pandemia

Merval Pereira: Isolado no mundo

Além do erro primário de ter deixado para comprar vacinas de última hora, ficando exposto à vontade do vendedor e do mercado mundial, o Palácio do Planalto, justamente por desdenhar a vacinação em massa como solução para a pandemia de Covid-19, deixou de planejar ações, não apenas de logística, mas também geopolíticas, que nos levaram a ser um país pária num mundo globalizado, quer queiram os Bolsonaros da vida ou não.

Estamos diante de um quadro de isolamento nunca antes enfrentado, com agentes públicos desqualificados para superá-lo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, que a cada dia se encolhe mais, acabou contagiado pela mediocridade do governo que pretendia controlar no seu superministério.

O tratamento dado à China no governo Bolsonaro é ridículo, para dizer o menos. Assumimos uma guerra que não é nossa, é dos Estados Unidos, passamos a dar estocadas no nosso maior parceiro comercial e segunda economia do mundo, consumidora voraz de commodities, que já começou a retaliar. Aumentou em 300% a importação de soja dos Estados Unidos e reduziu a do Brasil.

Outras retaliações virão, e é impressionante que um técnico bem formado como Guedes se deixe levar pela idiossincrasia do presidente em relação ao comunismo chinês, desqualificando a vacina chinesa contra a Covid-19 para enaltecer o poder da livre-iniciativa americana, que teria produzido uma vacina mais eficaz que a chinesa.

Acontece que a vacina da Pfizer não é americana, mas alemã, e o Brasil quase só tem a CoronaVac para vacinação interna — apenas 20% das doses são da Oxford/Astrazeneca . Por si, seria razão suficiente para um governo normal ter cuidados especiais com esse parceiro tão importante. Guedes pediu desculpas devido à reação diplomática da China, que tem em suas fábricas o insumo necessário para a fabricação da vacina no Instituto Butantan, em São Paulo, e na Fiocruz, do Rio.

Até o momento, a maioria dos brasileiros não pode viajar porque ser brasileiro, hoje, virou motivo para bloquear a entrada na maioria dos países do mundo, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Quando a situação se normalizar, só os felizardos que tiverem a sorte de se vacinar com a AstraZeneca poderão viajar para a Europa, mas não para os Estados Unidos, que só aceita as vacinas da Moderna e da Jansen, americanas, e da Pfizer, alemã.

Essas são questões de geopolítica que deveriam estar sendo analisadas desde o início da pandemia. O governo Trump, negacionista como o de Bolsonaro, não deixou de comprar vacinas em abundância, mais até do que a necessidade da população dos Estados Unidos, e agora está distribuindo doses da vacina para países necessitados, mas o Brasil não está nessa primeira leva.

A solidariedade internacional com a Índia, que vive uma crise humanitária de proporções inéditas, é muito maior do que com o Brasil, mesmo o primeiro-ministro Narendra Modi sendo um político direitista que idolatrava Trump. Mas, ao contrário de Bolsonaro, não foi ingênuo a ponto de não cumprimentar o presidente eleito Joe Biden.

A Índia também tem uma importância na geopolítica internacional que o Brasil não tem, o que não recomenda uma política externa maniqueísta e não pragmática. Não há como não admitir que, nessa geopolítica internacional, países como o Brasil precisam se impor por seu soft power, que no nosso caso é muito bem representado pela cultura — música, cinema, futebol — e passou a ser um instrumento fundamental de nossa política externa, explorado na atuação exitosa de nossas Forças Armadas nas missões de paz da ONU.

Um governo cheio de generais que comandaram as Forças brasileiras nas missões das Nações Unidas para estabilização do Haiti já deveria ter entendido que a posição do Brasil no mundo depende de fortalecermos nossas vantagens comparativas, como deveríamos fazer no meio ambiente, e não na confrontação.


Luiz Carlos Azedo: Lula, ser ou não ser

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva cogita não disputar a Presidência da República e participar da chapa do PT como vice, repetindo o estratagema peronista que elegeu o presidente Alberto Fernández na Argentina, tendo a ex-presidente Cristina Kirchner como vice. Nesse caso, o nome mais cotado para encabeçar a chapa seria o do jovem governador do Ceará, Camilo Santana, um engenheiro agrônomo que governa o estado desde 2014 e foi reeleito com facilidade. Supostamente, o acordo permitiria uma reaproximação com Ciro Gomes, cuja candidatura pelo PDT virou uma pedra no sapato de Lula, e também com o senador tucano Tasso Jereissati (PSDB-CE).

O assunto está sendo discutido pelo círculo mais próximo de aliados de Lula e já divide a cúpula petista. O ex-presidente tem revelado preocupação com o desgaste causado pela Operação Lava-Jato e pelo fato de que ainda está numa posição vulnerável, porque suas condenações foram anuladas, mas ainda não foi absolvido. Seu processo será retomado na Justiça Federal em Brasília, o que pode se tornar uma frente de erosão da sua candidatura. Além disso, está com 75 anos; caso fosse eleito, terminaria o mandato com 80 anos.

Para Lula, o mais importante é derrotar o presidente Jair Bolsonaro e garantir a volta do PT ao poder, não necessariamente, voltar a ser o presidente da República. Seus aliados mais próximos dizem que essa obsessão Lula não tem; se a tivesse, não teria apoiado a reeleição de Dilma Rousseff, embora, hoje, ele próprio admita que talvez tenha sido um grave erro. Outros petistas que poderiam encabeçar a chapa são o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e o governador da Bahia, Rui Costa. Entretanto, segundo os defensores da candidatura de Lula a qualquer preço, ambos queimaram a largada quando o petista estava inelegível. Essa discussão, inclusive, teria desgastado a relação do senador Jaques Wagner (PT-BA), ex-governador da Bahia, com seu velho amigo Lula.

No entanto, Lula se movimenta para retirar o PT do isolamento e construir uma ampla base de alianças em nível nacional, procurando antigos aliados regionais. Na terça-feira, reuniu-se com os dirigentes do partido no Rio de Janeiro para discutir o apoio à candidatura do deputado federal Marcelo Freixo (PSol) ao governo fluminense, numa aliança que incluiria o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM), e o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, que sempre teve boas relações com o PT. Maia está de malas prontas para deixar o DEM. O que pode inviabilizar essa aliança é a renúncia do atual governador, Claudio Castro(PSC), que não pretende disputar a reeleição. Nesse caso, o presidente da Assembleia Legislativa fluminense, André Siciliano (PT), picado pela mosca azul, assumiria o governo e disputaria a reeleição. Para Lula, o Rio de Janeiro é considerado decisivo para a derrota de Bolsonaro, pois foi um dos estados que lhe garantiram a eleição em 2018.

O outro estado considerado estratégico por Lula é Minas Gerais, onde o PT busca uma aliança com o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, tendo o ex- governador Fernando Pimentel no comando das articulações, a partir de suas relações com o ex-deputado Adalclever Lopes (MDB), secretário de Governo da Prefeitura de Belo Horizonte e ex-presidente da Assembleia Legislativa mineira, durante seu governo. A chave da aliança com o PSD, porém, é o apoio do ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab. Para isso, o PT estaria disposto a apoiar a candidatura de Kalil ao governo de Minas ou mesmo lhe oferecer a vaga de vice-presidente, caso Lula seja mesmo o postulante do PT.

Cerco a Doria
Enquanto Lula alimenta sua dúvida hamletiana — ser ou não ser, eis a questão —, a candidatura do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), sofre um cerco dentro do partido. Ontem, o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio anunciou que pretende disputar as prévias da legenda, previstas para outubro. Na semana passada, foi o senador Tasso Jereissati, ex-governador do Ceará, que anunciou a mesma intenção. Enquanto isso, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, o primeiro a anunciar o desejo de disputar a vaga de candidato à Presidência do PSDB, ao se reunir com o presidente do Cidadania, Roberto Freire, e com o deputado Daniel Coelho (Cidadania-PE), começa a costear o alambrado, como dizem os gaúchos, para deixar a legenda e concorrer por outro partido.


Maria Cristina Fernandes: Governo no modo pânico

O sincericídio do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na instalação da CPI da pandemia mostrou que o potencial de uma investigação do gênero é dado pela quantidade de erros que alvos cometem a partir da iminência de seu funcionamento. Primeiro foi o ex-secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, que partiu para o ataque contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, na tentativa de se blindar da investigação sobre a intermediação entre indústrias farmacêuticas e o governo.

Depois veio o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, que, ao revelar ter tomado vacina escondido do presidente, como mostraram Thaísa Oliveira e Cézar Feitosa (CBN), poderá ser convocado para explicar porque o governo, publicamente, empurra a população ao matadouro enquanto seus ministros, privadamente, se acautelam contra o vírus.

Ao escancarar a cobrança aos aliados contra a instalação da CPI, Flávio Bolsonaro fragilizou ainda mais seu pai. O governo gastou muito mais do que podia para eleger Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) à presidência da Câmara e do Senado. Entregou ao Centrão grandes orçamentos da administração pública como o FNDE, a Codevasf e a Funasa. E, finalmente, acabou de renovar o passe de sua sobrevivência ao custo de R$ 49 bilhões para as emendas parlamentares no Orçamento de 2021, como notou Delfim Netto (“FSP”).

Nada disso foi suficiente para dar sossego ao governo. E, a partir de agora, nada dará. Além de escancarar a incúria governamental na condução da pandemia, a CPI tem um dano intangível sobre a base governista e os cofres públicos. Como os atores da comissão terão, a partir de agora, um palanque antecipado para 2022, resta aos adversários tentar sair da sombra de seu protagonismo.

Tome-se, por exemplo, o que acontecerá em Alagoas. O relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), não precisará renovar seu mandato em 2022, mas deixou claro, em discurso com referências ao fascismo, à República do Galeão, às batalhas de Monte Castelo, a Slobodan Milosevic e Augusto Pinochet, que joga para voltar ao cargo de mais poder que já ocupou, o de presidente do Senado. Tem como condições necessárias para isso, ainda que não suficientes, que seu filho eleja um sucessor no governo de Alagoas e que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva volte ao poder.

Se Renan contará com uma CPI que tende a galvanizar o debate nacional até as eleições, seu principal adversário regional, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), só teria como rivalizar se desengavetasse um dos mais de 100 pedidos de impeachment que lá repousam. Como não deseja desfazer a sociedade com este governo, lhe restou ressuscitar as reformas tributária e administrativa. Agrada seus interlocutores no mercado financeiro, que precisam de tempo para se desfazer de posições alavancadas pela aposta neste governo, e escancara a Câmara à atuação de lobbies que, neste momento de atomização do poder, podem agravar distorções. Basta ver o que aconteceu com o projeto aprovado na Casa liberando a vacinação privada.

Suas contingências diferem daquelas de seu parceiro, o senador Ciro Nogueira (PP-AL). A Ciro resta tentar o governo do seu Estado, visto que a única vaga ao Senado será disputada pelo governador Wellington Dias (PT), favorecido pela candidatura de Lula. Disputará contra o candidato de Dias, mas mostrou, na CPI, a maestria no jogo duplo.

A Lira resta renovar seu mandato de deputado federal por Alagoas. Não terá problemas para fazê-lo, o mesmo não pode ser dito da renovação de seu mandato na presidência da Câmara se Bolsonaro não for reeleito. Satisfeitas as ambições de Lira e Renan, as duas Casas legislativas ficariam sob o comando da dupla de alagoanos em 2023, o que parece improvável. Até Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto se revezaram no poder.

Para tornar sua recondução incontornável, resta a Lira fazer uma bancada suprapartidária maior do que a de hoje e eleger um aliado em Alagoas. Sua agenda busca contemplar ambas as prioridades. Numa semana está em contatos empresariais em São Paulo, noutra vai a Campo Alegre, na Zona da Mata alagoana, para inaugurar 190 casas populares.

Com a Secretaria de Governo sob o comando de seu grupo, Lira não terá dificuldades de avançar ainda mais no Orçamento de 2022, mas não terá vida fácil em Alagoas, onde o governador dispõe de R$ 6 bilhões para investir até as eleições, graças à concessão do saneamento, a privatização da folha de pagamentos e às reformas administrativa e previdenciária. Alagoas deixou de ser o golfo que Graciliano Ramos vaticinava com a queda nos homicídios por 16 meses consecutivos e a redução de 65% na relação entre dívida líquida/receita.

O único flanco que Renan Filho tem desguarnecido é sua pretensão ao Senado. O presidente da Assembleia Legislativa assumiria o governo e se tornaria, automaticamente, candidato natural à reeleição, contrariando a vontade do governador de fazer, como sucessor, um dos secretários projetados por sua gestão. Um acordo fica cada dia mais difícil.

Só um projeto ainda os une, o de fazer o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, ministro no Supremo. Desembargador pelo quinto constitucional, Martins chegou ao STJ no governo Lula pelas mãos de Renan. No cargo, salvou Lira da Lei da Ficha Limpa.

Além dos dois alagoanos, Martins tem o apoio de Flávio Bolsonaro, que conta com o filho do ministro, Eduardo Martins, para iniciá-lo no mercado da advocacia da capital federal. Depois de uma visita desastrada ao Palácio do Alvorada, quando causou má impressão sobre o presidente, Martins conseguiu ser recebido em outras três ocasiões em que a ansiedade se manteve sob mais controle.

Duas ações resumem a postulação de Martins. O ministro Gilmar Mendes votou na terça-feira pela incompetência do juiz Marcelo Bretas na ação penal contra advogados contratados pela Fecomercio, entre eles o filho do presidente do STJ, acusado, em delação, de ter recebido R$ 77 milhões, maior fatia entre os causídicos. Na semana passada, a ministra Rosa Weber negara o pedido da PGR pela suspensão de inquérito do STJ contra procuradores cujos diálogos foram captados. Neles, Humberto Martins aparece como beneficiário de propinas reveladas pelo ex-presidente da OAS, Leo Pinheiro, em delação.

Um ministro com esses precedentes seria, obviamente, refém do Planalto. A aliança que se forma em torno dele, porém, mostra que é o pós-Bolsonaro que já está em jogo.


Mariliz Pereira Jorge: 400 mil mortos

“É lindo viver”, escreveu nesta quarta (28) o jornalista João Batista Natali, intubado durante 21 dias por complicações da Covid-19. Paulo Guedes não deve concordar. Nem Jair Bolsonaro.

Natali contou que, ainda internado, chorou compulsivamente ao ouvir “Paixão segundo São Mateus”, de Bach, depois do longo período em que “deixou de existir”. Eu me emocionei ao imaginar Natali impactado ao experimentar novamente, depois de ter flertado de perto com a morte, momento tão banal: uma música bonita no rádio.

Esse apreço pela vida deve ser coisa de jornalista sentimentaloide, como somos eu e Natali. Horas antes de o texto do jornalista ser publicado na Folha, o titular da economia dizia que a longevidade é insustentável aos cofres públicos. “Todo mundo quer viver cem anos.”

Vinda de um integrante do governo Bolsonaro, a declaração não surpreende, apenas confirma o desprezo que presidente e colaboradores sentem pelo maior bem que qualquer ser humano pode ter: a vida. Vamos lembrar que, há um ano, a reação de Bolsonaro, ao ser questionado sobre as mais de 5.000 mortes causadas pela Covid-19, foi esta: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Nesta quinta (29), o Brasil deve chegar à trágica marca de 400 mil mortos. Como a situação ainda deve piorar, talvez Guedes fique mais tranquilo.

Que ousadia a nossa querer viver tanto. Para ouvir Bach? Para ver sobrinhos e netos crescerem? Para tomar um chope gelado? Sentir o coração bater por uma nova paixão? Para nadar no mar? Para poder voltar a abraçar as pessoas?

Recorro às palavras da juíza Andrea Pachá, em recente tuíte: “Só entende o desejo de envelhecer e completar o ciclo da existência, experimentando a longevidade, aquele que ama a vida e a entende como direito humano fundamental. Sentimento inexplicável para o ministro que se indigna com os velhos que insistem em viver”.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilizpereirajorge/2021/04/400-mil-mortos.shtml

 


Gabriela Prioli: Vacina? Só se for escondidinho

A abertura da CPI nos mostrou uma coisa: Bolsonaro, quando quer, sabe se organizar, desde que seja para defender seus próprios interesses. Em poucos dias, a Casa Civil produziu uma lista de acusações mais completa e detalhada do que a própria comissão. Ele sabe o que ele fez.

Não se organizou antes porque o motivo não lhe parecia bom o suficiente. Trabalhar para salvar a própria pele, vá lá, mas se o risco que se apresenta for a morte de centenas de milhares de brasileiros, o esforço não vale a pena ou não interessa.

Afinal, não dá mesmo para todo mundo querer viver cem anos, como alertou Paulo Guedes na mesma reunião do Conselho de Saúde Complementar em que falou que a China, principal fornecedor de vacinas e insumos ao Brasil, inventou o vírus e criticou a Coronavac, que representa 84% das vacinas aplicadas no país, apesar do trabalho de Bolsonaro em descredibilizar o imunizante.

Sem saber que a reunião estava sendo transmitida, disse, sobre o aumento na expectativa de vida, que não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar a busca crescente por atendimento médico. Sem entrar na ordem de grandeza, sobraria algum dinheiro para a saúde se o governo, por exemplo, não insistisse na fabricação de medicamentos que não funcionam ou não precisasse ceder um pedaço do Orçamento para se proteger de remédios amargos, às vezes fatais.

Sobraria também se tivéssemos, com pressa, vacinado o nosso povo. Mais tempo de pandemia significa mais recursos públicos destinados a socorrer os mais vulneráveis. E não, a resposta não é o negacionismo que coloca o povo em risco para a economia não parar. Descoberta e disponibilizada a vacina, o isolamento que afeta a economia deixou de ser culpa do vírus para ser responsabilidade de quem atrasou deliberadamente o plano de vacinação. Vacina, aliás, que não faltou para o general Ramos, que precisou se imunizar escondido para não melindrar o seu chefe.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gabriela-prioli/2021/04/vacina-so-se-for-escondidinho.shtml


Nomadland encanta pelas contradições e se consagra como vencedor do Oscar 2021

Análise é da crítica de cinema Lilia Lustosa, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de abril

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), a crítica de cinema Lilia Lustosa acredita que o ano de 2021 pode representar um grande avanço para a conquista feminina no cinema.

“Ao que tudo indica, o ano de 2021, apesar de seu roteiro mais para cyberpunk ou filme-catástrofe, parece que vem para marcar positivamente a história do cinema. Pelo menos no quesito conquista feminina”, afirma Lilia, em artigo que publicou na revista mensal Política Democrática Online de abril (30ª edição).

Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021

A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. O acesso a todos os conteúdos da revista é gratuito no site da entidade.

Dirigido, roteirizado, montado e produzido por Chloé Zhao, uma chinesa radicada nos Estados Unidos, Nomadland vem roubando todas as atenções e levando os prêmios mais importantes da temporada, na avaliação de Lilia Lustosa. O filme se tornou o segundo dirigido por uma mulher a receber a estatueta maior da grande premiação hollywoodiana (Melhor Filme) – e Chloé Zhao também repetiu o feito no prêmio de direção (Melhor Diretor).

Roadmovie

“Um roadmovie que mistura realidade e ficção, ao percorrer o oeste dos EUA retratando a vida dos novos nômades do país, tendo como protagonista a já oscarizada Frances McDormand”, conta a crítica de cinema, em seu artigo publicado na revista Política Democrática Online.

A origem asiática da diretora chama também a atenção, já que, conforme ressalta Lilia, a sociedade está assistindo, na vida real, a um aumento da violência contra pessoas nascidas naquela região, “a quem muitas vezes tem sido atribuída a culpa pelo surgimento do coronavírus”.

“Um cenário macabro de uma ficção científica rasa e injusta!”, critica Lilia. “Mas, enquanto o movimento Stop Asian Hate ganha forças nas ruas, Cloé Zhao brilha absoluta nos palcos dos festivais e nas telas de cinema, televisores, computadores, tablets ou smartphones de todo o mundo”, destaca o artigo da revista online da FAP.

Globo de Ouro

Em fevereiro último, como lembra Lilia, Cloé Zhao se tornou a primeira diretora a ter uma produção premiada com o Globo de Ouro de melhor filme, além de ser a segunda a levar a estatueta de melhor direção e a primeira asiática a conseguir esse feito.

“No Critics Choice Award, Zhao também saiu com o prêmio de direção, e Nomadland, com o de melhor filme. Fato que se repetiu no PGA Awards, premiação do Sindicato dos Produtores de Hollywood, em que seu filme foi laureado mais uma vez como o melhor do ano”, diz.

Para saber todos os detalhes da crítica de cinema produzida por Lilia, acesse diretamente a versão flip da revista Política Democrática Online de abril. A publicação também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigos de política nacional, política externa, cultura, entre outros, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.

Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

Druk: o filme que “passa ao largo do moralismo” e “não demoniza a bebida”

Morto há 50 anos, Anísio Teixeira deixou vivo legado para a educação brasileira

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Pesquisador do Ipea aponta “impactos de ordem moral” da pandemia da Covid

Diretoria do Banco Central parece infectada por ‘populismo cambial’, diz economista

‘Segurança jurídica é elemento de importância quase espiritual’, diz advogada

‘Quatro parcelas de R$ 250 serão insuficientes’, diz economista Sérgio Buarque

Vinícius Müller mostra passos fundamentais à criação da “pedagogia do centro”

Criminosos provocam tsunami de crimes virtuais na pandemia com ransomware

Editorial da Política Democrática Online conclama oposições para cooperação

‘Governo federal cooptou Centrão para impedir impeachment’, diz Temporão

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Marcelo Burgos: A matriz ideológica da milícia e o fenômeno bolsonaro

A milícia é um fenômeno, sobretudo, econômico, de construção de novas bases materiais na vida urbana. E nesse caso, o fato de parte da Barra da Tijuca aderir ao mesmo projeto político da população mais fortemente submetida ao jugo das milícias, indica que o modo de exploração econômica caro à milícia pode estar dando lugar a uma nova superestrutura que é, por princípio, antiestatal e genuinamente neoliberal

O Rio de Janeiro tem muito a ensinar sobre o fenômeno Bolsonaro para o Brasil, e embora isso seja óbvio, ainda não foi suficientemente levado a sério. Examinar a forma pela qual a milícia se espraiou no estado e como ela se converteu em um discurso que avançou sobre áreas ricas da cidade pode ser um bom começo. Afinal, a relação entre o atual presidente e seus filhos com a milícia não é apenas pessoal, mas ideológica, e isso precisa ser melhor compreendido.

Um bom ponto de partida para esse argumento aparece nos mapas apresentados pelo cientista político Antônio Alkmim em seminário recente, realizado pela PUC-Rio, e que também contou com a participação do deputado federal Marcelo Freixo (PSol-RJ). Ao fazer a cartografia do voto na cidade do Rio de Janeiro, Alkmim chama a atenção para o fato de que no 1º turno das eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro teve sua maior concentração de votos no corredor que vai da região litorânea da Barra da Tijuca, onde vive parte da elite econômica da cidade, à região de Jacarepaguá, reduto principal e originário das milícias.

Elaboração Antônio Alkmin

Esse achado é ainda mais reforçado quando se analisa o perfil dos votos nas últimas eleições municipais realizadas dois anos depois. Além do candidato Eduardo Paes (DEM-RJ), que afinal se elegeria, e dos demais candidatos de centro esquerda e esquerda, concorreram o então prefeito Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), sobrinho de Edir Macedo e representante da Igreja Universal, e o deputado federal Luiz Lima (PSL-RJ). Esses dois últimos disputavam o voto de direita e extrema direita. O mapa não podia ser mais sugestivo: enquanto Luiz Lima recebe quase toda a sua votação (cerca de 11% do total) nesse mesmo corredor composto pela Barra e a região de Jacarepaguá, Crivella impera em bairros da zona oeste da cidade onde a presença das igrejas neopentecostais é mais forte.

Elaboração Antônio Alkmin
Elaboração Antônio Alkmin
Duas constatações para uma análise

Desses mapas, cirurgicamente apresentados por Alkmim, tiramos pelo menos duas constatações que podem nos levar a uma análise de mais largo alcance da milícia como ideologia. Primeiro, o campo evangélico pode até ter algumas afinidades eletivas com o fenômeno bolsonaro, mas guarda autonomia em relação a ele; e segundo, a classe média e alta da Barra e os redutos empobrecidos e subjugados pela milícia apresentam uma surpreendente identidade política.

Explicar o quadro extraído desses mapas nos parece um exercício fundamental se queremos iluminar as raízes do fenômeno bolsonaro. Neste artigo, apresento algumas pistas que poderão ser úteis para a sua compreensão e o combate político e cívico desse monstro que nasceu no Rio e expandiu seus tentáculos pelo país.

Quanto à primeira constatação, não creio ser novidade, mas tampouco custa lembrar, que o campo evangélico é muito mais complexo do que se costuma acreditar. E se é verdade que algumas de suas grandes denominações têm se transformado em eficientes máquinas políticas, ainda assim, estamos falando de um terreno aberto a disputas, e que por isso mesmo pode hoje servir a Bolsonaro, como ontem serviu ao PT. O fato de Crivella ter galvanizado seu voto nos principais redutos evangélicos revela, sem dúvida, um poder de extração de voto importante, mas com baixa potencialidade para se converter em nova matriz ideológica. Para isso acontecer seria necessária uma base econômica própria, e nesse caso importa não esquecer que estamos falando basicamente de uma massa de trabalhadores empobrecidos e precarizados.

Apesar da emergência econômica das classes populares no período Lula-Dilma ter emprestado sentido ascendente e afirmativo à moralidade neopentecostal, a condição subalterna dessa população e a forma com que se relacionam com a esfera pública, comprometem seu poder transformador, tornando-a necessariamente dependente de alianças políticas e culturais para se autorreproduzirem.

Fenômeno econômico

O caso da milícia é diferente É, acima de tudo, um fenômeno econômico, de construção de novas bases materiais na vida urbana. E nesse caso, o fato de parte da Barra da Tijuca aderir ao mesmo projeto político da população mais fortemente submetida ao jugo das milícias, indica que o modo de exploração econômica caro à milícia pode estar dando lugar a uma nova superestrutura que é, por princípio, antiestatal e, por isso mesmo, genuinamente neoliberal. Quanto a isso, a cena da comemoração da vitória de Bolsonaro em torno da sua casa em condomínio da Barra teve efeito simbólico poderoso. O monstro gestado na extração da mais valia nas áreas populares havia se convertido em discurso capaz de arrastar as classes médias e altas da cidade.

Enquanto fenômeno fundamentalmente econômico, a milícia é global, fazendo-se presente, ainda que de diferentes maneiras, em diversas áreas populares do planeta, especialmente no hemisfério sul. E por suas próprias características, a lógica da milícia anima um discurso antiestatal e antipolítica. No mundo da milícia, o que vale é a lei do mais forte, que não reconhece direitos nem regulação; sua concepção de sociedade é a do hobbesianismo social: indivíduo, apetites, competição e eliminação física daqueles que representam um obstáculo aos seus negócios. A versão neoliberal do mundo periférico.

No Brasil, e muito especialmente no Rio de Janeiro, a principal singularidade desse fenômeno é o fato dele estar umbilicalmente associado à participação de policiais (majoritariamente militares, mas não apenas) da ativa e aposentados, que se valem de seu poder de fogo (literalmente) para impor a favelas e bairros empobrecidos seu domínio econômico, militar e político. A partir dessa condição, exercem um controle totalitário sobre os territórios onde pontificam, avançando sua empresa econômica especialmente nas franjas das cidades, lá onde o ilegal e o legal se misturam ao ponto de se tornarem indistinguíveis

Essa estreita conexão com forças policiais caracterizadas por uma cultura violenta, historicamente forjada na forma com que lidam com as favelas e periferias das cidades, empresta à forma miliciana brasileira o recurso a um discurso de ordem e o uso do medo como instrumento de dominação. No Rio de Janeiro, onde o fenômeno ganhou sua máxima expressão, a dominação ideológica miliciana cresceu e se alimentou da guerra ao tráfico, que transformou os territórios populares em campos de guerra. O terror das operações policiais nas favelas, e os enfrentamentos entre os próprios bandos de traficantes, retroalimentados pelas estratégias de segurança pública, serviram à perfeição para conferir à exploração econômica praticada pela milícia um discurso paraestatal de manutenção da ordem por meio da manipulação do medo.

Fenômeno bolsonaro

Essa característica da milícia no país é fundamental para que se possa compreender a natureza autoritária do fenômeno bolsonaro. De fato, na sua imaginação não está em jogo um autoritarismo de estado, à moda dos regimes militares sul-americanos dos anos de 1960 e 1970, mas sim um autoritarismo societal. O antiestatismo radical do modo de exploração da milícia é inconciliável com a presença de um Estado forte (autoritário ou não). Daí fazer parte do coquetel ideológico que está produzindo, a combinação entre a apologia do armamento da população e a defesa de uma noção de liberdade individual em face da autoridade do Estado que rejeita qualquer noção de coesão e solidariedade. Nada disso, vale frisar, pode ser facilmente digerido pelas lideranças das Forças Armadas, que, no entanto, se deixaram embalar pelo canto da sereia da raiz autoritária do fenômeno bolsonaro, não percebendo talvez o corpo inteiro do monstro. Mas essa hipótese ainda precisaria ser melhor investigada, afinal, o chefe da Casa Civil e agora ministro da Defesa, general Braga Netto, esteve à frente da intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro ao longo de 2018, e é impossível que não tenha mapeado a extensão da milícia na vida da cidade e de sua região metropolitana. O próprio assassinato de Marielle Franco, ainda no primeiro mês da intervenção, obrigaria a isso.

Do mesmo modo, faz parte de seu modelo autoritário a negação da política e de suas instituições, a começar pelos partidos. Sua estética dispensa os ritos e as mediações da política (o presidente no seu discurso de vitória na sala de sua casa). E sua ética recusa o princípio da representação, não no sentido clássico do “populismo”, mas de uma forma inteiramente nova. Em suas mãos, a política é completamente instrumentalizada, servindo apenas como meio de destruição do estado e da regulação pública. Não por acaso, câmaras de vereadores e prefeituras são especialmente importantes para os milicianos. Afinal, são elas que governam as cidades, e que deveriam regular o acesso ao solo, à construção civil, ao transporte público, e ao comércio e serviços em geral, em suma, aos principais ativos econômicos agenciados pela milícia. A infiltração na vida política se faz como um movimento que encurta as distâncias que eram próprias aos velhos esquemas clientelistas. Sem precisar gastar energia com as mediações políticas, a milícia avança diretamente ao legislativo e ao poder público, para, de posse deles, destruir qualquer obstáculo à livre realização de seus negócios. O mais preocupante, porém, é que essa evocação a uma ordem desprovida de poder público e dominada pelo medo imposto pela força paramilitar, e esse discurso antiestado, ainda que tosco, agrada e atrai setores do mercado e seus representantes. Afinal, como se sabe, o neoliberalismo vai bem com qualquer tipo de autoritarismo. Quanto a isso, o fato do governo Bolsonaro ter como ministro da economia um homem que quando jovem fez parte dos “Chicago boys” da ditadura de Pinochet, dispensa outras evidências.

A conversão do neoliberalismo miliciano em uma original matriz ideológica está em curso, e sua melhor expressão é a conformação de uma nova elite econômica, forjada pela produção e reprodução de capital alimentado pelo consumo popular. Com isso, também entram em cena estratégias de transformação de capital econômico e político em capital social e simbólico. Condomínios de luxo, escolas privadas, vida noturna, restaurantes, salões de beleza e academias perfazem circuitos de transformação do domínio econômico em novos símbolos de status. E tudo, claro, bem azeitado pelo uso intensivo das redes sociais. O fato é que os homens truculentos que controlam os becos das áreas populares, erguendo barricadas e cobrando pedágios espúrios de comerciantes e moradores, e impondo ágios em preços de aluguel e de botijões de gás, já transitam (com suas mulheres) pelos espaços valorizados da cidade, ostentando símbolos de riqueza que mal disfarçam sua base econômica.

Aderência do neopentecostalismo

O mais dramático é que essa nova burguesia, com seu antiestatismo e seu peculiar autoritarismo, tem conseguido aderência – ainda que circunstancial – à moralidade difusa do neopentecostalismo. É verdade que na voz de milicianos a evocação à Bíblia chega a ser um gesto obsceno (Bolsonaro citando versículos de João na sala de sua casa após a vitória), mas o peculiar apelo à ordem que vem da milícia pode casar bem com a fetichização da família e a perseguição a minorias sexuais, tão presentes em parte do discurso evangélico. De igual modo, a agenda do “Escola sem Partido”, que recusa a moralidade laica e republicana da escola pública, na exortação do que chamam de “ideologia de gênero”, reúne uma suposta defesa da moralidade cristã a um discurso contra o Estado, do qual a escola pública é talvez a sua mais importante expressão.

Igualmente relevante, e talvez ainda mais surpreendente, é que essa burguesia miliciana, que garante sua forma de reprodução não de práticas corruptas, mas da corrupção como prática, a começar pelo próprio uso dos recursos policiais, tenha conseguido aderência ao discurso anticorrupção, o qual, levado ao extremo, se encontra com a negação da política e a criminalização de suas instituições, não dispensando para isso nem mesmo a violação de princípios básicos do devido processo legal.

Mas é preciso que se reafirme que nem os aderentes ao discurso do combate à corrupção, nem os evangélicos neopentecostais precisam ser, necessariamente, aliados da ideologia miliciana. Eles não são, com certeza, “farinha do mesmo saco”.

Foi preciso uma pandemia devastadora para que o sinal de alerta soasse com mais força entre os liberais e conservadores que não se reconhecem com o antiestatismo e a antipolítica da ideologia miliciana. E talvez isso somente tenha ocorrido porque a pandemia revelou o mais perturbador elemento dessa ideologia, que de modo algum é surpreendente para quem conhece de perto a ética da milícia: o neoliberalismo miliciano nutre desprezo pela vida alheia – para quem viu o filme, é impossível não lembrar: da barbárie sangrenta de “Bacurau”. A antena sensível de Kleber Mendonça Filho captou a brutalidade de um novo tipo de sujeito, que já não reconhece o outro como humano. Esse novo tipo de sujeito bem pode ser lido como uma visão alegórica do mundo miliciano. E certamente não é por acaso que o mesmo cineasta, alguns anos antes, em “Som ao Redor”, interligue um grupo de milicianos das ruas de Recife com a herança do canavial escravocrata da zona da mata pernambucana.

O ataque mais frontal às milícias, no Rio e no país, dependeria de dois processos complexos: uma ampla reforma urbana e uma profunda reforma da polícia. Sem isso, elas deverão continuar a contar com condições muito favoráveis para se expandir. É preciso pegar um atalho. Por isso, o alvo nesse momento deve ser a cabeça do monstro, que é a sua expressão ideológica, a qual ainda se encontra em seu momento expansivo, buscando ampliar suas alianças. A comunhão entre os eleitores empobrecidos das áreas dominadas por milícias e os endinheirados e remediados da Barra denota, na ecologia peculiar do Rio de Janeiro, seu potencial de expansão. Para se combater esse coquetel ideológico será necessário, antes de mais nada, cortar seus nexos com o campo evangélico, retirando-lhe uma fonte importante de discurso moral. Quanto a isso, a demonstração cabal de seu desapreço pela vida, incompatível com qualquer leitura da Bíblia é, sem dúvida, o mais importante a ser feito. Do mesmo modo, é preciso revelar com maior intensidade que as práticas corruptas da milícia vão muito além das “rachadinhas”. Um caminho seria o do aprofundamento da investigação jornalística e jurídica dos escaninhos que permitem a estonteante expansão imobiliária das regiões dominadas por milicianos. Quanto a isso, as ruínas do edifício que desabou na favela da Muzema, e a história das centenas de outros que ainda estão de pé, certamente tem muito a revelar.

Quanto às reformas, viriam depois, mas terão que vir…

Marcelo Burgos, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio


Afonso Benites: Renan Calheiros, o insólito novo líder da oposição a Bolsonaro

Político camaleão e hábil interlocutor na câmara alta, senador envia recado: “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”

Inaugurada nesta terça-feira, a CPI da Covid já demonstrou quem será o segundo principal adversário político de Jair Bolsonaro pelos próximos meses, o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Não é o principal, pois, como usualmente se diz em Brasília, o papel de maior opositor do Governo Bolsonaro cabe ao próprio presidente e a seus ministros, com as crises autoinfligidas e declarações que provocam conflito com outros poderes e países ―nesta terça-feira foi a vez de Paulo Guedes (Economia) irritar Pequim dizendo que o “chinês inventou o vírus”, sem saber que estava sendo gravado. Antes desta gafe, foi o discurso de Calheiros como relator da comissão parlamentar de inquérito que trouxe os primeiros indícios do caminho que o experiente senador de Alagoas pretende trilhar e do barulho que a CPI pode causar.

MAIS INFORMAÇÕES

Em sua primeira participação, Calheiros provocou incômodo no primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). O herdeiro do presidente reclamou que as sessões presenciais da CPI poderiam resultar na contaminação de mais servidores da Casa e até na morte de parlamentares ―três senadores já morreram de covid-19 desde o ano passado. “Acho que o presidente [do Senado] Rodrigo Pacheco está errando, está sendo irresponsável, porque está assumindo a possibilidade de, durante os trabalhos dessa CPI, acontecerem mortes de senadores, morte de assessores, morte de funcionários desta Casa em função da covid-19”, disse Flávio. Indagado por repórteres sobre esta fala, Calheiros ironizou. “É a primeira vez que ele se preocupa com aglomeração. Significa que ele, talvez, esteja saindo do negacionismo e esteja aderindo à ciência e à necessidade dos brasileiros”, afirmou.PUBLICIDADE  

Em seu primeiro discurso na CPI, o senador não citou diretamente Bolsonaro em nenhuma ocasião. Mas enviou recados incômodos. “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”, disse. Ele prometeu ser imparcial em seu relatório, do qual disse querer ser um sintetizador, um redator. E alegou ainda que prezará sempre pela ciência. É um contraponto à rejeição dos preceitos científicos de Bolsonaro e de seus asseclas. “A comissão será um santuário da ciência, do conhecimento e uma antítese diária e estridente ao obscurantismo, ao negacionismo sepulcral responsável por uma desoladora necrópole que se expande diante da incúria e do escárnio desumano.”

Crítico da operação Lava Jato, Calheiros reforçou essa postura também no discurso inicial da CPI. “[A comissão] tampouco será um cadafalso com sentenças pré-fixadas ou alvos selecionados. Não somos discípulos nem de Deltan Dallagnol nem de Sérgio Moro”, disse em referência ao procurador e ao ex-juiz que atuaram na operação em Curitiba. “Não arquitetaremos teses sem provas ou Power Points contra quem quer que seja. Não desenharemos o alvo para depois disparar a flecha”.

Ataques nas redes processos judiciais

Assim que passou a circular a informação de que o emedebista seria o relator da comissão, interlocutores do Governo o procuraram para tentar aliviar o relatório para Bolsonaro. Na conta, estaria um eventual apoio ao seu grupo político na eleição estadual do ano que vem. O cenário em Alagoas ainda não está claro. O Estado é governado por Renan Calheiros Filho (MDB), que, em seu segundo mandato, tem dois ou três pré-candidatos a sua sucessão. O apoio de Bolsonaro, no momento, não é bem recebido pelos emedebistas. Por enquanto, eles preferem estar ao lado do lulismo do que do bolsonarismo.

Seja como for, Renan Calheiros é um camaleão político que ocupa cargos públicos e eleitorais há 42 anos. Desde a redemocratização, já foi da base governista de todos os presidentes. De Fernando Collor (PROS) a Michel Temer (MDB). Em alguns momentos foi mais defensor do presidente da ocasião. Em outros, como no de Dilma Rousseff (PT), foi um conciliador que deixou de apoiá-la na reta final de processo de impeachment, mas conseguiu manter os direitos políticos da petista em um grande acordo parlamentar. Por essa razão, é bem-quisto pelos petistas, principalmente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.PUBLICIDADE

Após ser derrotado por Davi Alcolumbre (DEM-AP) para a presidência do Senado em 2019, Calheiros atuou nos bastidores contra a gestão Bolsonaro. Fugiu dos holofotes por um período para se defender dos 12 processos aos quais responde no Supremo Tribunal Federal e, agora, volta com todas as cargas contra o presidente e já enfrenta a ira das redes bolsonaristas. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) tentou impedi-lo, por meio de uma ação judicial, retirá-lo da relatoria. Conseguiu, em primeira instância, mas viu na segunda, viu a decisão cair. “Intimidações, e todos os dias nós as vemos sob qualquer modalidade e arreganhos, não nos deterão”, disse. Uma das principais queixas dos bolsonaristas trata exatamente dos elos familiares de Calheiros. “Se for pela questão de interesse, o presidente não deveria nem deixar o Flávio Bolsonaro entrar aqui no colegiado”, disse o líder do PT no Senado, Paulo Rocha.

A característica mutante de Calheiros faz com que ele esteja, hoje, ao lado de quem antes era seu opositor. Agora, caminha de braços dados com Randolfe Rodrigues (REDE-AP), o senador que liderou o seu partido na Justiça, em 2016, em um movimento para afastar o emedebista da Presidência do Senado. Naquela ocasião, foi a primeira vez que o Senado afrontou uma decisão judicial, dada em caráter liminar pelo ministro Marco Aurélio Mello.

Próximos passos

Nesta quarta-feira, a CPI deverá receber sugestões de planos de trabalho, que são uma espécie de roteiro do colegiado que inclui as próximas convocações e os documentos que deverão ser entregues para se iniciar a investigação. Três já foram entregues, e o relator espera receber ao menos mais cinco. Antes, contudo, Calheiros já enviou uma série de requerimentos que devem dar o tom dos trabalhos na primeira semana. Na quinta, esses planos de trabalho deverão ser votados pela comissão.

O primeiro a comparecer na comissão, como testemunha, será o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), na próxima terça-feira. “Temos a preocupação de começar a cronologia do início, para saber o que foi feito desde o primeiro momento”, disse o presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM).

Mandetta deixou o Governo por discordar da conduta negacionista do presidente Jair Bolsonaro. Ele defendia medidas de restrição de circulação enquanto o mandatário era contrário. Também havia um confronto sobre o uso de cloroquina e outros medicamentos ineficazes no tratamento do coronavírus, sempre propagados pelo presidente.


Alon Feuerwerker: A largada da CPI

E a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado instalou-se com uma missão definida pela maioria de seus participantes: apontar a culpa do governo federal pelo alto volume de mortes na pandemia. Na inauguração, ouviram-se declarações de princípio sobre a isenção nos trabalhos. Mas é apenas retórica. Conclusões de CPIs são modeladas não tanto pelos fatos, mas pela correlação de forças.

O Brasil vive uma situação política curiosa, porém habitual. Uma certa bipolaridade espiritual. No Senado, o foco é apontar os canhões da CPI para o Palácio do Planalto. Na Câmara, o presidente da casa legislativa engata a marcha das reformas administrativa e tributária. O que vai prevalecer? A agenda negativa ou a positiva? Naturalmente, cada um mira 2022.

Bem, a correlação de forças na largada da CPI é desfavorável ao Planalto. Mas o desenho que vale mesmo é o a ser observado nas hora das conclusões. Ou seja, um governo que aparentemente perdeu a maioria política no Senado, apesar de manter certa maioria programática, especialmente quando se trata de assuntos relacionados à economia, vai ter de encontrar uma saída do labirinto. 

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Folha de S. Paulo: Em 100 dias, Biden toma medidas ousadas em busca de marcas permanentes

Presidente dos EUA precisa enfrentar crise migratória, seu principal foco de críticas

Marina Dias, Folha de S. Paulo

Joe Biden já tem um elogio favorito nos corredores da Casa Branca. Assessores próximos dizem que o presidente dos Estados Unidos comemora, mesmo que discretamente, quando ouve que sua largada tem sido mais ambiciosa que a de Barack Obama, de quem foi vice de 2009 a 2017.

Nos primeiros cem dias de seu governo, que serão completados nesta quinta-feira (29), Biden sinalizou o desejo de ser um dos presidentes mais transformadores da história americana. Mas, para isso, precisa fazer com que suas propostas ousadas se tornem marcas permanentes, reformulando o país em termos de desigualdade, direito ao voto e papel do Estado no crescimento econômico.

A marca dos cem dias é recheada de simbolismo, geralmente sem grandes efeitos práticos. Neste ano, porém, com o adiamento causado pelas restrições da pandemia, a data vai praticamente coincidir com o primeiro discurso de Biden na sessão conjunta do Congresso, sua oportunidade de celebrar vitórias e elencar prioridades que podem desenhar o legado de sua Presidência.

Nesta quarta-feira (28), o democrata deve enumerar avanços de seu plano contra a Covid-19, que contou com a distribuição de mais de 200 milhões de vacinas em cem dias e freou o recorde de casos e mortes causadas pela doença no país. Com a urgência ecoada do Salão Oval, Biden alçou os EUA de desastre sanitário ao posto de um dos maiores sucessos de vacinação em massa do mundo e conseguiu apontar para uma recuperação econômica mais rápida com a aprovação de um pacote de alívio econômico no valor de US$ 1,9 trilhão, com auxílio específico aos mais vulneráveis.

Diante dos parlamentares, o presidente quer chamar atenção para os próximos desafios e deve anunciar o aumento de impostos sobre os mais ricos, em parte para financiar sua proposta trilionária de reforma na infraestrutura. Ele sabe que os próximos cem dias serão mais difíceis —e arriscados—, pois precisa avançar com essa agenda, que mistura criação de empregos e economia verde, sem deixar de lado a crise imigratória, a maior de seu governo e seu principal arcabouço de críticas até agora.

O pacote de socorro econômico foi a grande vitória de Biden no Congresso até aqui, e 1 das 11 leis que o presidente assinou desde que tomou posse, em 20 de janeiro. O número é pequeno se comparado a seus antecessores mais recentes —Donald Trump chancelou 28 leis nos cem primeiros dias e Obama, 14—, mas o dado define a arriscada forma de governar do democrata.

Em termos de ordens executivas, mecanismo que não precisa do aval do Congresso para entrar em vigor, mas pode ser revertido mais facilmente, o presidente é o recordista desde Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), que governou o país em meio à Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial.

Biden assinou 42 delas, muitas para cancelar políticas de Trump, como a saída dos EUA do Acordo Climático de Paris e da Organização Mundial da Saúde, o veto à entrada de pessoas de alguns países de maioria muçulmana em território americano e a liberação de recursos para a construção de um muro na fronteira com o México.

Político tradicional e senador por quase quatro décadas, Biden entende que ordens executivas são efêmeras e, para que suas políticas não sejam revertidas por um eventual próximo presidente, é preciso que o Congresso as torne leis.

O presidente tem pressa porque a frágil maioria de seu partido no Senado —são 50 votos para os democratas e 50 para os republicanos, com desempate nas mãos da vice-presidente, Kamala Harris— pode terminar nas eleições legislativas de 2022.

Projetos que não envolvem orçamento precisam de mais do que apenas maioria simples para serem aprovados, como medidas que estão no pacote de infraestrutura ou sobre controle de armas e para frear as restrições de direito ao voto, temas que Biden tem abordado publicamente.

Enaltecido durante a posse, o discurso pelo bipartidarismo, entretanto, tem ficado para trás. A fórmula de Biden é convencer o Congresso a aprovar suas medidas impulsionado pelo apoio popular —e é por isso que ele tem apresentado as propostas de reforma na infraestrutura e investimento em economia verde atreladas à criação de milhões de empregos e aumento da competitividade no país.

Segundo o site FiveThirtyEight, a média de aprovação do presidente é de 54,4% —mais popular do que Trump durante todo o seu mandato, mas menos do que Obama, que tinha 60% no mesmo período.

Um dos poucos temas que tem unido Biden aos republicanos é a tensa relação com a China e a Rússia.Até agora, o democrata manteve ou até reforçou as políticas assertivas de Trump contra Pequim e aplicou sanções ao regime de Vladimir Putin por interferência nas eleições americanas e ataques virtuais.

Segundo um integrante do Departamento de Estado, os governos passados tiveram o luxo de escolher as ameaças de segurança nacional contra as quais iriam atacar primeiro, mas Biden não teve essa opção. Nas palavras do diplomata, China, Rússia, Covid-19 e mudanças climáticas se impuseram à Casa Branca.

Na semana passada, Biden liderou a Cúpula de Líderes sobre o Clima, para tentar reposicionar os EUA na liderança da geopolítica mundial, ditada pelo meio ambiente, considerado mais um trunfo do democrata.

falta de comprometimento claro de países como China e Índia com a redução nas emissões de poluentes na próxima década, porém, podem atrapalhar os planos do americano.

Mas sua maior dor de cabeça hoje é a crise nas fronteiras, com o maior fluxo de imigrantes nos EUA em 20 anos. Durante a campanha, Biden prometeu dar tratamento mais humanitário aos estrangeiros que tentam entrar nos EUA sem documento e facilitar o acesso à cidadania americana a 11 milhões de imigrantes, mas o descontrole nas fronteiras eclipsou medidas já colocadas em prática, como a que pretende reunir as famílias de separadas na divisa no governo Trump.

Biden tem sido duramente atacado, inclusive por aliados, por ter restringido o acesso à imprensa para acompanhar o trabalho das patrulhas na divisa com o México e pelo alto volume de crianças desacompanhadas que ficam em centros de detenção mais do que as 72 horas permitidas por lei.

Ele ainda não conseguiu dar uma resposta efetiva sobre a crise, mas, nesta terça-feira (27), nomeou para o comando da ICE (Agência de Imigração e Alfândega, na sigla em inglês) uma autoridade do Texas conhecida por ser crítica das políticas imigratórias de Trump.

Sob enxurradas de críticas na mesma área, a imigração, Obama carrega a pecha de que podia ter sido mais audacioso durante seu governo, mas, ainda assim, o primeiro presidente negro da história americana deixou duas marcas na história: Obamacare e a reforma financeira para sair da crise de 2008.

O senso de urgência mostra que Biden sabe que o tempo é curto para fazer mudanças estruturais em um país tão polarizado, mas os entraves podem ser grandes, e a possibilidade de concorrer à reeleição —que antes não era cogitada— já apareceu em um pronunciamento do democrata.


Roberto DaMatta: Somos todos pacientes

Para José Paulo Cavalcanti, Merval Pereira, Carlos Alberto Sardenberg e Joaquim Falcão

O dicionário “Aurélio” revela o amplo significado da palavra “paciente”. Uma palavra fundamental por sua capacidade de desmontar bate-bocas, inibir impaciências em filas, adiar vinganças e apaziguar minha angústia diante deste claro endoidecimento do Brasil.

Somos todos pacientes porque haja paciência para suportar o hospício desta psicose jurídico-política. De um lado, um enorme ressentimento porque o “povo”, que já foi puro e sagrado, teve motivos para eleger um presidente querelante, sabotador e autoritário; do outro, um surto suicida incapaz de apaziguar um sistema obsessivamente legalista em que a forma pode valer mais que o “objeto” ou substância (falando francamente: que o crime).

A palavra paciente é parte do linguajar jurídico, mas creio que seria absurdo ou despropositado chamar assassinos, genocidas e ladrões — gente como Capone, Eichmann, Goebbels, Stálin, os torturadores do regime militar, os assassinos do menino Henry, os larápios confessos da Operação Lava-Jato e Derek Chauvin, o policial que matou com óbvio viés racista George Floyd — de “pacientes”.

Uma palavra que invoca neutralidade não deveria ser usada como sinônimo de quadrilheiros. Sobretudo de gente que traiu o seu voto. Mas cabe perguntar: quando um réu vira paciente? A resposta é clara: quando ele é importante!

Aliás, se ele é o dono da grande fazenda, nem poderia ser julgado. Chamá-lo, pois, de paciente fatalmente revela a parcialidade e a lealdade do tribunal às convenções estruturais do “sistema brasileiro”, ancoradas na cautela dos compadrios, dos favores e do “você sabe com quem está falando?”, ou julgando... Essa “medida cautelar da paciência” explicita como o que conta não é o crime, mas quem o cometeu.

Trata-se de mais uma jabuticaba expressiva do jeitinho brasileiro.

Uma amiga americana compara com brilho Trump e Bolsonaro. Mas é provável que Donald seja mais facilmente explicável que Jair.

A palavra-chave nessa comparação é o compromisso e a lealdade a uma tradição democrática e republicana. É a fidelidade com a liberdade e com a igualdade como valores. Biden e Harris fazem parte dessa lista, que tem desacordos, mas não tem dúvida relativamente às complexas e duras exigências deste regime inacabado por definição chamado democracia.

Aqui no Brasil, ainda não concordamos se não seria melhor continuar mais ou menos numa realeza ibérica (franquista ou salazarista), mais ou menos populista-socialista e mais ou menos liberal-aristocrática, mas sempre autoritária, ou se vamos continuar como frustrados republicanos, arcando com o difícil compromisso de fazer valer a lei para todos — sobretudo, para nós mesmos!

E, por último, mas não por fim: se vamos cobrar coerência da instituição guardiã da Constituição, o STF.

As diferenças culturais entre Brasil e Estados Unidos são grandes, mas nada no campo do humano é impossível. Os americanos têm uma Constituição pioneira, pequena e inteligível; aqui, um oceano de leis complementares e de privilégios impede a clareza. Eles começaram republicanos, e nós fomos um pouco de tudo. Lá, trata-se de manter continuidade; aqui, de liquidar antigos privilégios; lá, quanto mais privilegiado, mais se é responsável perante a lei; aqui, o justo oposto. Lá, um federalismo localista obriga a julgamentos com início, meio e fim; aqui, há o recurso que engaveta os processos, tirando a confiança na maior das igualdades: a equidade perante a lei.

A melhor prova é o caso Floyd. Lá, está resolvido! Aqui, o STF anula sentenças e suspeita de um movimento anticrime fundamental para corrigir as trapaças do populismo, as sobrevivências do fidalguismo e o retorno do filhotismo. Lá, o trabalho é um chamado; aqui, foi e ainda é estigma e cicatriz da escravaria.

Aqui, o ministro Gilmar Mendes afirma, com maestria sociológica, que o governo do PT engendrou um “plano perfeito” de poder. Num texto magistral, esse paladino da coerência continua: “Na verdade, o que se instalou no país nesses últimos anos, e está sendo revelado na Lava-Jato, é um modelo de governança corrupta. Algo que merece o nome, claro, de Cleptocracia”. Onde foi parar esse juiz? Será que ele foi canibalizado por sua imparcialidade?

Para concluir, lembro uma outra pérola do mesmo magistrado em sua resposta a um colega: “O moralismo é a pátria da imoralidade”.

Como um velho acadêmico metido a cronista em pleno processo de cancelamento, digo apenas que a incoerência como um valor é, sejamos modestos, a terra da injustiça.


Hélio Schwartsman: A CPI da Covid será um sucesso?

Se fixarmos o objetivo no impeachment, receio que a resposta seja não

Com o passar dos anos, tornei-me cético em relação a CPIs. Há tempos que eu não vejo uma delas produzindo bons resultados.

Uma das razões para isso é que investigar é uma tarefa técnica, que requer uma expertise só raramente encontrada entre parlamentares. O ambiente escancaradamente público e politicamente carregado do Parlamento tampouco ajuda em apurações, que costumam avançar mais quando conduzidas com discrição e objetividade.

CPI da Covid, porém, é diferente. E é diferente porque a investigação já está pronta. Aliás, dizer "está pronta" é um eufemismo. Tanto o TCU como o MPF já analisaram a atuação do governo na pandemia e produziram documentos pouco abonadores à conduta das autoridades do Executivo. A imprensa também fornece boas peças.

Nos últimos dias, o próprio governo, em mais uma demonstração de inabilidade, deu de mão beijada para a CPI um roteiro com 23 vulnerabilidades a explorar. No que talvez seja inédito, existem até estudos acadêmicos a subsidiar o trabalho dos parlamentares, apontando falhas graves na gestão da epidemia e correlacionando falas negacionistas do presidente a aumentos nos óbitos. O relator da CPI precisará só juntar tudo isso e selecionar as melhores partes.

Isso significa que a CPI da Covid será um sucesso? Depende do que se define como sucesso. Se considerarmos que a meta é apenas gerar um relatório poderoso, a resposta é provavelmente sim. Mas, se formos um pouco mais ambiciosos e fixarmos o objetivo no impeachment, aí eu receio que a resposta seja não.

O que manda é a política. E o mais provável é que as correntes majoritárias no Parlamento prefiram usar a CPI para manter uma espada de Dâmocles sobre a cabeça de Bolsonaro e arrancar vantagens do governo.

É pena, porque qualquer coisa menos que o impeachment significará que a sociedade acha normal e aceitável ter um presidente que fez tudo o que Bolsonaro fez.