pandemia
Vera Magalhães: Haja trator para tanto escândalo
Tratores são, como o nome indica, veículos de tração, responsáveis por movimentar cargas muito pesadas, de difícil deslocamento. Haja trator superfaturado para empurrar Jair Bolsonaro até o fim do mandato com tanto escândalo, tanto fracasso e tanta incompetência.
O escândalo do tratoraço, revelado pelo “Estadão”, que começou a puxar o fio da meada de um mecanismo novo de apropriação do Orçamento da União por pequenos grupos para dar sustentação a um governo insustentável, é a chave para ajudar a responder, juntamente com o fanatismo de um setor da sociedade, à pergunta de um milhão de dólares: por que Bolsonaro não cai?
O ministro Luiz Eduardo Ramos costuma se gabar de que, depois de sua passagem pela Secretaria de Governo da Presidência, a máxima segundo a qual não havia articulação política no Planalto foi derrubada.
Agora se sabe com que expedientes.
Uma engenhosa urdidura permitiu que o Centrão caísse no colo do presidente, e lá vai permanecer enquanto houver trator para arrancar. A base desse arranjo foi a criação de um tipo de superemenda (a RP9, domínio do relator do Orçamento), usada como uma conta-mãe de que parlamentares aliados sacam nacos para suas bases à custa de fidelidade nas votações e mediante ofícios por baixo dos panos.
Esse tipo de emenda chegou a ser vetado por Bolsonaro, aconselhado à época, em 2019, por aqueles que viam no expediente o que ele é: uma burla à fiscalização da aplicação das verbas orçamentárias pelos órgãos de controle e uma forma de injetar dinheiro público mais rápido e sem restrições nas bases de deputados e senadores leais.
O que se seguiu foi um roteiro sórdido, em que o Congresso não derrubou o veto, não aprovou um projeto, o PLN4, que o regularizaria de novo, mas passou a usar a superemenda a rodo.
O fio puxado pelo tratoraço deve revelar outros “aços” em pastas espalhadas pela Esplanada e suas estatais e autarquias, igualmente aparelhadas e desviadas de sua finalidade, como a Codevasf, a meca do tratorista Rogério Marinho.
Não foi à toa o silêncio de Paulo Guedes quando questionado por quatro horas a respeito do tema nesta terça-feira na Câmara: além de ser um esquema com todas as digitais de seu desafeto no Ministério, o tratoraço é tudo aquilo que o ministro da Economia, em sua ilusão de que ser liberal bastaria, achou que Bolsonaro enterraria na relação entre dinheiro público e política. Não só não enterrou, como aperfeiçoou.
Hoje a Codevasf virou uma estatal anabolizada, outra antítese da cantilena liberal com que Bolsonaro ludibriou o Posto Ipiranga e boa parcela do eleitorado.
O Centrão, que não se ilude com ninguém e só apoia quem lhe dá algo em troca, esperou calmamente a diatribe de “não preciso da velha política” do capitão passar e agora vive a febre do maquinário agrícola sem medo de ser feliz.
O que pode estragar a festa dos tratoreiros? Uma investigação mais a fundo do esquema, que comprove: 1) que o Orçamento secreto é uma forma de burlar a execução orçamentária; 2) desvio de finalidade de empresas públicas, como a Codevasf; 3) corrupção explícita, desvio de recursos na ponta do que é enviado via RP9 para as bases dos parlamentares; 4) favorecimento a empresas ligadas aos políticos na compra de serviços e maquinários.
Tudo isso está quicando, pronto para ser descoberto. O Tribunal de Contas da União já tem uma investigação aberta sobre irregularidades na Codevasf (quem se lembra dos Correios como piloto do mensalão, ou da Petrobras do petrolão?). Cabe à imprensa vasculhar os ofícios em todas as pastas e rastrear os recursos enviados pelo Orçamento secreto a estados e municípios. Quando esse edifício começar a ruir, os que subiram na boleia dos tratores serão os primeiros a descer, e a blindagem de Bolsonaro começará a ceder.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/haja-trator-para-tanto-escandalo.html
O Globo: Agendas indicam que governo priorizou vacina indiana sem autorização à da Pfizer com registro
Malu Gaspar, O Globo
Nenhuma outra empresa se reuniu mais com representantes do Ministério da Saúde para tentar vender ao Brasil uma vacina contra o coronavírus do que a multinacional americana Pfizer. Mas nenhuma outra obteve resultados tão eficientes quanto a Bharat Biotech, representada no Brasil pela importadora paulista Precisa Medicamentos. É o que mostram os dados da agenda do Ministério da Saúde, obtidos via LAI e por pesquisa nos registros públicos da pasta.
Enquanto a Pfizer, que obteve registro definitivo para sua vacina em fevereiro, esperou sete meses, participou de dez reuniões e teve que recorrer a muita gente no governo para conseguir fechar um contrato – incluindo o ex-secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten, que depõe hoje à CPI da Covid –, a Precisa fez apenas seis reuniões e liquidou a fatura em menos de quatro meses.
Os registros do Ministério da Saúde só estão disponíveis para os meses de setembro em diante. A agenda dos meses anteriores desapareceu depois que um hacker alegadamente invadiu o site do Ministério da Saúde.
Quando a negociação com os representantes da Bharat começou, em novembro, a Covaxin ainda era uma vacina em estágio inicial de desenvolvimento. Ainda assim, em fevereiro o ministério fechou um contrato de R$ 1,6 bilhão para o fornecimento de 20 milhões de doses da vacina indiana para o Brasil. O valor já foi empenhado, ou seja, reservado pela pasta, mas só poderá ser repassado de fato aos fornecedores após a eventual aprovação emergencial ou o registro definitivo do imunizante pela Anvisa.
O contrato com a Pfizer foi fechado em março. A primeira remessa de doses da vacina, com um milhão de unidades, chegou ao país no último dia 29. O ministério assinou ontem o segundo contrato, para o fornecimento de mais 100 milhões de doses. Neste segundo lote, no entanto, as entregas devem ocorrer apenas a partir de outubro.
Já a fórmula indiana até hoje não chegou ao Brasil. O desembarque dos primeiros lotes estava previsto para março. Pouco antes do vencimento do prazo de entrega, a diretora técnica da Precisa Medicamentos, Emanuela Medrades, disse em audiência o Senado Federal que o governo da Índia priorizaria o Brasil na entrega de doses. Posteriormente, o prazo foi revisto para abril, e a promessa novamente não foi cumprida.
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No fim de março, a Anvisa negou a certificação de boas práticas de fabricação ao seu desenvolvedor, o laboratório Bharat Biotech, por conta de riscos sanitários e ausência de controle de qualidade após visitar suas instalações.
A certificação da fábrica é uma das etapas necessárias para a Anvisa conceder a autorização de uso emergencial, mas não é a única. É preciso também demonstrar a eficácia e a segurança da vacina por meio de dados de estudos clínicos.
O Ministério da Saúde pediu à Anvisa a autorização do uso emergencial da Covaxin um mês após adquirir as doses do imunizante, mas a agência anunciou que os dados estavam incompletos e, até agora, não há previsão para uma conclusão definitiva. Em depoimento à CPI da Covid na última terça-feira, o diretor-presidente da agência, Antonio Barra Torres, disse que a reguladora não recebeu informações suficientes para liberar o uso da fórmula.
Além da indefinição na situação da vacina, outro fator pesa contra a Precisa. O dono da empresa, Francisco Maximiano, é o mesmo da Global Gestão em Saúde, alvo de uma investigação do Ministério Público Federal em Brasília por suspeita de improbidade administrativa na gestão do ex-ministro da Saúde Ricardo Barros (PP-PR), hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara. A apuração do MP busca verificar por que a empresa recebeu R$ 19,9 milhões de reais para fornecer medicamentos de alto custo para doenças raras que nunca chegaram ao SUS.
Segundo os registros compilados pela coluna, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não participou de nenhuma reunião nem com o representante da Pfizer e nem com os da Precisa. Nos dois casos, a discussão dos contratos de vacinas ficava sempre a cargo do então secretário-executivo Élcio Franco e do secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros.
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O que fica claro pelas agendas e pela ata de uma das reuniões da Precisa com o ministério da Saúde é que, enquanto a Pfizer recebia negativas e questionamentos da gestão de Eduardo Pazuello, o governo federal abriu as portas para a Bharat.
No contrato assinado em 25 de fevereiro, o Ministério da Saúde se compromete a pagar R$ 80 por dose da Covaxin – R$ 24 a mais do que o preço da dose oferecido pela Pfizer na cotação do dólar à época da assinatura.
A conflituosa negociação entre o Ministério da Saúde e o laboratório americano, que se arrastou por meses e adiou o início da vacinação contra a Covid-19 no Brasil, é o principal tema do depoimento que o ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten dará à CPI da Covid nesta quarta-feira.
O imunizante da Pfizer já havia completado a última fase de testes quando o governo federal iniciou as tratativas com a Bharat, em novembro. Naquele momento, ofícios enviados pela multinacional americana prometiam 70 milhões de doses, com a pronta entrega das primeiras unidades em dezembro de 2020.
Segundo arquivos do governo, o primeiro contato com a Bharat ocorreu em novembro do ano passado. A empresa indiana foi representada por dois integrantes da Precisa Medicamentos, Emanuela Medrades e Túlio Silveira, em um encontro com o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, e o diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, Lauricio Monteiro, entre outro quadros do Ministério da Saúde. Segundo a ata da reunião, Medeiros manifestou o interesse do governo na Covaxin e solicitou “maiores detalhes sobre a capacidade produtiva, bem como qual é a estrutura logística, preço da dose”, além de outros dados técnicos.
Àquela altura, a Covaxin sequer havia chegado à fase 3 dos ensaios clínicos, quando a eficácia do imunizante é testada em grandes grupos de voluntários.
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No início de dezembro, a Pfizer divulgou na prestigiada revista New England Journal of Medicine que sua vacina era 95% eficaz contra a Covid-19, um patamar de proteção que surpreendeu a comunidade científica. Mas isso não foi suficiente para deslanchar as propostas oferecidas pelo laboratório ao Brasil.
No início do mês, pressionado pelo anúncio do governo paulista de que o Butantan aplicaria as primeiras doses da CoronaVac em janeiro, Pazuello anunciou que estava prestes a assinar o contrato com a Pfizer. E prometeu começar a campanha de vacinação também em janeiro caso a empresa fornecesse doses já naquele mês – à época, a pasta previa o início da imunização em março.
Apesar da promessa, as conversas com a Pfizer não avançaram. Mas com a Bharat as tratativas foram rápidas. Depois de uma primeira reunião com a equipe de Pazuello, em novembro de 2020, o processo deslanchou em janeiro de 2021, e aí tudo se resolveu em 40 dias. O contrato final foi fechado em 25 de fevereiro.
Além da insuficiência de dados clínicos, a aquisição da Covaxin chamou ainda mais atenção porque o imunizante da Pfizer havia recebido o registro definitivo da Anvisa poucos dias antes. Foi a primeira vacina contra a Covid a receber o registro, que sinaliza que a eficácia e segurança de um fármaco são irrefutáveis.
O Ministério da Saúde só adquiriu as primeiras doses da vacina americana em março deste ano, sete meses após a primeira oferta, e por um preço consideravelmente menor, US$ 10 por dose (R$ 56 na cotação da época), do que a Covaxin (vendida a US$ 15, ou R$ 80 na celebração do contrato).
No período da ascensão meteórica da Covaxin dentro do ministério, outras negociações que já estavam em curso antes do diálogo com a Precisa Medicamentos foram desconsideradas: a da Janssen (adquirida junto com a Pfizer) e a da Sputnik V, comprada no mesmo mês. A Moderna tem tratativas encaminhadas com a pasta, mas a assinatura do contrato ainda não ocorreu.
A compra da Covaxin só foi possível porque a própria Anvisa revisou suas regras no início de fevereiro e passou a avaliar pedidos de uso emergencial de imunizantes sem ensaios clínicos conduzidos no país. Mas, mesmo com essa flexibilização da regra, a vacina indiana representava uma opção mais arriscada. Primeiro porque o processo certamente seria mais demorado do que o da Pfizer, que já tinha registro definitivo na Anvisa. E depois porque o Brasil vivia um contexto de escassez de imunizantes, quando já se anunciava a segunda onda da Covid.
A Índia, que enfrenta uma segunda onda violenta e a emergência de uma nova variante do coronavírus, tem represado doses e insumos de vacinas para priorizar a imunização da própria população. Além disso, a Bharat Biotech, que fechou contratos com diversos estados indianos, enfrenta dificuldades para manter o ritmo de produção.
Procurado para justificar a opção pela Covaxin e o atraso na entrega dos lotes adquiridos pelo Brasil, o Ministério da Saúde informou que “avançou nas tratativas da contratação do imunizante para garantir mais doses” , mas não respondeu por que a vacina foi priorizada ainda na fase de estudos quando já havia um imunizante com registro definitivo. A respeito dos prazos, a pasta reforçou que o pagamento só será feito mediante autorização da Anvisa. Nesse cenário, ainda segundo o ministério, um novo cronograma de entregas será elaborato pela Bharat.
A Precisa Medicamentos informou que trabalha para cumprir integralmente “requisitos adicionais” da Anvisa, sem especificar o prazo em que a Bharat pretende se adequar aos critérios brasileiros
A representante da Bharat também foi indagada sobre os dados de fase 3 da Covaxin, que ainda não foram publicados, mas não respondeu. A coluna também questionou ao Ministério das Relações Exteriores se há tratativas com o governo indiano, mas ainda não recebeu retorno.
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Fonte:
O Globo
Vinicius Torres Freire: A epidemia vai morrer de morte morrida, não matada por ação de governo
Estamos cansados de distanciamento, de medo de perder o emprego ou o negócio, de mortes. Há sempre um escândalo ou ultraje novo que abafa o horror ou a mutreta da semana passada. O conjunto da ruína soterra no esquecimento outros desastres. Quem ainda se comove com o desmatamento crescente, “recorde”, da Amazônia? Assim é também com as mortes de Covid e a vacinação lenta.
A epidemia está em um nível de morticínio que, até a metade de março, era o recorde e causava escândalo, provocava panelaço e incentivou a instalação da CPI. São ainda mais de 2.000 mortes notificadas por dia no Brasil. A estatística funérea caiu bastante desde o pico do horror (meados de abril), uns 33%. Mas, no ritmo em que vamos, ainda em meados de junho teremos mil mortes por dia, como em janeiro, que por sua vez contava o dobro do número de mortes de novembro, no entanto.
E daí?
Não sabemos se o número de mortes vai continuar caindo nesse ritmo já lento. Faz cerca de duas semanas, o número de novas internações por Covid em UTIs no Estado de São Paulo está praticamente estável (em torno de 2.235 por dia, muito acima da média de 1.500 por ainda de fevereiro).
Pode ser que a “fila esteja andando”. No último auge da epidemia, muitos doentes não conseguiam leitos de terapia intensiva, agora mais disponíveis. Ou seja, o número de internados e, pois, de doentes muito graves era subestimado e agora pode estar superestimado. Mas não sabemos.
Ainda estamos na pior fase da epidemia, que começou em meados de março. Ajuda ou deveria ajudar a nos lembrar que não foi adotada nenhuma das grandes providências para conter o morticínio. O tal “comitê nacional” de Jair Bolsonaro e seus cúmplices no Congresso, sobre o que houve tanta fanfarra, era uma farsa. Não houve aceleração na oferta de vacinas —é bem provável que neste maio tenhamos mais doses do que em abril, mas junho é uma incógnita tétrica.
Boa parte da economia (negócios de alimentação, entretenimento, turismo) não voltará a funcionar em parte ou totalmente (espetáculos, feiras de negócios) enquanto não se controlar a epidemia, está todo mundo também cansado de saber. Adianta fazer o alerta? Cada vez menos. A inação fundamental continua.
A CPI é necessária para responsabilizar política e criminalmente o governo Bolsonaro, mas não tem como resolver o problema prático. A ação depende de planos nacionais de pesquisa, rastreamento, testagem, de contenção de circulação de pessoas e até de barreira contra a entrada de novas variantes. Ninguém aguenta mais ouvir falar disso, mas nada disso foi feito nacionalmente.
A epidemia vai definhar por si mesma, com ajuda de vacinas, se não aparecer variante assassina nova. Embora não se saiba precisamente quanto, os infectados ficam imunes; a metade adulta do país deve estar vacinada até fins de julho —o vírus vai matar menos por esgotamento, pois. Até lá devem morrer mais 125 mil pessoas, por baixo. Lembram de quando o país chegou com horror a 100 mil mortes, em agosto de 2020?
Não se sabe se vai ter consequência o escândalo do orçamento “Bolsolão”, revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Em breve, talvez nesta semana mesmo, teremos o escândalo do desmonte da lei de licenciamento ambiental, que está para ser votada por estes dias. Daqui a mais um pouco, pode passar a lei da grilagem, presente para os amigos de Bolsonaro. Ah, já estamos esquecendo da matança do Jacarezinho, “tudo bandido”, né? Quando voltarmos a mil mortes de Covid por dia talvez se faça uma festa pela “volta à normalidade”.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/a-epidemia-vai-morrer-de-morte-morrida-nao-matada-por-acao-de-governo.shtml
Ruy Castro: Pequeno manual para a CPI
Uma sessão de CPI, em que parlamentares interrogam judicialmente um depoente, se parece com uma coletiva de imprensa, em que jornalistas fazem perguntas a uma pessoa. Em ambas, o objetivo é extrair informações. O entrevistado pode omitir ou mentir para os repórteres, porque sabe que nada lhe acontecerá. Já o inquirido pela CPI está sob juramento. É obrigado a responder a tudo e só dizer a verdade, ou sair dali preso. Mas, na prática, contando com a própria esperteza ou com o despreparo dos inquisidores, ele também omite ou mente à vontade e volta para casa assobiando.
Tanto o entrevistado como o inquirido percebem logo o que o espera. Repórteres e inquisidores vaidosos, adeptos de perguntas longas, em que uma questão vai saindo de dentro da outra —e, no fundo, respondendo-se mutuamente—, não oferecem perigo. Dão tempo para que o sujeito mastigue com calma o assunto e prepare uma resposta neutra. O que ele teme são perguntas curtas, diretas, objetivas, que não lhe deixem brecha para escapar. Ou responde e assume o risco ou mente e tenta fugir, mas isso será tão ostensivo que permitirá a quem pergunta um repique tão agudo quanto.
Nem todos os repórteres e parlamentares se dão conta de que o importante não é a pergunta, e sim a resposta. Mas, para isso, a pergunta, além de à queima-roupa, exige trabalho de casa. Perguntas sobre “o que o senhor acha” ou “sabe” sobre isso ou aquilo dão margem a vaguezas ou surtos de amnésia. A pergunta certa ainda é aquela que os antigos jornalistas aprendiam: a que começa com quem, quando, onde, como, por que e com quem —e termina por um mortífero ponto de interrogação.
Antes de perguntar, deve-se também prever uma possível resposta e preparar o repique. Nenhuma pergunta pode ficar sem resposta.
Se for para ficar, é melhor sair dali, entregar a chave ao porteiro e continuar o papo no botequim.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/05/pequeno-manual-para-a-cpi.shtml
Bruno Boghossian: Chefe da Anvisa escancara na CPI conduta destrutiva de Bolsonaro
Antônio Barra Torres se diz amigo de Jair Bolsonaro. Nos primeiros meses da pandemia, o presidente da Anvisa frequentava o Palácio da Alvorada e aconselhava um presidente que já fazia questão de minimizar os riscos daquela crise. Agora, com o país mergulhado na tragédia, ele reconheceu que o governo levou o país pelo caminho errado.
O depoimento de Barra Torres à CPI da Covid escancara a conduta destrutiva de Bolsonaro. A comissão já esperava colher depoimentos incômodos para o presidente entre seus desafetos, como o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas nem mesmo um amigo foi capaz de acobertar o estrago feito até aqui.
Indicado por Bolsonaro para o comando da Anvisa, o contra-almirante disse que as declarações feitas pelo presidente sobre a vacinação vão “contra tudo” o que a agência defende. “Discordar de vacina, falar contra vacina não guarda uma razoabilidade histórica”, afirmou. “Eu penso que a população não deva se orientar por condutas dessa maneira.”
Barra Torres tem mandato na Anvisa até 2024. A estabilidade no cargo deve ter garantido tranquilidade para que ele entregasse os delitos do presidente. No depoimento, o contra-almirante disse, sem meias palavras, que a cloroquina não funciona contra a Covid-19 e confirmou que o Palácio do Planalto sediou uma reunião para tentar adequar a bula do remédio aos delírios de Bolsonaro.
Embora tenha participado de uma manifestação ao lado do presidente quando o coronavírus já circulava no país, Barra Torres criticou o incentivo a aglomerações. “[Apesar] da amizade que tenho, a conduta do presidente difere da minha nesse sentido”, declarou. “Não tem nenhum sentido do ponto de vista sanitário.”
O depoimento do amigo de Bolsonaro mostrou que o governo vai ter dificuldades para controlar os estragos que podem ser produzidos pela CPI. O futuro do presidente depende cada vez mais de puxa-sacos como Eduardo Pazuello e de uma tropa de choque bem alimentada formada por políticos do centrão.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/05/chefe-da-anvisa-escancara-na-cpi-conduta-destrutiva-de-bolsonaro.shtml
Janio de Freitas: Fuga do general Eduardo Pazuello é covardia
Se a balbúrdia na CPI da Covid continuar como nas primeiras sessões de interrogatórios e proposições, pode-se esperar que traga contribuição importante, apesar de não se pressentir qual seja. O tumulto dá a medida da fragilidade e do medo bolsonaristas diante da cobrança por sua associação à voracidade letal da pandemia.
Mas a clarinada do “não me toques”, protetora de militares acusados ou suspeitos de qualquer impropriedade, não resolverá o caso Pazuello. Militares valendo-se do Exército para fugir da responsabilidade por seus atos, convenhamos, até parece parte da concepção de ética militar. Os generais que mantiveram a ditadura de Getúlio, os do golpe de 64, do golpe de 68, os oficiais da tortura e dos assassinatos, os do Riocentro, esses e muitos outros construíram a praxe.
Nisso há distinção. Os escapismos que recaem na reputação do Exército cabem, antes de tudo, à corporação, à oficialidade, não à instituição. É a deseducação cívica em atos. A fuga de Eduardo Pazuello vai além: não vem da arrogância infundada, ou de uso do Exército para se imaginar acobertado por conveniência da instituição. É covardia, a mesma covardia que o impediu de repelir ordens contrárias ao bom senso, ao dever do cargo e à vida de milhares.
O novo comandante do Exército, Paulo Sérgio de Oliveira, mostrou-se preocupado com reflexos, sobre o Exército, do que haja no depoimento de Pazuello à CPI. Esse problema é de Pazuello e de Bolsonaro. Não é assunto militar, logo, o Exército não tem de se envolver. Se o fizer, aí sim, merecerá arcar com todos os reflexos dos crimes contra a humanidade presentes em grande parte do morticínio de mais de 400 mil brasileiros.
A ROTINA
O massacre do Carandiru pela polícia de São Paulo, o maior da história com o extermínio de 111 presos encurralados, motivou incontáveis protestos sob formas variadas. Com efeito que não foi além dos próprios assassinatos. Na Amazônia, massacres policiais ocorrem em sequência só igualada pela inconsequência punitiva. No Rio, os 28 mortos da favela do Jacarezinho compõem o maior massacre policial na cidade e motivam protestos incontáveis. Três exemplos da rotina sinistra que todo o Brasil mantém, com diferenças apenas aritméticas.
Nem a rotina, nem os protestos, nem a insegurança —nada interfere na correnteza desumana. A mais recente solução prometida para o Rio foi protagonizado pelo hoje ministro da Defesa, general Braga Netto. Chefe da intervenção federal na Segurança do estado, feita por Michel Temer, chegou proclamando a “limpeza da polícia” como prioridade e eixo da solução. Com um bilhão para tal. De notável, comprou enorme frota de carros, armas e equipamentos de comunicação. No mais, a tal limpeza talvez tenha ficado nos muros de quartéis, onde vigora a obsessão por pintura de paredes e postes. Os métodos ficaram intocados.
O armamento dado como apreendido no Jacarezinho é espantoso. Pela quantidade e, ainda mais, pela qualidade: todo moderno e novo, incluindo duas submetralhadoras. É sempre arriscado aceitar essas apreensões como verdadeiras, mas não há dúvida de que armas continuam entrando a granel no Brasil. Por ora, para uso bandido. E ainda imaginam que o perigo de conflito está na Amazônia, com estrangeiros.
Todo o problema policial foi construído na ditadura, com as PMs postas sob comando de militares do Exército e métodos norte-americanos. E com os seus esquadrões da morte, “homens de ouro” e impunidade. Todo plano de solução é ineficaz se não busca eliminar esse legado.
RIQUEZA FÁCIL
A juíza Mara Elisa Andrade determinou a devolução da madeira ilegal, objeto da maior apreensão já feita, que causou o incidente entre o delegado Alexandre Saraiva e, defensores dos madeireiros, o ministro Ricardo Salles e o senador Telmário Mota. A juíza considerou faltarem, no inquérito, as datas de corte das árvores, o período em que a estrada clandestina foi aberta e se o uso dela é exclusivo.
É assim, com esses desvios, que nunca prendem nem prenderão os grandes e enriquecidos desmatadores-contrabandistas. E Mara Elisa é juíza, não por acaso, na 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária do Amazonas.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Nota da FAP manifesta apoio à senadora Eliziane Gama na CPI da Covid-19
Parlamentar é conhecida por sua participação atuante na comissão e de enfrentamento a direito de fala das mulheres
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
Após assumir o protagonismo nas principais discussões da CPI da Covid-19 e defender o direito de fala para se expressar como mulher na comissão, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) recebeu, nesta terça-feira (11/5), manifestação de apoio em nota púbica do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao partido. Ela diz que “o governo pode ter grande parcela de culpa” com relação às mais de 420 mil mortes na pandemia no país.
Formalmente, a parlamentar não integra a CPI, mas esteve presente em debates quentes no início dos trabalhos da comissão. Nesta terça, na sexta reunião da comissão, o presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barra Torres, confirmou à CPI que houve uma reunião no Palácio do Planalto, em 2020, para discutir a mudança na bula da cloroquina.
Eliziane é cada vez mais conhecida pela sua postura crítica relacionada ao governo de Jair Bolsonaro (sem partido) e defesa intransigente da democracia. Na avaliação da senadora, os depoimentos colhidos pela CPI até o momento mostram que Bolsonaro colocou “as questões ideológicas e políticas acima das científicas e técnicas” no enfrentamento à pandemia, o que, segunda ela, é o mais grave. “Isso significa vidas perdidas”, disse a parlamentar.
A nota da FAP lembra que, no dia 5 de maio, durante uma reunião da CPI, “algumas senadoras fizeram história”. “Eliziane Gama enfrentou a velha e reacionária oligarquia dos partidos políticos. lutou por um princípio básico na democracia: o direito da fala, o direito de se expressar como mulher e senadora. Não deixou se intimidar, não deixou se sobrepor por gritos e discursos agressivos”, diz o texto.
Reação contra machismo
Naquele dia, Eliziane rebateu o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que interrompeu a fala dela para criticar a participação da bancada feminina na comissão, apesar de nenhuma parlamentar ter sido indicada pelos seus partidos. “Só não entendo o porquê de tanto medo das vozes femininas”, disse ela.
Eliziane também ganhou ainda mais destaque depois de reagir à declaração do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) classificada por ela como “machista”. O filho do presidente disse que “as mulheres já foram mais respeitadas e mais indignadas. Estão fora da CPI, não fazem questão de estar nela e se conformam em acompanhar o trabalho a distância”.
Logo em seguida, a parlamentar reagiu. “Além de participar das demais ações, vamos participar também dessa CPI. Quero dizer que eu, Eliziane Gama, e essas senadoras não vamos admitir ironia machista em relação às mulheres. Estamos aqui, vamos participar ativamente e teremos nosso protagonismo”, afirmou a senadora.
De acordo com a nota, a postura da senadora “é motivo de orgulho para as mulheres e homens da Nação”. “Enquanto houver lideranças como Eliziane poderemos sonhar e lutar pela democracia”, destaca um trecho.
A seguir, confira a manifestação de representantes da FAP, na íntegra.
Na manhã de 5 de maio, durante a CPI sobre a Covid 19, no Senado da República, algumas Senadoras fizeram história.
A Senadora Eliziane Gama, do Partido Cidadania, do Estado do Maranhão, enfrentou a velha e reacionária oligarquia dos partidos políticos.
Eliziane Gama lutou por um princípio básico na democracia: o direito da fala, o direito de se expressar como mulher e Senadora.
Não deixou se intimidar, não deixou se sobrepor por gritos e discursos agressivos.
A postura assumida hoje por uma mulher brasileira como a Senadora Eliziane Gama é motivo de orgulho para as mulheres e homens da Nação.
Enquanto houver lideranças como Eliziane poderemos sonhar e lutar pela democracia.
O Conselho de Curadores da FAP presta uma homenagem e júbilo à atuação corajosa da Senadora Eliziane Gama, por sua liderança e digna atitude na defesa da democracia.
CAETANO ERNESTO PEREIRA DE ARAÚJO
Diretor Geral
Fundação Astrojildo Pereira
LUCIANO SANTOS REZENDE
Presidente do Conselho Curador
Fundação Astrojildo Pereira
Fonte:
Rosângela Bittar: ‘Tratoraço’ é um clássico da corrupção com recursos do Orçamento
Verbas secretas, superfaturamento, direcionamento de valores acima da referência para aquisição de determinados itens do cancioneiro parlamentar, como tratores e retroescavadeiras. Esta equação, apontada em ampla e minuciosa reportagem de Breno Pires, do Estadão, na edição deste domingo, é um clássico da corrupção com recursos do Orçamento Federal. Detalhada em valores, responsáveis e beneficiários, a matéria desfaz um sofisma insistentemente repetido pelos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
Impressiona a forma veemente como os fanáticos do presidente enfatizam, ao aceitar piedosamente críticas aos erros e omissões da sua administração, o fato de não haver, no governo Bolsonaro, denúncias ou escândalos de corrupção. Para muitos indícios puderam fechar os olhos, não para este.
Aí está um, gritante, apontado de maneira cristalina. Exemplar daquela modalidade que envolve parlamentares governistas da base aliada, o Ministério de Desenvolvimento Regional e sua audiência municipal, além do coordenador deste tipo de esquema, o ministro da articulação política com gabinete no Palácio do Planalto.
Uma vez foram caminhões; outra, ambulâncias; desta modalidade, das mais antigas, que virou anedota, o fura-poço; agora, tratores e retroescavadeiras. Inovou-se, porém, em um quesito: para burlar tudo – cotas, tipos de emendas, sazonalidade, destinações, teto e todos os demais limites do orçamento de 2021, uma peça ainda sob choque e vetos presidenciais – a dinheirama em questão recebeu a tarja de verba secreta. Um expediente recorrente.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Ricardo Noblat: Escândalo do orçamento secreto atinge em cheio governo Bolsonaro
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é pouca coisa para investigar o governo do presidente Jair Bolsonaro, que se apresenta como inatacável e sujeito apenas a erros comuns.
Outra CPI, em breve, será proposta para investigar um orçamento secreto de R$ 3 bilhões, boa parte dele destinado à compra de tratores e equipamentos agrícolas a preços superfaturados.
É nitroglicerina pura o que descobriu o jornal O Estado de S. Paulo. A origem do orçamento secreto está no discurso de Bolsonaro de não lotear cargos no primeiro escalão do governo.
De um jeito ou de outro, a moeda de troca se deu por meio da transferência do controle de bilhões de reais do orçamento ao Congresso, tudo longe do olhar dos eleitores, segundo o jornal.
O Estadão teve acesso a 101 ofícios enviados por deputados federais e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional para indicar como eles preferiam usar esses recursos.
Por “contrariar o interesse público”, Bolsonaro havia vetado a tentativa do Congresso de impor o destino de um novo tipo de emenda ao orçamento chamada RP9.
Tão logo se viu em apuros, porém, com medo da abertura de um processo de impeachment contra ele, Bolsonaro ignorou o próprio veto para atrair o apoio dos partidos do Centrão.
O que ele permitiu atropelou as leis orçamentárias, pois são os ministros de Estado que deveriam definir em que obras aplicar os recursos destinados ao pagamento de emendas parlamentares.
Os acordos para direcionar o dinheiro não são públicos, e a distribuição dos valores não é equânime entre os congressistas, atendendo a critérios eleitorais. Só ganha quem apoia o governo.
Davi Alcolumbre (DEM-AP), por exemplo, ex-presidente do Senado, determinou a aplicação de R$ 277 milhões de verbas públicas só do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Ele precisaria de 34 anos no Senado para conseguir indicar esse montante por meio da tradicional emenda parlamentar individual, que garante ao congressista direcionar R$ 8 milhões ao ano.
Um caso exemplar é o do deputado Lúcio Mosquini (MDB-RO). O governo aceitou pagar R$ 359 mil num trator que, pelas regras normais, somente custaria R$ 100 mil aos cofres públicos.
“Recursos a mim reservados” foi a expressão usada em ofício pela deputada Flávia Arruda (PL-DF) para dirigir-se à Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf).
Atual ministra da Secretaria do Governo, Flávia definiu o destino de R$ 5 milhões do orçamento secreto. “Não me lembro. Codevasf?”, ela perguntou ao jornal. E depois justificou:
– É tanta coisa que a gente faz que não sei exatamente do que se trata.
O escândalo da hora privilegiou a compra de tratores. No passado, escândalos do mesmo gênero contemplaram a distribuição pelo governo federal de caminhões e ambulâncias a prefeituras.
À sua época de deputado federal, Bolsonaro manifestou indignação com tantos escândalos desse tipo. Agora, ele protagoniza um depois de proclamar que seu governo é imune à corrupção.
Fonte:
Metrópoles
Fernando Gabeira: Morrendo pela boca
Pode ser que eu esteja maluco. Morreu há muitos anos o amigo Chico Nélson, que me socorria nesses momentos de dúvida e dizia: “Tranquilo, você está lúcido”.
Nada me impressiona mais na sequência de bobagens diárias de Bolsonaro do que esta pergunta: “Será que não estamos enfrentando uma nova guerra?”.
O presidente da República é, pela Constituição, o comandante das Forças Armadas. Se ele se volta para nós e pergunta se estamos enfrentando uma guerra, deixa-nos tão inseguros quanto os passageiros de um avião questionados por um piloto ao aterrissar: “Será que estamos com o trem de pouso acionado?”.
O contexto da pergunta é claro: o presidente duvida da origem do coronavírus. Essa é uma dúvida que circulou no ano passado, com inúmeras reportagens investigativas sobre o laboratório de Wuhan de onde o vírus poderia ter escapado.
Nenhuma delas foi convincente. A Austrália duvidou do papel da China e pediu oficialmente uma investigação. Você pode ou não concordar com a medida, mas é muito mais sério do que ficar reclamando pelos cantos, como faz a família Bolsonaro.
A OMS constatou em Wuhan que a hipótese de o vírus ter escapado do laboratório é improvável, fortalecendo a ideia de uma transmissão por animais.
A China é um país com grande crescimento material e uma visão estratégica de longo alcance. É um absurdo imaginar que disseminaria um vírus em sua própria população, correndo um risco gigantesco, apenas para atingir os outros.
Essa é uma tese de gente que acha que o Partido Democrata americano é composto de pedófilos que se reúnem no porão de uma pizzaria.
Apesar de admirar a riqueza e a cultura tradicional da China, não creio que possa ser qualificado de um maldito comunista. Pelo contrário. Quando deputado, participei de uma coalizão internacional pelo Tibete livre. Convidei o Dalai Lama para falar no Congresso brasileiro, briguei com o Itamaraty quando, sob pressão da China, hesitou em conceder o visto de entrada ao líder religioso.
É possível e necessário discordar da política de grandes potências, EUA ou China, desde que se parta de convicção profunda, assumindo as consequências dessa discordância.
É inadmissível um presidente da República difundir fake news e teorias da conspiração contra a China, sem nem assumir que está falando do país.
É possível que a Austrália sofra alguma retaliação comercial por se opor à China abertamente. No caso brasileiro, o elemento covardia talvez seja uma agravante porque Bolsonaro fala de um vírus, fala de um país que cresceu após a pandemia, mas não assume que se referia à China.
No momento em que está acossado pela CPI, essas referências ao coronavírus como se fosse um ato de guerra dos chineses mostram como Bolsonaro realiza profundamente aquilo que denuncia em seus opositores: a politização da pandemia.
É um movimento patético, porque Bolsonaro é acusado de um negacionismo que contribuiu com a morte de muita gente. Nesse caso, rigorosamente não importa se o vírus foi ou não difundido pelos chineses nessa fantástica guerra; o que importa é se ele mata ou não.
A ideia de ignorar o vírus e tocar a economia como se nada estivesse acontecendo é uma leitura bárbara da teoria de imunidade de rebanho. É um tipo de estratégia a ser realizada pela vacinação e por outras medidas de segurança, jamais pela exposição à morte de milhares de pessoas.
A política internacional tornou-se mais complexa com a ascensão da China e o relativo declínio dos Estados Unidos. Nossa vida cotidiana foi atropelada pela pandemia.
Nunca foi necessária tanta habilidade de um estadista para posicionar o Brasil no mundo e, simultaneamente, conduzir uma política interna de proteção da vida.
Bolsonaro jamais se interessou pela política internacional, jamais se interessou por salvar vidas, mas apenas por tocar a economia e salvar seu mandato.
Homem errado no lugar errado é a grande causa de nosso sofrimento.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/morrendo-pela-boca.html
Vinicius Torres Freire: Mortos de fome, de Covid, a bala, muitos pobres não largam Bolsonaro
Pouco antes do segundo turno de 2018, o Datafolha perguntou qual era o candidato a presidente que mais defendia os ricos. Deu Jair Bolsonaro com 55% e Fernando Haddad (PT) com 22%.
Quem mais defendia os pobres? Haddad, 54%, Bolsonaro, 31%. Os mais pobres, com renda familiar de menos de dois salários mínimos, eram algo mais estritos na definição de classe: Bolsonaro defendia os mais ricos para 59%, Haddad defendia os mais pobres para 60%.
“Tudo bandido”, disse Hamilton Mourão sobre os mortos do bairro pobríssimo e apartado do Jacarezinho (“apartado” também no sentido de “apartheid”).
No que interessa aqui, tanto faz qual era a situação jurídica das vítimas do massacre: tanto fazia para Mourão. No universo mental bolsonariano atira-se primeiro, esquece-se depois. Os pobres e apartados em geral são “tudo bandido”, filho de porteiro que tira zero, empregada que viaja para fora, filho desajustado de mãe solteira, quilombola gordo imprestável etc. Tudo isso é mui sabido, inclusive o autoritarismo da turma: naquele Datafolha, Bolsonaro era o mais autoritário para 75%.
Nem o insulto bolsonarista nem a injúria da vida dura bastam para fazer com que os pobres larguem de vez Bolsonaro. É ingenuidade citar estatísticas socioeconômicas para explicar bolsonarices, mas convém lembrar delas.
Foram os pobres que mais perderam emprego e renda na epidemia, bidu, os que mais ficaram sem escola ou mesmo merenda. Segundo os estudos disponíveis (com dados do ano passado), são os que mais adoecem e morrem de Covid-19.
Nos últimos 12 meses, a inflação média para pessoas de renda muito baixa foi de 7,2%; para as de renda alta, 4,7% (dados da Carta de Conjuntura do Ipea). Desde que Bolsonaro assumiu, a inflação média (IPCA) acumulada foi de 11,2% —o salário médio subiu menos do que isso, o dos mais pobres, informais, menos ainda, isso quando têm renda de trabalho. A inflação média da comida foi de 28,9%.
Apenas entre os mais pobres Haddad deve ter vencido a eleição, segundo o Datafolha da véspera da votação de 2018. No Datafolha mais recente, de março, 30% do eleitorado dá “ótimo/bom” a Bolsonaro, com diferenças estatisticamente irrelevantes entre as classes de renda. Mas a taxa de decepção com Bolsonaro é muito maior entre os mais ricos (medida pela diferença entre a parcela dos que dão nota “ótimo/bom” agora e a votação em 2018).
Os pobres das grandes cidades vivem sob ocupação de milícias e facções, que são também polícia do Estado de terror. A milícia é um modo alternativo de ascensão social, por assim dizer, de ex-militares de baixa patente e agregados, a mobilidade de parte do precariado. Já tem vínculos firmes com a política municipal de regiões metropolitanas, avança nas Assembleias e pôs um pé no Congresso e no poder federal, vide os Bolsonaro.
A ocupação dos bairros pobres assim se institucionaliza, também no sentido de ter apoio estatal permanente. Em um movimento de pinça, os Bolsonaro apoiam tanto matanças policiais como milícias nos bairros pobres. Apresentadores de TV sanguinários fazem a propaganda do bolsonarismo político e militar-miliciano.
É fácil perceber que diagnósticos socioeconômicos não ajudam a explicar a persistência do bolsonarismo popular, como não explicavam parte da política, digamos, normal. Mas cabe a pergunta, que não é acadêmica: por que não explicam?
É assunto para outro dia, mas bolsonarismo tem a ver com machice, ressentimentos e medos reativos vários, religião e autoritarismo “raiz”. Mas também é revolta contra o “sistema” que larga os pobres à própria sorte, revolta que pode ter essa ou aquela conformação, autoritária ou outra, a depender da conjuntura e da política, de esquerda em particular.
Quem é que vai “lá” falar com os pobres?
Fonte:
Folha de S. Paulo
Cristovam Buarque: Bolsonaro dá sinais de epidemia mental
O deputado Fausto Pinato, do bloco de apoio ao Presidente, escreveu publicamente que Bolsonaro sofre de grave doença mental. Segundo ele, não há outra explicação para suas posições em relação à China.
De fato, são gestos de insanidade, o presidente do Brasil, sem qualquer razão, ofender e provocar a potência chinesa, que marcha para ter a maior economia do mundo, com a maior população e alguns dos mais avançados setores em tecnologia. Só isto bastaria para indicar sinais de insanidade.
Mais grave é que a China é o maior parceiro comercial do Brasil e o principal fornecedor de vacinas contra a covid. Basta o governo chinês se impacientar, para a economia brasileira sofrer um revés de tamanho catastrófico, e nossa situação sanitária sofrer consequências ainda mais graves. Se a China deixar de comprar nossa proteína vegetal e animal, a perda econômica não será apenas por alguns anos, poderá ser por décadas ou definitiva.
No lugar de nos preparar para o momento em que isto poderá ocorrer em algum momento no futuro, quando a China encontrar outras fontes de proteínas mais próximas, o Presidente parece querer antecipar nossa debacle, simplesmente por preconceito pessoal contra a China. Isto já é sinal do que o Deputado Pinato chama de insanidade.
Mais urgente ainda é provocar o corte do fornecimento de vacina contra o covid. A única solução para barrar o número de mortos é a vacinação em massa e nosso único caminho nos próximos meses é a vacina chinesa. Além de que dezenas de milhões já tomaram a primeira dose e precisam da segunda vinda da China.
A fala do presidente só tem como explicação uma mente desequilibrada. Como foi a Rainha Maria I, vinda com D. João VI. Sofria de depressão, sentimento de vazio, irritabilidade, isolamento, sentimento de culpa, ao ponto de ganhar o apelido de Maria Louca. Mas não tinha qualquer participação no governo. Sua loucura era um drama e um problema familiar, sem consequências para o país.
O caso do presidente Bolsonaro é diferente. Suas manifestações de insanidade representa uma ameaça de proporções catastróficas. Não seria problema maior se seus distúrbios fossem invenções da oposição, como aliás alguna consideram quw acontecia com a Rainha Maria. Mas seus gestos começam a ser reconhecidos e denunciados por seus apoiadores.
E sabemos que a China não é a única mania pertubadora do presidente. A análise de seus discursos passa a impressão que ele tem surtos de delírios. Seria grave se ele fosse apenas um mentiroso incorrigível, mas é pior: tudo indica que ele acredita em seus delírios e vive rodeado de pessoas que acreditam no que ele diz quando delira, acredita e tem pavor de medo dele.
Até mesmo um general reconhece isto ao dizer que tomou vacina escondido, outro general assustado diz que “quem pode manda, quem não pode obedece” e com isto justifica usar o Ministério da Saúde para promover o uso de remédios comprovadamente ineficazes. A paranoia é uma doença que contamina pelo medo e que retroalimenta seu grupo. É isto que faz o Brasil atravessar um momento perigoso.
Mas este problema seria bem enfrentado se o Brasil assistisse uma aliança de líderes sanos unidos para vencer as eleições de 2022 e colocar um governo pelo menos lúcido. Não é isso que assistimos: em momento de risco, a divisão também é uma loucura. Aparentemente temos um governo insano e uma oposição sem juízo.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Fonte:
Metrópoles