pandemia
Carlos Pereira: Tubarões, inundação, vírus e o governo
É pouco provável que essa pandemia seja aproveitada pela gestão Bolsonaro como uma oportunidade para implementação de mudanças
Em julho de 1916, a costa leste dos EUA, especialmente Nova Jersey, foi acometida por uma série de ataques de tubarão que ocasionaram a morte de vários americanos. Esses eventos inesperados alcançaram grande repercussão no noticiário e considerável sofrimento emocional, especialmente da população das comunidades costeiras. O então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, concorria à reeleição no fim daquele ano.
Embora o presidente Wilson não tenha tido responsabilidade direta pelos ataques aleatórios de tubarão, estudos (Achen e Barthels, 2012) identificaram uma forte correlação entre aqueles ataques e a significativa redução no número de votos a favor da reeleição do presidente naquela região em relação à quantidade de votos no pleito de 1912, quando Wilson foi eleito presidente pela primeira vez.
Por outro lado, o devastador desastre provocado pelas inundações que aconteceram na Alemanha em 2002 trouxe consequências bem distintas para o seu governante. O governo ofereceu ajuda monetária imediata e, estrategicamente, organizou uma visita do chanceler, Gerhard Schröder, usando botas de borracha, às vilas inundadas. Esta atitude foi interpretada pela mídia como símbolo da credibilidade do chanceler como gerente de crises. Após as inundações e, pelo menos em parte pelo que foi percebido como bem-sucedida gestão de desastres, o governo ganhou apoio popular e venceu as eleições federais vários meses depois.
Desastres nem sempre têm impacto político negativo. Dependendo do contexto, as consequências para os líderes políticos também podem ser positivas. Se o governo de plantão for capaz de liderar com autoridade moral e ofertar respostas adequadas ao problema, é possível que desastres se transformem em janelas de oportunidade para galvanizar apoio e conseguir implementar reformas.
Albrecht (2017) argumenta que a mídia exerce papel relevante nas consequências políticas dos desastres. Quanto maior for o tempo de cobertura e a exposição de fragilidades organizacionais das estruturas governamentais para lidar com as consequências do desastre, maiores serão as chances de impactos negativos para o governo de plantão.
Especificamente em relação aos efeitos políticos do coronavírus para a gestão de Jair Bolsonaro, é muito difícil fazer previsões no momento atual. Isso ocorre porque vários aspectos importantes ainda são desconhecidos, tais como a extensão da contaminação, a gravidade dos casos, o número de mortos, o tempo de duração da epidemia e a eficácia das respostas oferecidas pelo governo.
Mas, diante das dificuldades governativas enfrentadas até o momento pelo governo Bolsonaro, que é minoritário e tem desenvolvido uma relação adversarial com o Legislativo e com a mídia, é pouco provável que essa pandemia seja por ele aproveitada como uma oportunidade para implementação de mudanças.
O governo corre o risco de ser visto como responsável pelos efeitos da pandemia. A dúvida que fica é em relação ao tamanho do dano, pois a confiança social tende a diminuir significativamente, especialmente quando a epidemia começar a causar fatalidades.
Roberto Simon: Coronavírus deixou claro risco geopolítico que Trump representa
Apagão de liderança agravou pandemia
A política internacional, nos últimos anos, parecia guiada pela massa de pessoas anônimas. Da Praça Tahrir ao Occupy Wall Street.
Mais recentemente, das ruas de Hong Kong às do Chile. Dos tuítes, retuítes, likes e bots das redes sociais. E, agora, dos gráficos de curvas ascendentes de casos de coronavirus.
No entanto, a pandemia da Covid-19 mostra como, em um momento de crise sistêmica, as escolhas de algumas poucas pessoas com enorme poder, em certas capitais, determinarão o destino de incontáveis vidas e o futuro da economia global. Líderes, afinal, importam.
Essa virada é particularmente assustadora quando, à frente da maior potência da história da humanidade, está Donald Trump.
O risco geopolítico que Trump representa foi normalizado nos últimos anos.
Mas com o abismo do coronavírus a olhar dentro de nós, começa-se a entender o custo real de se ter, em Washington, um governo disfuncional, anticientífico, em guerra contra as instituições democráticas e a imprensa, e sem credibilidade internacional.
O mecanismo da negação foi simples. Trump herdou uma economia em expansão e pisou no acelerador cortando impostos (as consequências do déficit americano, um dia saberemos).
Em uma situação de pleno emprego e com a bolsa batendo recordes, o setor privado passou a vê-lo como uma distração excêntrica.
Apesar de tensões na Coreia do Norte, Crimeia ou Irã, o risco de guerra permaneceu baixo. E a pujança da economia americana reduziu o impacto das guerras comerciais com a China, e de outros disparates.
Com céu de brigadeiro, ninguém pensa no piloto. Agora, entramos na tempestade.
Trump continua a repetir que há testes suficientes para todos, apesar do consenso entre especialistas de que isso não é verdade. Diz que o vírus —até pouco, fake news para roubá-lo a reeleição— deve ser levado a sério.
A falta de credibilidade do governo e as mensagens truncadas agravaram a situação no mercado.
No primeiro tombo da bolsa, no dia 24, Trump decretou que o coronavírus estava “sob controle nos EUA”.
O país contava 14 casos em 6 estados. Em duas semanas, a cifra, apesar das restrições de exames, saltou a 1.600 em 49 estados.
Além de algumas ideias soltas de eficácia questionável, como descontos em folha de pagamento, ninguém sabe ainda como a Casa Branca reagirá ao choque econômico.
E o histórico de ofensas a líderes mundiais, hostilidade a aliados e o enfraquecimento de organismos multilaterais começa a cobrar seu preço.
Em um pronunciamento na TV na quarta-feira, Trump anunciou bloqueio a viagens e produtos da Europa.
Europeus não haviam sido informados de nada. Depois, descobriram que as duas informações estavam erradas. A crise de 2008 foi respondida no âmbito do G20. Difícil imaginar algo semelhante hoje.
São óbvios os paralelos de Trump com Jair Bolsonaro –que, dias atrás, chamava o vírus de “fantasia” e ajudava a convocar manifestações de rua–, mas eles param nas assimetrias de poder entre EUA e Brasil no mundo.
São óbvios também os contrastes entre Trump e Bolsonaro com outros líderes globais.
Com serenidade, compaixão e franqueza, a chanceler Angela Merkel admitiu aos alemães que “milhões” serão contaminados.
Emmanuel Macron falou à nação a verdade e agradeceu, em nome da França, aos profissionais de saúde na linha de frente.
A pergunta agora é o que virá depois da tempestade, se ficar claro que decisões desastrosas tiveram um custo econômico e em vidas humanas. Será que o mecanismo da negação sobreviverá?
*Roberto Simon, é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
José Márcio Camargo: De volta ao paraíso
Suspender ou flexibilizar o teto fatalmente levará a uma reversão da trajetória de queda dos juros
Na semana passada, o Congresso derrubou o veto do presidente Bolsonaro ao projeto que aumenta o limite para receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) de ¼ para ½ do salário mínimo. Segundo o Ministério da Economia, isso significa um aumento de gasto obrigatório de R$ 20 bilhões em 2020 e R$ 217 bilhões em dez anos, o que tornaria impossível o cumprimento do teto para o crescimento do gasto público. Uma decisão em total desacordo com as necessidades do País.
No final de 2019, o governo enviou ao Congresso três Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que, em conjunto com a PEC da Regra de Ouro, caso aprovadas, criariam condições para a redução dos gastos obrigatórios do governo e tornariam o teto do gasto sustentável. A derrubada do veto ao aumento do limite do BPC faz com que a aprovação dessas propostas seja uma condição necessária, mas talvez não suficiente, para a manutenção do teto.
A pandemia da covid-19 é uma emergência que vai requerer recursos públicos e, portanto, redução de outras despesas para que o teto seja respeitado. Este é um dos objetivos do teto dos gastos: criar na sociedade brasileira (população, Legislativo e Executivo) a cultura de ordenar e definir prioridades no processo orçamentário. As quatro PECs que estão no Congresso viabilizam essas escolhas ao diminuir os gastos obrigatórios. A opção seria suspender ou flexibilizar o teto, como já sugerem alguns analistas. Por que não adotar essa alternativa?
Um importante objetivo do teto é criar condições para uma redução estrutural das taxas de juros da dívida pública brasileira, que, por décadas, estavam entre as maiores do mundo. Por que a existência do teto atingiria esse objetivo?
Para respeitar o teto, os gastos públicos terão de permanecer constantes em termos reais até 2026. Ou seja, todo aumento de receita terá de ser alocado para reduzir o déficit primário, ou a dívida pública, ou a carga tributária. Portanto, qualquer crescimento real do PIB vai, eventualmente, levar a uma redução da dívida como proporção do PIB. Afinal, se o PIB cresce, crescem as receitas tributárias e, como os gastos estão constantes, eventualmente vão sobrar recursos para diminuir a dívida.
Como a relação entre a dívida pública e o PIB é o principal indicador de solvência do País, a existência de um teto é uma garantia de que o grau de solvência do Brasil vai melhorar no futuro. Quando isso acontecer, a demanda pelos títulos públicos e, portanto, seus preços deverão aumentar, com a consequente queda das taxas de juros.
Mas os investidores só conseguem lucrar com suas aplicações financeiras se forem capazes de antecipar os movimentos dos preços dos ativos. Ou seja, se a expectativa dos investidores é de que os preços dos títulos vão aumentar no futuro, a melhor estratégia é comprar hoje e esperar os preços aumentarem para vender no futuro. Com a antecipação do movimento, o resultado é um aumento dos preços e queda nas taxas de juros no presente.
Não deve ter sido por simples coincidência que as taxas médias de juros reais pagas pelos títulos do governo brasileiro mostraram forte redução (de 21% ao ano para 5% ao ano) desde que o teto para o crescimento do gasto público foi aprovado, em dezembro de 2016.
Suspender ou flexibilizar o teto retira a restrição para o crescimento do gasto público e destrói este mecanismo automático de ajuste, o que fatalmente vai levar a uma reversão da trajetória de queda dos juros que ocorreu nos últimos três anos e meio. E, com juros mais elevados, aumenta a probabilidade de uma volta da recessão. Um tiro no pé.
Também não foi coincidência que, após a derrubada do veto ao aumento do BPC, uma decisão que mostra total irresponsabilidade do Congresso, as taxas de juros dos títulos públicos subiram acentuadamente. Um indicador eloquente do que poderá estar à frente caso o teto seja flexibilizado ou suspenso: a volta do paraíso dos rentistas!
* Professor do Departamento de Economia da PUC/Rio, é economista-chefe da Genial Investimentos
Ascânio Seleme: Saúde e política
Não há dúvida de que a pandemia de coronavírus vai ser usada politicamente no Brasil e em todo lugar
Nenhuma dúvida de que a maior crise sanitária global desde a gripe espanhola vai ser usada politicamente aqui e em todo lugar. Nos Estados Unidos já virou matéria central da recém-iniciada campanha para a eleição presidencial de novembro. Os sinais são evidentes. Donald Trump, que menosprezou o coronavírus dizendo que não era nada, que iria passar etc., acabou tomando uma medida tão sem precedentes que guarda uma conotação política evidente. Ao anunciar a suspensão de voos da Europa para os EUA, Trump disse “nosso time é o melhor do mundo (...) tomamos intensas ações e temos muito menos casos do que a Europa (...) a União Europeia falhou”.
Papo furado. Os EUA foram pegos de calça curta e só começaram efetivamente a se mobilizar nesta semana. Ninguém irá se surpreender se em alguns dias houver mais casos lá do que na Europa, Itália inclusive. O que Trump quis dizer na sua fala é que não lhe cabe qualquer responsabilidade, que ele fez o dever de casa. Não é verdade. As ações do seu governo foram tímidas desde o começo e eram endereçadas apenas para a China. Ainda agora, fora o cancelamento dos voos da Europa, todas as iniciativas estão sendo tomadas por prefeitos e governadores ou por instituições privadas como universidades, museus e ligas esportivas.
Na terça-feira passada, Trump chegou a acusar a Organização Mundial de Saúde (OMS) de mentir sobre a taxa de mortalidade do vírus, de 3,4%. Além de minimizar a transmissão do vírus, dizendo que “isso vai passar”, o presidente se mostrou surpreso com o dado quando a ele foi apresentado numa entrevista para a Fox News. “Eu acho que o número 3,4 por cento é um número realmente falso”. Ele disse esta barbaridade um dia antes de a OMS oficializar a pandemia de coronavírus. E só então sua ficha caiu.
A mobilização em curso nos EUA ocorre também em razão do esforço das grandes emissoras de TV, abertas ou por cabo, que dedicam 70% a 80% de seus espaços noticiosos para esclarecer as pessoas, ouvir médicos, infectologistas, especialistas que trazem informações de como proceder. Nenhuma autoridade sanitária se manifestou oficialmente até aqui, apenas em entrevistas. Quem fala aos americanos são os líderes políticos. A discussão sobre o coronavírus ganhou contorno político e será o principal tema do debate entre os pré-candidatos democratas Joe Biden e Bernie Sanders, domingo.
Em Nova York, o protagonismo foi assumido pelo governador Andrew Cuomo e pelo prefeito de NYC, Bill de Blasio, ambos democratas. Foram eles que arregaçaram as mangas, colocaram seus coletes e bonés e ganharam as ruas. Em Washington, a presidente da Câmara, a também democrata Nancy Pelosi, saiu na frente e convocou a imprensa ontem para dizer num solene pronunciamento que os democratas estavam aprovando um pacote contra o coronavírus e a favor das famílias americanas. Poucas horas depois, Trump anunciou um plano de emergência liberando US$ 50 bilhões para atender pacientes e hospitais.
Claro que a culpa pelo coronavírus não é de Trump ou de sua administração. Mas é claro também que a demora em dar uma resposta forte pode resultar em rápida perda de capital político. E o eleitor americano sabe disso. Uma pesquisa da Reuters mostrou que apenas dois republicanos em cada dez diziam acreditar que o coronavírus seria uma ameaça iminente. Entre os democratas, quatro em dez enxergavam o perigo batendo à porta. Estas respostas carregam uma implícita vontade política. Que alívio seria para Trump e sua turma se tudo não passasse de uma marolinha.
No Brasil, o impacto sobre Bolsonaro não será sentido logo. Mas talvez alcance as eleições municipais.
Aprendeu e gostou
O Congresso aprendeu a exercer o poder e gostou da experiência. Até a entrada em vigor do método Bolsonaro de governar, deputados e senadores se satisfaziam com suas emendas paroquiais, e um bom número de partidos era “comprado” pelo Executivo. E não foi só Lula com o mensalão, todos os presidentes sempre abusaram do poder de barganhar com o Congresso. Com a recusa do capitão de ceder a demandas parlamentares em troca de apoio político, até mesmo estimulando que o Congresso exercesse o seu poder, a história mudou. E agora Bolsonaro e sua turma reagem como se fosse o fim do mundo. Não há razão para pânico, o Parlamento não fez mais do que cumprir a Constituição, ocupando legitimamente espaço político aberto por Bolsonaro.
O perigo da quarentena
O Brasil respira aliviado, seu presidente não pegou coronavírus. Imaginem se Bolsonaro estivesse de fato infectado e fosse obrigado a se submeter uma quarentena de 15 dias. O país iria à loucura com o capitão em casa, tendo nada para fazer, dedicando tempo integral ao Twitter.
Home office
Trabalhar em casa, aliás, tem algumas vantagens. Em tempos de coronavírus, empresas tendem a aumentar significativamente o trabalho remoto para muitos dos seus postos que não exigem presença física do empregado. Parece muito bom: trabalhar em sossego, sem distração, fazendo refeições saudáveis, sem se estressar no caminho do escritório. Pedro Doria publicou ontem uma boa coluna sobre o assunto. Mas há quem pense de modo distinto. O colunista de tecnologia do jornal “The New York Times”, Kevin Roose, fez uma pesquisa para um livro e concluiu que pessoas que trabalham em casa perdem em criatividade e pensamento inovador. E os que trabalham em conjunto chegam mais rapidamente a soluções de problemas do que os que trabalham remotamente.
Recado de Rothschild
Se deu bem quem seguiu o conselho de um do mais importantes banqueiros da História financeira global, o Barão de Rothschild. “Compre bens quando há sangue nas ruas”, disse o barão, com a experiência de quem atravessou guerras e delas saiu ainda mais rico. O sangue de hoje atende pelo nome de coronavírus e jogou as bolsas de todo mundo no chão. Quem comprou ações na baixa, se deu bem.
Já não se faz mais capitalista…
Falta álcool gel (hand sanitizer) em Nova York. Desde o início da semana não se encontra o produto em farmácias e lojas de conveniência. E o incrível é que até ontem não houve reabastecimento. Fabricantes e comerciantes estão perdendo a oportunidade de produzirem mais e venderem mais. No Rio, durante a crise da geosmina da Cedae, não faltou água mineral para quem quisesse e pudesse comprar. Estavam empilhadas em supermercados, padarias e postos de gasolina. Essa é a regra número 1 do capitalismo, não perder oportunidades e sempre atender as necessidades do mercado.
Enquanto isso
Uma rede de cafés dos EUA lançou uma inusitada maneira de fidelizar clientes. Criou uma espécie de assinatura onde o consumidor paga US$ 8,99 (R$ 42,79) por mês e toma quantos cafés quiser ao longo dos 30 dias. Outra: uma rede de academias de ginástica inovou apresentando um programa em que o cliente paga US$ 22 (R$ 104) por mês e pode sempre levar um convidado para malhar consigo. Vai ver o preço do cafezinho no Rio. E nas academias daqui o cliente tem que pagar mensalidade até para o seu personal trainer.
O México é aqui
Dezenas de milhões de mulheres não saíram às ruas no México na segunda-feira passada, dia 8. Não se tratou de precaução contra o coronavírus, mas sim um protesto no Dia Internacional da Mulher contra a escalada de violência a que mexicanas são submetidas sem serem efetivamente defendidas pelas autoridades judiciárias e policiais do país.
Choko popsicle
Tudo aponta para que Joe Biden seja mesmo o candidato democrata na eleição presidencial deste ano. O problema é que Biden é uma espécie de picolé de chuchu americano, meio sem graça, fala mais ou menos mansa, um pouco tímido. Mas talvez seja isso o que os EUA precisem depois dos ruidosos quatro anos de Trump.
El País: Governo evita medidas mais restritivas contra coronavírus e foca na preparação do SUS
Especialistas alertam que país vive a iminência de entrar numa fase mais aguda de contágio. Virologista pede ação imediata enquanto esfera privada adota ações de distanciamento social
Enquanto a esfera privada já se movimenta para suspender eventos e evitar aglomerados de pessoas por conta da expansão do coronavírus no Brasil, o poder público ainda não considera a adoção de medidas de distanciamento social para conter a incidência da covid-19. A avaliação do Governo Federal é de que o país ―com mais de 100 casos confirmados, se considerado o balanço oficial da pasta, mas também a confirmação de hospitais― enfrenta um cenário ainda controlado, embora admita que ações mais enérgicas podem ser adotadas caso haja um aumento exponencial no número de infectados, o que poderia sobrecarregar rapidamente o sistema de saúde. Por ora, o Governo decidiu obrigar que pacientes com a doença (assim como pessoas que tiveram contato prolongado com infectados) fiquem em isolamento domiciliar. E determina que, num cenário onde não se sabe muitos detalhes sobre o comportamento do vírus em clima tropical e diante das características assimétricas das regiões de um país continental como o Brasil, caberá aos próprios Estados e municípios decretarem quarentena, um ato formal para impedir o trânsito de pessoas quando a capacidade de assistência aos pacientes estiver comprometida. Especialistas avaliam que o Brasil está na iminência de entrar na fase de transmissão sustentada da doença, com casos que não têm relação com viagens ao exterior e cuja velocidade de contágio é mais aguda, e defendem que Governo precisa estar preparado para impor medidas mais restritivas antes que o sistema de saúde comece a se esgotar.
Neste momento, o Governo tem focado em reforçar o sistema de saúde para atender os infectados. Reabriu 5.811 vagas desocupadas do Mais Médicos e anunciou que garantirá o horário extendido em 40% das equipes de saúde para reforçar o atendimento nos postos de saúde, onde espera resolver 80% dos casos. Também afirmou que dobrará o número de leitos de retaguarda exclusivos para tratar pacientes graves com coronavírus. Ao todo, serão 2.000 leitos que poderão ser alocados conforme necessidade, quando a capacidade de atendimento já disponível nos Estados se esgotar.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem defendido que medidas mais restritivas não são necessárias neste momento. O Ministério da Saúde contabiliza 77 casos, mas confirmações de Estados e hospitais mostram que o Brasil já tem mais de 100 casos. O secretário executivo da pasta, João Gabbardo, afirma que ―diferente da Itália, cujo sistema de saúde que é referência internacional colapsou diante de um boom de casos― o Brasil tem tido tempo para planejar os passos, caso haja um descontrole da doença, e que o país ainda não discute impor bloqueios sanitários.
“Não existe nenhuma orientação do Ministério da Saúde nesse sentido. Pode vir a acontecer? Não sei”, afirma. O Brasil publicou uma portaria que obriga infectados e pessoas que tiveram contato prolongado com eles, como quem vive na mesma casa, permaneçam em isolamento por 14 dias. Caso apresentem sintomas da doença após esse prazo, o isolamento pode ser prolongado por mais 14 dias. Apesar de ser obrigatório, Gabbardo diz que a permanência dessas pessoas em casa é um “contrato social, de civilidade”. Caso seja identificado o descumprimento, medidas punitivas podem ser determinadas na esfera judicial. Nesta quinta-feira, o ministro da Justiça Sergio Moro pediu “autorresponsabilidade” da população, mas destacou que isolamento e quarentena podem ser impostos compulsoriamente no Brasil. “No isolamento não vai ter ninguém na casa da pessoa dizendo ‘olha, você não pode sair’. É um contrato social, de civilidade. A quarentena é um ato de restrição. É um guarda que vai monitorar a saída. Quando eu restrinjo o ir e vir das pessoas, tenho uma série de medidas a garantir: água, comida, energia", explicou Gabbardo.
Hora de agir?
A avaliação é que o Brasil ainda não está nessa fase, embora especialistas venham alertando a iminência de o país enfrentar uma fase mais aguda da doença. E a necessidade de respostas rápidas. O virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, considera que o prognóstico da pandemia é “tenebroso”. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, ele diz que o coronavírus tem o potencial para matar até 15 milhões de pessoas no mundo (e 257.000 no Brasil) caso não seja contido, segundo um estudo da Universidade Nacional da Austrália. Zanotto avalia que o Brasil tem perdido tempo e vê no distanciamento social o único caminho para evitar a propagação rápida da doença, a exemplo do que outros países vem fazendo.
O momento certo para a implementação de medidas restritivas não é unanimidade entre especialistas ouvidos pelo EL PAÍS, mas há um consenso de que o Governo precisa agir antes que o sistema de saúde comece a colapsar. “Se proibir aglomeração, você freia a transmissão aguda porque diminui o contato entre pessoas, mas também prolonga o tempo em que o microorganismo vai permanecer transmissível”, explica o infectologista Guilherme Henn, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.
Ele diz que reduzir o número de infectados é positivo num primeiro momento, porque a ação ajuda a evitar uma grande quantidade de casos graves da doença ao mesmo tempo, o que contribui para um colapso na capacidade de assistência como o da Itália. No entanto, pondera que medidas como esta devem ser avaliadas com cautela. “Se a gente recomenda medidas mais drásticas quando não são necessárias, não consegue conter o virus e só alimenta pânico e incertezas”, diz. O infectologista também acrescenta que há um efeito colateral de aumentar o tempo de transmissibilidade do vírus, já que a população segue sem contato com ele e não cria defesas naturais. Isso significa que o vírus pode continuar contaminando durante um período maior, ainda que de forma mais lenta. “De qualquer forma, é muito melhor você ter 150 mil casos graves de UTI ao longo de um ano do que em um único mês em termos de saúde pública”, analisa.
Henn afirma que há varios estudos com projeção de contaminação e propagação da doença, mas considera que as estimativas são “grosseiras”, já que se baseiam na experiência internacional e não há muitas respostas sobre o comportamento do coronavírus em clima tropical. O clima ainda é uma aposta para uma disseminação mais lenta da doença no país, mas especialistas e autoridades já começam a se preocupar com um possível agravamento diante da chegada do outono, no final deste mês. “A evolução da epidemia é tão dinâmica que as autoridades precisam estar atentas para agir assim que os casos evoluírem”, afirma o infectologista. Para ele, as características climáticas de cada região também deverão influenciar no enfrentamento sobre o coronavírus. Henn diz que o aumento exponencial em locais específicos nos últimos dias, como aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro, não são indicativos de o país inteiro precisa adotar medidas que essas regiões venham adotar.
Já o infectologista Juvêncio Furtado avalia que o Governo age certo ao analisar primeiro o tamanho do problema para depois adotar medidas mais restritivas. Ele avalia que o SUS tem condições de responder rapidamente ao tratamento de infectados pela sua ampla capilaridade, com ressalvas ao caso de a propagação atingir uma “proporção absurda”, o que ele diz que não está previsto. “Se houver bom uso, sem alarme e fluxo de pessoas em grande escala nas unidades de emergência, acho que a rede tem essa capacidade”, defende. A orientação é de que pessoas que apresentem sintomas procurem os postos de saúde para orientações. Os hospitais deverão receber apenas casos mais graves da doença. Nesta sexta-feira, o Ministério da Saúde discute ações para fortalecer a rede de média e alta complexidade.