta a realidade, o que não parece ser o caso da gestão Bolsonaro, o nosso exemplo de negacionismo.
Bruno Boghossian: Presidente é visto com desconfiança porque se orgulha de sua agenda antiambiental
Presidente é visto com desconfiança porque se orgulha de sua agenda antiambiental
Numa tarde de quarta-feira, Jair Bolsonaro enviou ao americano Joe Biden uma carta em que o Brasil se comprometia a acabar com o desmatamento ilegal até 2030. À noite, a Polícia Federal acusou o ministro do Meio Ambiente de dificultar uma operação contra a extração ilegal de madeira na Amazônia. No dia seguinte, o delegado que fez aquela investigação foi demitido.
Bolsonaro tenta convencer o mundo de que tem algum apreço pela preservação ambiental. Enquanto isso, ele mantém dentro de casa seu projeto para facilitar a devastação. O presidente pode até levar à Cúpula de Líderes sobre o Clima um discurso para tentar amenizar sua imagem de vilão internacional, mas o que se pode esperar é uma conversa para uma boiada inteira dormir.
O governo brasileiro é visto com desconfiança porque sempre se orgulhou de sua agenda antiambiental. Na campanha de 2018, Bolsonaro estudava subordinar o Ministério do Meio Ambiente ao Ministério da Agricultura, dizia a empresários que era preciso "vencer os problemas ambientais" e prometia afrouxar fiscalizações para acabar com uma tal "indústria da multa".
O Bolsonaro que agora deve apresentar compromissos genéricos para conter a devastação é o mesmo que já disse ser impossível acabar com o desmatamento ilegal. "É cultural", teorizou, quando a Amazônia queimava. Em seu discurso na ONU no ano passado, o presidente mentiu ao fazer propaganda de uma suposta "política de tolerância zero com o crime ambiental" em seu governo.
Às vésperas do encontro do clima, o governo faz questão de manter a reputação. Nas últimas semanas, o ministro Ricardo Salles defendeu madeireiros e dificultou a aplicação de multas ambientais em ações de fiscalização. Nesta quarta (21), ele tirou a tarde para bater boca com a cantora Anitta nas redes sociais.
Bolsonaro se sentiu protegido enquanto Donald Trump esteve no poder e aceitou cultivar a fama de pária global. O jogo mudou, mas o presidente continuará a ser esse pária.
Maria Hermínia Tavares: Na Cúpula dos Líderes sobre o Clima, só promessas, nem pensar
Se depender do ex-capitão, os compromissos serão menos palpáveis do que a fumaça das queimadas
Sob pressão, o governo mudou o discurso. O mesmo mandatário que, em 2019, afirmou ser a questão ambiental de interesse exclusivo de "veganos que só comem vegetais" [sic], escreveu ao homólogo Joe Biden dizendo-se disposto a eliminar o desmatamento ilegal até 2030. Colaborou na redação o assim chamado ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, unha e carne dos madeireiros que namoram a ilegalidade, com os quais, por sinal, confraternizou logo depois de terem organizado violenta manifestação contra o Ibama.
Em dois anos e tanto de mandato, o negacionista da mudança climática disparou uma enxurrada de medidas que enfraqueceram os organismos e instrumentos de monitoramento, controle e penalização de crimes ambientais. Ibama, Inpe, CNBio, Funai, todos perderam lideranças, quadros e recursos financeiros, enquanto as multas despencaram vertiginosamente.
Estudos mostram que acordos internacionais —de variada natureza— podem ser instrumentos aptos a induzir governos a fazer a coisa certa: sempre e quando logrem impor condições aos participantes, estabelecer mecanismos que estimulem o seu cumprimento e tornem crível a ameaça de punição aos transgressores. Ou seja, quando são capazes de criar os chamados mecanismos de trancamento (lock in), facilitando o respeito aos compromissos negociados e sua defesa diante dos opositores domésticos.
A cláusula democrática na União Europeia é sempre citada como poderoso exemplo de trancamento que ajudou a institucionalizar sistemas livres e competitivos na Espanha, em Portugal e na Grécia, recém-emersos de longas e sangrentas ditaduras.
Perversamente, a adesão a acordos internacionais pode ser uma cortina de fumaça para governos mal-intencionados, piorando o que era já um horror. Há uma década, os cientistas políticos americanos Peter Rosendorff e Peter Hollyer mostraram que as violações de direitos humanos cresciam quando ditadores assinavam pactos multilaterais contra a tortura.
Se depender do ex-capitão, as seis páginas enviadas a Biden e as promessas que fará nesta quinta e sexta serão ainda menos palpáveis do que a fumaça das queimadas. Não é demais lembrar que o agronegócio mais atrasado, os desmatadores ilegais e os invasores de terras indígenas são adeptos do ex-capitão e com ele compartilham as mesmas crenças retrógradas de como lidar com o patrimônio ambiental do país e os povos da floresta.
Deste governo só se pode aceitar —e olhe lá!— compromissos definidos, prazos e metas claras e mensuráveis que possam ser monitoradas pela sociedade e seus representantes políticos.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.