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El País: Trabalhadores já encaram cortes nos salários

Em meio à crise com o coronavírus, não perder o emprego é motivo de celebração. Contratados como pessoas jurídicas também viram sua remuneração reduzida

Com a escalada da pandemia de coronavírus no Brasil e a paralisação de grande parte das atividades econômicas, várias empresas já começaram a demitir funcionários. Outras já começam a cortar salários, amparadas na Medida Provisória editada no início deste mês, que abriu essa brecha para este momento de emergência. Luciana* (nome fictício porque prefere não aparecer) foi contemplada por essa redução e precisou reajustar sua vida prática. Cancelou a pós-graduação e passou a terapia, que fazia semanalmente, para o regime quinzenal antes mesmo de saber quanto exatamente do seu salário seria cortado. “No dia 20 de março, deixamos de receber o vale-transporte e vale-refeição”, diz. Naquele momento, ela já havia sido avisada sobre uma possível renegociação salarial. Isso tudo antes de o presidente Jair Bolsonaro editar, na quarta-feira (1 de abril) a MP que permite a redução da jornada de trabalho e dos salários em até 100%, com uma compensação proporcional paga pelo Governo, mas só até o teto do seguro-desemprego (1.813,03 reais).

Funcionária de uma construtora e contratada via CLT, Luciana achou que, quando as primeiras conversas sobre renegociações ocorreram, a medida afetaria os altos cargos da empresa, que são contratos via Pessoa Jurídica (PJ). “Não imaginei que respingaria em todo mundo”, afirma. Mas nesta sexta-feira, ela recebeu a informação oficial da empresa: corte de 10% no salário de quem ganha até 5.000 reais e de 20%, para quem ganha acima desse valor, ao menos até junho. Para ela, foi um alívio. “Achei que seria de 40%”, diz. “Então não deixa de ser uma boa notícia”.

Embora o setor da construção civil tenha permissão para seguir operando durante a quarentena, a empresa onde trabalha Luciana é especializada em projetos em condomínios fechados. E as administrações dos condomínios suspenderam a realização de obras neste período, por medida de segurança. “A empresa está completamente parada”, conta. Com poucas informações sobre como funcionará a MP, ela diz não saber se vai ter direito a receber o complemento prometido pelo Governo diante do que a empresa está cortando em seu salário. “Não sei como vai funcionar, se vamos ter que ir ao banco, se teremos de dar entrada ou se o pagamento é automático”, afirma. “Vou esperar que as pessoas que mais precisam consigam receber [o complemento via seguro desemprego] e aí eu dou entrada no meu”. O Governo estima que 24,5 milhões de pessoas terão o contrato reduzido ou suspenso no país.

Segundo a nova lei, a condição de suspensão completa do contrato de trabalho poderá ter um prazo máximo de dois meses. Há, ainda, a possibilidade de redução de jornada. Nesse caso, o limite de tempo são três meses. A legislação permite que as negociações sejam feitas individual ou coletivamente. Além disso, o texto garante um período de estabilidade para qualquer trabalhador com contrato reduzido ou suspenso. Ao longo de todo o tempo em que estiver vigente o acordo, o trabalhador não pode ser dispensado. E fica estável por igual período ao fim do acordo.

Trabalhadores sem carteira no limbo
A contrapartida do Governo diante dos cortes atende, no entanto, só aos trabalhadores formais de empresas privadas com carteira e dos domésticos com carteira. Os dois grupos somam atualmente 35 milhões de pessoas, o que representa 53,5% da força de trabalho, segundo o IBGE. Os trabalhadores que muitas vezes são contratados como pessoas jurídicas para diminuir os custos trabalhistas das empresas ―a chamada pejotização― ficarão de fora de uma contrapartida do Governo caso tenham os salários reduzidos.

É o caso de Lucas*, que foi avisado no início da semana sobre o corte de 40% no seu salário, a princípio, durante abril e maio, já que a empresa de marketing em que trabalha, de cerca de 300 funcionários, sofreu uma drástica queda na demanda. “Na segunda-feira me informaram que irão reduzir o salário e a jornada de todos da empresa, do presidente ao motorista. Mas como sou PJ, acho que infelizmente não entro nessas regras de ajuda do Governo”, afirma. “No início, fiquei bravo com a situação, até porque trabalho com muitos prazos, então provavelmente não vou conseguir reduzir as horas da minha jornada para conseguir finalizar o que preciso, só o meu salário será cortado. Ainda assim, é melhor do que ser demitido, lá ninguém foi demitido ainda”, diz.

Estatais e empresas de capital misto não entram na MP
O engenheiro Henrique* teve o salário e a jornada reduzidos, mas também não receberá nenhuma compensação do Governo, porque é concursado da Petrobras. Estatais e empresas de capital misto, como Eletrobras e Petrobras, não poderão se beneficiar da MP, porque os regimes jurídicos são diferentes, e as contratações feitas por concurso público. Segundo o secretário especial de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, o objetivo da nova lei é preservar os empregos dos trabalhadores do setor privado.

Apesar de ter um trabalho estável, o engenheiro explica que o corte que ele e os colegas irão sofrer de um quarto do salário irá pesar para quem tem filhos e muitos compromissos financeiros. “No setor da energia estamos vivendo uma crise dupla. Temos de um lado uma forte queda de demanda por causa da epidemia de coronavírus e do outro, um excedente de petróleo por conta da guerra entre Arábia Saudita e Rússia”, diz ele, lembrando que os preços do brent foram para o chão. “A operação está próxima de não ser viável”, completa. Apesar da empresa ter reduzido seu horário de 8h para 6h ao dia, acredita que continuará trabalhando a carga horária de sempre porque trabalha com projetos que necessitam agilidade. “Ontem já não cumpri as 6 horas, porque estou com muitos projetos. Temos uma equipe muito comprometida”, explica.

Henrique afirma que está incomodado com a diferenciação que fizeram entre os cortes dos salários dos trabalhadores do regime administrativo ―do qual faz parte— e daqueles que ocupam cargos com gratificações extras. Este último grupo, que inclui gerentes, consultores, assessores e supervisores, terão a postergação do pagamento —entre 10% e 30%—, da remuneração mensal até setembro. “É tragicômico que justamente as pessoas com uma das melhores remunerações da empresa não sofrerão cortes, apenas um adiamento de parte do salário”, afirma.

Em nota ao EL PAÍS, a Petrobras justificou que os empregados em regime administrativo trabalharão por menos horas e a sua remuneração manterá o mesmo valor por hora trabalhada. “Já os gestores, é comum ficarem à disposição da companhia permanentemente durante todo o dia. Esses empregados não terão redução de jornada e, em momentos de crise, podem ser acionados inclusive em horários estendidos”, disse a petroleira, explicando que, a medida adotada foi de redução temporária da remuneração com postergação do pagamento.

Informais ainda não sabem como e quando receberão auxílio
Enquanto os trabalhadores formais se adaptam a uma realidade que não se sabe até quando vai durar, os informais de baixa renda ainda não sabem quando exatamente receberão um auxílio emergencial de 600 reais em decorrência da pandemia da Covid-19, que consta em outra MP sancionada pelo presidente, voltada para os informais. A dúvida geral é como ter acesso ao dinheiro.

Em um dos cruzamentos da avenida Pedroso de Morais, na zona oeste de São Paulo, o catador de lixo Luiz Antonio resolveu pedir dinheiro em um dos sinais de trânsito já que não consegue mais vender o material reciclável que recolhe. “Estou passando fome. Quando isso tudo vai acabar? Ouvi falar que o Governo vai dar uma ajuda, mas como que faço para ganhar?", disse à reportagem.

Nesta sexta-feira, o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, afirmou que os trabalhadores informais elegíveis “muito provavelmente” receberão antes da Páscoa o primeiro pagamento. E que será usado um aplicativo para celulares para identificar os trabalhadores informais que não estão em nenhum cadastro do Governo mas têm direito ao benefício. O alcance do auxílio vai depender, portanto, da taxa de adesão dessas pessoas, uma tarefa que não será fácil para o Governo, já que muitas delas não possuem smartphones ou internet.

* Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.


O Globo: Pandemia do coronavírus deve mudar a face do capitalismo

Empresas serão cobradas para terem atividades mais voltadas à sociedade, após ajuda oficial de trilhões de dólares recebidas dos governos. Presença do Estado será maior do que nos últimos anos

Vivian Oswald, O Globo

LONDRES - O confinamento inédito de metade da população mundial e o consequente pandemônio que se abateu sobre as economias globais devem mudar a face do capitalismo. A relação entre empresas, sociedade e governos mudou. Dificilmente voltará a ser o que era, na avaliação de especialistas. Fala-se até em um novo contrato social.

Grandes corporações e bancos sobretudo, socorridos com trilhões de dólares na crise financeira global de 2008, serão cobrados. Os mercados terão nova missão. Diante dos esforços para reconstruir as economias — só o Reino Unido já liberou 418 bilhões de libras (mais de R$ 2,5 trilhões) em pacotes de estímulos para minimizar os efeitos da pandemia do novo coronavírus —, a fatura começa a ser apresentada. O que se espera é um capitalismo mais benevolente.

— Assim como os contribuintes ajudaram a salvar os bancos em 2008, o governo agora quer trabalhar com os bancos para retribuir o favor e apoiar empresas e pessoas, as que mais precisam no Reino Unido — disse o ministro de Negócios, Energia e Estratégia Industrial, Alok Sharma.

Impostos mais altos
A declaração foi feita nos boletins diários do governo conservador britânico à televisão semana passada. O mesmo partido que, há mais de dez anos no poder, empunhava a bandeira da austeridade fiscal até pouco tempo atrás.

— Será totalmente inaceitável se os bancos rejeitarem empréstimos para as boas empresas — completou Sharma.

A presença do Estado deve ser maior daqui por diante como catalisador da recuperação. Sobretudo depois dos pacotes multibilionários de estímulos. A ajuda é para manter a economia em “hibernação”, diz Abhimay Muthoo, professor de economia e reitor da Universidade de Warwick:

— É preciso saber por quanto tempo os países conseguem manter a economia hibernando. Isso vai determinar o ritmo da retomada. O certo é que haverá nova ordem internacional. Vamos precisar de uma sociedade mais generosa, o que se traduz em redistribuição de renda, impostos mais altos, serviços públicos eficientes e Estados com presença maior do que nos últimos anos.

Espera-se uma recessão global. Itália e Espanha, as nações com o maior número de casos da Europa, devem perder 15% do PIB no primeiro trimestre, segundo a Oxford Economics.

— Governos poderão deixar claro às empresas que precisarem de apoio que ele dependerá de certos critérios. Outro ponto que me parece óbvio é que os dias de uso exagerado de recompra de ações para a maximização excessiva de lucros, possivelmente às custas de outros fins, podem ter acabado — disse Jim O’Neill, presidente da Chatham House, um dos centros de pesquisa mais prestigiados da Europa.

Recompra de ações
Ex-economista-chefe do banco Goldman Sachs e criador, em 2001, do acrônimo Brics — grupo de países em desenvolvimento que seriam as locomotivas da economia global: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, O’Neill trabalhou no mercado financeiro por mais de duas décadas. Mas há alguns anos defende um novo propósito para os lucros das empresas.

Segundo ele, em 2018, o total de operações de recompra de ações pelas dez maiores companhias americanas ficou próximo de US$ 1 trilhão. E os maiores compradores eram elas próprias, que teriam se tornado, nas palavras de O’Neill, meras administradoras de balanços, obcecadas por desempenho.

Em 2018, sugeriu taxar mais este tipo de operações, e dar crédito tributário para os gastos das empresas com investimentos. No limite, até mesmo tornar ilegais as operações de recompra em companhias com produtividade baixa. O tema estaria sendo estudado pelo governo britânico.

No ano passado, o Business Roundtable, que reúne presidentes de grandes empresas americanas, já falava no fim da cultura dos “acionistas primeiro”. Para a Social Market Foundation, as companhias têm a oportunidade de criar uma nova relação com a sociedade.

Novo contrato social
O diretor da entidade, James Kirkup, afirma que as empresas “deveriam concordar com um novo contrato social baseado no cumprimento das obrigações tributárias, no tratamento aos trabalhadores e no apoio às comunidades em troca da ajuda recebida durante a crise do coronavírus.

Uma das conclusões de um relatório coordenado por O’Neill para o governo britânico sobre a crescente resistência aos antibióticos era a de que a falta de investimentos para resolver o problema custará ao planeta dez milhões de vidas por ano a partir de 2050 em razão de infecções (e da falta de antibióticos). E causará prejuízo de US$ 100 trilhões à economia global.

O documento defende 29 intervenções que custariam US$ 42 bilhões para resolver a questão. Segundo O'Neill, o valor é menos do que o que as três maiores companhias farmacêuticas destinaram à recompra de suas próprias ações ao longo de uma década:

— Não é nada comparado aos custos de não resolver o problema ou ao colapso causado pela Covid-19 .


Demétrio Magnoli: ‘Não saia de casa!’

A vida ou a liberdade, o que vale mais?

‘Se eu pegar corona, peguei corona”, disse o jovem Brady Sluder, em 18 de março, Spring Break, quando festejava numa praia de Miami enquanto as autoridades recomendavam evitar aglomerações. Brady não é Jair mas, como ele, proclamava intuitivamente o princípio da filosofia libertária, alinhando-se com um variado espectro de pensadores que só reconhecem o deus das liberdades individuais. Brady perdeu — e pediu desculpas à sociedade. Jair perdeu até a companhia de Donald, não se desculpou e foi exilado para uma quarentena moral.

Nós vencemos. Mas quem somos “nós”?

“Não saia de casa!”. A ordem universal reflete a vitória da tradição filosófica do contrato social, que inscreve os direitos do indivíduo na moldura das normas de segurança coletiva. A tradição não é monolítica, fragmentando-se em tonalidades que se estendem do liberalismo progressista, numa ponta, ao totalitarismo, na ponta oposta. A Peste Negra em curso testa essas diferenças, colocando-nos diante de um espelho de cristal. Quem quer ser China?

A OMS exibe a China como modelo de eficiência, calando-se sobre a camuflagem inicial, a repressão aos médicos que davam o alerta, a brutalidade estatal do isolamento de Wuhan e, agora, sobre as suspeitas estatísticas chinesas, contaminadas pelo vírus do triunfalismo. Na Hungria, Viktor Orbán quer ser China: o primeiro-ministro obteve poderes de exceção por prazo indefinido de um parlamento controlado por seu partido, manipulando a crise sanitária para converter o país na primeira ditadura da União Europeia. “Não saia de casa!” — ou te coloco na cadeia por oito anos, ameaça o ídolo húngaro de Bolsonaro.

A vida ou a liberdade, o que vale mais? Da Itália à Suécia, passando por Espanha, França e Alemanha, estende-se um gradiente de medidas emergenciais que vão da quarentena severa a moderadas reduções de contatos sociais. Há penalidades, desde multas até processos criminais. Mas os governos estabelecem normas claras e temporárias, operando pela persuasão. Não é assim no Reino Unido, onde regras obscuras convivem com inumeráveis atos de arbítrio: drones filmam casais que passeiam com o cachorro no campo, motoristas são convocados a tribunais por dirigirem numa estrada aberta, policiais advertem alguém que fazia compras “não essenciais”.

“Agora estou dando uma ordem”, bradou Wilson Witzel, o improvável “campeão da vida” que mira “bem na cabecinha” e não entrega água potável às residências. O coronavírus carrega, no seu RNA, o gene do Estado policial. Mandetta explicou que “as pessoas podem caminhar, fazer algum esporte”. Witzel promete encarcerar os que desrespeitarem um isolamento social genérico. Na Rocinha, no Alemão, em tantas ilhas onde vale a lei da força, serão as milícias a aplicar sua ordem?

O vigilantismo escorre para baixo, despertando instintos latentes numa sociedade assustada. Moradores de edifícios cujas janelas se abrem para o longo viaduto do Minhocão, em São Paulo, vaiam, xingam, agridem pedestres e ciclistas que se atrevem a “caminhar, fazer algum esporte” na via elevada deserta. “Vai pra casa!” — o grito de guerra santifica, purifica, desinfeta. Fechamos fronteiras nacionais, trancamos rodovias intermunicipais. Por que não montar barreiras de vigilantes em torno de bairros ou quarteirões?

“Juntos vamos derrotar o coronavírus” — a capa unificada dos jornais brasileiros de 23 de março, cópia da iniciativa argentina, traz implícita uma curiosa mensagem jornalística contra a pluralidade de opiniões. “Juntos”, como quem? China ou Suécia? Alemanha ou Reino Unido? E com quem:

Mandetta ou Witzel? Orbán decretou penas de prisão para quem divulgar notícias sobre a pandemia classificadas como falsas pelo seu governo. A imprensa está pronta a aceitar qualquer medida formulada sob o alegado propósito de derrotar o “inimigo comum”?

Jair, a exemplo de Brady, nunca leu os libertários. Depois de confraternizar na praia, pode mudar radicalmente de ideia, imitando Viktor para se declarar um “presidente em guerra”. Vamos, juntos, proteger as liberdades enquanto protegemos a vida?


Arnaldo Jardim: Gravidade da crise exige medidas urgentes

A crise mundial iniciada com a propagação do COVID-19 tem múltiplos aspectos a serem considerados. O mais importante, naturalmente, é a dimensão humana de todo sofrimento que a doença está levando a milhões de pessoas ao redor do mundo. O impacto na saúde pública é gigantesco e extrapola propriamente aos efeitos da doença. Mas não é só na saúde que os efeitos são sentidos.

A pandemia do coronavírus trará consequências imprevisíveis para a economia. Ao redor do mundo, a cada dia que passa, as previsões sobre o crescimento econômico esboçam um quadro desolador. A economia chinesa, que tem sido a locomotiva da economia mundial, deverá sofrer, no mínimo, uma retração de dois pontos percentuais no crescimento de seu PIB. Na Europa a queda deverá ser mais intensa. Na Itália, por exemplo, a economia parou. Nos Estados Unidos, o JPMorgan Chase and Co. estimou que a economia americana poderá encolher impressionantes 14% no segundo quadrimestre de 2020. Seria o pior resultado do pós-segunda Guerra Mundial.

Como cada país sofrerá as consequências dessa crise econômica depende, em muito, da reação das diversas autoridades. E é isso o que nos preocupa no caso brasileiro. O governo federal demorou em dimensionar o impacto da crise na economia. Um exemplo disso foi o encontro que o Ministro da Economia, Paulo Guedes, teve na semana passada com os principais líderes do legislativo. Na ocasião, o timoneiro de nossa economia foi incapaz de propor alguma medida e repetiu o inadequado discurso sobre a necessidade de aprovação das reformas, demonstrando a incapacidade de perceber a velocidade com que a crise se aproximava de nosso país e o resultado que uma eventual aprovação de reformas traria a curto prazo. Reformas, aliás, que sequer foram enviados ao Legislativo.

Apesar da demora, os fatos se impuserem e o governo federal teve que agir. O conjunto de medidas adotadas esta semana para o enfrentamento da crise econômica está na direção correta, embora, a nosso ver, algumas delas enfrentarão desafios. Preocupa-nos, por exemplo, como se dará a distribuição dos recursos para os autônomos.  Ou como será a ampliação do programa Bolsa Família. A velocidade da execução dessas medidas determinará seu êxito ou fracasso.

As medidas tomadas até agora são tímidas e devem se encaradas como o início do processo de ação dos governos frente à realidade da crise que estamos enfrentando. Devemos reforçar as medidas anticíclicas, para que nossa economia dirima as consequências da retração da atividade econômica. Auxiliar o setor privado ofertando crédito subsidiado, especialmente para capital de giro de micro e pequenas empresas é essencial. Ampliar prazo para pagamento de tributos federais também é uma necessidade urgente. Assim como adotar medidas que flexibilizem temporariamente as regras do mercado de trabalho é fundamental para a garantia dos empregos.

Nós, do Poder Legislativo, não estamos nos furtando de participar do processo de enfrentamento da crise e de propor soluções. Aprovamos o Estado de Calamidade, que nos permitirá flexibilizar a meta do resultado primário e aprovamos a Medida Provisória do Contribuinte Legal que trará mais de R$ 20 bilhões para a União e possibilitará a repactuação de diversas dívidas para com o fisco.  Além disso estamos enviando uma série de sugestões ao Poder Executivo. A Deputada Carmen Zanotto, representante do Cidadania na Comissão destinada a acompanhar as ações preventivas contra o coronavírus, por exemplo, sugeriu ao Executivo que sejam facilitados os trâmites aduaneiros e sanitários para a importação de medicamentes e itens de saúde, e que sejam proibidas as exportações de produtos que possam ser utilizados direta ou indiretamente no enfrentamento da crise.

Outras medidas podem e devem ser tomadas para aliviar os cidadãos e as empresas. Do ponto de vista das tarifas públicas poderíamos isentar ou reduzir, temporariamente, as tarifas de energia, gás, e água. Tais medidas teriam um potencial enorme de reduzir a pressão sobre todos, especialmente os mais pobres.

No que se refere a legislação trabalhista, poderíamos pensar na redução na jornada de trabalho e na redução proporcional dos salários. Isso poderia contribuir sobremaneira para a manutenção dos empregos. A ampliação dos prazos para a realização de exames ocupacionais e a suspensão dos prazos de contestação e de recursos administrativos seriam outras iniciativas importantes.

A política monetária também pode exercer um papel importante. Para isso é possível reduzir com mais intensidade a Selic e diminuir os depósitos compulsórios. Tais medidas podem ampliariam a oferta de crédito e reduzir o spread bancário.

Os bancos públicos, como o BNDES, devem participar desse esforço de ampliar as linhas de crédito e facilitar as condições dos financiamentos entendo a seriedade do momento e o papel que lhes cabem no processo de desenvolvimento da economia brasileira..

Neste momento devemos ter em mente que só com uma ação coordenada e com a participação de toda a sociedade, conseguiremos atravessar esses momentos de enorme tormenta. Devemos ter um olhar mais acurado com os mais pobres porque eles sofrerão com mais intensidade a crise que se inicia. Esperamos que nossos governantes estejam à altura do tamanho da crise que se inicia e possam desempenhar com grandeza o papel que lhes foi delegado pelo povo brasileiro.

* Deputado Arnaldo Jardim é líder do Cidadania na Câmara dos Deputados


André Lara Resende e Francisco Serra: Desafio atual é mobilizar recursos para a saúde

É imperativo ser generoso com a população desassistida e que se adote um programa de ajuda de custo universal

Estamos diante de uma crise sem precedentes. A pandemia provocada pelo coronavírus não tem mais fronteiras. A experiência dos países onde a epidemia está mais avançada deixa claro que não há opção. Para evitar um pico de infectados com necessidade de atendimento hospitalar que levaria ao colapso do sistema de saúde, é imperioso que as pessoas se isolem e evitem todo o contato social. O confinamento domiciliar de todos que não trabalhem nas atividades essenciais é a única forma de reduzir o coeficiente de infecção e de distribuir o número de doentes ao longo do tempo.

O confinamento obrigatório tem altos custos pessoais e econômicos. A paragem brusca da economia será sem precedentes. Muito mais intensa do que a provocada por qualquer crise recessiva cíclica do passado. Estamos diante de uma verdadeira escolha de Sofia: ou o colapso do sistema de saúde, com um enorme número de mortos, vítimas da sobrecarga do sistema hospitalar, ou bem uma paragem sem precedentes da economia. Mas não há alternativa. Ao menos por alguns meses, na melhor das hipóteses, será preciso paralisar todas as atividades não essenciais para reduzir a circulação de pessoas.

A sobreposição da crise econômica a uma dramática crise sanitária exige resposta imediata e audaciosa. Na Europa e nos EUA os governos anunciaram medidas de emergência. O Banco Central Europeu e o Fed estenderam linhas de crédito praticamente ilimitadas para o sistema bancário. Medidas fiscais estão sendo negociadas para aprovação nos parlamentos. Há uma preocupação de não repetir o erro de 2008, quando foi feito “muito pouco, muito tarde”.

Antes de mais nada, é preciso descartar as falsas restrições. A questão das fontes de recursos para as despesas do governo é um falso problema. É resultado de um arcabouço teórico equivocado e anacrônico que foi erigido em dogma dos economistas hegemônicos nos últimos anos. A tese de que o governo não pode gastar se não dispuser de fontes fiscais, de que é sempre preciso equilibrar o orçamento para evitar a expansão da dívida pública interna, não tem qualquer validade lógica ou empírica. É um mito com pretensão científica. Um mito transformado em dogma para restringir a ação do Estado. Trata-se de um mito com altos custos em tempos normais, mas que em situações extraordinárias, como a atual pandemia, ao impedir a adoção de políticas públicas indispensáveis para minorar a crise e o sofrimento, é desastroso.

A preocupação com as fontes de recursos e o equilíbrio orçamental do governo são restrições autoimpostas para conter os excessos populistas e tentar dar racionalidade aos gastos públicos, justificadas em tempos normais, mas que devem ser desconsideradas por completo numa emergência como esta pela qual passamos. Países que delegaram a emissão da moeda para sistema supranacional, como é o caso dos países do euro, dependem da atuação coordenada do Banco Central Europeu (BCE). Por isso, a ação do BCE, garantindo crédito ilimitado para as economias da UE, é fundamental.

O desafio não é encontrar “fontes” de recursos. O governo pode sempre gastar para financiar despesas indispensáveis e justificáveis. Ao longo da história, mesmo quando o Estado ainda estava restrito pela exigência de lastrear a moeda num metal precioso, a conversibilidade da moeda foi sempre suspensa quando necessário para fazer face a despesas públicas extraordinárias e imprescindíveis, como no caso das mobilizações de guerra. O verdadeiro desafio é, antes de tudo, como mobilizar, de forma rápida e eficiente, recursos reais para a saúde, como expandir a capacidade da rede de hospitais, com leitos, equipamentos e recursos humanos. Em seguida, como minorar os efeitos econômicos e sociais do confinamento obrigatório e da brusca paragem da economia.

A crise de 2008 foi uma crise financeira que provocou uma crise da economia real. Esta é uma crise da economia real que irá provocar uma crise financeira. Em 2008 o problema estava no sistema financeiro, que carregava créditos ilíquidos e inadimplentes. A injeção de liquidez primária no sistema bancário, para compensar a contração do crédito privado, foi capaz de estancar a crise financeira, salvar o sistema financeiro e com ele toda a economia. Hoje, o problema não está no sistema financeiro. A injeção de liquidez primária pelos bancos centrais irá ficar retida no sistema bancário, que, temendo um incumprimento generalizado provocado pela paragem da economia, irá se recusar a estender crédito às empresas, independentemente da quantidade de reservas injetadas pelo banco central.

É preciso que os governos e os bancos centrais ajam de forma a garantir a liquidez e o crédito, sem depender da intermediação do sistema financeiro privado.

A primeira medida seria uma moratória de todos os créditos correntes, pelo tempo em que durar a paralisação obrigatória da economia. Todos os créditos correntes seriam estendidos, à taxa básica do Banco Central, até o fim do confinamento. Além disso, os bancos deveriam obrigatoriamente conceder crédito adicional a todas as empresas afetadas pela paralisação, à taxa básica acrescida de um spread mínimo para cobrir os seus custos. O risco de crédito, durante a fase crítica de emergência inicial, deverá ser assumido integralmente pelo Estado. Os bancos devem fazer uma análise e aferimento mínimos acerca da idoneidade das empresas e da necessidade do crédito.

Um programa de ajuda de custo universal, no mínimo durante o período em que durar a paralisação, deveria ser imediatamente adotado. É imperativo ser generoso com a população desassistida e com os que irão perder o emprego e as suas fontes de renda.

Medidas como essas tendem a vir acompanhadas de exigências burocráticas para evitar abusos. Compreende-se, mas a hora exige deixar de lado a burocracia. Grandes crises podem tanto despertar o egoísmo quanto o altruísmo. O Estado precisa dar o exemplo, ousar e confiar.

*André Lara Resende é economista e Francisco Serra Lopes Rebelo de Andrade é advogado e empresário português

Este artigo é uma versão reduzida de texto publicado originalmente no jornal digital português “Observador”


RPD || Joan del Alcázar: Covid-19. Nem tudo é terrível nesses tempos difíceis

Estamos vivendo dias complicados. Abriram-nos imensa janela para o desconhecido, o impensável, o inesperado, há não mais do que um par de meses. Não é uma ameaça tangível, como outras que conhecemos. Não temos experiência alguma na gestão de uma pandemia virótica, que pensávamos tivesse sido desterrada do mundo desenvolvido, caso tivesse tido origem em países pobres e atrasados.

Pois não foi isso. Há poucas semanas tínhamos programado viagens de férias ou a trabalho; só esperávamos o início das festas populares, dessas que atraem multidões, ou simplesmente anotávamos na agenda dias de descanso e deleite. E, de repente, de golpe, tudo voou pelos ares. O país entra em estado de alarme, as cifras de contágio crescem, as decisões das autoridades têm de ser renovadas dia após dia, nossa vida cotidiana se põe de cabeça para baixo, fecham-se restaurantes, cafés, cinemas, teatros e museus. Os centros educativos, do pré-escolar às universidades, cerram as portas sine die e nos ordenam a permanecer em casa, para evitar o contágio e a transmissão do vírus. Todas, absolutamente todas, as preocupações que polarizam a vida pública do país foram relegadas ao escaninho dos problemas secundários.

Descobrimos quantas inércias e quantos protocolos tivemos de abandonar. A vida social se reduziu ao máximo. Não é só que tivemos de deixar de nos beijar e abraçar; que passamos a nos cumprimentar, como os japoneses, sempre tão cerimoniosos e distantes. Agora já nem podemos sair à rua, a não ser por causa muito justificada.

São tempos difíceis e, ao que tudo indica, duradouros. Não há previsões confiáveis, nem prazos a cumprir. Hoje por hoje, trata-se de resistir, de proteger os outros e de nos proteger, de cuidar para não colapsar os serviços sanitários e de confiar nas autoridades que estão sendo orientadas por critérios e relatórios dos peritos. Tudo parece mal, terrível, insuportável. Mas não é.

Nem tanto, pelo menos. Como recordava uma dessas ideias que circulam pelas redes sociais: “A nossos pais e a nossos avós, mandavam à guerra; a nós, nos mandam para casa. Calma”. Isso, calma e paciência.

Além disso, nem tudo é terrível e negativo. Há também fatos e razões que são, sem dúvida, positivos e merecem alguma reflexão nesse período de resistência em que estamos encalacrados. Vejamos alguns:

1. Quando detectaram os primeiros casos do que depois seria o AIDS, em 1981, tardaram dois anos para identificar o vírus. Os primeiros casos de Covid19 foram detectados no último dia de 2019 e, em 7 de janeiro de 2020, já se sabia que vírus era. Mais ainda: o genoma do vírus estava disponível três dias depois. Hoje, passaram-se escassos dois meses.

2. A comunidade científica já publicou mais de 160 artigos acadêmicos de mais de 700 pesquisadores de todo o planeta sobre tudo que envolve o Covid19. E, mesmo que tardem meses para poder utilizar-se de maneira corrente, já existem protótipos de vacinas.

3. Sabemos que 80% dos contágios têm índice leve de gravidade, e que a maioria do infectados se curam.

4. Confirmamos uma teoria em que os psicólogos sociais vêm trabalhando há tempos: o interesse coletivo mobiliza mais e melhor do que o individual. Isto é, diante de um risco, há muitos indivíduos que estão dispostos a assumi-lo, mas não tantos se essa atitude acarreta riscos para os outros. Temos mais cuidados se nosso comportamento prejudica os outros que se os afetados somos nós mesmos. Como se sabe, dirigir um carro com crianças a bordo nos faz mais conservadores e seguros ao volante.

5. É verdade que verificamos comportamentos individuais ou de grupo que são maus e reprováveis, em graus distintos. Outros merecem mais o qualificativo de comportamentos estúpidos, próprios de pessoas de baixa capacidade intelectual e humana. Mas tomamos, ao mesmo tempo, conhecimento de iniciativas de solidariedade, ajuda e cooperação especialmente com os mais frágeis. Desde os vizinhos que organizaram a atenção a anciãos que vivem sós até as redes que se ocuparam de crianças, cujos pais tinham de sair de casa para ir trabalhar.

6. Os meios de comunicação deixaram de lado, em sua maioria, o sensacionalismo (tremendismo), com as exceções habituais, que nem vale a pena mencionar. Tem sido frequente encontrar naqueles meios recomendações e protocolos de comportamento para o público em geral, informações de serviço úteis e necessárias nesses dias.

7. Capítulo especial merecem os profissionais da saúde pública. Sabemos em que condições estão trabalhando, sob que pressão e em que níveis de risco. É em momentos como o atual que comprovamos a qualidade da inversão dos recursos públicos nas instalações sanitárias, na formação e sentido do dever dos funcionários dos serviços de saúde, desde o pessoal de apoio e de limpeza aos auxiliares, os enfermeiros e os médicos. Conviria que, passado o tsunami, não nos esqueçamos deles e seu desempenho titânico.

Não precisamos nos exceder. O tema não se conclui hoje, e voltaremos a escrever sobre ele. Lembrem que a palavra de ordem é resistir para vencer. Não será fácil, mas, me recordava um amigo, não será fácil, mas é seguro.


El País: Coronavírus no Brasil segue a curva de países europeus e São Paulo prevê até 9 milhões de infectados

Biólogo explica que cenário no país pode ser ainda pior que o da Itália, que registra o maior número de óbitos até agora. Governo brasileiro se prepara para realizar testes em massa

O Brasil ultrapassou neste sábado a marca dos 1.000 casos confirmados do novo coronavírus. Ao menos 18 pessoas morreram em decorrência da doença até o momento. Os números compõem uma curva de crescimento da pandemia muito parecida com a de países da Europa, como Itália, França e Espanha, onde milhares de pessoas já morreram. “Estamos um pouco acima da Alemanha, bem abaixo da Itália e bem afastados da Coreia”, afirmou João Gabbardo, secretário-executivo do ministério da Saúde, neste sábado, frisando, a todo momento, que ainda temos poucos casos rastreados e que toda comparação tem que ser feita com cautela.

A Alemanha tem se mostrado uma exceção até o momento, com uma baixa taxa de letalidade diante dos outros países: 68 mortos para 19.000 casos confirmados, com várias hipóteses sendo discutidas para essa boa performance. Os alemães, assim como os sul-coreanos, vêm mostrando ao mundo que uma das chaves para tentar barrar a pandemia é a realização de testes em massa da população. Por isso, o Ministério da Saúde anunciou que, além dos 27.000 testes já enviados aos Estados, se prepara para realizar mais 10 milhões de testes rápidos nas próximas semanas. A expectativa é implementar em alguns lugares o esquema de drive thru, a exemplo da Coreia do Sul, onde as pessoas não precisaram nem sair do carro para serem testadas. Gabbardo disse que só agora a pasta está prevendo o volume de provas que era um desafio conseguir fornecedores que tivessem os prazos e qualidades. Só será testados quem estiver com sintomas.

Mas, por enquanto, os casos brasileiros da doença aumentam em uma crescente preocupante. Somente no Estado de São Paulo, epicentro dessa pandemia, há mais de 400 confirmações e 15 óbitos. Para tentar conter o vírus, as autoridades realizam projeções em busca de tomar medidas antecipadas e planejar recursos. O médico infectologista David Uip, coordenador da equipe que combate a pandemia em São Paulo, até a semana passada afirmava trabalhar com diversos cenários para o Estado, de 1% a 10% da população infectada. Já nesta sexta, ele mesmo admitiu que os cenários podem chegar a até 20% de doentes, o que daria nove milhões de pessoas. Internamente, a reportagem apurou que o Estado trabalha, por precaução, com cenários ainda mais extremos, com até 60% das pessoas infectadas e, dentro deles, uma porcentagem que precisará de internação.

Atila Iamarino, biólogo e doutor em microbiologia, explica que as projeções são feitas em cima de fatores como o comportamento da população diante da doença, quantas pessoas entram em contato umas com as outras e como o vírus se espalha. Baseada no histórico de países como China, Espanha ou Itália, as projeções estão tentando ser desenhadas aqui.

Porém, Iamarino lembra que no Brasil há um fator com o qual o vírus ainda não havia se deparado em outros países. E não é o calor. “China, França, Espanha, Itália, Estados Unidos e Coreia não têm favela”, diz. “Não há como isolar as pessoas que moram em um cômodo com várias outras”. Ele afirma que o isolamento social total, isto é, proibir que as pessoas saiam de casa, é a única medida que pode ser tomada para que o resultado dessa “guerra”, como afirmou o governador João Doria, não seja ainda mais devastador. “Por isso, aqui a situação é muito deferente. Mesmo os modelos que estão sendo estudados de como a doença progride podem ser muito otimistas num cenário como o nosso”, diz. “Na Itália houve somente um foco da doença, que foi a região da Lombardia”, afirma ele. “Hoje tem várias Lombardias dentro da Espanha acontecendo ao mesmo tempo. E, assim como na Espanha, aqui no Brasil não haverá somente um foco da doença”.

Na sexta-feira, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fez uma afirmação que condiz com esse cenário pintado pelo biólogo. “O cenário que estamos vendo, diferente da China, é que no Brasil estamos com todos os Estados com crescimento igual, e isso nos preocupa”. Mandetta também afirmou que até o final do mês que vem, o sistema vai colapsar. “Temos aí 30 dias para que a gente resista razoavelmente bem, com muitos casos, dependendo da dinâmica da sociedade. Mas, claramente, em final de abril nosso sistema entra em colapso”. Mais tarde, em entrevista coletiva, o ministro reforçou que o colapso somente ocorrerá se nada for feito.

O ministro tem motivos para se preocupar. “Se a doença progride a ponto de sair de uma única região, os casos começam a ser empilhados”, explica Iamarino. Nos Estados Unidos, por exemplo, há ao menos três focos da pandemia – Nova York, Washington e a Califórnia. “Cada um desses focos tem potencial de ser uma Wuhan. São três Wuhans empilhadas”, diz, sobre a primeira cidade a registrar a pandemia.

“Cobra silenciosa”
Um dos maiores problemas dessa doença, diz Iamarino, é justamente a sua ausência de sintomas. “Quando a China fez lockdown [proibiu a circulação das pessoas], e passou a ir atrás de testar todo mundo, perceberam que, enquanto eles estavam contabilizando só quem ia para o hospital com sintomas sérios, eles perdiam 86% das infecções que estavam acontecendo”, diz. “Até a pessoa procurar um hospital e receber o diagnóstico, nove dias já tinham se passado”.

E a demora em apresentar os sintomas é o que ajuda a tornar o coronavírus tão letal. “79% das transmissões da Covid-19 acontecem antes mesmo de as pessoas terem os sintomas”, diz. Ele compara com a SARS, doença em que 99% dos infectados desenvolvem febre e a transmissão só ocorre depois da febre. “A SARS é muito transmissível, mas dá sinais. É como uma cobra muito venenosa, mas com o chocalho na ponta do rabo. Você ouve ela chegando”, diz. “Já a Covid-19 é como uma cobra silenciosa: você não percebe ela chegando. E quando percebe, pode ser tarde”.


António Guterres: Juntos venceremos o vírus

Pandemia evidencia interligação da família humana

A convulsão causada pela Covid-19 sente-se por todo o lado. Sei que muitos estão ansiosos, preocupados e confusos. É perfeitamente normal. Estamos enfrentando uma ameaça inédita à nossa saúde. O vírus está se propagando, o perigo aumenta e os nossos sistemas de saúde, economias e rotinas estão sendo postos à prova severamente.

Os mais vulneráveis são mais afetados, particularmente idosos e aqueles com histórico clínico de risco, os que não têm acesso a cuidados de saúde de confiança, os que vivem em situação ou no limiar da pobreza.

Os efeitos sociais e econômicos adversos, resultantes da combinação da pandemia com a desaceleração econômica, irão nos afetar durante alguns meses. No entanto, a propagação do vírus atingirá um pico. As nossas economias irão se recuperar. Até lá, devemos atuar em conjunto para desacelerar a sua disseminação e cuidarmos uns dos outros.

É tempo de prudência, não de pânico. De ciência, não de estigma. De fatos, não de medo.

Apesar de classificada como pandemia, a situação é controlável. Podemos diminuir as transmissões, prevenir infecções e salvar vidas. Para tal, será necessária a adoção de ações pessoais, nacionais e internacionais, nunca antes implementadas.

A Covid-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar guerra a este vírus. Isso significa que os países têm a responsabilidade de acelerar, reforçar e ampliar a sua ação. Como?

Implementando estratégias eficazes de contenção, ativando e reforçando sistemas de resposta a emergências, aumentando significativamente a capacidade de testar e tratar os pacientes, preparando os hospitais, garantindo que tenham espaço, recursos e pessoal, e implementando procedimentos médicos que salvam vidas. Todos nós temos, também, a responsabilidade de seguir os conselhos médicos e de adotar comportamentos simples e práticos, recomendados pelas autoridades de saúde.

Para além de constituir uma crise de saúde pública, o vírus está infectando também a economia mundial. Os mercados financeiros foram assolados pela incerteza. As cadeias globais de abastecimento foram perturbadas. O investimento e o consumo caíram, constituindo um risco real e crescente de uma recessão global. Os economistas das Nações Unidas estimam que o vírus poderá custar, pelo menos, US$ 1 bilhão neste ano —ou até bem mais.

Nenhum país poderá enfrentar isso sozinho. Mais do que nunca, os governos devem cooperar para revitalizar as economias, expandir o investimento público, promover o comércio e assegurar apoio às pessoas e comunidades mais afetadas pela doença ou mais vulneráveis aos seus impactos econômicos negativos —incluindo as mulheres, que muitas vezes suportam um peso desproporcional na prestação de cuidados.

Uma pandemia evidencia a interligação da nossa família humana. Impedir a propagação da Covid-19 é uma responsabilidade que deve ser partilhada por todos. As Nações Unidas, incluindo a Organização Mundial de Saúde (OMS), estão totalmente mobilizadas. Como parte da nossa família humana, estamos trabalhando 24 horas por dia com os governos, propondo diretrizes internacionais, ajudando o mundo a ultrapassar esta ameaça.

Estamos juntos, e juntos venceremos o vírus.

*António Guterres, Secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas)


Fernando Schüler: Não há contradição entre a agenda emergencial e a agenda de reformas

Não há contradição entre a agenda emergencial e a agenda de reformas

A gripe espanhola, no final da primeira grande guerra, matou perto de 50 milhões de pessoas. Seria algo como 220 milhões nos dias de hoje. Por muitas razões, o que ocorreu naquele ano e meio de pânico global é muito diferente do que vivemos hoje. Mas há lições a aprender.

A sugestão é do historiador americano John Barry, autor de "The Great Influenza: The Story of the Deadliest Pandemic in History", um dos mais completos livros sobre a gripe espanhola.

Suas indicações focam os aspectos intangíveis da pandemia. Não se trata do número de máscaras ou leitos hospitalares disponíveis, em que pese tudo isso seja crucial.

Seu primeiro ponto diz que tendemos a desprezar o risco e perder rapidamente o senso de disciplina que uma pandemia exige. "As pessoas precisam assumir a responsabilidade e persistir. O fator decisivo é o esforço voluntário e o comportamento individual", afirma Barry.

Lendo isso pensei nas milhares de pessoas que mal saem de casa, proíbem os filhos de frequentar o playground do edifício, mas não dispensam a diarista de andar uma ou duas horas no transporte coletivo para chegar em casa.

A segunda lição, sustenta Barry, é "dizer a verdade". O argumento é simples. A confiança é a base da ação coletiva, é disso que trata o enfrentamento de uma pandemia. Confiar no que as autoridades estão dizendo não resolve o problema, mas é o primeiro passo.

Decisões rápidas, informação clara e padronizada, envolvendo o governo federal e os estados, fariam uma enorme diferença, mas desconfio que não temos uma elite política preparada para isto. Quando o presidente diz que vai manter sua festinha de aniversário, mesmo depois da patética atitude do último domingo, temos um sinal nessa direção.

Nosso problema, no entanto, está longe de ser o que diz ou deixa de dizer o presidente. O poder de informar está espalhado no mundo digital, e a responsabilidade também é difusa. Cada um pode achar graça em tirar uma lasquinha política com a crise ou fazer de conta que nada de mais está acontecendo, mas a conta será paga por todos.

O desafio da ação coletiva é o mesmo no mundo político. Rodrigo Maia acerta ao dizer que as pautas de combate à pandemia são prioritárias no Congresso. As medidas emergenciais anunciadas até agora pelo governo são tímidas, ainda que na direção correta. Mas esse não é o ponto.

A questão central é que será um enorme equívoco se o Congresso, em nome da emergência, abrir mão de avançar, e com ainda mais rapidez, nas reformas fiscais que o país precisa fazer.

A razão é que o país não tem espaço fiscal para fazer o que deve ser feito para combater uma crise que está apenas se iniciando. É preciso zerar a fila do Bolsa Família, ampliar o atendimento no sistema de saúde, aumentar o investimento público em infraestrutura.

Não é exatamente esse o sentido da PEC Emergencial e dos fundos públicos? Ou do plano Mansueto, de recuperação fiscal dos estados? A verdade é que não há contradição entre a agenda emergencial e a agenda de reformas, e aqui pouco importa se o protagonismo é do governo ou do Congresso. A crise serve exatamente para que um novo patamar de consenso possa ser obtido.

O senador Mitt Romney propôs dar US$ 1.000 mensalmente a cada cidadão americano enquanto durar a crise. O Brasil ensaia fazer algo nessa linha, oferecendo um beneficio equivalente ao do Bolsa Família para quem não dispõe de outro benefício público.

É muito pouco. A cara de um país quebrado. País que, mesmo com uma imensa tragédia humana batendo à porta, teima em não fazer a lição de casa que precisa fazer.

Vivemos uma situação inédita de emergência. Situações como esta revelam o que somos de melhor e o que somos de pior. Nosso pior já conhecemos. O bate-boca inútil, o ódio político, a procrastinação nas decisões difíceis.

O melhor esperamos que o Congresso saiba fazer. Agir com a responsabilidade e a capacidade de antecipação que o país requer nestes tempos difíceis.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


O Estado de S. Paulo: Só com fortalecimento do SUS País pode enfrentar pandemia, diz Serra

 O ex-ministro da Saúde e do Planejamento José Serra, senador pelo PSDB-SP, conversou com a Coluna sobras as crises na saúde e na economia provocadas pelo coronavírus. Segundo ele, é preciso “ampla coordenação com a política fiscal” e “fortalecer o SUS“ 

Alberto Bombig, O Estado de S. Paulo

Coluna do Estadão – Qual a avaliação do senhor da crise até agora?
José Serra – O cenário é, sem dúvida, grave. Creio que ainda estamos na primeira fase, experimentando o choque e caindo na real, tentando lidar com os preparativos para um surto de gripe que deve vir, segundo os dados da OMS e a experiência dos países asiáticos e europeus. Como vamos lidar com a saúde e a economia nas próximas semanas fará toda a diferença lá na frente. A contração econômica em escala mundial e os tropeços dos mercados de capitais e do sistema financeiro internacionais poderão gerar corridas bancárias e insolvência de grandes empresas e bancos de investimentos, refletindo-se em seguradoras e fundos de pensão. O mundo terá que se coordenar fiscal e monetariamente. Isso é imperativo. Inclusive, a autonomia dos BCs mundiais já vinha sendo revista desde 2008 e está sendo posta em xeque por esta crise, que requer ampla coordenação com a política fiscal. Logo, não devemos sequer voltar a discutir este tema antes de superá-la e conhecermos o novo arranjo econômico que se estabelecerá. No tocante à saúde, creio que só conseguiremos enfrentar essa pandemia com um fortalecimento a curto prazo do SUS, com ampliação emergencial do número de leitos em UTI e dos serviços de saúde, reforçando atendimento nas unidades básicas. Por isso também o decreto de calamidade é fundamental, para que se possa redirecionar recursos para o SUS.

Coluna do Estadão – Como o Legislativo pode contribuir para o enfrentamento?
Serra – O primeiro passo é reconhecer o estado de calamidade. Eu apresentei um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nesse sentido, antes de o governo anunciar o pedido ao Congresso. Mas, independentemente da paternidade desta ou daquela medida, é importante apoiar as iniciativas emergenciais do governo. Além disso, devemos suspender pautas que não sejam prioritárias, especialmente as que se chocam com medidas urgentes, como a PEC Emergencial, que vedaria a contratação de temporários, novas linhas de financiamento e subsídios, que nesse cenário devam ser necessárias. A reforma tributária, com um cronograma de 45 dias que já era inexequível, não pode ser discutida com esse cenário de crise. Após a crise precisaremos de propostas com potência imediata sobre a atividade e a produtividade, não as propostas que parcelam queda de arrecadação, aumento de carga, choque de preços, desemprego e complexidade adicional por 10 longos anos. O debate das propostas em discussão deveria ser arquivado dada a realidade desta crise e seus desdobramentos econômicos e fiscais.

Coluna do Estadão – O Brasil deve fechar as fronteiras?
Serra – Claro que não. Só devemos reagir contra a importação de fatores de crise, mas podemos usar nossa pauta de alimentos essenciais para barganhar melhores termos de troca para medicamentos, suprimentos médicos e outros insumos básicos essenciais para o enfrentamento deste momento. Para as pessoas, teremos de observar o avanço da pandemia aqui. Se houver um risco de propagação maior do vírus, seria recomendado.


Benito Salomão: Coronavírus, efeitos na economia e possíveis respostas

O pânico instituído em função da rápida proliferação do Covid-19 já apresenta sua face mais dura sobre a rotina das pessoas ao redor do mundo. No Brasil não será diferente, os efeitos até aqui sentidos na Bolsa e no câmbio serão em breve transmitidos para a economia real, principalmente produto e emprego. O que podem fazer as autoridades econômicas para minorar o impacto? O trabalho começa em tratar o assunto com seriedade e não contribuir com a difusão de falsas narrativas, teorias da conspiração, ou insistir na tese estúpida da histeria propagada por Bolsonaro, aquele presidente da república de comportamento estranho que passeou em Miami durante o Carnaval com dinheiro público e até o fechamento da sua coluna tem 14 membros da sua comitiva diagnosticados com a doença.

Mas falemos primeiro de políticas públicas para “domar” a pandemia. Da mesma forma como no caso da dengue, os esforços preventivos são muito mais eficientes do que as políticas corretivas. O melhor a se fazer, neste instante, é impedir que o vírus se prolifere. Aliás, no Brasil cuja epidemia está ocorrendo tardiamente em relação aos países do hemisfério norte, alguns agravantes podem dificultar a ação das autoridades. Por exemplo, o surto de casos de infecção pode coincidir com a sazonalidade de doenças como dengue, zica e chicungunha transmitidas pelo Aedes Egypt, isto certamente causará uma sobrecarga na rede pública de atendimento e dificultará os atendimentos aos doentes. Países com disponibilidade de leitos por cada mil habitantes muito superiores a nossa e que não coexistem com doenças tipo a dengue (em função do clima), tiveram sobrecarga do sistema público de saúde e escassez de leitos, não é razoável acreditar que no Brasil a situação será melhor.

É importante saber que no curto prazo é impossível aumentar o número de leitos, portanto minorar os impactos humanos da doença, envolvem a ação não só do governo que cancelou eventos públicos, artísticos, acadêmicos ou esportivos, também através de campanhas de prevenção que envolvem o comportamento da população. Tanto no que se refere ao CODIV-19, quanto no que se refere à dengue, os esforços preventivos da comunidade são fundamentais para o enfrentamento. Portanto, o isolamento, a quarentena e a higiene pessoal, devem ser adotadas pela população. Episódios como a manifestação pró Bolsonaro ocorrida em inúmeras cidades no último domingo, mais do que uma irresponsabilidade, foi uma covardia para com a população brasileira.

Sobre os impactos econômicos é preciso primeiro decompor o que já iria acontecer em termos de economia independentemente da doença e o que foi agravado pela pandemia de Covid-19. O Brasil já apresentava problemas econômicos anteriores ao vírus, o crescimento de 2,5% já não ia se verificar e correções na Bolsa e no Câmbio já estavam a caminho, evidentemente que bem mais suaves do que vimos nos últimos dias. O mundo também está em sérias dificuldades e isto certamente refletirá na economia doméstica. Sob o novo cenário é possível trabalhar com a ideia de PIB muito próximo de 0 podendo ser até negativo em 2020. É importante lembrar que uma eventual paralização por 2 ou 3 meses de vários setores econômicos causa danos agregados na economia que se estendem para os meses seguintes. Ademais, se a crise for superada em junho, por exemplo, o Brasil já estará às vésperas do seu processo eleitoral. Reformas econômicas tendem inevitavelmente a ser adiadas.

O que o governo pode fazer neste momento? Infelizmente o campo de ação é muito limitado, o pedido de abertura de crédito suplementar de R$5 bi que o Congresso certamente atenderá pode ser insuficiente. Ademais, o dinheiro será muito melhor gasto se for utilizado em conjunto com os municípios. É importante lembrar que as pessoas contraem a doença nos municípios e certamente os prefeitos tem melhores condições de aplicar este dinheiro, sob determinados critérios e metas, do que o governo central.

Políticas de controle de demanda, como propostas pelos macroeconomistas são ingênuas, revogar PEC do Teto sob pretexto de que o investimento público pode suportar o choque é desconhecer a realidade. Projetos de infraestrutura demoram meses desde a sua concepção até a sua execução, dependem de licitação e licenças além de não surtirem efeitos de curto prazo. De forma que a revogação da PEC pode inverter as curvas de juros de longo prazo da economia brasileira e pressionar a carga tributária sendo recessivo. As políticas de antecipação do 13° e abono e as carências de impostos como o Simples Nacional são bem-vindas, mas criam pouco dinheiro novo, apenas transferem dinheiro do futuro para o presente. Seus efeitos macroeconômicos são limitados, as razões são óbvias, não adianta injetar dinheiro em circulação se a população não pode circular.

*Benito Salomão é economista, doutorando em Economia PPGE – Universidade Federal de Uberlândia e Visiting Researcher na University of British Columbia.


Luiz Roberto Nascimento Silva: A peste

A lembrança da maior epidemia da humanidade surge como memória involuntária. A “Peste Negra”no século XIV começou na Eurásia e invadiu a Europa com as caravanas de comércio do Mar Mediterrâneo e foi transmitida por ratos negros indianos. Estima-se que entre 70 a 200 milhões de pessoas morreram entre 1343 a 1353. O historiador Jacques Le Goff indica que para cada três europeus vivos, um morreu.

A medicina ocidental nesse período era mais rudimentar que a oriental. Em Veneza por exemplo, a peste encontrou um ambiente ideal por ser construída sobre as águas permitindo a propagação com rapidez. Os relatos dos autores transmitem a certeza do fim do mundo. Dramaticamente a cidade hoje é de novo das mais atingidas.

Além dos reflexos sobre a própria preservação da vida, o coranavírus causa estragos em todo ambiente econômico. As bolsas de valores renovam circuit breaks paralisando os negócios. Os juros fecham suas curvas criando rendimentos negativos. As moedas perdem seus parâmetros de referência. A crise na China, importante supridora de peças e componentes do mundo e grande compradora de commodities, interrompe enormes cadeias produtivas. Perdem-se produção, distribuição e consumo.

Impossível também não lembrar de “A Peste”, de Camus, publicado em 1947. Trata-se de um relato preciso de como uma epidemia age sobre uma cidade e sua população. A cidade de Oran, na Argélia, é de repente assolada por uma peste bubônica. Um narrador onisciente descreve a luta do Dr. Bernard Rieux e de outros personagens em auxiliar a população que reage primeiro com desinteresse e descrédito e depois com pavor, desespero e dor. Está tudo lá, vivo e atual.

Os habitantes descobrem que “a primeira coisa que a peste trouxe aos cidadãos foi o exílio... Chegava sempre um momento em que nos dávamos conta que os trens não chegavam”. O exílio e a segregação instalam-se.

A cada dia aumenta a pilha de ratos mortos e também de seres humanos. O desespero aumenta conforme as mortes vão se sucedendo e a separação dos entes queridos se prolonga. A cidade é isolada. Quem está dentro não pode mais sair, quem está fora não pode mais entrar. Paralelamente de outro lado surge solidariedade entre os trabalhadores. O personagem de Rieux deixa seus problemas pessoais para socorrer os moribundos. Num dos diálogos há uma frase que serve de advertência para todos nós. Camus lamenta que “a única maneira de juntar as pessoas ainda é mandar-lhes a peste”.

Os voos entre a Europa e os Estados Unidos estão suspensos. A Itália está sitiada; ninguém pode entrar ou sair como em Oran. Os grandes espetáculos artísticos e esportivos estão suspensos. Navios ancorados em quarentena nos portos. Os setores de serviços como restaurantes, turismo e entretenimento estão devastados.

Num mundo cada vez mais protecionista preocupado com suas fronteiras, chega a ser irônico que o inimigo não venha de fora, mas do próprio país. Não é estrangeiro que ao entrar no país traz a doença, mas o próprio cidadão. Não há muro que impeça essa invasão bárbara. O nacionalismo mostra-se impotente para conter e controlar essa nova forma de desorganização da atividade econômica.

Os países precisam aproximar-se da ciência e da informação para enfrentar o coronavírus. Seria ótimo que o mundo pudesse, além de lutar com a pandemia, buscar formas mais civilizadas de convivência que já existiram em passado recente. Isso poderia ser uma consequência benéfica do que estamos passando. Já que estamos conectados em tempo real e que, além do comércio e da comunicação, as doenças também possuem velocidade digital poderíamos refazer a frágil fronteira entre as nações.

*Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura no governo Itamar Franco