pandemia
El País: Brasil supera a Espanha e já é o quarto país em infectados no mundo
Já são mais de 15.000 mortos, 816 nas últimas 24 horas. País se aproxima do Reino Unido em número de infectados, com 233.142 neste sábado. País digere a queda do segundo ministro da Saúde
O Brasil chega a este sábado com uma cifra triste de 15.633 mortes confirmadas por coronavírus. Foram 816 mortes confirmadas somente nas últimas 24 horas, segundo o Ministério da Saúde. O Brasil já superou a Espanha e a Itália em número de pessoas infectadas, com 233.142 casos confirmados. O país fica atrás agora de Estados Unidos, Reino Unido (241.461), um país de quase 70 milhões de pessoas, contra os 210 milhões no Brasil, em seguida Rússia (272.043) e Estados Unidos com quase um milhão e meio de infectados.
Quase 90.000 se recuperam do vírus, mas as contaminações continuam a escalas cada vez maiores. O epicentro da pandemia no país, São Paulo, soma 61.183 infectados e 4.688 mortes, seguido por Ceará e Rio de Janeiro. Essa realidade se depara com a insistência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em se concentrar na agenda econômica, enquanto perde seu segundo ministro da Saúde em plena pandemia. Nelson Teich pediu demissão por não aceitar a pressão de recomendar a cloroquina no combate à covid-19 — assim como seu antecessor, Luiz Henrique Mandetta (DEM-GO), um mês antes.
Eis um embate para o próximo nome que assumir a pasta. Até o momento não há estudos que comprovem a eficácia do medicamento no tratamento da covid-19. Duas grandes pesquisas feitas recentemente nos Estados Unidos com milhares de pacientes, e publicadas em respeitadas revistas científicas internacionais —o que significa que foram revisadas por outros cientistas—, mostraram que o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina não diminuiu a mortalidade por covid-19.
Enquanto isso, o Exército aumentou em 80 vezes a produção de cloroquina., conforme contou o EL PAÍS. O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu 1,2 milhão de comprimidos do final de fevereiro até meados de abril. Até o começo da pandemia, a média era de 250.000 comprimidos a cada dois anos, segundo a assessoria de imprensa do Exército. O fármaco atende a quem sofre de lúpus, malária e, agora, segundo o Governo, pacientes com covid-19, apesar das negativas médicas. "A capacidade de produção pode ser de até 1 milhão de comprimidos por semana”, diz a instituição, que produz a droga sob encomenda do Ministério da Saúde.
O ex-ministro Mandetta chegou a dizer em entrevista ao Correio Braziliense que Bolsonaro quer “empurrar” a cloroquina para o tratamento de covid-19 para que as pessoas se sintam confiantes e reativem a economia. “Ele quer um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia. A pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema. Como é barato e o Brasil produz, por ser medicamento da malária… Só que malária costuma dar em mais jovens”, afirmou.
O próximo à frente da pasta viverá essas pressões, assim como as cobranças pelo fim do isolamento social, outra bandeira de Bolsonaro durante a pandemia. Acertar um plano com o Brasil todo, que case cuidado com a saúde e com a economia é contar com o aceite geral da sociedade de soluções alternativas ao consenso mundial do controle da covid-19. A Organização Mundial da Saúde e a comunidade médica e científica advertem que é o único caminho para frear o ritmo de contágio neste momento agudo. Não se sabe o que acontecerá com o país conduzido com Bolsonaro. É um momento difícil no Brasil .
Eliane Brum: O nojo
É isso que diremos aos nossos filhos, que vamos esperar passivamente Bolsonaro nos matar a todos?
A menina tem pouco mais de dois anos. Está trancada em casa com os pais há dois meses devido à pandemia de covid-19. Sente falta dos amigos da creche, sente falta da sorveteria, sente falta da rua. Mas este não é o problema da menina. Nem é o problema de seus pais. O problema é que a menina tem medo. E não do vírus. Mas daquele que ela chama de “o homem mau”. Tem dificuldade de dormir, quer ficar agarrada à mãe, acorda assustada à noite. A menina tem pesadelos com “o homem mau”. E, quando desperta, “o homem mau” continua lá.
O “homem mau” é Jair Bolsonaro. De todo o medo daqueles que estão ao seu redor, a menina entendeu que o vírus vai ficar do lado de fora, se permanecerem em casa. Mas o homem mau não tem limites. Ele abusa. Invade. Viola. Mata. Os pais criaram uma história, a de que as árvores cresceram e cobriram o prédio, e assim o homem mau não enxerga a casa deles e, como não enxerga, não pode lhes fazer mal. Ela olha com seus olhos imensos, quer acreditar, mas já compreendeu que nem mesmo as árvores podem protegê-la, até porque descobriu que o homem mau também derruba a floresta. Há um novo vilão, e ele não vem dos contos de fadas ou dos filmes da Pixar.
Como ser uma criança e lidar com um vilão que é real, se nem os adultos parecem saber como se defender dele, se nesse conto da realidade ninguém parece saber como parar o vilão real? Se essa história parece não ter outro final que não seja a morte? A menina ainda não tem recursos para nomear o horror de estar num mundo a mercê de um vilão, e também o horror de perceber que nem seus pais, que nessa idade são quase todo o seu universo, podem protegê-la dele. Então, só balbucia: “o homem mau”, “o homem mau”, “o homem mau”. E não dorme.
Eu escuto muito. É minha profissão escutar muito e escutar pessoas de todas as cores, origens e classes sociais. A criança expõe, com os poucos recursos de que dispõe aos dois anos, um pânico que vai muito além dela e se espalha por todas as faixas etárias. Se o mundo vive um momento especialíssimo, o de uma pandemia global que está matando uma parte da espécie humana, nós, no Brasil, estamos sendo violentados dia após dia pela perversão do homem no poder em meio à expansão exponencial de um vírus que pode nos matar e já começou a matar pessoas que amamos. Tenho escutado gente muito diferente entre si afirmando que passou a ter reações físicas diante da imagem de Bolsonaro. Ou da voz. Ou mesmo se outra pessoa pronuncia o nome do presidente do Brasil.
Também acontece comigo. Comecei a sentir náusea diante de qualquer alusão a Bolsonaro. Não o enjoo de quando como um alimento que me faz mal. Mas o enjoo do asco. Sou possuída pelo nojo. Há mulheres que têm essa reação diante do estuprador, quando por alguma razão são obrigadas a vê-lo novamente. Outras pessoas manifestam reação semelhante no convívio com o sequestrador. Outras na presença do torturador. Bolsonaro é tudo isso. Ele tem nos violentado, sequestrado nossa sanidade, nos ameaçado com sua irresponsabilidade deliberada e também nos torturado todos os dias, usando para isso a máquina do Estado.
Somos um país de reféns, e o sequestrador está matando. Ele mata quando boicota as ações de combate à covid-19. Ele mata quando dissemina mentiras sobre remédios sem comprovação científica de eficácia. Ele mata quando contradiz a ciência. Ele mata quando diz que a covid-19 é um “resfriadinho”. Ele mata quando afirma que “o vírus não é tudo isso”. Ele mata quando forja a falsa oposição entre se proteger da doença e “salvar” a economia. E ele pode estar matando literalmente quando vai às ruas estimular outras pessoas a ir para as ruas, quando espirra e aperta mãos com seus dedos lambuzados de ranho, quando manipula celulares alheios, quando faz selfies com seus seguidores, quando pega crianças no colo. Ele mata e tenta dar um golpe quando faz tudo isso em manifestações golpistas contra a democracia, contra o Congresso e contra o Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro mata quando, diante de milhares de brasileiros mortos por covid-19, ele zomba, tripudia e debocha: “E daí?”. Como diz Emicida, “eleja um assassino e espere um genocídio”.
Está acontecendo agora. Neste momento. É grande a possibilidade de que, no futuro, Bolsonaro seja julgado pelo Tribunal Penal Internacional e seja condenado por crimes contra a humanidade, como aconteceu com outros perversos antes dele. Pelo menos duas denúncias já alcançaram a corte. Mas, quando isso acontecer, será muito tarde. Poderemos estar todos mortos.
O que vamos fazer agora, já? Ou vamos deixar “o homem mau” nos matar a todos? O que, afinal, vamos dizer às crianças que esperam ser protegidas por nós?
Tenho nojo de Bolsonaro. Cada palavra que contorce sua face ao sair da boca é uma palavra violenta. O homem cospe cadáveres. Seus três filhos mais velhos são suas cópias, numeradas, como ele mesmo diz (zeroum, zerodois, zerotrês...), comprovadamente estúpidos como o pai e também perversos, pelo menos um deles claramente rondando a psicopatia. Precisei escrever um livro para compreender como foi possível eleger o pior humano para a presidência do Brasil. E não paro de seguir tentando compreender. Mas, para além de compreender, é preciso impedir. Nossa emergência é barrar Bolsonaro, porque a cada segundo a pilha de cadáveres aumenta. Não são números “os inumeráveis”, são pessoas que alguém amou.
Temos informação, pesquisa e capacidade de interpretação dos fatos para concluir que Bolsonaro não é uma anomalia, no sentido de que só existe ele. Se fosse assim, seria bem mais fácil. Bolsonaro representa uma parcela dos brasileiros. Não teria sido eleito não fosse esse núcleo que se identifica com ele e o reconhece como espelho. Segundo as pesquisas, Bolsonaro é a expressão de quase um terço dos brasileiros, que o apoiam mesmo em sua política de morte —ou provavelmente o apoiam exatamente pela sua política de morte. Teremos que nos debruçar por muito tempo e com muito afinco para compreender como nos tornamos um país capaz de produzir um tipo de humano tão desprezível e tão violento. Já temos bastante material de pesquisa para começar.
Sabemos também que não é apenas o Brasil. O mundo já produzia pessoas capazes de urrar de prazer diante de execuções de outros seres humanos ou diante de pessoas sendo devoradas por animais na arena antes de o Brasil existir. A história é pródiga em mostrar a massa gritando e pedindo mais sangue, mais dor, mais violência. Os horrores do século 20, como o nazismo, tão em evidência no momento, estão bem próximos de nós. Mas era possível desejar que talvez pudéssemos ter chegado ao século 21 com mais capacidade de lidar com nossa humana monstruosidade, mais aptos a nos proteger de personagens como Bolsonaro.
Por uma série de razões, já presentes no fato de termos sido o último país das Américas a abolir a escravidão negra, a sociedade brasileira tem suas deformações particulares para lidar. Como, por exemplo, a que nos faz um dos países campeões em linchamentos. Uma parcela dos brasileiros gosta de derramar o sangue dos outros, goza com a dor dos outros, traveste seu horror pessoal em moralidade. Amarra uma bandeira do Brasil no pescoço e vai defecar pela boca em praça pública, ameaçando todo o já desorganizado e insuficiente combate ao coronavírus e, portanto, condenando os mais desprotegidos à morte. É o pessoal capaz de buzinar na frente de hospitais, onde pessoas agonizam, e trancar ambulâncias no trânsito. Nós os conhecemos, seguidamente eles fazem parte da família.
Nenhum deles, porém, tinha chegado à presidência. Sempre parava no Congresso. E, então, esse limite foi rompido. O limite em que um Bolsonaro deixa de ser o pária do Congresso, o bufão que garantia sua reeleição como deputado mas não tinha nenhuma influência real, para se converter no presidente do Brasil. E mais: no “mito”. Ele assume o poder e, como anunciou que faria, converte o Governo numa máquina de produção de morte.
Sabemos que Bolsonaro não conquistou essa façanha sozinho. Que ele foi apoiado por parte das elites nacionais, em todas as áreas. Muitos já compreenderam o que fizeram e o abandonaram por medo de contaminar sua biografia com o sangue produzido em quantidades cada vez maiores por Bolsonaro. Hoje quase só restaram os piratas do empresariado, os generais com nostalgia de ditadura, os predadores do agronegócio e os evangélicos de mercado. Não é pouco o que ainda restou. Mas é menos do que já foi. Quem ainda tem o que perder, como Sergio Moro —herói decaído, mas não tanto que não tenha esperança de juntar os cacos—, está debandando. Do sangue, afinal, ninguém escapa. E há cada vez mais sangue nesse governo.
Já escrevi bastante sobre isso, antes e depois da eleição. Os artigos estão disponíveis para quem quiser lê-los. Agora, porém, preciso repetir que Bolsonaro está nos matando. É imperativo agir no modo emergência. Lutar contra Bolsonaro já não é apenas lutar por bandeiras essenciais como justiça social, igualdade de raça e de gênero, equidade na distribuição da renda, taxação das grandes fortunas, preservação da Amazônia e de seus povos. Passamos a um estágio muito mais agudo. Lutamos hoje para nos manter vivos, porque Bolsonaro boicota as ações contra o coronavírus. Bolsonaro não é coveiro, categoria corajosa e digna de brasileiros. Bolsonaro é assassino.
Não podemos lidar com um perverso como se o que ele faz fosse do jogo democrático. Nossa pergunta é clara: como vamos impedir Bolsonaro de usar a máquina do Estado para continuar a matar?
Nossos vizinhos temem por suas fronteiras. O Paraguai já constatou que a maioria de seus casos estão vindo do Brasil. No mundo inteiro o Brasil está se tornando um pária dominado por um pária. Brasileiros já são olhados com desconfiança. Governados por um maníaco, vivemos uma explosão no crescimento da contaminação por covid-19 e ninguém quer o vírus voltando a entrar pela sua porta depois de tanto esforço para tentar controlá-lo. O planeta já começa a enxergar uma tarja de risco biológico na nossa testa. É isso, sim, que pode prejudicar a economia por muito mais tempo.
Prestem atenção em quem está morrendo mais. São os negros, são os pobres. São os presos trancados em viveiros de vírus, numa violação de direitos inacreditável até para os padrões medievais do Brasil. Quem está morrendo mais são aqueles que desde a campanha Bolsonaro trata como matáveis —ou como coisas. O vírus mata cada vez mais nas aldeias indígenas e vai se espalhando pela floresta amazônica. Quando os invasores europeus chegaram, os vírus e as bactérias que trouxeram com eles exterminaram 95% da população indígena entre os séculos 16 e 17. Há chance de que o novo coronavírus produza um genocídio dessa dimensão caso não exista um movimento global para impedi-lo.
Bolsonaro já demonstrou que apreciaria se os indígenas desaparecessem ou se tornassem outra coisa. “Humanos como nós”, nas suas palavras. Humanos vendedores e arrendadores de terra, humanos mineradores, humanos plantadores de soja e de cascos de boi, humanos amantes de hidrelétricas, de ferrovias e de rodovias. Humanos que se descolam da natureza e a convertem em mercadoria.
São os povos indígenas que colocam literalmente seus corpos diante da destruição da Amazônia e de outros biomas. Mas parte dos apoiadores de Bolsonaro, que hoje também lideram campanhas de “abertura do comércio” nas cidades amazônicas, tem matado os indígenas (e também camponeses e quilombolas) à bala. O vírus pode completar o extermínio de uma forma muito mais rápida e numa escala muito maior. Basta fazer exatamente o que Bolsonaro está fazendo: nada para protegê-los e tudo para estimular a ruptura das regras sanitárias da Organização Mundial da Saúde; nada para protegê-los e tudo para estimular a invasão de suas terras por garimpeiros e grileiros. O que está em curso é exatamente isso: um genocídio.
E também ecocídio, porque na Amazônia esses entes não andam separados. Como sabemos, os destruidores da floresta não fazem home office. O desmatamento avança aceleradamente, aproveitando a oportunidade da pandemia. Os alertas cresceram 64% em abril, depois de já terem batido recordes no início do ano. Bolsonaro demitiu os chefes de fiscalização do Ibama que estavam tentando impedir o massacre da floresta. Está militarizando tanto a saúde, ao colocar militares em postos importantes do ministério, quanto a proteção do meio ambiente, ao subordinar o Ibama e o ICMBio ao Exército nas ações de fiscalização. Em toda a região, camponeses, ribeirinhos e indígenas denunciam que os caminhões cheios de árvores recém derrubadas não param de atravessar as estradas vindos da floresta. Eles gritam. Mas quem os escuta?
Bolsonaro está transformando (também) a Amazônia num gigantesco cemitério. Ele é tão perverso que usa a pandemia para matar a floresta e tudo o que é vivo. O presidente do Brasil pode se tornar o primeiro vilão da história que, sem poder nuclear, tem grande poder de destruição. Sem floresta amazônica não há como controlar o superaquecimento global. Sem controlar o superaquecimento global o futuro será hostil para a espécie humana. Se a Amazônia chegar ao ponto de não retorno, do qual se aproxima velozmente, seu território poderá se tornar um disseminador de vírus nos próximos anos. Neste momento, por mais que os demais países promovam ações de controle e fechem suas fronteiras, sem conter o novo coronavírus num país com 210 milhões de habitantes será muito difícil controlar a pandemia no planeta.
É disso que se trata. É real. Aqueles que lavam as mãos, como disse o ator Lima Duarte, “o fazem numa bacia de sangue”. Lima Duarte fez essa declaração após o suicídio de seu colega Flávio Migliaccio, que tirou a própria vida dolorosamente decepcionado com o Brasil e com os brasileiros. Eu iria ainda mais adiante que Lima Duarte. Quem segue com Bolsonaro não está apenas lavando as mãos numa bacia de sangue. Está matando junto com ele. Uma das perversidades do perverso é produzir cúmplices. E é isso que Bolsonaro faz. Não é possível testemunhar o que está acontecendo e seguir com o humano monstro sem se tornar o humano monstro. Não haverá sabonete, álcool gel, desinfetante capaz de apagar esse sangue das mãos dos assassinos, estejam eles na Fiesp, no Congresso ou no Theatro Municipal.
O que vamos dizer à criança de dois anos que denuncia a nossa impotência em protegê-la quando ela pede socorro contra “o homem mau”?
Neste momento, seguidores de Bolsonaro se aglomeram em Brasília. Alegam que estão praticando a desobediência civil. Como tudo o que tocam vira mentira, todas as palavras saem estupradas depois de passar por sua boca, o que fazem nada tem a ver com desobediência civil, conceito caro a tantos movimentos que tornaram o mundo mais justo e igualitário. O que exercitam diariamente é a mais vil obediência ao maníaco do Planalto e também aos seus próprios instintos de morte, ao seu gozo por sangue e pela dor dos outros. O que treinam cotidianamente é a obediência ao seu próprio sadismo e desejo de violência que Bolsonaro libertou pelo exemplo e pela impunidade que desfrutou. Tentam encobrir seus piores instintos com a bandeira do Brasil, da qual também se apropriaram como se o país pertencesse apenas a quem mata o Brasil.
Desobediência civil hoje é ficar em casa apesar do maníaco que manda sair. Desobediência civil é cuidar de todos os outros apesar do perverso que diz “e daí?”. Desobediência civil é desobedecer ao projeto de genocida que está no poder. E para isso é necessário usar os instrumentos de nossa cada vez mais ferida democracia para tirá-lo de lá e impedir que continue matando. É isso ou dizer para a criança de dois anos que somos covardes demais para protegê-la e, depois da palavra o gesto, abrir a porta da casa para a morte.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Marcus Pestana: O legado possível da pandemia
Já ficou gasta, pelo excessivo uso, a afirmação de que as crises, por um lado, geram desafios, ameaças e problemas graves, por outro, abrem oportunidades. Do enfrentamento de eventos catastróficos como a atual pandemia do coronavírus e do aprendizado individual e coletivo decorrente, podem nascer mudanças de atitudes, gerando saltos de qualidade nas políticas públicas, no comportamento empresarial e no relacionamento humano e social.
Tudo pode acontecer, inclusive nada. Não é uma decorrência automática. Depende do comportamento de cada um e de todos. A “gripe espanhola” de 2018, que infectou 25% da população mundial da época, 500 milhões de pessoas, e levou a morte de 17 a 100 milhões de pessoas, segundo as precárias e imprecisas estatísticas, se deu em plena 1ª. Guerra Mundial e não obrigatoriamente gerou mais solidariedade e integração entre as Nações e as pessoas, visto que logo à frente tivemos a maior recessão da história em 1929 e a 2ª. Guerra Mundial, de 1939 a 1945.
Sejamos otimistas. Vamos torcer e trabalhar para que a pandemia da COVID-19 produza, no Brasil e no mundo, avanços civilizatórios na direção de uma sociedade mais solidária, humana, justa e democrática.
A saúde, que sempre foi uma preocupação central dos brasileiros, assumiu um protagonismo inédito. O verdadeiro bombardeio de notícias e informações sobre o coronavírus, roubando a cena de outros assuntos da política e da economia, tende a gerar uma atenção maior às políticas públicas de saúde. Um primeiro legado da pandemia, portanto, pode ser o crescimento da consciência de que é preciso aumentar os investimentos em saúde e melhorar muito a gestão de nosso sistema.
O sistema brasileiro de saúde, apesar de no nome o SUS carregar a palavra “único”, é composto de três subsistemas: o sistema público nacional universal, de cobertura integral e gratuita; a saúde suplementar – planos e seguros privados; e o sistema de desembolso direto dos cidadãos – os pagamentos particulares feitos nos balcões das farmácias e laboratórios ou para remunerar serviços médicos e odontológicos.
O SUS é ancorado no texto constitucional e na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080/1990) e baseado no direito de cidadania e no dever do Estado prover os serviços de saúde indistintamente a todos os cidadãos brasileiros. Portanto, um direito determinado pela Constituição brasileira no âmbito das relações Estado/cidadão.
Diferentemente, a saúde suplementar é derivada de uma relação de mercado entre o usuário contratante e as operados e seguros de saúde, baseada numa figura central nas economias de mercado, realidade, porém, muitas vezes esquecida no Brasil: o contrato. A saúde suplementar atende a 47 milhões de brasileiros, ou seja, quase 25% da população.
Nas lacunas existentes no SUS e na saúde suplementar, muitas vezes os brasileiros são levados a tirar o dinheiro do próprio bolso para pagar medicamentos, consultas, exames.
O SUS tem resistido heroicamente à epidemia, embora em vários estados e cidades o sistema hospitalar esteja vivendo um colapso, sobretudo na oferta de leitos de UTI. Vivemos um descompasso crônico no SUS entre os recursos humanos e financeiros disponíveis e as necessidades da população. Isto é fruto de uma realidade histórica desde sua criação que é a do subfinanciamento. Segundo dados da OMS (2014), em dólar equalizado, o investimento público anual por habitante no Brasil gira em torno de US$ 435. Enquanto isso sistemas de acesso universal e cobertura integral em outros países investem muito mais: Portugal (US$ 1.363), Espanha (US$ 1.890), Reino Unido (US$ 3.266), Canadá (US$ 3.704) e França (US$ 3.868). Dinheiro não é tudo. Prova disto é que o país que mais gasta, os EUA, não tem os melhores resultados. Mas não há como fazer mágica.
Quem sabe, com o aprendizado da pandemia, governos, Congresso Nacional, sociedade deem mais atenção ao orçamento do SUS e priorizem este investimento essencial para a sociedade? Numa das inúmeras LIVEs que participei neste período de isolamento social, testemunhei um emocionante e sensível depoimento de um prefeito de uma grande cidade brasileira, que tendo passado dias angustiantes em uma UTI, graças a COVID-19, ao ser perguntado sobre qual o aprendizado pessoal que herdou, ele disse que tinha construído quatro viadutos em seu mandato, mas que a partir de agora teria um novo foco em relação ao sistema de saúde. Será que teremos a mesma percepção coletiva após a pandemia?
Mas outros legados poderão prevalecer. Entre eles, certamente haverá uma revalorização do desenvolvimento científico-tecnológico e da cadeia produtiva nacional da saúde. Todos nós ficamos na torcida por nossos cientistas, que num esforço concentrado e hercúleo, buscam uma vacina ou um tratamento contra o coronavírus. Vamos investir mais em nossos cientistas e pesquisadores? A inovação é a chave do desenvolvimento no mundo contemporâneo. Também, não só no Brasil, ficamos alarmados com a excessiva dependência global da oferta de equipamentos e insumos farmacêuticos ativos (IFAs) de alguns poucos países como China, Índia e Coréia do Sul. Houve uma verdadeira “guerra comercial” para a compra de ventiladores pulmonares, insumos e equipamentos de proteção individual. Haverá mais atenção no Brasil ao setor produtivo nacional e uma política industrial inteligente para que situações assim não se repitam?
Outra conquista possível e que veio para ficar é a telemedicina. Poderemos aumentar e muito a produtividade de nossos escassos recursos e ampliar o acesso aos serviços de saúde com o uso das modernas ferramentas tecnológicas que possibilitam o atendimento à distância. Claro que precisamos de uma boa normatização do assunto. Mas este avanço não pode ficar prisioneiro de razões corporativas.
Ainda como herança, nós certamente poderemos ter uma integração muito maior entre o SUS e a saúde suplementar. Como os recursos públicos são escassos e a saúde suplementar atende a um quarto da população, é fundamental abrir os canais de diálogo e discutir transparentemente as linhas de cooperação, já que quanto melhor for o desempenho da saúde privada, melhor para o SUS. Várias iniciativas governamentais e legislativas têm, nesse momento de crise, buscado o apoio do sistema privado de saúde, que voluntariamente fez doações expressivas para centros de pesquisas, hospitais de campanha, governos, organizações não governamentais de assistência social, disponibilização de leitos de UTI, equipamentos. Muitas vezes estas meritórias iniciativas esqueciam a diferença essencial entra a natureza constitucional do SUS e o fundamento contratual da saúde suplementar. Se queremos que a saúde suplementar seja eficiente e complemente as ações do SUS, não podemos minar a sustentabilidade econômica do setor privado. O diálogo transparente e fundamentado é o caminho da cooperação e da solidariedade.
Por último, mas não menos importante, poderá sobreviver talvez um ambiente mais favorável às ações de prevenção e promoção da saúde e aos autocuidados. Fomos treinados na pandemia pelos profissionais da saúde, pelas autoridades sanitárias e pelos meios de comunicação a investir no autocuidado e na prevenção. Lavar as mãos, usar máscaras, evitar aglomerações. O aumento da consciência sobre a importância da prevenção contra doenças pode ser o maior legado dessa pandemia. Alimentação saudável, atividades físicas, combate ao tabagismo, ao alcoolismo e às drogas, hábitos sexuais saudáveis, monitoramento permanente dos vetores de doenças crônicas (hipertensão, diabetes, entre outras), podem ter um impacto inimaginável sobre os indicadores de saúde.
Como disse, nenhum avanço será automático. O ser humano é o único na face da terra que tem consciência plena, capacidade de aprendizado amplo, possibilidade de transformar a vida. Que os momentos de tensão e angústia provocados pela COVID-19 sirvam de alavanca para, através do aprendizado pessoal e coletivo, conquistarmos uma saúde melhor para todos os brasileiros.
Demétrio Magnoli: Réplica a um confinado bacana
Eu, que furo a quarentena, sou pretexto para você desviar tua indignação
Li a tua carta a um não confinado, na Folha (9 de maio). Vesti a carapuça e o jornal abriu espaço para essa minha resposta. Você é um cara bacana, ama o planeta, valoriza a vida, me despreza. Concordo com teus argumentos sobre a necessidade de confinamento.
Só não pratico o que acho certo: furo a quarentena todos os dias. Coerência é coisa de bacana, num outro sentido.
Sou "zé povinho", como você escreveu. E, pior, não estou entre os mais pobres. Tenho um estabelecimento (não direi de que tipo, nem onde fica), que toco com minha mulher e dois funcionários. Fechei por três semanas, cumprindo a ordem do governador. Reabri, clandestinamente, para evitar a falência. Enquanto você vê Netflix e até pinta, passo o dia no Whats, marcando hora com clientes. Levanto a porta, eles entram, abaixo rápido. Um "ser antissocial", na tua síntese bacana.
Você me odeia; eu te invejo. Suspeito que o epidemiologista mencionado na tua carta, aquele da quarentena por "mais de um ano", tem salário garantido na universidade ou em cargo público, com grana do meu imposto. A moda dos bacanas com renda certa é posar de bacana diante dos sem renda certa. O governo declarou-me "não essencial" e proíbe que eu ganhe a vida, mas não me dá um tostão. Diz que devo salvar vidas, mas não salva a minha. Bacana, né?
Ciência! Consciência! Não sou doutor, mas entendi a história do vírus. Nem precisa recomendar pra eu lavar as mãos. Sei que as UTIs funcionam no limite. Um senhor de idade, vizinho, morreu de Covid-19. Tinha problema no coração, mas parecia bem.
Mesmo assim, nada --nenhum gráfico ou imagem chocante-- me convence a transferir minha família para a pobreza. Tudo que tenho é meu negócio, que paga as contas de casa, a faculdade do meu filho, o salário dos auxiliares.
"Economia, consertamos depois", né? Juntos, no mesmo barco, sem individualismo. Ok: você topa dividir tua renda comigo?
Não sou tão desinformado como você imagina. Bolsonaro, já vi, não cuida da saúde de todos nem protege a renda do "zé povinho". Seu companheiro de jornada é o caos --ou seja, eu. O Capitão Morte investe no meu desamparo para desmoralizar a quarentena. Tem a cooperação involuntária de um prefeito que substituiu aglomerações de carros por aglomerações de gente que não possui vários carros.
Sou o caos, mas estou na companhia de muito bacana. Você, a ordem, quer chamar a polícia sanitária para fechar meu negócio. Parabéns: salva vidas, às custas da minha.
Quem lê tanta notícia? Um certo Daniel Balaban, do Programa Mundial de Alimentos da ONU, calcula que 5,4 milhões de brasileiros serão rebaixados à pobreza extrema. Conheço um que já foi, meu primo.
Jardineiro, mora na favela. Dois meses parado: vocês, bacanas, não querem "gente estranha" em casa. A mulher, doméstica, ainda empregada, segura as pontas. Chegaram, finalmente, os tais R$ 600. Dois moleques sem escola: o menor não sai da rua; o maior vai hoje a um baile funk. Meu filho vai com ele. Vetores de contágio, é assim que agora se fala, não é?
"'Lockdown' já!", você exige, com milhares de cadáveres de razão. Pergunto, porém, de que marca? Europeia, chinesa ou brasileira? Não fiz faculdade, como você, mas acho que nada vem sem embalagem.
O "lockdown" europeu precisa da Europa toda: sociedades de classe média com governos funcionais. O chinês, que você elogia, precisa da China inteira: ditadura total, o governo acima de todos. Sobra o brasileiro, me engana que eu gosto, aplicado em São Luís: a cidade dividida entre a quarentena dos bacanas e o fuzuê dessa gentinha sem Netflix.
Sei que eu, não confinado, te atrapalho. Mas, pense bem, também ajudo: minha existência, essa incômoda presença, fornece a você o pretexto perfeito para desviar tua indignação. Não é culpa deles, os governantes. É minha.
Assino: um cidadão transgressor. Volto ao Whats.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Fernando Gabeira: A vida numa ‘live’ sobre coronavírus
Política de negação da extrema direita encontrou no Brasil sua face mais rude
Nem sempre tenho chance de falar sobre tudo isso que está acontecendo. Quero dizer, limito-me a comentar todos os dias apenas alguns aspectos de uma realidade que me desafia, ou, se quiserem, me atropela.
Nesta semana tive a chance de conversar com o embaixador Marcos Azambuja, num encontro promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Além da amizade, partilhamos um certo senso de humor, que sobrevive mesmo nestas horas sombrias.
Trabalho com a questão ambiental desde a década de 1970. Sei que as pessoas têm certa dificuldade em reconhecer um perigo invisível. Foi assim no desastre de Chernobyl. Muitos europeus não acreditavam que o próprio leite que consumiam poderia estar contaminado. Em Goiânia não era tanto a invisibilidade, mas a sedução de uma pedra brilhante (césio-137) que enganava as pessoas na Rua 57.
Com Chernobyl acentuou-se o declínio das classes dirigentes soviéticas. A epidemia de coronavírus não trouxe desgaste do mesmo nível para o PC chinês. Há um vácuo da presença americana, uma vez que o país abandonou suas pretensões de liderança e refugiou-se no lema America first. Coube a uma potência média, a Austrália, com apenas 25 milhões de habitantes, lançar uma iniciativa internacional para apurar a responsabilidade da China.
Quem gostava muito de comparar a Austrália com o Brasil era Lionel Brizola. Não é minha intenção. A Austrália tem um governo conservador e a China como seu maior parceiro comercial. No entanto, encarou o problema e ainda por cima unificou as forças políticas internas, num esforço comum.
O governo brasileiro censura a China nos bastidores e nas redes sociais, algo bastante imaturo. Nesse caso, o melhor seria ficar calado.
Mas o pior foi a incapacidade de encontrar uma resposta nacional e solidária no combate ao coronavírus. A política de negação da extrema direita internacional acabou encontrando no Brasil sua face mais rude.
Bolsonaro negou a importância da pandemia, afirmando que não passava de uma gripezinha. Consequentemente, negou toda a política de isolamento social, estimulando seus seguidores a combatê-la.
Quando surgiram as primeiras mortes e depois elas foram se acumulando, o processo de negação estendeu-se aos próprios mortos. Seria mesmo tanta gente ou estava havendo uma superestimação?
Com as imagens dos caixões vieram novas dúvidas: existe gente dentro ou são caixões cheios de pedras? Em Minas foi divulgado o vídeo de uma testemunha vendo pedras em caixão. Certamente, uma militante paga. Uma deputada federal chegou a afirmar que um caixão no Ceará estava vazio.
Assim como nega o coronavírus em todas as etapas, Bolsonaro quer passar para a nova fase, como se ele não tivesse devastado a saúde dos brasileiros, sem planos de transição. O Brasil tornou-se um caso internacional. Reportagens, memes, comentários escandalizados na TV estrangeira, Bolsonaro aos poucos se transforma em vilão mundial. Essa é uma das razões por que o título da nossa conversa é a tempestade perfeita. O vírus no Brasil metamorfoseou-se em molécula política.
Muitos dizem que a pandemia é o grande drama que vivemos desde a 2.ª Guerra Mundial. Mas, se observamos aquele período, a situação do Brasil é pior. Vargas custou, mas encontrou seu rumo. Bolsonaro simplesmente não consegue sintonia com o esforço nacional na luta contra o coronavírus. O Brasil não era um dos principais protagonistas da guerra, mas está se tornando uma das principais vítimas da pandemia.
Estamos, como todo mundo, sepultando sonhos. Não importa que tipo de futuro o coronavírus nos permitirá, também ficaremos mais pobres.
Pela minha experiência, a pobreza não é tão terrível quando mantemos nossa vida amorosa e intelectual em bom nível. O problema será viver num país em que a pobreza material inevitável é seguida de um debate político desolador, uma permanente troca de insultos. De qualquer maneira, a alegria de se descobrir vivo quando atravessarmos este túnel talvez compense todo o susto e a tristeza.
A ideia de que o coronavírus nos tornaria a todos melhores pessoas é uma ilusão. Todos os grandes problemas do Brasil, incluída a corrupção, estão em vigor neste período. Ao lado de um louvável movimento de solidariedade, é bom lembrar.
O que pode acontecer, entretanto, é uma chance de negociarmos prioridades, uma vez que a pandemia revelou não apenas a profunda desigualdade social, mas como ela bloqueia o futuro. Quem sabe, também, no final do processo, será possível restabelecer o papel da ciência e do esforço intelectual, ambos tão estigmatizados pelo populismo de direita.
Quando digo papel da ciência não estou pensando em mitificá-la ou transformá-la em nova religião, apenas reconhecer sua importância e continuar trabalhando nas esferas em que atuamos, cheias de incertezas e imprecisões.
Somos uma geração de risco, em todos os sentidos. Espero que possamos sair de casa bem rápido, pois ainda há muito que fazer. Sobretudo depois que nos apegamos tanto à vida, “à vida apenas, sem mistificação”, como dizia o poeta.
Dito isso, creio que, por algum tempo, posso voltar aos detalhes cotidianos.
Vinicius Torres Freire: Vendas no varejo caem menos em SP
Tombo no país foi menor do que o esperado, mas bola de neve mal começou a rolar
As vendas no varejo em São Paulo não caíram em março, caso único entre os estados do país. Sim, março é o passado distante e não foi inteiramente contaminado pelo coronavírus. Além do mais, quando se incluem as vendas de veículos e de material de construção, o colapso foi grande e geral, embora o resultado paulista não tenha sido dos piores, ao contrário, e abaixo da média brasileira.
Não é resultado para animar ninguém. Pode ser mais um indício de desigualdade. Com renda mais alta e mais reservas financeiras, talvez os paulistas tenham podido manter parte do consumo, em especial em mercados e farmácias, talvez até fazendo mais estoques. Pode ser ainda que as pessoas tenham mais meios em geral de fazer compras virtuais, pela internet, tendo mais dinheiro e cartões de crédito ou débito.
Em março, as vendas no varejo paulista foram 0,7% superiores a fevereiro e espantosos 5,4% maiores que em março de 2019. Na média brasileira, quedas de 2,5% e 1,2%, respectivamente.
No varejo dito “ampliado”, que inclui vendas de veículos e material de construção, a baixa paulista foi de 11,1% em relação a fevereiro, oitavo pior resultado nacional, mas acima do resultado do Brasil, que foi de queda de 13,7%.
As vendas dos setores “hipermercados, supermercados, produtos alimentícios, bebidas e fumo” cresceram, no país, 14,6%, de fevereiro para março; de farmácia, perfumaria e produtos médicos e ortopédicos, 1,6%. No varejo restrito, sem veículos e material de construção, as vendas dos supermercados têm peso de metade do resultado final.
O restante dos setores foi do desastre maior ao menor, mas desastre, com queda de mais de 42% nas lojas de roupas, tecidos e calçados, por exemplo.
No geral, o tamanho da catástrofe foi um pouco menor do que a esperada pelas projeções de economistas, no entanto muito mais desorientadas por um choque deste tamanho e inédito. Ainda assim, os números de março no comércio, na indústria e nos serviços acabaram por rebaixar ainda mais várias projeções relevantes para o ritmo do PIB, que estão chegando perto da 5% de queda. É terrível, mas as revisões para baixo ainda não têm data para acabar.
Abril foi um mês inteiro tomado pelas paralisações de atividades, de retração do consumo pelo medo e pela queda abrupta de renda e do nível de emprego. Algum mínimo sinal de despiora? Os indicadores mais recentes de atividade econômica são quase inexistentes; os números, de resto, podem estar todos perturbados, tanto ou mais quanto a vida e a perspectiva de sobrevivência das pessoas.
Um número que tem saído com frequência é o do valor de compras com cartão, débito ou crédito. Na primeira semana da paralisação da epidemia, haviam caído mais de 52% em relação a semana equivalente de fevereiro. Houve uma ligeira despiora nas semanas seguintes. Nas semanas finais de abril, as baixas andavam pela casa de 35% de baixa (sempre em relação a semana equivalente de fevereiro).
Os dados são da Cielo, de compras com cartão no varejo. No total, o valor dessas compras equivale a cerca de 40% do que nas contas nacionais, no PIB, se chama de “consumo das famílias”.
Ainda assim, apesar dessa aparente despiora, não dá para dizer o que foi abril no varejo e menos ainda no restante da economia. O efeito bola de neve mal começou. Demissões e cortes de salários reduzem o consumo e provoca mais medo do futuro, o que coloca os consumidores restantes na retranca.
Hélio Schwartsman: Salvar a democracia
País já falhou na epidemia; não pode falhar na democracia
Não gosto da ideia de adiar as eleições municipais previstas para o segundo semestre e considero golpe a proposta de esticar o mandato dos atuais prefeitos e vereadores até 2022.
No mês passado, num momento da pandemia ao que tudo indica mais agudo do que será outubro, sul-coreanos foram às urnas sem que o surto tenha recrudescido. É uma prova de princípio de que eleições podem ser realizadas sem pôr a população em perigo.
É claro que talvez sejam necessárias adaptações. O problema é que nossa legislação eleitoral é rígida, detalhista e não admite alterações que não tenham sido aprovadas ao menos um ano antes do pleito. Daí que sugiro aprovar desde já uma PEC que conceda à Justiça Eleitoral, em caráter excepcional, poderes discricionários para alterar prazos e eventualmente mexer em outros aspectos do pleito.
A principal dificuldade prática é o teste das urnas eletrônicas. Não me convence. Ainda há muito tempo até outubro, e não vejo motivo para não classificarmos o trabalho do pessoal dos cartórios eleitorais como essencial. Afinal, se padarias e centrais de atendimento telefônico podem funcionar, a conferência das urnas também pode.
No plano político, o obstáculo no cronograma são as convenções partidárias, que devem ocorrer entre 20 de julho e 5 de agosto. O receio é que elas produzam aglomerações. De novo, não me convence. Basta determinar às legendas que realizem seus encontros de forma remota. Há tempo de sobra para preparar isso.
Se o afastamento social ainda for necessário em outubro, a Justiça pode fazer com que a votação se estenda por mais de um dia, para evitar as filas. Obviamente, seria preciso também suspender a obrigatoriedade do voto, para que as pessoas que não se sintam seguras em expor-se ao vírus não sejam obrigadas a fazê-lo.
O Brasil já fracassou no controle da epidemia; não precisa fracassar também na manutenção da democracia.
José Casado: Falta governo na pandemia
País desconhece a realidade sanitária nas cidades, de pessoal, leitos e equipamentos na rede hospitalar
Falta governo na saúde. A evidência está na devastação provocada pelo vírus em menos de vinte semanas.
Em dezembro, quando a China confirmava a disseminação, 11 estados brasileiros fechavam 17 hospitais e 30 postos do SUS. Faltou dinheiro, alegaram aos repórteres André de Souza, Marlen Couto e Sérgio Roxo.
Jair Bolsonaro repetia Dilma Rousseff, que presidiu a desativação de 11,5 mil leitos hospitalares — um a cada duas horas —, nos primeiros dois anos e meio. A redução da rede e as greves aumentaram a fila do SUS, única opção para três em cada quatro brasileiros. A imprevidência fez nascer outra fila, a das aposentadorias.
Antes do carnaval, no 28 de janeiro, deputados cobraram um plano federal para a Covid-19. Fez-se silêncio no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministérios. A prioridade era o corte linear nos gastos.
Quando a “gripezinha” ameaçou o SUS de colapso, em abril, houve uma miríade de promessas: 2 mil novos leitos de UTI, 40 mil respiradores, 44 milhões de testes para Covid-19, entre outras coisas. Até sexta haviam sido entregues 400 leitos de UTI (20% do prometido), 487 respiradores (1,2% ) e, com sorte, maio acaba com 2 milhões de testes (4,5%).
Com menos 17 hospitais no país, o governo resolveu erguer 48 unidades de campanha ao custo de R$ 10 milhões cada. Bolsonaro posou para imagens num deles (220 leitos), em Águas Lindas (GO). Está pronto há semanas, mas continua fechado, assim como o de Boa Vista (88 leitos).
O desgoverno na saúde levou a um apagão de informações. O país sabe o ritmo da inflação a cada dia, mas desconhece a realidade sanitária nas cidades, de pessoal, leitos e equipamentos na rede hospitalar.
Com fila de mais de mil doentes, o Rio vive a agonia da anarquia na pandemia. Possui oito instituições federais de saúde em extrema precariedade. Elas consomem R$ 3,5 bilhões por ano, o equivalente ao custo anual da rede de 66 hospitais estaduais.
Ricardo Abramovay: Lições da pandemia para a crise climática
Ao contrário do coronavírus, as emissões de gases de efeito estufa não respeitam o fechamento de fronteiras
A “Eu sabia que havia cem casos de coronavírus na França e estava para viajar àquele país. Eu sabia também que a evolução da doença era exponencial. Eu nem considerei o fato de que se a taxa de infecção estivesse dobrando a cada três dias, em um mês, o número inicial de infectados seria multiplicado por mil. Tudo isso está além de nossa compreensão intuitiva. Inclusive da minha”.
O depoimento à revista New Yorker seria trivial, não fosse o fato de que ele vem de ninguém menos que Daniel Kahneman, psicólogo, autor de “Rápido e Devagar” e contemplado com o Nobel de Economia em 2002, por mostrar o quanto nossos comportamentos distanciam-se da imagem canônica do homem econômico racional. Seu trabalho inspirou as pesquisas de importante vertente do pensamento social contemporâneo, voltada ao estudo da maneira como as pessoas se comportam diante do risco.
Um de seus mais importantes discípulos, Paul Slovic, abriu caminho a estudos que buscam explicar as bases psicológicas a partir das quais nos relacionamos com os riscos e sobretudo com os riscos resultantes de tecnologias industriais. No que se refere ao coronavírus, Slovic, ilustra o crescimento exponencial mostrando que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, o tempo entre o primeiro caso da doença e a marca de cem mil atingidos foi de 67 dias. Outros cem mil casos foram registrados 11 dias depois. E levou apenas quatro dias para que mais uma leva de 100 mil pessoas adoecessem.
A análise de risco é fundamental sobretudo para eventos de baixa probabilidade, cuja ocorrência, no entanto, é de grande impacto. Sabemos lidar com eventos relativamente habituais como os acidentes de trânsito ou diferentes tipos de doenças. Mas faz parte dos mecanismos cognitivos básicos com base nos quais organizamos nosso dia-a-dia, guiarmo-nos pelo que já sabemos e a partir de referenciais que nos são fornecidos pelos grupos a que pertencemos. Tendemos a focar nossas decisões no curto prazo; a ignorar lições de desastres passados; a imaginar que nunca seremos atingidos por males que afetam os outros; a aderir a explicações simples diante de fenômenos complexos e a fazer escolhas apoiados na conduta e no universo cultural dos que nos são próximos.
Estas características cognitivas, resultantes de nossa própria evolução, constituem obstáculos à percepção de fenômenos que têm trajetória contrária ao que nos ensina nossa experiência cotidiana, como mostraram outros dois especialistas em análise de risco, Robert Meyr e Howard Kunreuhther, em The Ostrich Paradox.
A experiência acumulada no estudo sobre percepção de riscos é que explica o fato de Paul Slovic e Howard Kunreuther fazerem exatamente agora um alerta fundamental. Há outro fenômeno que traz a marca do crescimento exponencial e diante do qual, igualmente, se espalha a ilusão perceptiva de que seu poder destrutivo é menor e muito mais distante do que o anunciado pelos que o estudam: as mudanças climáticas.
Não poderia ser maior o contraste entre a mobilização massiva (ainda que, em tantos casos, tardia e hesitante) contra o coronavírus e a complacência diante da emissão de gases de efeito estufa, venha ela dos combustíveis fósseis; dos fertilizantes nitrogenados; do rebanho bovino ou da destruição florestal. Os gases de efeito estufa acumulam-se na atmosfera em magnitude tal que vai esgotando a capacidade de serem neutralizados por seus sorvedouros naturais, as florestas (que continuam sendo destruídas) e os oceanos. O derretimento das geleiras no Ártico (que, há apenas quarenta anos, cobriam o dobro da superfície que ocupam atualmente) faz com que o calor antes refletido passe a ser absorvido pelos oceanos, criando um feedback altamente destrutivo. O resultado é que o volume de CO2 na atmosfera que era de 315 partes por milhão em 1958 já está em 414 partes por milhão.
Só que nada disso é visível a olho nu, contrariamente ao que ocorre com as tristes imagens dos efeitos da pandemia no sistema hospitalar e até no sistema funerário. A pandemia é uma espécie de aceleração vertiginosa do filme a que estamos, quase imperceptivelmente, assistindo, como se fosse em câmara lenta, com as mudanças climáticas. É verdade que as mortes por covid-19 são atestadas por exames clínicos. O mesmo não ocorre com as enchentes que desabrigaram mais de 50 mil pessoas em Minas Gerais, no Espírito Santo e em São Paulo em fevereiro, com a ampliação em 163% da população suscetível de ser atingida por furacões na Flórida entre 1980 e 2018 (muito mais que o aumento demográfico no período) e com a estimativa de que as perdas globais com o aumento do nível do mar devem passar de US$ 52 bilhões em 2005 para US$ 1,2 trilhão em 2050. O vínculo entre estes eventos e as mudanças climáticas foge de nossa intuição imediata.
No caso da pandemia, soluções nacionais construtivas são possíveis, ao menos durante certo tempo. Mas, contrariamente ao coronavírus, as emissões de gases de efeito estufa não respeitam o fechamento de fronteiras. A conclusão é que o combate à pandemia, tem que ser acompanhado de um planejamento em cujo centro esteja a urgência climática. A criação de empregos, a redução das desigualdades e o crescimento econômico têm que girar em torno da necessidade de se evitar a grande ameaça representada pelo aumento exponencial a que assistimos até aqui das emissões de gases de efeito estufa. A urgência da pandemia é imediata, mas não é razoável que ela ofusque a urgência de se enfrentar a crise climática.
*Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, autor de “Amazônia. Por uma economia do conhecimento da natureza” (ed. Elefante/Outras Palavras).
Bruno Carazza: O powerpoint, os tweets e os guarda-costas
Na aventura autoritária de Bolsonaro, não há projeto de país
Ao longo das últimas semanas Bolsonaro e seus seguidores têm flertado com uma quebra institucional. A presença do presidente em manifestações pedindo a intervenção militar e um novo AI-5, a intimidação ao Supremo Tribunal Federal (STF) com uma visita inesperada escoltado por representantes da elite industrial, os ataques reiterados à imprensa, a demissão de seus ministros civis com maior apoio popular e a nomeação de militares da ativa em toda a Esplanada dos Ministérios, a cooptação da base parlamentar mais fisiológica, a interferência na Polícia Federal, o incitamento de suas milícias virtuais para que invadam as ruas em meio às recomendações de isolamento social - são muitos os movimentos na direção de uma solução autoritária para a crise criada por sua própria incompetência gerencial.
Aqui e ali, nas duas bolhas que dividem o país, ressurgem comparações entre o momento que atravessamos e o clima que levou ao golpe de 1964. Sem dúvida a tática de Bolsonaro de se cercar de militares, das forças políticas mais conservadoras e de parte da elite empresarial para testar os limites de nosso regime republicano guarda semelhanças com o que aconteceu no início dos anos 1960. No entanto, três episódios ocorridos nas últimas semanas ilustram o vazio dessa aliança militar, política e empresarial que Bolsonaro pretende construir em torno de seu projeto autoritário de poder.
No último dia 22 de abril o ministro da Casa Civil, general Braga Netto, anunciou numa coletiva de imprensa o lançamento do programa Pró-Brasil, “iniciativa proativa do governo federal que tem como propósito reduzir os impactos do coronavírus nas áreas social e econômica com foco no período pós-pandemia”. Apresentado em exatos cinco minutos, o arquivo powerpoint com sete slides do “Plano Marshall” bolsonarista chocou pelo vazio de dados e de projetos.
No campo legislativo, nada é mais sintomático do retorno de Bolsonaro ao seu berço político, o Centrão, do que o perfil do ex-deputado Roberto Jefferson no Twitter. Condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo STF e tendo seu mandato cassado pelo plenário da Câmara dos Deputados em 2005, o velho cacique do PTB assumiu a defesa do ideário mais extremista do bolsonarismo, posando de arma em punho, atacando governadores que defendem o distanciamento social e pregando o fechamento do Supremo.
Para completar a trinca, em troca de medidas de estímulo econômico e do afrouxamento do combate à pandemia de covid-19, representantes de 15 entidades do setor industrial se prestaram ao papel de guarda-costas numa das mais intimidatórias demonstrações de força contra a autoridade do Poder Judiciário nestes 35 anos de nossa história democrática.
Longe de querer defender o indefensável - não há justificativas para uma ruptura institucional que suprimiu por três décadas nossa liberdade e o exercício da cidadania, sem falar nos crimes cometidos contra a humanidade - a tentativa bolsonarista de ameaçar a democracia se diferencia do movimento golpista de 1964 pela ausência de um projeto de país.
A aliança entre as Forças Armadas, a elite empresarial e os grupos políticos conservadores que derrubou João Goulart em 1964 foi forjada ao longo de anos no seio de instituições como a Escola Superior de Guerra (ESG), o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e as fileiras da União Democrática Nacional (UDN) e de setores do Partido Social Democrático. O golpe de 31 de março levou ao poder uma elite militar, empresarial e política que se ancorava não apenas numa ideologia de direita, mas numa agenda geopolítica e econômica alicerçada em projetos encomendados a intelectuais e técnicos de renome.
Nesses 56 anos que nos separam do golpe de 1964, muita coisa mudou nas Forças Armadas, na política e na economia brasileira. Não se trata das pessoas, mas das instituições.
Os militares que assumiram o poder em 1964 constituíam, junto com diplomatas do Itamaraty, a elite do setor público brasileiro à época. Selecionados por concurso, recebiam treinamento contínuo e as melhores remunerações - além de gozarem de grande prestígio político e social. Dada a importância brasileira no xadrez geopolítico do pós-guerra, os oficiais das Forças Armadas receberam treinamento militar norte-americano e construíram seu projeto para o país no contexto da Guerra Fria.
Um cenário muito diferente se vê hoje. Com a retomada da democracia, as Forças Armadas perderam muito do seu protagonismo político, ao mesmo tempo em que orçamentos minguados e o congelamento de soldos tornaram suas carreiras cada vez menos atrativas. Os atuais ministros Wagner Rosário e Tarcísio de Freitas são exemplos de militares que pediram baixa do Exército depois de terem sido aprovados em concursos para carreiras civis. A pressão dos militares sobre Bolsonaro para ficarem de fora da reforma da Previdência e do esforço fiscal no combate à covid-19 demonstram que seu projeto corporativista está acima das necessidades do país.
Mesmo diante de tudo que vimos durante o mensalão e a Lava-Jato, a associação de Bolsonaro com o pior do Centrão, representado por Roberto Jefferson, escancara a voracidade com que se atacam os recursos públicos em troca de apoio político, agora numa nova roupagem do velho presidencialismo de cooptação.
Por fim, a fila de empresários de pires na mão se colocando a serviço de um presidente que ameaça o STF é o melhor retrato de uma indústria que, ao longo de décadas, não aprendeu a ser eficiente e a enfrentar as crises sem a proteção generosa do Estado, oferecendo fechamento de mercado, crédito subsidiado do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e incentivos fiscais. Para tirar seus CNPJs da UTI, vale até mesmo marchar contra o STF.
Nada ilustra melhor o vazio e o oportunismo da aventura autoritária de Bolsonaro do que o powerpoint de Braga Netto, os tweets de Roberto Jefferson e a passeata da “Coalizão Indústria” do Palácio do Planalto ao Supremo Tribunal Federal.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
El País: Brasil perde status de democracia liberal perante o mundo
Instituto V-Dem diz que país é mera democracia eleitoral. Ataque orquestrados a jornalistas, enfermeiros e cientistas são a ponta do iceberg. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade
Nesta semana, o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, apresentou um dado revelador: no mundo, 40% das postagens numa grande plataforma social sobre a covid-19 eram realizadas por robôs. Se o dado em si é surpreendente, a pergunta que precisa ser feita é óbvia: a quem serve tal esforço? Por qual motivo um movimento disfarçado de indivíduos anônimos ― e portanto de massa ― buscaria influenciar a opinião pública sobre uma pandemia que matou nos EUA mais que a Guerra do Vietnã?
E por qual motivo líderes de nações supostamente democráticas se lançam, ao mesmo tempo, em ataques explícitos ou camuflados de “espontâneos” contra a imprensa, um eventual antídoto à proliferação de desinformação? No domingo, em pleno dia internacional da liberdade de expressão, jornalistas foram atacados em Brasília. A opção da presidência foi por minimizar os eventos. Dias depois, foi a vez do próprio presidente Jair Bolsonaro revelar sua índole mais íntima ao mandar um repórter “calar a boca” e ofender a imprensa.
Os jornalistas são apenas parte de uma nova rotina do poder. Nesta terça, Bolsonaro gritou duas vezes com jornalistas mandando um “cala a boca”, algo que só a ditadura viu no Brasil. Mas os relatos se espalham pelo país sobre como enfermeiras e médicos estão sendo alvos de ataques de apoiadores do Governo. Não faltam agressões morais contra professores, artistas, intelectuais ou cientistas, todos eles vistos como potenciais ameaças. Enquanto isso, nas redes sociais, milhares de robôs e apoiadores autênticos de um movimento violento transformam plataformas em trincheiras da mentira.
Nos discursos, quase nunca de improviso, Deus e ódio se misturam nas mesmas frases. Judas é evocado para atacar antigos pilares do movimento. A religião passa a legitimar abusos de direitos humanos. Pede-se orações para que um líder cuja promessa era a de exterminar o contraditório. Todos se apresentam como pessoas de bem. Todos se apresentam como patriotas, únicos autorizados a vestir as cores nacionais.
Nas ruas, nas praças, no mundo virtual ou na violência diária, todos esses personagens têm algo em comum: o desprezo pela democracia. O ruído causado por esse grupo, instigado por seus líderes, certamente é maior que seu número real de apoiadores. Mas ainda assim tal massa é relevante no cenário em que vivemos. Uma massa que mistura classes sociais sob uma única ideologia, com um comportamento fanático capaz criar uma surdez crônica.
Instrumentalizada, ela cumpre justamente um objetivo, online e offline: o de dar pinceladas de legitimidade popular a um movimento claramente autoritário. “Foi uma demonstração espontânea da democracia”, afirmou o presidente, numa referência aos recentes atos. Nada disso é novo. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade.
Hannah Arendt aponta como, anos antes da chegada ao poder de tais forças na Europa, sociedades de classes foram dissolvidas em massas. Já os partidos foram destruídos e substituídos apenas por ideologias. Em Brasília neste fim de semana, as caravanas do autoritarismo eram a distopia de um sonho de uma cidade erguida para ser a capital de um novo século, democrático. Nas sombras dos traços do arquiteto estavam os reflexos de uma parcela da sociedade que jamais viu a democracia com entusiasmo, que sempre desconfiou da ideia do pluralismo, que jamais entendeu a noção do público e que, com seu egoísmo insultante, nutre a convicção de que as instituições são uma fraude.
Ameaçado pelo vírus e por uma recessão brutal, o Governo mobiliza suas tropas cegas pela ignorância para se defender, aprofundar seu desprezo pela verdade e levar um país ao limite de sua coesão nacional. Todos os sinais apontam na mesma direção: a democracia brasileira está ameaçada e seu desmonte ocorre em plena luz do dia. Em cada desafio disparado a um dos poderes, em cada gesto de violência, em cada mentira disseminada e em cada caixão enterrado.
O Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, um dos maiores bancos de dados sobre democracias no mundo, já deixou de classificar o Brasil desde o começo do ano como uma "democracia liberal”. Agora, o país é uma mera democracia eleitoral.
O instituto produz e coleta informações sobre países entre 1789 a 2019 e conclui que, nos últimos dez anos, a deterioração da democracia no Brasil só não foi maior que a realidade verificada na Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia. Segundo Staffan Lindberg, um dos autores do informe e diretor do instituto, tal tendência ganhou uma nova dimensão mais recentemente. “O Brasil foi um dos países no mundo que registrou a maior queda nos índices de democracia nos últimos três anos”, alertou.
Na ONU, gabinetes da alta cúpula da entidade são tomados por preocupações em terno do discurso anti-democrático e o encolhimento real do espaço civil. Pela primeira vez em décadas, o país é denunciado nas instâncias internacionais, inclusive por flertar com o risco de genocídio.
Em outras palavras: o direito inalienável de viver numa democracia plena não está garantido. O Centro para o Futuro das Democracias da Universidade de Cambridge foi categórico num recente informe sobre a situação das democracias no mundo: “Para o Brasil, ao que parece, o futuro foi adiado mais uma vez”.
Enquanto essa eterna promessa é uma vez mais torturada, a fronteira entre massa hipnotizada e dos robôs programados para disseminar desinformação parece se desfazer à medida que a crise institucional e de valores se aprofunda. No mundo virtual ou numa praça ensolarada, ambos tem a missão de disseminar um vírus mortal: a pandemia do ódio, capaz de aleijar uma democracia. Como troféu, seu mito governará sobre esqueletos, mordaças e carcaças. Ainda assim, com a fumaça negra desonrando o horizonte do Planalto Central, irá declarar solenemente: “e daí?”.
Marco Aurélio Nogueira: Fazendo o que o mestre mandar
Osmar Terra previu que o coronavírus seria leve no Brasil, com no máximo 800 óbitos. Agora, fala que o problema é sério. Mas continua a banalizar a situação: o que são 11 mil mortos perante a desgraça econômica que a quarentena produz?
O deputado Osmar Terra (MDB-RS) tem 70 anos, é médico, formado pela UFRJ. Na juventude, andou pelo PCdoB e pela ala esquerda do PMDB. Chegou a fazer campanha pela reforma sanitária e pelo SUS. Foi prefeito de Santa Rosa e secretário da Saúde no Rio Grande do Sul. Virou ministro do Desenvolvimento Social no governo de Michel Temer.
Apesar disso, não é propriamente um quadro brilhante. Mexe-se e articula bem, pelo que dizem. Foi ganhando projeção e se tornou estrela de primeira grandeza quando Bolsonaro assumiu. Tornou-se reacionário assumido, ampliando a pauta conservadora que foi modelando ao longo da carreira. Durante dois meses, passou pelo ministério da Cidadania do novo governo, terminando por ser substituído por Ônix Lorenzoni sem nem ter esquentado a cadeira.
No sábado à noite, participou de um debate na GloboNews com o ex-ministro Mandetta e o senador Humberto Costa (PT-PE). Uma bancada de médicos, propícia a uma discussão de alto nível.
Acontece que Terra não é propriamente uma pessoa independente, ou particularmente responsável. Está no circuito para causar e reverberar as posições governamentais. Foi ao debate com uma única ideia fixa: denunciar o isolamento social, a quarentena, o combate firme ao coronavírus.
A defesa foi recheada de momentos patéticos. Chegou-se ao ápice quando o deputado enfatizou que tudo o que Bolsonaro fala e faz segue parâmetros científicos. E quando argumentou que a disseminação do vírus é tanto maior quanto mais as pessoas ficam em casa, pois é em casa que a infecção se generaliza. Esqueceu-se de dizer que o vírus só pode circular em um ambiente fechado se alguém levá-lo para lá, vindo da rua sem cuidados higiênicos rigorosos.
Osmar Terra é o mesmo que, em março do corrente ano, disse que o coronavírus passaria pelo Brasil sem deixar vestígios, prevendo que no máximo seriam 700 ou 800 óbitos, coisa pouca. Lembram?
Agora, ele admite que o problema é mais sério. Continua, porém, a banalizar a situação. O que são 11 mil mortos perante a desgraça econômica que a quarentena produz?
Com desfaçatez extravagante, contrariando médicos e pesquisadores do mundo todo, ele apresentou gráficos para mostrar que o curso do coronavírus não é diferente do curso de outros vírus, como o H1N1. Apresenta a mesma curva, a mesma evolução em 13 semanas (?), é só esperar com calma que tudo passará sem deixar maiores sequelas, além da perda triste de algumas vidas. Desnorteante.
Para ele, as mortes em série são causadas pela quarentena. Presas em casa as pessoas se contaminam com mais facilidade. Deveriam ser liberadas para ir à praia, às praças e – surpresa! – aos shoppings centers, que seriam tão higiênicos quanto farmácias e supermercados.
Os que com ele debateram longamente deram um baile. Não se cansaram de alertar para a ameaça pública inerente às posições de Terra, que são as mesmas de Bolsonaro. Ele nem corou. Seguiu impávido, pouco se importando em passar por farsante, sustentado por um ostensivo despreparo técnico-científico e por uma sabujice extrema.