pandemia
Rolf Kuntz: Desemprego, inflação e mais de 400 mil mortos
Combinar desemprego e inflação foi a maior façanha econômica do presidente Jair Bolsonaro, em quase dois anos e meio de mandato. Bolsos vazios dificilmente convivem com preços em alta, mas esse raro conúbio foi promovido pelo atual desgoverno. Multidões em busca de vagas formaram filas no começo do ano e continuam formando. Os desocupados eram 14,4 milhões no trimestre móvel encerrado em fevereiro – o maior número da série iniciada em 2012. Projeção do Banco Central (BC) aponta inflação de 5,1% no fim de 2021, quase estourando o teto da meta, fixado em 5,25%. Em 12 meses os preços ao consumidor já subiram 6,17%, segundo a prévia da inflação de abril, o IPCA-15. O alerta é claro, mas o risco permanece, enquanto a equipe econômica se perde em confusões e o presidente fala mal da China e ameaça editar decretos autoritários. As incertezas criadas pelo presidente favorecem a alta do dólar, um dos fatores inflacionários.
O Brasil continua estagnado, enquanto outros países voltam a crescer e a criar empregos. Também sofrem com novas ondas de covid, mas avançam na vacinação e seguem rumos bem definidos. No Brasil, a imunização, já atrasada, tem sido interrompida por escassez de vacinas. Nos negócios, a retomada é lenta e insegura. No primeiro trimestre a indústria produziu 1% menos que nos três meses finais de 2020. A comparação dos volumes produzidos em 12 meses mostra um recuo de 3,1%.
Com desemprego elevado, orçamento curto, preços em alta e muita insegurança, mesmo os consumidores ainda ocupados têm contido os gastos. As famílias em pior situação, sem ninguém ocupado ou com renda perto de zero, precisaram de ajuda para matar a fome. Dependiam do auxílio emergencial, deixaram de recebê-lo em janeiro e só em abril foram de novo socorridas com recursos públicos.
Campanhas de solidariedade atenuaram o problema, levando comida a favelas e a às áreas mais pobres. Grupos informais, organizações civis e governos locais e estaduais atuaram de diversas formas e depois houve adesão de grandes empresas. O governo federal, o último a se mexer, finalmente restabeleceu algum apoio, muito modesto, às famílias necessitadas.
Não está claro se o ministro da Economia e sua equipe olharam para outro lado, sem se importar com a situação de dezenas de milhões de pessoas, ou se apenas deixaram de perceber o problema. Não se pode menosprezar a segunda hipótese. O ministro parece acordar, de vez em quando, para a economia real, mas só de vez em quando. Ele age e se manifesta, na maior parte do tempo, como se mal percebesse o dia a dia da produção, das vendas, do consumo, do emprego, das condições de vida dos trabalhadores e de suas ambições. Talvez pareça estranho, mas essas ambições incluem visitar a Disney e mandar filhos a universidades. Os dois assuntos já foram comentados pelo ministro e isso remete à primeira hipótese.
Quem pouco se ocupa do mundo quotidiano pode pelo menos olhar os números oficiais. Dados do comércio varejista mostram um pouco da história das famílias e de seus apertos. Em março, as vendas no varejo do dia a dia foram 0,6% menores que em fevereiro. Foi o quarto resultado negativo nos cinco meses a partir de novembro.
Os últimos dados mensais mostraram queda em sete dos oito ramos pesquisados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Só cresceram (3,3%) as vendas de hipermercados, supermercados e outras lojas de alimentos e bebidas.
O auxílio emergencial foi retomado por quatro meses. Medidas adicionais de apoio às empresas e ao emprego também foram anunciadas, mas nenhuma iniciativa ambiciosa de estímulo ao crescimento foi anunciada. A mediana das projeções do mercado aponta expansão econômica próxima de 3% em 2021 e pouco superior a 2% em 2022.
Em março, a produção industrial ficou 16,5% abaixo do pico da série histórica, registrado em maio de 2011. Um plano de reindustrialização poderia fazer sentido, mas planejar é atividade estranha à atual gestão econômica. No mercado, assim como em Brasília, fala-se, de forma imprópria, de uma pauta de reformas.
A chamada reforma administrativa é uma proposta de mudança de regras de RH. Pode ser uma iniciativa útil, mas administração é muito mais que isso. Para os tributos, a equipe econômica propôs somente a fusão do PIS e da Cofins. O relator da reforma tributária, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), apresentou um projeto mais amplo, baseado principalmente na PEC 45. Mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), defende um processo fatiado, a partir da pífia proposta do governo.
Em 2019 Bolsonaro conseguiu fazer a economia crescer apenas 1,4% – menos que em 2018. O governo deu algum sinal de vida em 2020, como dezenas de outros em todo o mundo. Mas em 2021 os demais governos continuaram avançando, enquanto o brasileiro chegou a abril sem dispor sequer de um Orçamento, com a economia emperrada e péssimo desempenho no combate à pandemia, com 400 mil mortos pela covid. Quantas vidas teriam sido salvas por uma política mais competente e mais decente?
*Jornalista
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Rolf Kuntz: Desemprego, inflação e mais de 400 mil mortos
Combinar desemprego e inflação foi a maior façanha econômica do presidente Jair Bolsonaro, em quase dois anos e meio de mandato. Bolsos vazios dificilmente convivem com preços em alta, mas esse raro conúbio foi promovido pelo atual desgoverno. Multidões em busca de vagas formaram filas no começo do ano e continuam formando. Os desocupados eram 14,4 milhões no trimestre móvel encerrado em fevereiro – o maior número da série iniciada em 2012. Projeção do Banco Central (BC) aponta inflação de 5,1% no fim de 2021, quase estourando o teto da meta, fixado em 5,25%. Em 12 meses os preços ao consumidor já subiram 6,17%, segundo a prévia da inflação de abril, o IPCA-15. O alerta é claro, mas o risco permanece, enquanto a equipe econômica se perde em confusões e o presidente fala mal da China e ameaça editar decretos autoritários. As incertezas criadas pelo presidente favorecem a alta do dólar, um dos fatores inflacionários.
O Brasil continua estagnado, enquanto outros países voltam a crescer e a criar empregos. Também sofrem com novas ondas de covid, mas avançam na vacinação e seguem rumos bem definidos. No Brasil, a imunização, já atrasada, tem sido interrompida por escassez de vacinas. Nos negócios, a retomada é lenta e insegura. No primeiro trimestre a indústria produziu 1% menos que nos três meses finais de 2020. A comparação dos volumes produzidos em 12 meses mostra um recuo de 3,1%.
Com desemprego elevado, orçamento curto, preços em alta e muita insegurança, mesmo os consumidores ainda ocupados têm contido os gastos. As famílias em pior situação, sem ninguém ocupado ou com renda perto de zero, precisaram de ajuda para matar a fome. Dependiam do auxílio emergencial, deixaram de recebê-lo em janeiro e só em abril foram de novo socorridas com recursos públicos.
Campanhas de solidariedade atenuaram o problema, levando comida a favelas e a às áreas mais pobres. Grupos informais, organizações civis e governos locais e estaduais atuaram de diversas formas e depois houve adesão de grandes empresas. O governo federal, o último a se mexer, finalmente restabeleceu algum apoio, muito modesto, às famílias necessitadas.
Não está claro se o ministro da Economia e sua equipe olharam para outro lado, sem se importar com a situação de dezenas de milhões de pessoas, ou se apenas deixaram de perceber o problema. Não se pode menosprezar a segunda hipótese. O ministro parece acordar, de vez em quando, para a economia real, mas só de vez em quando. Ele age e se manifesta, na maior parte do tempo, como se mal percebesse o dia a dia da produção, das vendas, do consumo, do emprego, das condições de vida dos trabalhadores e de suas ambições. Talvez pareça estranho, mas essas ambições incluem visitar a Disney e mandar filhos a universidades. Os dois assuntos já foram comentados pelo ministro e isso remete à primeira hipótese.
Quem pouco se ocupa do mundo quotidiano pode pelo menos olhar os números oficiais. Dados do comércio varejista mostram um pouco da história das famílias e de seus apertos. Em março, as vendas no varejo do dia a dia foram 0,6% menores que em fevereiro. Foi o quarto resultado negativo nos cinco meses a partir de novembro.
Os últimos dados mensais mostraram queda em sete dos oito ramos pesquisados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Só cresceram (3,3%) as vendas de hipermercados, supermercados e outras lojas de alimentos e bebidas.
O auxílio emergencial foi retomado por quatro meses. Medidas adicionais de apoio às empresas e ao emprego também foram anunciadas, mas nenhuma iniciativa ambiciosa de estímulo ao crescimento foi anunciada. A mediana das projeções do mercado aponta expansão econômica próxima de 3% em 2021 e pouco superior a 2% em 2022.
Em março, a produção industrial ficou 16,5% abaixo do pico da série histórica, registrado em maio de 2011. Um plano de reindustrialização poderia fazer sentido, mas planejar é atividade estranha à atual gestão econômica. No mercado, assim como em Brasília, fala-se, de forma imprópria, de uma pauta de reformas.
A chamada reforma administrativa é uma proposta de mudança de regras de RH. Pode ser uma iniciativa útil, mas administração é muito mais que isso. Para os tributos, a equipe econômica propôs somente a fusão do PIS e da Cofins. O relator da reforma tributária, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), apresentou um projeto mais amplo, baseado principalmente na PEC 45. Mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), defende um processo fatiado, a partir da pífia proposta do governo.
Em 2019 Bolsonaro conseguiu fazer a economia crescer apenas 1,4% – menos que em 2018. O governo deu algum sinal de vida em 2020, como dezenas de outros em todo o mundo. Mas em 2021 os demais governos continuaram avançando, enquanto o brasileiro chegou a abril sem dispor sequer de um Orçamento, com a economia emperrada e péssimo desempenho no combate à pandemia, com 400 mil mortos pela covid. Quantas vidas teriam sido salvas por uma política mais competente e mais decente?
*Jornalista
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Míriam Leitão: Falsos remédios e muitos venenos
Cloroquina é o símbolo deste governo que sempre tem falsos remédios com efeitos tóxicos para os problemas do país. O Brasil está diante de um devastador retrocesso na educação por causa da pandemia, e a proposta pela qual o governo Bolsonaro se bate é o homeschooling. O país vive uma grave crise na democracia, em parte criada por este governo, mas Bolsonaro exige a volta do voto impresso e por ele ameaça até a realização das eleições. Em vez de uma política de segurança, o projeto que tem sido posto em prática é a liberação das armas. Para o trânsito, o projeto, felizmente atenuado no Congresso, foi o da menor punição para infratores e o fim da cadeirinha das crianças. Em cada área pode-se encontrar a solução “cloroquina”, um falso remédio, que é, na verdade, um veneno.
Na semana passada, a CPI mostrou o efeito da cloroquina na política de saúde brasileira. Ela impede que se desenvolvam boas práticas para enfrentar a pior pandemia em um século, passou a ser a peça central da política pública, a única questão que mobiliza o presidente e o entorno do Palácio. Por ela, um ministro foi demitido, outro pediu demissão, o terceiro se escondeu atrás do Exército e o quarto engasgou. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) fez seis vezes a mesma pergunta ao ministro Marcelo Queiroga, o senador Omar Aziz (PSD-AM), outras duas vezes. Queiroga não conseguia desengasgar e dizer se compartilhava ou não compartilhava da opinião do presidente sobre a cloroquina. “Apego ao cargo”, concluiu o senador Otto Alencar (PSD-BA). O remédio usado em caso de malária e lupus, com ineficácia comprovada para Covid-19, traz para o Brasil o pior dos efeitos colaterais. Por causa da obsessão do presidente, o país deixou de ter uma política de combate à pandemia. “Canalha”, disse Bolsonaro para definir quem discorda do uso da cloroquina. Um espelho o ajudaria a encontrar um bom destinatário para o adjetivo.
Foi uma semana dilacerante. O país perdeu um artista querido que lotava cinemas e teatros, que nos fazia rir em momento que tanto precisamos. Perdemos Paulo Gustavo com 42 anos e uma vida pela frente e isso nos lembra que a morte por Covid está ficando mais jovem. No dia mesmo em que seu corpo era cremado, o Rio viu mais uma chacina. Jacarezinho foi palco de um horror de país em guerra. O governador Claudio Castro disse que a operação da Policia Civil, que vitimou um policial e 27 moradores, foi fruto de ação de inteligência. A identidade dos moradores mortos não havia ainda sido divulgada, e o vice-presidente, Hamilton Mourão, definiu-os como “tudo bandido”. Mais tarde, repetiu que eram todos “marginais”. Se forem, então, podem ser executados, sem direito a um processo? As leis brasileiras não têm pena de morte, mas para o vice-presidente pessoas podem ser mortas, sem direito a um processo. Para completar, Mourão disse que no Rio “é a mesma coisa que se a gente tivesse combatendo no país inimigo. Quase a mesma coisa.”
A solução cloroquina que ele oferece aqui é letal. Em vez de uma política de segurança, execução em massa, suspensão do devido processo legal, e a transformação do Rio em território inimigo. Mourão pelo visto quer mostrar a Bolsonaro que merece continuar sendo seu vice. Compartilha dos mesmos valores. Resta perguntar à dupla o que fazer com a milícia nesse “país inimigo”.
Durante a semana em que a CPI exibiu uma radiografia de como o governo tem contribuído para o aumento do contágio e das mortes por Covid-19, Bolsonaro esteve sob o comando do filho Carlos. Para tentar desviar a atenção posta na CPI, Bolsonaro empilhou absurdos. Ameaçou baixar um decreto autoritário, atacou o principal parceiro comercial do Brasil e fornecedor de insumos para vacinas e disse que pode não haver eleições, se não for aprovado e implantado o voto impresso.
Bolsonaro quer impor uma pauta estranha às urgências do país, em todas as áreas. Mais de cinco milhões de crianças e adolescentes não tiveram acesso à educação durante a pandemia, e, quanto mais pobre, menos o aluno está aprendendo. Estamos vivendo uma tragédia que recai sobre uma geração inteira de estudantes. Mas a solução cloroquina é permitir que um grupo de fanáticos tenha o direito de aprisionar a cabeça dos filhos numa educação medieval, que elimina a escola. Assim é o governo Bolsonaro. Tóxico.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/falsos-remedios-e-muitos-venenos.html
Eliane Cantanhêde: Um ri, os outros choram
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez uma espetacular jogada de marketing ao aderir à tese de quebra de patentes das vacinas em meio à pandemia de covid-19, o que não só consolida a imagem de Biden como marca a volta dos EUA à liderança mundial das grandes causas, como meio ambiente e combate ao vírus.
O mundo desenvolvido e civilizado aplaude e se move na mesma direção, chacoalhando a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e, com elas, o multilateralismo, tão achincalhado na era Donald Trump. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas, do marketing a resultados, da intenção à ação, é que são elas.
Não é simples, nem rápido, uma guinada dessa magnitude, muito menos com o mundo em frangalhos pelo efeito do coronavírus nas pessoas, nos sistemas de saúde, nos países, nas empresas, nos empregos. É uma emergência, mas a teia de interesses é imensa – e poderosa. Quebra de patentes pode demorar anos, e a pandemia exige resultados já.
As questões humanitárias, financeiras e políticas dividem o mundo entre os poucos países que detêm as patentes e a grande maioria que demanda desesperadamente as vacinas. E essas questões unem – contra – os grandes laboratórios, que despendem recursos e recrutam os melhores cérebros do planeta para obter sucesso – no caso da covid, em tempo recorde.
A reação da União Europeia foi de apoio a Biden, mas, nos bastidores, a posição de boa parte dos países está mais próxima da manifestada pela Alemanha, já seguida pela França, contra a quebra de patentes. Não será surpresa se, um a um, outros forem na mesma linha, lembrando que os EUA nunca exportaram uma mísera dose e doam as estocadas a conta-gotas.
Assim, segundo diplomatas e experts em negociação, do Brasil e do exterior, a quebra de patentes a jato é improvável e o razoável são soluções alternativas, ou uma “terceira via”: cessão de excedentes de vacina dos países ricos para médios e pobres, transferência de tecnologia e redução de medidas protecionistas para os insumos de vacinas.
No mundo real, para além da geopolítica, só a quebra de patentes não vai multiplicar as doses e proteger as bilhões de vidas do planeta, porque não basta querer, é preciso poder fabricar as vacinas. Isso vale para o Brasil, que tem Butantan, Fiocruz e capacidade de produção de vacinas, mas não o suficiente para a demanda nacional, com ou sem quebra de patentes.
O efeito da fala de Biden por estas bandas também é político e diplomático, depois de o governo jogar para o alto o troféu do Brasil de capitão da quebra de patentes no combate à Aids, uma vitória que marca a biografia do ex-ministro José Serra (PSDB-SP). Para se alinhar a Trump, Bolsonaro virou as costas para Índia e África do Sul, parceiros dos BRICS, e ficou contra a quebra de patentes na era da Covid.
Sem Trump e com Biden, sem Ernesto Araújo e com Carlos França, a questão das patentes vem bem a calhar para a correção de uma política externa até aqui desastrosa. Mas, enquanto quatro ministros dizem em nota que o governo recebeu “com satisfação” as propostas dos EUA, três deles são obrigados a implorar, de novo, o perdão da China. Por quê? Porque Bolsonaro continua atrapalhando.
Ao insinuar que a China criou o vírus em laboratório para gerar uma “guerra química”, ele, aliás, deixa uma suspeita: a de que quer, deliberadamente, prejudicar a entrega de insumos para a “vacina chinesa do Doria” – que, na prática, é a que garante a imunização no Brasil. Para piorar, a OMS aprovou a vacina da Sinopharm, também chinesa, antes da Coronavac. Isso aumenta a ansiedade e, como efeito colateral, brasileiros nem poderão ir à Europa. Bolsonaro ri, o Brasil chora.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,um-ri-os-outros-choram,70003708766
Ricardo Noblat: Depoimento de Wajngarten à CPI irrita Ramos e assusta Pazuello
É tal a irritação do general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, com o publicitário Fabio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação do governo, que a ele só se refere como “idiota, imbecil”. Mesmo assim, quando de bom humor. De mal então…
Ramos não perdoa o ex-secretário por ter concedido uma barulhenta entrevista à VEJA onde criticou o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e quis parecer mais importante do que foi no combate à pandemia da Covid-19.
O comando da CPI que investiga os erros do governo está convencido de que Wajngarten quis faturar alguns milhões de reais como lobista da vacina da Pfizer. É justamente por isso que o convocou para depor nesta quarta-feira.
Poderá pedir a quebra dos seus sigilos bancário e telefônico para comprovar as denúncias que recebeu. De sua parte, Pazuello está certo de que o depoimento do ex-secretário servirá para complicar ainda mais sua situação, deixando o governo de fora.
Lula volta a São Paulo preocupado com a fraqueza de Bolsonaro
O ex-presidente aproveitou a visita a Brasília para dizer aos companheiros que é preferível Bolsonaro na situação em que está a ele no chão
Lula aproveitou a visita de três dias que fez a Brasília para manifestar a interlocutores sua preocupação com o mau estado da saúde política do presidente Jair Bolsonaro. Voltou a São Paulo com a certeza de que ela inspira cuidados, inclusive da parte da oposição ao governo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
A oposição, PT na cabeça, deve continuar batendo em Bolsonaro, mas não a ponto de inviabilizá-lo como adversário a ser batido nas eleições do ano que vem. O senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Covid-19, sabe disso e compartilha a opinião de Lula. Devagar com o andor para que o santo não caia.
Tem lembrado Lula que Bolsonaro radicaliza o discurso sempre que se vê ameaçado, e assim procede desde o início do governo. É para manter refém os bolsonaristas de raiz. Acontece que isso não o salvou de perder o apoio de devotos que lhe pareciam os mais confiáveis. E é aí que o bicho pode pegar a oposição.
A ela não deve interessar que Bolsonaro se enfraqueça e corra o risco de ficar de fora do segundo turno da eleição, dando passagem desde já a um nome, ou a mais de um, do que se convencionou chamar de terceira via, um candidato capaz de apresentar-se como alternativa a Bolsonaro e a Lula. Isso seria o pior dos mundos.
Lula está convencido de que tem lugar assegurado no segundo turno. Concordam com ele Bolsonaro, seus ministros, e líderes de partidos fechados com o governo até aqui. Mas Lula quer Bolsonaro no ringue para com ele trocar socos. Nada, pois, de apeá-lo do poder. Melhor mantê-lo de pé, sangrando
A opção pelo “deixa ele sangrar” foi escolha da oposição ao governo de Lula no segundo semestre de 2015 quando estourou o escândalo do mensalão do PT – a compra de votos de deputados para que aprovassem projetos despachados ao Congresso pelo Palácio do Planalto. O tiro saiu pela culatra, matando a oposição.
Era o PSDB quem a comandava. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o ex-ministro da Saúde José Serra e outras estrelas do partido concluíram que um Lula vulnerável, a ter que se explicar, seria melhor do que um Lula vítima de um processo de impeachment, ovelha golpeada pelas elites perversas.
Houve um momento em que Lula quase se rendeu. Num sábado de porre na Granja do Torto, uma das residências oficiais do presidente, Lula admitiu renunciar. Foi demovido da ideia pelos companheiros – um deles José Dirceu, chefe da Casa Civil, que estava em São Paulo e teve que voar às pressas a Brasília.
A economia ia bem, obrigado. Lula aproveitou a trégua que a oposição lhe deu para recuperar-se. No primeiro turno da eleição de 2016, derrotou Geraldo Alckmin (PSDB) por uma margem pequena de votos. No segundo turno, Alckmin cometeu o prodígio de ter menos votos do que no primeiro. Nunca se viu nada igual.
A economia, hoje, voa baixo como as galinhas. O desemprego está em alta. As reformas do Estado empacaram. A pandemia com quase meio milhão de mortos tão cedo sairá da memória dos brasileiros. Lula conta com tudo isso para vencer, mas também com Bolsonaro. Estará errado no seu cálculo? A ver.
Fonte:
Metrópoles
Merval Pereira: Paradoxos da regressão
O formidável Tim Maia eternizou uma máxima brasileira que demonstra como, entre nós, o paradoxal acaba sendo normalizado, às vezes em decorrência de uma afabilidade presumida. “Prostituta tem orgasmo, traficante cheira e cafetão se apaixona”, repetia às gargalhadas. Eram tempos outros, em que ainda se acreditava que o país era abençoado por Deus. Bonito por natureza continua sendo, mas com um governo que não sossega enquanto não torná-lo feio, degradado, desesperançado.
André Trigueiro, meu colega da Globonews especialista em meio-ambiente, cunhou uma dessas frases que refletem o estado das coisas, com a amargura que a frase de Tim Maia não tinha. “Funai intimida indígenas. Fundação Palmares rechaça movimento negro. Ministério do Meio Ambiente intimida fiscais do Ibama”. É um retrato do país hoje, quando se distorce a função na medida dos interesses regressivos de setores da sociedade que não querem se enquadrar nos códigos modernizantes que regem o mundo ocidental.
No caso do desmatamento, o país, que já teve voz importante na questão, hoje é tido como vilão contra o meio-ambiente, a ponto de as exportações brasileiras estarem em xeque. Delegado da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva, que apreendeu toneladas de troncos arrancados ilegalmente, acabou sendo afastado da função, e a carga liberada.
Teve que recorrer ao Supremo Tribunal Federal com uma notícia-crime contra o ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, e presidente do Ibama Eduardo Bim, e o senador de Roraima Telmário Mota que, juntamente com outros deputados e senadores da região, pressionaram o ministério do Meio-Ambiente a favor dos madeireiros.
Já o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, um negro racista, desde que assumiu o cargo, vem dando declarações contra os movimentos negros, que seriam “uma escória maldita”, e classificou Zumbi como “um filho da puta que escravizava negros”. Tomou decisões polêmicas, como mandar retirar da lista de “personalidades negras” da Fundação nomes como Marina Silva, Benedita da Silva, Gilberto Gil, Madame Satã, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Elza Soares.
Sérgio Camargo foi considerado “inapto” para a função pela ONU, que enviou uma carta ao governo brasileiro questionando ações da Fundação, como a redução das áreas quilombolas. Já a Funai tem na sua origem o Serviço de Proteção ao Índio, criado pelo Marechal Rondon mas, no governo Bolsonaro, começou a ser desmontada.
Um dos primeiros atos do novo governo foi passar a demarcação de terras indígenas e de quilombolas para o ministério da Agricultura, o que não aconteceu porque o Congresso mudou a medida provisória para manter o controle no ministério da Justiça. A ação da Funai, porém, vem sendo muito criticada, inclusive nessa pandemia, por não ter lutado para que os indígenas e quilombolas tivessem prioridade para a vacinação.
Para completar, a própria Funai pediu à Polícia Federal que abrisse um inquérito contra a líder indígena Sônia Guajajara, que foi intimada a prestar depoimento sobre as críticas feitas contra o Governo federal em um documentário da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que ela coordena.
O documentário “Maracá” retrata, em episódios, a maneira como os índios estão sendo tratados nessa pandemia, e foi considerado pela Funai uma ação de “calúnia e difamação”, e não um protesto daqueles que deveria proteger. O juiz Frederico Botelho, de Brasília, mandou arquivar o inquérito e disse que houve uma tentativa de usar a Lei de Segurança Nacional contra a líder indígena.
Esses paradoxos regressivos têm provocado até mesmo problemas familiares. O pai de Sérgio Camargo é um tradicional e importante líder negro e, embora não o critique, diz que tem uma “distância de ideias, um valor bastante fundo”. A filha de Regina Duarte, a também atriz Gabriela Duarte, deixa claro que não compartilha as mesmas bandeiras ideológicas da mãe. E o embaixador aposentado Luiz Felipe Seixas Correa considerava que, à política externa que seu genro Ernesto Araújo comandava, faltava clareza.
Essa distorção dos organismos institucionais existentes tem provocado uma regressão cultural marcante nesses dois anos e meio de governo Bolsonaro, fazendo com que o país perca o papel de destaque que já teve nessas e em outras áreas, como a da cultura, cujo secretário, Mario Frias, diz que o governo não tem obrigação de “bancar marmanjo”, referindo-se à Lei Rouanet.
Fonte:
Alon Feuerwerker: Jacarezinho, empregos e lei
Toda eleição tem seus temas propulsores, que criam ambiente favorável ao perfil certo. Quando este tem a sorte de, e a competência para, encaixar na demanda. Em 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardoso navegou nos mares do cansaço com a inflação, depois veio Luiz Inácio Lula da Silva para saciar a sede da rejeição à pobreza e à corrupção. O período petista sustentou-se por mais de uma década, mesmo sob acusações relativas à segunda, e muito porque entregava no combate à primeira.
Quando a economia ruiu, a tolerância virou fumaça, veio o impeachment de Dilma Rousseff e depois Jair Bolsonaro surfou as duas ondas do momento: os combates à corrupção e ao crime. Sobre este último, um aspecto evitado sempre que possível no debate é o aparente paradoxo: se os governos do PT reduziram as desigualdades, combateram a pobreza e ampliaram as oportunidades para os antes marginalizados, por que então o crime se agravou no período?
A ponto de a repulsa a ele ajudar decisivamente não só na eleição de Bolsonaro, mas de todo um contingente de políticos ligados à segurança pública Brasil afora.
Aliás, o crime encorpou mais onde a prosperidade avançou de maneira mais pujante, em especial em certas regiões metropolitanas e na fronteira agrícola. Não é opinião, mas fato: o combate à pobreza é fundamental, mas nem de longe é suficiente para solucionar os problemas da segurança pública. É só olhar os números, e tem gente boa que os organiza de maneira cuidadosa. E, simplesmente, o mapa da pobreza não bate com o do crime.
Na falta de consensos, a subida dos índices de criminalidade vai sendo enfrentada na base do “na minha opinião”. Uns acham que é uma disputa de espaços assistenciais entre o crime e o Estado. Outros estão certos de que falta mesmo é punição garantida e proporcional ao delito. Mas tem quem imagina resolver na bala. Jacarezinho. Vão lá, matam um certo tanto e voltam para casa. Quando nova leva ocupa o lugar dos que morreram, vai-se lá e mete-se bala de novo.
Com os habituais “danos colaterais”.
A exemplo da maioria dos outros assuntos importantes, é impossível no Brasil de hoje organizar alguma discussão produtiva sobre como atacar a endemia do crime. Se o debate sobre a pandemia da Covid-19 foi capturado por “certezas científicas”, que aliás independem de comprovação científica e se baseiam somente no “princípio da autoridade”, mais ainda algo que se tornou endêmico, parte da paisagem. Ao fim e ao cabo, convive-se com o crime. De vez em quando acontece alguma coisa que produz, como agora, algum calor. Nunca luz.
Entrementes, os candidatos à presidência vão afiando a faca. De um lado, reforça-se o discurso de que a polícia tem mesmo é de eliminar bandidos, e que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Do outro, desarquiva-se a panaceia da “presença do Estado”. Será que não está na hora de compreender que sem crescimento acelerado da economia, e portanto das oportunidades, o crime continuará garantindo seu market share na atração de potenciais entrantes no mercado de trabalho?
Empregos e lei. Quem conseguir juntar essas duas ideias, até agora separadas por um muro, vai ter público em 2022.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte:
Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/jacarezinho-empregos-e-lei.html
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro cria orçamento secreto para base e esquema autoriza compras superfaturadas
Breno Pires, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Um esquema montado pelo presidente Jair Bolsonaro, no final do ano passado, para aumentar sua base de apoio no Congresso criou um orçamento paralelo de R$ 3 bilhões em emendas, boa parte delas destinada à compra de tratores e equipamentos agrícolas por preços até 259% acima dos valores de referência fixados pelo governo.
O flagrante do manejo sem controle de dinheiro público aparece num conjunto de 101 ofícios enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados para indicar como eles preferiam usar os recursos.
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O detalhe é que, oficialmente, o próprio Bolsonaro vetou a tentativa do Congresso de impor o destino de um novo tipo de emenda (chamada RP9), criado no seu governo, por “contrariar o interesse público” e estimular o “personalismo”. Foi exatamente isso o que ele passou a ignorar após seu casamento com o Centrão.
Os ofícios, obtidos pelo Estadão ao longo dos últimos três meses, mostram que esse esquema também atropela leis orçamentárias, pois são os ministros que deveriam definir onde aplicar os recursos. Mais do que isso, dificulta o controle do Tribunal de Contas da União (TCU) e da sociedade. Os acordos para direcionar o dinheiro não são públicos, e a distribuição dos valores não é equânime entre os congressistas, atendendo a critérios eleitorais. Só ganha quem apoia o governo.
O senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), por exemplo, determinou a aplicação de R$ 277 milhões de verbas públicas só do Ministério do Desenvolvimento Regional, assumindo a função do ministro Rogério Marinho. Ele precisaria de 34 anos no Senado para conseguir indicar esse montante por meio da tradicional emenda parlamentar individual, que garante a cada congressista direcionar livremente R$ 8 milhões ao ano.
Ex-presidente do Senado, Alcolumbre destinou R$ 81 milhões apenas à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), a estatal que controla, ao lado de outros políticos.
Um caso emblemático é o do deputado Lúcio Mosquini (MDB-RO). O governo aceitou pagar R$ 359 mil num trator que, pelas regras normais, somente liberaria R$ 100 mil dos cofres públicos. No total, o deputado direcionou R$ 8 milhões.
Há situações até em que parlamentares enviaram milhões para compra de máquinas agrícolas para uma cidade a cerca de dois mil quilômetros de seus redutos eleitorais. É o caso dos deputados do Solidariedade Ottaci Nascimento (RR) e Bosco Saraiva (AM). Eles direcionaram R$ 4 milhões para Padre Bernardo (GO). Se a tabela do governo fosse considerada, a compra sairia por R$ 2,8 milhões. À reportagem, Saraiva disse que atendeu a um pedido de Nascimento, seu colega de partido. Por sua vez, Nascimento afirmou ter aceito um pedido do líder da legenda na Câmara, Lucas Vergílio (GO).
Planilha secreta do governo obtida pelo Estadão revela que Alcolumbre também destinou R$ 10 milhões para obras e compras fora do seu Estado. Dois tratores vão para cidades no Paraná, a 2,6 mil quilômetros do Amapá. Sem questionar, o governo concordou em comprar as máquinas por R$ 500 mil, quando pelo preço de referência sairiam por R$ 200 mil.
As máquinas são destinadas a prefeituras para auxiliar nas obras em estradas nas áreas rurais e vias urbanas e também nos projetos de cooperativas da agricultura familiar. Os políticos costumam promover festas de entrega dos equipamentos, o que lhes garante encontros e fotos com potenciais eleitores em ano pré-eleitoral.
Ao serem entrevistados, deputados e senadores negavam o direcionamento dos recursos ou se recusavam a prestar informações. Confrontados com ofícios assinados por eles e a planilha do governo, acabaram por admitir seus atos.
‘Minha cota’ e ‘fui contemplado’: os termos nos ofícios dos parlamentares
O deputado Vicentinho Junior (PL-TO) escreveu à Codevasf que havia sido “contemplado” com o valor de R$ 600 mil para compra de máquinas. “Dificilmente esse ofício foi redigido no meu gabinete, porque essa linguagem aí, tão coloquial, eu não uso”, disse.
Somente após o Estadão encaminhar o documento, Vicentinho Junior admitiu a autoria, mas minimizou a expressão “contemplado” ali utilizada. “Às vezes, uma colocação nesse sentido nada mais é do que ser simpático”, resumiu.
“Minha cota”, “fui contemplado” e “recursos a mim reservados” eram termos frequentes nos ofícios dos parlamentares. Foi dessa última forma que a deputada e atual ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (PL-DF), se dirigiu à Codevasf para definir o destino de R$ 5 milhões. “Não me lembro. Codevasf?”, perguntou ao Estadão.
Ao ler o documento, Flávia desconversou: “É tanta coisa que a gente faz que não sei exatamente do que se trata”. Nem tudo, porém, é registrado. O senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL) admitiu que “ditou” para o ministro Marinho onde R$ 7 milhões deveriam ser aplicados.
Na prática, a origem do novo esquema está no discurso de Bolsonaro de não distribuir cargos, sob o argumento de não lotear o primeiro escalão do governo. De um jeito ou de outro, a moeda de troca se deu por meio da transferência do controle de bilhões de reais do orçamento ao Congresso. Tudo a portas fechadas, longe do olhar dos eleitores.
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Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-cria-orcamento-secreto-em-troca-de-apoio-do-congresso,70003708713
Aluysio Abreu Barbosa: Com críticas ao PT, criador do Bolsa Família prega união contra Bolsonaro
Engenheiro, economista, primeiro reitor da Universidade de Brasília (UNB) eleito após a nossa última ditadura militar (1964/1985), ex-governador do Distrito Federal pelo PT, no qual implantou o Bolsa Escola em 1995, depois adotado no governo federal Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e ampliado como Bolsa Família no carro chefe dos 13 anos petistas no comando do país, Cristovam Buarque foi também ministro da Educação de Lula. E senador duas vezes: uma pelo PT e reeleito pelo PDT, pelo qual disputou a presidência da República em 2006. Como educador e político, é um currículo nacional de destaque. Que se aproxima de Campos nesta sexta (14), no debate virtual “A política econômica do desenvolvimento: de Vargas aos nossos dias”, entre 16h e 19h, promovido pela Fundação Astrojildo Pereira e com transmissão ao vivo pela Folha FM 98,3 e Plena TV. Nesta entrevista, Cristovam falou do seu rompimento com o PT, que o levou a votar como senador pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. De quem reafirma a prática de crime de responsabilidade, contrária à narrativa de “golpe”. Progressista, criticou uma “esquerda brasileira (que) nunca lutou pelo fim das mordomias, privilégios, desperdícios”. A classificou de “exquerda” e acusou de “negacionista” no “vício de considerar o Tesouro como ilimitado”. Ainda assim, prega a aliança entre as forças de oposição contra o que considera o objetivo principal em 2022: “vencer Bolsonaro”.
Folha da Manhã – Governador de Brasília, quando ainda estava no PT, o senhor implantou o Bolsa Escola em 1995, que seria adotado em 2001 pelo governo federal Fernando Henrique Cardoso. Em 2003, no governo Lula, o programa foi incorporado a outros no Bolsa Família, carro-chefe dos 13 anos do PT no poder. Que saldo faz do programa?
Cristovam Buarque – O Lula não acreditava no Bolsa Escola, tanto que não aceitou colocá-lo como proposta no documento “Educação Já”, publicado em nome dele e meu, em 1990, como produto do governo paralelo (ao do presidente Fernando Collor de Mello, eleito em 1989, batendo Lula no segundo turno). Quando assumiu o governo (federal, em 2003), eu disse (a Lula) que o Fome Zero não era necessário. Bastava espalhar e ampliar o valor do Bolsa Escola Federal que o FHC tinha criado, cinco anos depois de Brasília e por muita insistência minha. Quando percebeu a importância da ideia, por influência do Duda Mendonça (publicitário que criou o “Lulinha Paz e Amor” vencedor da eleição de 2002), Lula agarrou-a como seu grande programa, coisa que FHC nunca fez, como se sentisse vergonha diante do mundo de que o Brasil precisasse pagar para as crianças estudarem. Apesar disto, em sua autobiografia (“Minha Vida”, lançado em 2004), Bill Clinton (ex-presidente dos EUA) fez elogios, mantendo o nome Bolsa Escola em português. Mas ao adotar o programa, Lula provocou três deformações que levaram um programa educacional a ficar assistencial. Trocou o nome, o que faz com que uma mãe receba o dinheiro pensando que é porque sua família é pobre, antes era porque seus filhos iam à escola. Tirou do MEC e colocou no ministério da Assistência Social, que se chamava Desenvolvimento Social. E misturou beneficiários de filhos na escola com todos que precisavam de ajuda. Melhorou a gestão e elevou de 4 para 12 milhões de beneficiários. Tirou o Brasil do mapa da fome, mas não fez a mudança estrutural que, graças à Bolsa Escola, a educação teria feito.
Folha – Primeiro ministro da Educação de Lula, o senhor foi demitido por ele por telefone em janeiro de 2004. Mas só saiu do PT em 2005, com críticas ao “desprezo” do partido pela educação. Que foi a bandeira da sua candidatura a presidente pelo PDT em 2006, ficando em 4º lugar. De lá para cá, qual o lugar da educação na agenda de desenvolvimento do país?
Cristovam – Continua menosprezada. Quando me demitiu, Lula disse que queria um ministro dedicado a aumentar o número de alunos na universidade. De fato, minha preocupação maior era com a erradicação do analfabetismo e iniciar um processo de maior cuidado federal com a educação de base. Até hoje deixamos a educação de base para os pobres entregue às prefeituras pobres e desiguais. E financiamos a universidade com dinheiro federal. Há 50 anos melhoramos a passo de tartaruga, mas ampliando três brechas: entre pobres e ricos, entre o Brasil e o resto do mundo, e entre o que ensinamos e o que é preciso ensinar. Melhoramos ficando para trás e por conta disto estamos nos tornando um país de quarta classe. Já fomos emergentes, estamos caminhando para submergentes. São muitas razões, mas o atraso e a desigualdade educacional são as principais. Pior que não podemos colocar a culpa nos portugueses ou nos escravocratas ou nos latifundiários ou na ditadura militar. Nós, democratas progressistas, ficamos 26 anos no poder, 13 deles com o PT, e não fizemos o que sempre prometemos. Deixamos o país com 35 milhões sem água, 100 milhões sem esgoto, 12 milhões de analfabetos, recessão, desemprego, recessão e corrupção.
Folha – Em 2010, ainda no PDT, seu partido apoiou Dilma Rousseff (PT) a presidente. Em 2014 seu apoio foi para Eduardo Campos (PSB) e, após a morte dele, para Marina Silva. Ela foi a chance eleitoralmente mais viável para um progressista romper com a polarização entre PSBD e PT?
Cristovam — Além da origem e biografia, que o Lula também tem, Marina trazia os dois compromissos centrais para o futuro: educação e meio ambiente, com responsabilidade fiscal. E era uma posição de avanço nas propostas e comportamentos dos governos do PT, sem o aparelhamento da máquina do Estado e submissão ao corporativismo de trabalhadores e de empresários.
Folha – Em 2014, a disputa presidencial ferveu. Dilma se disse disposta a “fazer o diabo” para se reeleger, Lula chamou Aécio e o PSDB de “nazistas”, e a campanha do PT contra a ex-petista Marina seria classificada de fake news, termo criado em 2016, pelo presidente do TSE, ministro Luiz Fux. Se não era novidade, o “nós contra eles” radicalizou demais a partir dali?
Cristovam – A esquerda tem tendência a esta divisão com respeito à democracia, Bolsonaro radicaliza nesta posição, sem respeito à democracia. Mas a esquerda tende a se sentir dona da verdade e única defensora dos interesses populares, não aceita facilmente a alternância no poder. A derrota eleitoral é vista como derrota histórica. Por isto os partidos comunistas se perpetuam. Evo Morales tentou quatro mandatos sucessivos e tentaria o quinto, Chávez e Maduro nem sabemos quantos. Verdade que vencendo eleições, mas, como disse a Dilma, fazendo o diabo, porque a derrota do partido é vista como escravidão para o povo e derrocada do país. Some-se a isto o gosto de muitos pelo poder e pela fortuna.
Folha – O senhor é até hoje criticado pelos ex-companheiros petistas por ter votado, após trocar o PDT pelo PPS (atual Cidadania), pelo impeachment de Dilma no Senado. Assim como a favor da PEC do Teto dos Gastos Públicos e da proposta de reforma trabalhista do governo Michel Temer (MDB). Se pudesse voltar atrás, mudaria algo? Por quê?
Cristovam – Quanto à PEC do Teto e reforma trabalhista, não tenho a menor dúvida que eram necessidades. Não sou negacionista e acredito que 2 mais 2 é igual a 4 também nas finanças. Vejo que a inflação sempre empobrece ainda mais os pobres. E que o vício brasileiro de considerar o Tesouro como ilimitado, da mesma maneira que as florestas, tem servido para esmorecer as forças progressistas que reivindicam novos direitos sem cortar velhos privilégios. A esquerda brasileira nunca lutou pelo fim das mordomias, privilégios, desperdícios, subsídios. Prefere reivindicar a lutar, aumentando os déficits públicos, comemorando vitórias e deixando o povo pagar a conta com inflação e juros altos. Também não sou negacionista na realidade dos avanços técnicos e suas consequências nas relações entre capital e trabalho nos tempos atuais, comparados com o tempo da CLT. Naquele tempo não havia nem elevador sem ascensorista, hoje tem avião sem piloto. Não votei a lei da reforma previdenciária porque estava fora do Senado, mas afirmo que nisto também não sou negacionista: nascem menos crianças, os velhos vivem mais e o Estado se esgotou. Teria votado a favor. Quanto ao impeachment, a resposta é mais complicada. Foi um erro lógico diante do que perdi e sofri. Até netas minhas de menos de 10 anos foram atacadas por cartazes em Brasília. Não foi um voto inteligente e lamento ter sido obrigado a votar para manter minha coerência. Foi um voto decidido por razões morais. Passei dois anos alertando a presidente Dilma do crime de responsabilidade que ela cometia e das trágicas consequências de recessão e desemprego e inflação. Votar contra seria inteligente, mas não seria coerente. Fui prisioneiro de minha biografia moral, que arranhou bastante minha biografia política, porque meus eleitores, leitores e amigos se afastaram. Fiquei só com minha consciência e a sensação de ter sido corajoso e coerente. Eu continuei de esquerda, mas para ser de esquerda você não pode ser negacionista, nem covarde e tem que ser contemporâneo da contemporaneidade. Nossa esquerda ficou saudosista e não vê a história passar. Por isto chamo de “exquerda”.
Folha – Apontado em 2018 como alternativa progressista ao PT e à extrema-direita de Jair Bolsonaro (então, PSL), Ciro Gomes também sofreu críticas suas. Em 2015, quando se disse “rifado” do PDT, o senhor falou do cearense: “Não é um quadro que me entusiasme. O PDT está tão ruim, que nem a entrada do Ciro consegue piorar”. Qual era a opção em 2018?
Cristovam – Eu pensei ser o candidato à presidência pelo PPS, repetir a candidatura de 2006 pelo PDT. Mas Roberto Freire (presidente do PPS, hoje Cidadania) não quis e eu, recém ingressado no partido, abri mão em uma reunião do diretório. Ele queria apoiar (Geraldo) Alckmin (PSDB). Os deputados (Arnaldo) Jordy e Rubens Bueno até hoje reclamam dessa minha posição. O PPS apoiou Alckmin que nem ao menos apoiou minha candidatura ao Senado no DF (na qual ficou em terceiro lugar e não se reelegeu ao terceiro mandato). Eu explicitei que meu apoio era outra vez a Marina Silva, como tinha sido em 2014, depois da morte de Eduardo Campos.
Folha – Após o plenário do STF anular as condenações de Lula na Lava Jato de Curitiba, ele voltou com força ao tabuleiro eleitoral de 2022, no qual vem liderando todas as pesquisas ao primeiro turno e batendo Bolsonaro nas projeções do segundo. Como os 30% de intenções de voto de ambos podem ser alcançados por uma terceira via, a menos de 17 meses da urna?
Cristovam – Nossa tragédia é que acho difícil qualquer um chegar ao segundo turno sem apoio do PT e Lula, mas o PT poderá ter dificuldade no segundo turno para vencer Bolsonaro na disputa para ver quem tem menos rejeição. Além disto, a disputa no primeiro turno gera muito antagonismo, que é levado ao segundo. Temo que a luta entre os antibolsonaristas no primeiro turno leve muitos democratas a anularem o voto, viajarem, votarem em branco e o Bolsonaro vença da mesma forma que venceu ao Haddad, um candidato muito melhor e mais qualificado, técnica e moralmente. Tenho defendido que os candidatos atuais se unam logo no primeiro turno, e o eleito se comprometa a ficar um único mandato. Os outros candidatos de hoje adiariam a disputa para 2026. O ideal seria que o PT ajudasse a escolher um candidato sem rejeição. Mas se o PT não perceber que o momento deve colocar o Brasil e a democracia na frente, se não encontrarmos um candidato que unifique, melhor ir com o PT do que o suicídio nacional com um Bolsonaro reeleito, formando o “seu” exército oficial ou não oficial das milícias. Nem Lula, nem Ciro, nem (Luciano) Huck (sem partido), nem (João) Doria (PSDB), nem Tasso (Jereissati, PSDB) tem o direito de abrir caminho para este suicídio. Melhor que abram mão de suas candidaturas e escolham um deles em um esforço para vencer Bolsonaro. Mas parece que cada um está colocando mais a chance de ser presidente e de beneficiar seus partidos com o Fundo Partidário do que salvar o país. Uma das provas de que nossa geração não está à altura do momento é termos feito em nome de fortalecer a democracia um fundo partidário que ameaça afundar o país.
Folha – Os petistas têm encarado o reinício dos processos de Lula como sua inocência. Em seu livro “Por que falhamos — O Brasil de 1992 a 2019”, o senhor lista os erros da esquerda que levaram a Bolsonaro. E diz: “Nossos intelectuais toleraram de maneira subserviente a corrupção explícita”. Se essa leniência voltar ao poder, onde o Brasil pode parar?
Cristovam – Não será um bom destino, mas melhor do que Bolsonaro. Além disto, o PT e Lula devem ter aprendido com os erros. Apesar de que nunca reconhecem isto publicamente.
Folha – Refém do Centrão no Congresso, com mais de 100 pedidos de impeachment na Câmara, CPI da Covid no Senado, 420 mil brasileiros mortos pela pandemia, volta da inflação, desemprego e dólar em alta, e sem nenhum apoio internacional desde a derrota de Donald Trump nos EUA, Bolsonaro ainda mantém cerca de 30% de apoio popular. Collor e Dilma só caíram quando tinham 1/3 disso. O que projetar?
Cristovam – Projeto que Bolsonaro manterá seu núcleo fanatizado e os outros divididos ajudarão para que ele chegue ao segundo turno. A ideia de dois turnos é formidável: no primeiro, o eleitor escolhe o candidato mais próximo, no segundo, o menos distante. Mas em tempo de radicalismo, o primeiro turno elege os extremos que mantêm seus núcleos aguerridos. E, no segundo turno, os não extremos elegem um dos extremos com menor rejeição.
Folha – Quais são suas expectativas para o debate virtual “A política econômica do desenvolvimento: de Vargas aos nossos dias”, junto ao também professor e economista Bresser Pereira, que será promovido pela Fundação Astrojildo Pereira, das 16h às 19h da próxima sexta (14), com transmissão ao vivo pela Folha FM 98,3 e a Plena TV?
Cristovam – Vou me concentrar menos no que os economistas erraram e mais no que eles esqueceram: os limites ecológicos que desde os anos 60/70 já se percebiam; vetor educacional que outros países já percebiam nos anos 60/70, como mais do que um direito de cada pessoa, a alavanca do progresso econômico e da justiça social; a pobreza como um entrave ao crescimento; a perspectiva histórica que cobra a conta da modernidade apressada; e o esgotamento do Estado, fiscal, gerencial e moralmente. Qualquer que fosse o partido no poder nos últimos quase 100 anos, seus economistas não perceberam essas lacunas no pensamento econômico. Concentraram-se em caminhar rápido, sem perceber que estavam em um rumo errado.
Fonte:
Blog Opiniões
Hamilton Garcia: A crise e suas raízes
A crise que vem estiolando a democracia brasileira ganhou novos contornos com a chancela do golpe judiciário de Fachin e sua consequência mais vistosa, mas não única, de livrar Lula de suas condenações na Justiça, tornando-o elegível. Com ela, o STF perde as credenciais para manter a disputa política no terreno da Constituição, pois não pode existir leis quando não existem instituições, no caso em tela, quando a corte suprema, intempestivamente, anula anos de trabalho árduo de suas instâncias decisórias, da primeira à última, fazendo tábula rasa de seu próprio sistema, o que só contribui para projetos autoritários que intentem transformar as instituições em meras ferramentas de poder.
Se chegamos até aqui sem maiores sobressaltos políticos, que não aqueles próprios da disputa pelo poder nas democracia liberais – no nosso caso agravada pela má formação/legislação política –, apesar da crise, é porque as instituições de controle foram capazes de impor algum limite ao modo como as elites usufruem do poder, como se viu em vários episódios no Legislativo (cassação de Collor e Dilma) e Judiciário (Mensalão e Petrolão).
A percepção das elites dominantes afetadas, todavia, é radicalmente oposta. O Petrolão, em particular, parece ter rompido todos os limites imaginados pelos donos do poder, depois de alcançar grandes empresários, bater às portas do sistema financeiro e detectar movimentações financeiras suspeitas em escritórios de advocacia de parentes de ministros do STJ e do STF. Do pânico à reação, tivemos a blindagem de Michel Temer na Câmara Federal, com a complacência de Rodrigo Maia, e no TSE (chapa Dilma&Temer), sob a batuta de Gilmar Mendes, que, já no Governo Bolsonaro, articulou com Dias Toffoli o famoso inquérito do fim do mundo dirigido por Alexandre de Moraes, tudo isso colaborando para aprofundar o fosso que separa a sociedade de suas elites dirigentes no Estado.
Os dois primeiros episódios, ofuscados pela poderosa máquina de narrativas do petismo, abriram caminho para a ruptura eleitoral de 2018, quando a extrema-direita chegou ao poder empunhando a bandeira da reação ao pacto corrupto plasmado no Governo Temer. Não é de espantar que tenha sido assim, afinal, o esforço de “estancar a sangria” uniu grande parte dos partidos, da direita à esquerda, deixando o campo livre para os aventureiros (“não políticos”), com o agravante que o lulopetismo, último bastião reformista a ser tragado pelo “mecanismo”, depois do PSDB e, de certa forma, do PMDB, arrastou consigo boa parte dos intelectuais que haviam sido capazes de forjar uma opinião pública democrática e inclusiva nas últimas décadas.
Mas, antes de falar das raízes da crise atual, devemos situá-la no plano das crises anteriores da República. O sistema neopatrimonial de dominação, constituído por blocos históricos erigidos em cada etapa do desenvolvimento capitalista do país, atravessou todo período republicano, sendo marcado por surtos de capitalismo de Estado – Estado Novo (1937-45) e Regime Militar (1964-84) – que se propuseram superá-lo sem lançar mão da mobilização social, como já ocorrera, em certa medida, em 1930.
Apesar das importantes transformações provocadas por estes surtos – sobretudo na promoção dos interesses das novas classes sociais ligadas à produção e aos serviços modernos –, o último deles, o bloco histórico militar-burguês-imperialista, não obteria êxito em superar o caráter neopatrimonial do sistema, já que seu caráter politicamente reacionário o impedia de ampliar o arco de alianças modernas necessário para virar definitivamente a página da República Velha e, em fim, alcançar os trabalhadores. Assim, mantida a natureza elitista do sistema, o ocaso do regime de 1964, naturalmente, ensejou expectativas de um novo bloco histórico democrático, que alteraria a lógica oligárquica do sistema dominante, o que, de novo, não aconteceria – talvez pela semi-estagnação que se seguiu –, não obstante o aprofundamento das concessões em termos do acesso de novos grupos populares ao poder, iniciadas ainda no período militar (vide chaguismo).
Importante assinalar que tal sistema oligárquico não foi uma era de estagnação, como sustentado pela esquerda até 1958 – o que teria levado o sistema ao colapso –, mas de crescimento acelerado, sobretudo a partir de 1930, embora voltado principalmente para os interesses da burguesia, dos setores corporativizados do trabalho e das classes patrimoniais situadas no seio do Estado, o que propiciou a formação de uma classe média robusta, não obstante aquém das possibilidades/necessidades, nos legando um país semi-dependente, com uma massa popular urbana ainda em boa parte marginalizada dos frutos do progresso.
As possibilidades de progresso no interior de tal sistema, todavia, parecem ter chegado a seu limite depois do regime militar, como percebemos ao olharmos para a sucessão de ciclos curtos de forte recessão, vôos de galinha e crescimento abaixo do potencial, sob a direção das mais variadas coalizões políticas – de Sarney à Bolsonaro, passando por Cardoso e Lula.
A Nova República, ao que tudo indica, passará para a história como a derradeira fase de nossa modernização passiva, onde a democratização, lenta, sinuosa e precária, não pode mais ser emulada à base da simples expansão do Estado, ao custo de serviços públicos precários (seviciados pelo patrimonialismo), sistemas previdenciário e tributário regressivos, e uma educação incapaz de reverter a histórica discriminação social-racial.
As margens para o endividamento do Estado, criadas pela prosperidade dos surtos anteriores de capitalismo de Estado, sobretudo o último, se estreitaram, restando agora, como paliativo, pegar carona na revolução industrial chinesa e seus efeitos sobre o agribusiness – o que não será de muita serventia se não formos capazes de reverter o desmonte de nossas cadeias produtivas, em meio à doença holandesa propiciada pela incerteza cambial (real apreciado).
Isto, em outros termos, implica conter a prática do endividamento público em prol do gasto improdutivo e reverter a política externa engajada – de Lula ou Bolsonaro –, que nos colocou de costas para os grandes mercados consumidores de nossos produtos manufaturados, nos afastando dos acordos globais que poderiam abrir portas para cadeias produtivas mais complexas. A fórmula ultra-liberal de Guedes, não obstante seu apelo eleitoral/empresarial e as importantes reformas que propõe, em função de ignorar, na prática, o papel estratégico do Estado como fomentador do progresso e a importância dos investimentos sociais para o desenvolvimento, em plena era do despertar da consciência popular – inclusive sobre o caráter parasitário do sistema em vigor (vide revolta de junho de 2013) –, pouco poderá contribuir para a retomada do desenvolvimento sustentável.
Desde a redemocratização de 1985, o bloco histórico financeiro-patrimonial-corporativo operou a sustenção do sistema oligárquico por intermédio de uma ampla gama de coalizões políticas governamentais: da direita (Collor e Bolsonaro) à esquerda (Silva-Dilma), passando pela centro-direita (Sarney e Temer) e a centro-esquerda (Franco e Cardoso). O que tais coalizões tinham em comum, era o fato de se apoiarem em forças sociais e econômicas hegemônicas, que operavam a política econômica (liberal) baseada no consumo das famílias, sustentada, principalmente, pelo controle inflacionário, pela desregulamentação comercial, a apreciação cambial (incentivo à importação), pelo imposto de renda negativo (bolsa família), pelas transferências assistenciais (LOAS) e de capital (incentivos fiscais), e pelo crédito direto ao consumidor (público–privado).
O ponto crítico desta circulação de elites em torno do bloco histórico, se deu, como sabemos, na coalizão lulopetista de governo, mais especificamente, no final do primeiro Governo Dilma, quando o PT, acossado pela inquietação popular, tentou reposicionar sua estratégia de poder revitalizando o apelo de partido de massa anti-sistema, em detrimento do “compromisso histórico” com as elites (Carta aos Brasileiros), por meio da “nova matriz econômica”.
A inconsistência da propositura, todavia, forçaria o PT a um retorno hesitante ao “compromisso histórico”, àquela altura consciente de que a restauração do equilíbrio econômico, por meio do tripé (câmbio flutuante, metas fiscais e metas de inflação), obrigaria um desenlace político diverso daquele de 2005, quando Cardoso desarmou, na partida, o movimento que poderia ter levado ao impeachment de Lula.
A incapacidade petista de administrar o tripé na perspectiva do desenvolvimento, tirando o país da crise estrutural em que se encontra desde os anos 1980, se explica pela política de distribuição de renda sem bases materiais sustentáveis (social-desenvolvimentismo), a par do notório sectarismo político, que os impediu de produzir um novo consenso em torno da reforma necessária, ou seja, a criação de um novo bloco histórico voltado para a produção e o trabalho, que substitua o atual bloco rentista/parasitário – que cooptou Lula e defenestrou Dilma quando seus crimes de responsabilidade atentaram contra seus interesses.
Temer, que a sucederia, recomporia a coalizão governamental em torno dos interesses do bloco, o que lhe permitiu sobreviver aos próprios crimes de responsabilidade, inclusive os eleitorais. Os mesmos interesses, até aqui, têm mantido Bolsonaro no poder, não obstante ter ele superado todos os padrões anteriores de estelionato eleitoral e crimes de responsabilidade – entre eles, os investigados pela CPI da pandemia.
A resiliência do Capitão vai muito além de seu poder de mobilização popular. Seu principal trunfo é o desmonte da operação Lava-Jato, que une o bloco dominante em todo seu espectro. O estancamento da sangria, articulado ao nível dos Três Poderes da República, demonstra cabalmente a capacidade de reação de um bloco dominante diante da ameaça de neutralização de seu principal instrumento de poder: no caso, a corrupção sistêmica.
É certo que a tragédia da COVID-19 e a inépcia governativa, por ela exposta, podem abalar as bases sociais e o pacto celebrado em torno do Capitão, mas o custo de sustentá-lo tem parecido menor, para os próceres do sistema, do que o de recolocar o bloco militar no poder com Hamilton Mourão, seu Vice.
De certo, outras coalizões se apresentam como alternativa eleitoral ao impasse, mas sem apresentar qualquer programa para substituir a ordem em derruição. A exceção é Ciro Gomes, que não esconde sua pretensão de constituir um novo bloco, baseado na retomada do desenvolvimento econômico, com ênfase na inclusão social, inspirado no contrato social empreendedor e sustentável, de Mangabeira Unger, e na aliança de classes pelo desenvolvimento (novo-desenvolvimentismo), de Bresser-Pereira. Todavia, carece ele, até aqui, de uma imagem positiva para atrair o voto popular e de alianças capazes de minimizar resistências.
Enquanto a coalizão bolsonarista pende, por motivos eleitorais, ao nacional-desenvolvimentismo militar, mantendo Guedes como fiador do compromisso com o Mercado (neoliberalismo) e seu bloco – em termos crescentemente instáveis –, o centro político tateia uma saída, aparentemente sem se dar conta de que a volta à normalidade não nos leva para muito além dos horizontes do Governo Temer.
Diante das incertezas que rondam o pais, em meio à pandemia e ao pandemônio governamental, é inequívoco o ganho que teríamos com a saída de Bolsonaro. Mas, isto, por si só, teria apenas o efeito de tirar o bode da sala de uma casa cujos cupins já corroeram os alicerces: se nada mais for feito, para reformar seus alicerces, em pouco tempo, tudo pode piorar ainda mais.
Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[i])
São João da Barra, 08/05/21.
[i] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.
Fonte:
José Luis Oreiro: Minhas propostas para reconstruir o Brasil e retomar o desenvolvimento econômico
O resultado das eleições de 2018, com a eleição de uma pessoa que, por melhor que se possa falar dela, é o pior presidente da história do Brasil desde o tempo de Dona Maria I, a louca, Rainha de Portugal, quando nosso país ainda era colônia; mostra claramente que a sociedade brasileira está passando por uma enfermidade mental grave, que a impede de discutir com clareza e profundidade os problemas que mantem a economia Brasileira estagnada a 10 anos e com um crescimento medíocre da renda per-capita desde o início da década de 1980. Conforme a figura abaixo mostra claramente, desde 1980 a renda per-capita brasileira medida em US$ constantes vem se reduzindo com respeito a dos Estados Unidos, o que significa que a sociedade brasileira está se tornando cada vez mais pobre em termos relativos a mais de 40 anos; em em termos absolutos nos últimos 5 anos.
Desde o impeachment da Presidente Dilma Rouseff o mercado financeiro e os economistas liberais assumiram o controle da política econômica no Brasil, apresentando um programa de reformas estruturais (teto de gastos, reforma trabalhista, reforma da previdência, etc) que, em tese, deveriam acelerar o crescimento da economia Brasileira após a grande recessão da economia Brasileira (2014-2016), cuja responsabilidade eles atribuem a (sic) irresponsabilidade fiscal dos governos do PT. Essa agenda teve por base o documento “Ponte para o Futuro”, elaborado por Marcos Lisboa, José Márcio Camargo, entre outros e apresentado ao Presidente Michel Temer como base da política econômica a ser adotada no seu governo. Conforme argumentei em artigo publicado em 2017 na Revista Estudos Avançados da USP (A grande recessão brasileira: diagnóstico e uma agenda de política econômica (scielo.br))a grande recessão foi causada pela queda acentuada dos gastos de investimento ao longo do ano 2014, cuja origem se encontra na redução das margens de lucro das empresas não financeiras decorrente da elevação do custo unitário do trabalho e da sobrevalorização da taxa de câmbio. Os efeitos recessivos do colapso do investimento foram amplificados pelo realinhamento brusco dos preços relativos ocorrido no primeiro semestre de 2015, e pela contração fiscal executada pelo Ministério da Fazenda no primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. Terminada a crise no quarto trimestre de 2016, a economia brasileira passa a apresentar um crescimento pífio, mostrando o fracasso inequívoco da agenda liberal, mesmo antes da eclosão da pandemia do covid-19, conforme argumentei em artigo publicado em meu blog em fevereiro de 2020 (Não, a economia brasileira não se recuperou da crise de 2014-2016; e talvez nunca se recupere … | José Luis Oreiro (wordpress.com)) .
Nas eleições de 2018 a agenda econômica não foi a peça central da corrida presidencial. O candidato vencedor não apresentou nenhuma proposta, limitando-se a dizer que a economia brasileira seria gerida por um super-ministro da economia, o liberal Paulo Guedes, que aspirava ao cargo de ministro da economia desde a época do Plano Real e chegou a assessorar o candidato do PPS, Ciro Gomes, nas eleições de 1998, quando Fernando Henrique Cardoso foi reeleito no primeiro turno. A atuação de Paulo Guedes a frente do Ministério da Economia acabou revelando sua enorme incompetência, conforme analisei numa live realizada em 2020 para o Portal Disparada ((1914) José Oreiro analisa Paulo Guedes – YouTube). Nas eleições de 2018 a tática adotada por Bolsonaro foi utilizar aquilo que o Professor Paul Krugman certa vez denominou de “armas de distração de massa”, ou seja, “iscas retóricas” para desviar o foco do debate público da economia para assuntos folclóricos como “kit gay”, “comunismo”, “ameaça de Venezualização do Brasil” e etc. Dessa forma, os interesses das classes dominantes, notadamente do sistema financeiro, podem passar despercebidos, enquanto a “grande massa” fica entretida com a “demonização” da esquerda e dos partidos de esquerda, os quais, apesar de suas falhas, historicamente representam os interesses dos trabalhadores e das classes menos favorecidas no Brasil, tal como em outras partes do mundo. Diga-se de passagem, como mostra Paul Preston na sua obra “El Holocausto Español: odio y exterminio en la Guerra Civil y después” (2013), a mesma tática foi adotada pela direita espanhola nos anos anteriores a guerra civil com o objetivo de transformar a toda e qualquer pessoa que defendesse as melhorias nas condições de vida das classes trabalhadoras numa inimiga da “civilização cristã ocidental” e, portanto, passível de ser eliminada do mundo dos vivos (ok, os anarquistas tornaram o trabalho da direita espanhola mais fácil com sua obseção para queimar igrejas e conventos e profanar lugares sagrados).
Isso posto, estou convencido que o Brasil só irá se livrar do pesadelo em que se encontra se as eleições presidenciais de 2022 forem pautadas pelo debate de ideias e propostas, não pelo debate em torno de pessoas. Tendo isso em mente na sequência irei apresentar uma série inicial de propostas de política econômica para reconstruir a economia brasileira e retomar o desenvolvimento econômico. Neste momento me coloco portanto como pré-candidato a Presidência da República, não por achar que tenha condições objetivas de ganhar as eleições (embora no Brasil nada seja impossível), mas como um pontapé inicial para que seja possível discutir de forma clara e profunda as medidas necessárias para colocar o Brasil de volta nos trilhos do desenvolvimento econômico.
Importante esclarecer que, neste momento, não estou filiado a nenhum partido político. Eu represento a mim mesmo e minhas ideias. Também esclareço que estou aberto a críticas e sugestões a respeito das propostas que apresentarei na sequência.
As propostas apresentadas a seguir exigem a formação de uma grande coalizão política em torno das mesmas. Por isso, o debate sério, sem ódios, é absolutamente necessário para a sua implementação. Estou dispostos a conversar com pessoas de todos os espectros políticos; menos, é claro, com Bolsonaristas. Esses serão julgados, com a Graça de Deus, nos tribunais Brasileiros e Internacionais pelo genocídio que está sendo praticado neste país, cujas provas são abundantes e contundentes.
1) Acabar com o teto de gastos e substituí-lo por uma meta de resultado primário estrutural suficientemente grande para reduzir a divida publica liquida como proporção do PIB para menos de 50% em 10 anos, sem prejudicar a retomada do crescimento econômico no curto e médio prazo que exige aumento imediato do investimento publico em infraestrutura, com foco em mobilidade urbana e descarbonização da economia. O cálculo do resultado primário estrutural requerido será feito, de forma independente, pela Instituição Fiscal Independente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e a Secretária de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Será utilizada a média dessas três estimativas como meta de resultado primário estrutural.
2) Reforma tributaria unindo a PEC 45 de autoria do deputado Baleia Rossi com as propostas dos partidos de esquerda de reforma do IRPF, do IRPJ e dos impostos sobre propriedade (IPTU, ITR, IPVA) para aumentar a progressividade da carga tributaria e aumentar a arrecadação de impostos.
3) Restabelecimento do papel dos bancos públicos, notadamente do BNDES, no financiamento do investimento na modernização do parque industrial brasileiro, com metas de exportação de manufaturados e conquista de market share. A TLP será substituída pela TJLP, cujo valor será fixado pelo Conselho Monetário Nacional
4) Introdução de um efetivo regime de mandato duplo para o Banco Central do Brasil, com metas para inflação e crescimento da economia. As metas de inflação serão baseadas no core inflation e o prazo de convergência para a meta de inflação será estendido para 24 meses.
5) Introdução de controles de entrada e saída de capitais externos para reduzir a volatilidade da taxa de cambio e mantê-la num patamar competitivo no médio e longo prazo, os quais serão de competência exclusiva do Conselho Monetário Nacional, o qual deverá definir uma meta de médio e longo-prazo para a taxa real de câmbio, utilizando os controles de capitais e todos os instrumentos regulatórios que julgar necessários para a obtenção da referida meta.
6) Introdução de um imposto de exportação de commodities, com alíquota variável a depender dos preços internacionais das mesmas, como argumentei em artigo publicado no Jornal do Brasil em maio de 2018 (Como Administrar o Câmbio? (Jornal do Brasil, 06 de maio de 2018) | José Luis Oreiro (wordpress.com) A receita deverá ser usada para reconstituir o Fundo Soberano Brasileiro, a ser usado para financiar a descarbonização completa da economia brasileira ate 2050.
7) Introdução de um programa de renda mínima não-universal, em substituição ao Bolsa Família no valor de R$ 300,00 por mês, para famílias cuja renda mensal per capita seja inferior a R$ 250,00. O programa será de caráter permanente, garantido por Emenda Constitucional. O valor do benefício será reajustado anualmente com base na meta de inflação definida pelo Conselho Monetário Nacional.
8) Nova regra de reajuste do salario mínimo com base na meta de inflação definida pelo Conselho Monetário Nacional acrescentada da media móvel de 5 anos da taxa de crescimento do PIB per capita, calculada com os dados disponíveis no momento do reajuste salarial.
9) Reforma das FFAA brasileiras com substituição do recrutamento obrigatório por recrutamento voluntario, e redução dos efetivos em 30%. A medida tem por objetivo garantir a profissionalização das FFAA brasileiras, ao mesmo tempo que permite um aumento do gasto com o reaparelhamento do equipamento militar, financiando os mesmos com a redução dos gastos com salários e pensões dos membros das forças armadas. As pensões para filhas de militares deverão ficar restritas a mulheres com até 21 anos, independente de seu estado civil.
10) Fim do contingenciamento de gastos. A LOA devera definir uma banda de valores para as projeções de crescimento do PIB, inflação e taxa de juros de maneira a se obter um resultado primário anual dentro de uma banda. A meta de resultado primário nominal da LOA deverá ser compatível com a meta de resultado primário estrutural. A LOA deverá ser elaborada de forma a garantir um piso para o investimento em Ciência e Tecnologia de 1% do PIB por parte do governo federal. Esse valor será repassado para a FINEP, CNPq e IFES. Caso a meta de resultado primário definida na LOA não seja cumprida, os Ministros da Fazenda e do Planejamento deverão encaminhar ao Senado Federal, num prazo de até 90 dias após o início do ano calendário, uma carta explicando as razões do descumprimento e as medidas que serão adotadas para o cumprimento da mesma em exercícios posteriores. Caso o Senado Federal não aprove a explicação e /ou o plano de ajuste, então os ministros serão automaticamente demitidos dos seus cargos a bem do serviço público.
Fonte:
José Luís Oreiro
O Estado de S. Paulo: Emendas secretas de Bolsonaro são comparadas aos ‘Anões do Orçamento’; oposição cobra investigação
Idiana Tomazelli, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Parlamentares e especialistas em orçamento público avaliaram como “gravíssimo” e comparável a escândalos como os do mensalão e Anões do Orçamento o esquema montado pelo presidente Jair Bolsonaro para aumentar sua base de apoio no Congresso utilizando um orçamento paralelo de R$ 3 bilhões, operado de forma sigilosa até mesmo dos órgãos de controle. Parlamentares da oposição vão pedir que Ministério Público Federal e Tribunal de Contas da União investiguem o caso.
“Essa situação vai além das emendas. Nas emendas, o valor é igual para todos e o pagamento é obrigatório. Mas no ‘tratoraço’ (como o esquema passou a ser chamado por envolver compra de tratores com preços acima da tabela de referência do Executivo), o governo abriu para alguns parlamentares do seu interesse a possibilidade de indicar onde desejariam alocar recursos (além das emendas tradicionais)”, afirmou o economista Gil Castelo Branco, da ONG Contas Abertas.
“O que seria destinado por critérios técnicos passa a obedecer interesses políticos paroquiais. E sem transparência, pois apenas as pastas sabem quem indicou o que para onde. É um mensalão disfarçado de emendas parlamentares.”
A equipe econômica é crítica desse instrumento porque engessa ainda mais as despesas e nem sempre resulta em gastos eficientes, isto é, para atender às prioridades do momento. No caso dos R$ 3 bilhões, os recursos bancaram ações como compra de máquinas e tratores a preços acima da tabela de referência do governo, em um ano já marcado pela pandemia de covid-19 e pela necessidade de dar ajuda financeira aos mais vulneráveis. Por essa razão o escândalo ganhou o nome de “tratoraço”.
Para a professora Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, o “drible” para turbinar os recursos de emendas parlamentares remonta ao escândalo dos Anões do Orçamento. No início dos anos 1990, o esquema culminou na instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e resultou no afastamento de seis congressistas. Outros quatro renunciaram ao mandato antes da conclusão das investigações.
“Como estamos no reino do voluntarismo fiscal de curto prazo eleitoral, a transparência está, sim, menor. O trato orçamentário no Brasil está menos republicano”, disse Élida.
O caso ficou conhecido como “Anões do Orçamento” devido ao envolvimento de parlamentares de menor notoriedade à época. Segundo documentos históricos da Câmara, as emendas de relator do Orçamento tiveram um papel central no esquema dos anos 90. Elas eram conhecidas poucos instantes antes da votação e eram usadas para turbinar os recursos das emendas.
Sob o governo Jair Bolsonaro, as emendas de relator voltaram com nova roupagem. Um identificador específico foi criado para elas em 2019, para valer no Orçamento de 2020. Um único parlamentar direciona os recursos que, na prática, são indicados por outros congressistas aliados do governo, sem que haja uma “digital” evidente desse direcionamento.
Pelas regras atuais, o Congresso pode direcionar uma área genérica de investimento desse tipo de recurso proveniente das chamadas emendas RP9. Mas a definição dos municípios que irão receber os recursos e quais projetos serão realizados é exclusiva do Executivo. O Congresso até tentou impor o destino dessas emendas, mas Bolsonaro vetou por “contrariar o interesse público” e estimular o “personalismo”. Como revelou o Estadão, porém, ele passou a ignorar o próprio ato após seu casamento com o Centrão e permitiu que um grupo de deputados e senadores aliados impusesse onde milhões de reais deveriam ser aplicados, usurpando uma atribuição do Executivo. O veto nunca foi derrubado.
O flagrante do manejo sem controle de dinheiro público aparece num conjunto de 101 ofícios enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados, aos quais a reportagem teve acesso, para indicar como eles preferiam usar os recursos. “Minha cota”, “fui contemplado” e “recursos a mim reservados” eram termos frequentes nos ofícios dos parlamentares.
O líder da oposição na Câmara dos Deputados, Alessandro Molon (PSB-RJ), afirma que o caso revelado pelo Estadão é “gravíssimo” e fere pressupostos de publicidade e transparência do Orçamento. “Estão sendo usados critérios secretos e seguindo trâmites escusos para administrar esses recursos”, critica.
Para ele, o uso das emendas de relator é “discricionário”, diferentemente das emendas impositivas a que cada parlamentar tem direito anualmente dentro do Orçamento. “As emendas impositivas têm o mesmo valor para todos”, pontua. Enquanto cada congressista tem cerca de R$ 8 milhões dentro dessa regra, aliados multiplicam suas indicações por meio das emendas de relator, como o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP), que direcionou R$ 277 milhões por essa via.
O líder da Minoria da Câmara, deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), informou que vai entrar com representação no Tribunal de Contas da União (TCU) para que a Corte instaure auditoria e apure “todas as circunstâncias” a respeito do “orçamento secreto” criado pelo governo Bolsonaro.
Na peça, Freixo diz que não bastasse a postura do governo diante da pandemia, a população brasileira foi surpreendida com a revelação de “esquema” do governo federal “para auxiliar base de sustentação” no Congresso.
“É grave a postura adotada pelo governo federal, sem nenhum zelo com a coisa pública. Enquanto isso, tais verbas poderiam ter sido utilizadas no combate a pandemia da covid-19, sobretudo na compra de vacinas”, destaca.
A representação será feita contra o presidente Jair Bolsonaro, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o presidente da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), Marcelo Moreira.
Técnicos do Congresso avaliam de forma reservada que dificilmente o governo vai conseguir se desvencilhar da emenda de relator, que é conhecida no jargão orçamentário como RP9, uma vez que esse dispositivo já está “consagrado” entre os parlamentares como uma forma de ampliar seu controle sobre o Orçamento.
“Tantas regras superpostas e burladas infantilizam o trato das contas públicas no nosso País”, critica a professora Élida Pinto. Ela defende um ajuste fiscal amplo, que fortaleça o planejamento das contas públicas e ao mesmo tempo permita a execução do Orçamento conforme esse plano, blindando as despesas contra “tantas capturas e iniquidades”.
A líder do PSOL na Câmara, Talíria Petrone (RJ), criticou a “compra de apoio” do Centrão pelo governo Jair Bolsonaro em um momento em que o País assiste ao aumento contínuo no número de casos e mortes por covid-19. “Bolsonaro comprando apoio no Congresso, com Orçamento bilionário, enquanto passamos dos 420 mil mortos. Queria ver esse empenho todo para acelerar a vacinação e garantir lockdown com direitos”, escreveu em sua conta no Twitter.
Conteúdo Completo
- Emendas secretas de Bolsonaro são comparadas aos ‘Anões do Orçamento’; oposição cobra investigação
- Orçamento secreto bilionário de Bolsonaro banca trator superfaturado em troca de apoio no Congresso
- Compra de trator vira obsessão no Congresso
- Ministério diz que parlamentares escolheram destino de verba
- Entenda o passo a passo do esquema
- ‘Tratoraço’ atropelou leis orçamentárias e veto de Bolsonaro
Fonte:
O Estado de S. Paulo