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Míriam Leitão: A dor coletiva e o desamparo

Visitar os que sofrem em uma tragédia não é um ato simbólico, é parte de bem governar. Bolsonaro negou ao país esse gesto

Um chefe de Estado demonstra sentimento quando o seu povo sofre, vai aos locais onde a tragédia acontece, conversa com atingidos e os conforta. Um governante mantém uma atitude de seriedade quando o país é alvejado por alguma catástrofe. Tem palavras de encorajamento para os que estão na frente da batalha socorrendo os enfermos. O que parece ser apenas protocolo faz parte do conjunto de obrigações da pessoa pública. Isso não resolve o problema, mas impacta muito mais do que se imagina a tomada de decisões. Só tem chance de acertar o líder que entende a dimensão da dor coletiva.

A comunicação de quem governa não pode ser tocada por um miliciano digital. Tem que ter sobriedade e propósito. Não pode ser uma corrida por likes e lacrações. É a expressão do próprio Estado e por isso tem que ser dirigida por pessoas que evitem os ruídos e as agressões, as omissões e os conflitos. Mas nada substitui a palavra do líder, se ela for sincera e tiver relação com os atos praticados.

Ir até o local onde se sofre é a norma de conduta mais elementar que um governante tem que seguir. Não estar presente simboliza desprezo pelos governados. Normalmente, os que visitam o povo em seu sofrimento entendem a urgência da tomada de decisão. A pessoa pública conseguirá dialogar apenas com alguns e ver somente uma fração do que acontece, mas algumas histórias costumam falar por muitas e por isso, ao sair do seu casulo, onde os áulicos lhe dizem que está tudo certo, o governante precisará ter ouvidos para ouvir e aproveitar a chance de ver com os próprios olhos.

O Brasil se acostumou à dor sem consolo. Aceita que o presidente faça piada quando a pandemia mata mais de mil pessoas num mesmo dia. Na piada rimada do presidente — quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína — não há apenas mau gosto. Há perversidade. Na terça-feira em que ele fez a blague houve 1.179 mortes por coronavírus no país. Bolsonaro parece querer exibir a indiferença, como se tivesse orgulho dela.

De vez em quando alguém tenta entender o tamanho do acontecido calculando quanto as mortes representariam em quedas de avião — e vários aviões caem diariamente no Brasil— ou usando métricas de outros desastres, para ter uma dimensão da realidade. Isso é importante para que não se fique anestesiado diante da repetição diária dos eventos. Há gente atrás de cada número, como nos lembra o projeto “Inumeráveis”.

São inumeráveis as dores que atingem as famílias, inumeráveis as aflições de quem teme ser o próximo ou que o mal ameace as pessoas queridas. Inumeráveis as noites mal dormidas no Brasil nestes meses difíceis. Inumeráveis as horas de angústia de quem luta por um leito em hospital. Contudo, seguimos usando números para contar as vítimas de cada dia, e assim dimensionar o sofrimento do país. Cada pessoa é única para os seus. E depois que o registro da perda deixar de ser notícia, a família atingida passará anos carregando as cicatrizes.

O ser humano foi dotado da virtude da empatia. Isso é natural. O sofrimento não precisa ser pessoal, para que cada um o sinta de certa forma e consiga se imaginar na pele do outro. Isso nos fez gregários. Assim nasceram as sociedades, os povos se organizaram, os países foram constituídos. Nessa ideia se inspiram as religiões. A cristã vai além de pedir que entendamos o sofrimento do semelhante. Avisa que é preciso amar o próximo.

O presidente do Brasil nos revela até que ponto pode chegar a insensibilidade ao sofrimento. Se o “E daí?” foi um tapa na cara do país, a piada da cloroquina/tubaína, seguida da gargalhada, no dia dos mil mortos, foi inqualificável. O dicionário da língua portuguesa parece gasto. As palavras andam fracas demais para qualificar o comportamento adotado por Jair Bolsonaro diante da dor dos brasileiros.

Quando tudo isso passar — e tudo isso passará — nós olharemos para trás e não acreditaremos que fomos capazes de tolerar esse tempo extremo. Veremos com espanto o pesadelo coletivo que atravessamos sem o amparo de palavras de conforto de quem o país escolheu para o posto mais alto da administração. Os erros de gestão terão levado muitas pessoas à morte, mas nem poderemos saber que vidas seriam poupadas. Muitos serão os filhos do talvez. Haverá, então, a batalha das versões e é apenas nela que pensa Jair Bolsonaro.


Cristovam Buarque: Desigualdade endêmica

No mês em que o Brasil comemora 132 anos da Lei Áurea, a sociedade debate se o Enem deve ser adiado. É claro que fazer o exame logo depois da epidemia vai acirrar a brutal desigualdade de como a educação de base é oferecida, mesmo nos períodos normais.

Escolas privadas estão substituindo aulas presenciais por ensino a distância, com a mesma ou até melhor qualidade, desde que os alunos tenham os equipamentos necessários e contem com apoio de pais ou de professores particulares. Mas raríssimas escolas públicas conseguem se adaptar com a mesma rapidez ao uso dos métodos do ensino a distância e, dificilmente, seus alunos contam com celulares, tablets, notebooks ou com o apoio pedagógico familiar.

Por isso, é absurdo que o governo federal se recuse a adiar a realização do Enem para quando as escolas tiverem recuperado o tempo perdido. Felizmente, entidades estudantis e grupos preocupados com a educação estão lutando para forçar o adiamento do exame na tentativa de impedir o agravamento das consequências decorrentes da desigualdade de como a educação é oferecida às nossas crianças. Mas é lamentável que a sensibilidade à desigualdade só chame a atenção quando se trata do ingresso à universidade.

Os movimentos que agora defendem postergar o Enem por causa da epidemia ignoram que, há décadas, independentemente do coronavírus, o ingresso na universidade trata diferentemente os candidatos, conforme a renda da família. A desigualdade na qualidade de educação de base só é percebida quando se trata da entrada no ensino superior — é a desigualdade entre os que terminaram o ensino médio e se sentem em condições de disputar o vestibular ou o Enem.

Mais grave é a desigualdade que atinge os esquecidos que não terminam o ensino médio, abandonam a escola antes ou fazem um curso tão ruim, que não se atrevem a buscar vaga em faculdade. É preciso, portanto, barrar a maldade do governo ao impor um Enem da epidemia, mas as diferenças educacionais são antigas, não são culpa (ou apenas) da atual administração. É herança maldita de governos anteriores, inclusive os últimos democratas-progressistas, que geriram o país por 26 anos, e os da esquerda, por 13 anos.

Durante toda a nossa história, relegamos a qualidade média da educação. Cuidamos dela apenas para os filhos de poucos, abandonando os descendentes dos negros durante a escravidão e os filhos dos pobres depois da Abolição. E só descobrimos a desigualdade quando está em jogo o ingresso no ensino superior, mesmo assim, por seu agravamento durante o confinamento provocado pela epidemia.

Por 350 anos, os navios negreiros tinham marujos com ordem para não deixar os escravos pularem no mar durante o trajeto desde a África. Os traficantes sabiam que o suicídio de um escravo era prejuízo como jogar mercadoria ao mar. Depois do trajeto, quando um escravo se suicidava, os parentes eram punidos porque a morte representava descapitalização para o dono.

Nós não entendemos ainda que, ao abandonar a escola, o jovem está se suicidando socialmente e descapitalizando o país de seu potencial intelectual. Os traficantes de escravos não eram mais humanos e sensíveis do que nós, brasileiros republicanos, mas somos, igualmente, insensíveis e menos inteligentes.

Fechamos os olhos ao suicídio social de dezenas de milhões de brasileiros que saltam os muros da escola e ignoramos o prejuízo que isso provoca no país e na humanidade. O abandono escolar, como o salto ao mar dos escravos, decorre em parte da pobreza da família, exigindo que os filhos trabalhem, mas decorre, sobretudo, da má qualidade e da pouca atratividade da escola. A maior parte delas, como navios negreiros para o futuro.

Nossos constituintes sofreram dessa ignorância ao definirem que educação é um direito de cada brasileiro, mas não o vetor do progresso do Brasil. Por isso, lutamos contra o Enem neste momento, mas não para que a escola tenha a mesma qualidade, independentemente da renda da família. Por um lado, porque vemos a educação apenas como um direito, não como o vetor do progresso. Por outro, pelo elitismo de nossos movimentos sociais que se interessam pelo direito de quem terminou o ensino médio, mas não o direito dos que abandonarão a escola antes do vestibular ou do Enem.

A luta pelo adiamento do Enem deve ser apoiada, contudo, não basta: é preciso lembrar os que jamais farão vestibular, por nem sonharem com o ensino superior devido à má qualidade da educação de base que lhes foi oferecida.

*Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)


Alessandro Molon: Por um novo normal

Não cabe mais um Brasil da desigualdade, perpetuador da involução

Em nossas casas, isolados; nos hospitais, na linha de frente; nos comércios, adaptando-se para sobreviver; nos cemitérios, chorando a dor dos que enterram seus mortos sozinhos. Onde quer que estejamos, todos queremos que esse vírus invisível —e, ao mesmo tempo, impossível de ser ignorado— seja vencido. Que se descubra uma vacina ou um tratamento que nos permita voltar ao normal.

Há algumas semanas, no entanto, uma frase grafitada numa parede de metrô em Hong Kong viralizou: “Não podemos voltar ao normal, porque o normal que tínhamos era justamente o problema”.

Há tempos temos insistido na direção errada, ignorando avisos, fingindo não haver outra saída. Seguimos estimulando economias pesadas, com altas emissões de carbono, e que alimentam o crescimento de sociedades desiguais e doentes. Aqui no Brasil, devemos acrescentar ainda o alto desemprego, a fome, a reprimarização da nossa economia e a devastação das nossas florestas.

O sinal de alerta, desta vez, veio em forma de uma perigosa pandemia que nos obriga a parar e pensar. Queremos retornar aonde estávamos? Ou será que, diante do abalo às estruturas desta casa em que vivemos por tanto tempo, devemos construir uma morada mais sólida, mais resistente, mais acolhedora?

Não há mais espaço para um mundo em que os 22 homens mais ricos da Terra têm mais riqueza do que todas as 325 milhões de mulheres da África somadas. Um mundo em que 7 milhões de pessoas morrem todo ano por conta da poluição do ar, e em que 1 em cada 4 habitantes do planeta vive sem saneamento básico.

Não cabe mais um Brasil vice-campeão de desigualdade, destruidor da Amazônia, perpetuador da involução. Está na hora de construirmos um “novo normal”, com investimento robusto em ciência, tecnologia e inovação, e sustentado num tripé composto por qualidade de vida, equilíbrio ambiental e justiça social.

É hora de um Green New Deal brasileiro, um novo pacto para substituir os incentivos a grandes atividades extrativistas por eficiência energética, estímulos a biocombustíveis e desmatamento zero. Um projeto de desenvolvimento para o país que o retire da recessão global que se avizinha e o impulsione rumo a um futuro mais próspero, com empregos, distribuição de renda, serviços públicos de qualidade e uso sustentável das riquezas florestais, nas áreas de alimentação, farmácia e cosméticos —com as árvores de pé, é claro.

Uma reforma verde que contemple infraestrutura, cidades, indústrias, serviços e também a administração pública, por um Estado mais eficiente em favor das pessoas. Por um Brasil em que todos caibam.

No último ano tenho me dedicado com afinco, junto com economistas, pesquisadores e especialistas, a formular essa visão para o Brasil, tendo me reunido com a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, voz que lidera o debate nos Estados Unidos. Países da Europa e da Ásia caminham na mesma direção.

Quem teima em tapar os ouvidos não escapa às imagens da natureza se regenerando. Enquanto o coronavírus nos tira das ruas, cisnes nadam nos antes imundos canais de Veneza, o pico do Himalaia é avistado da Índia pela primeira vez em 30 anos, e mais de 70 mil vidas são salvas na China apenas devido à diminuição da poluição do ar, em estimativa da Universidade Stanford.

Em contraposição, estudos já dão conta de que o desmatamento da Amazônia, que reserva a maior quantidade de microorganismos do mundo, pode, com o consequente desequilíbrio climático, deflagrar novas pandemias.

A exemplo das revoluções Francesa e Industrial, das guerras do século 20 e dos avanços tecnológicos recentes, esta crise por que passamos marcará a história da humanidade. Isso porque as escolhas que fizermos nos próximos meses e anos serão ordem para as próximas gerações. Os custos da falta de ação, como temos visto, são catastróficos. Insistir nos erros que nos trouxeram até aqui, portanto, seria não apenas estupidez, mas o desperdício de uma valiosa possibilidade de construirmos esse “novo normal” e avançarmos na direção de uma sociedade mais justa e sustentável.

Logo, aos que perguntam se vamos voltar ao normal, respondo: “Tomara que não”.

*Alessandro Molon, deputado federal (PSB-RJ), é líder do partido na Câmara


Fernando Schüler: Governo sabe que voluntarismo de Bolsonaro se esgotou e por isso precisa negociar

Bolsonaro percebeu que precisa de suporte político e algum nível de pactuação

Boa parte de nossa crônica política passou ano e meio reclamando que Bolsonaro não formava sua base no Congresso, que vinha com essa conversa mole de “nova política”, que era impossível governar daquela maneira. Mostrei dias atrás que o experimento do governo sem coalizão produziu alguma funcionalidade, no primeiro ano do governo, mas depois desandou. A pandemia foi sua pá de cal.

Bolsonaro parte então para um novo arranjo, de maneira surpreendentemente agressiva, com foco em uma articulação com os partidos do centrão. O professor Carlos Pereira escreveu um bom artigo descrevendo a nova estratégia como um “modo de sobrevivência”. Observei a ele que há algo um pouco além disso no arranjo: a disputa pela sucessão de Rodrigo Maia.

Controlar a presidência da Câmara significa dar o ritmo da agenda política, no Congresso, o que inclui admitir ou não pedidos de impeachment. Sérgio Abranches observou, acertadamente, que a nova coalizão não terá nada de programático.

Diria apenas que houve muito pouca aliança programática, no Congresso brasileiro, desde a redemocratização. E que este mesmo centrão foi o que aprovou temas difíceis e cruciais para o país, como a PEC do Teto e as reformas trabalhista e previdenciária.

Se o governo de fato conseguir organizar minimamente uma coalizão no Congresso, fazendo as concessões habituais na máquina pública (cuja extensão por ora ninguém consegue prever), tudo dependerá do governo fazer a parte mais difícil (Marcos Mendes descreveu isso com precisão dias atrás): apresentar uma agenda consistente de reformas.

Não me refiro aqui a Paulo Guedes, mas ao governo. É constrangedor assistir ao ministro da Economia mover uma montanha para fazer valer o óbvio no tema da contrapartida de estados e municípios ao auxílio federal. E mais constrangedor ainda é perceber que há um jogo de cena nisso tudo.

O presidente pode vetar as concessões feitas pelo Congresso, que são um enorme tapa na cara de milhões de pessoas, no mundo privado, que perderam seus empregos e andam por aí sem saber o que fazer. A pergunta é se ele fará algum esforço real para que o veto seja mantido.

O fato é que o governo está fragilizado. Não é apenas a má condução da pandemia, o cansaço com as tropelias presidenciais ou a paralisia da pauta econômica. Vivemos o fim de um modo voluntarista de governar. Daí os sinais bastante claros de um governo crescentemente disposto a fazer concessões e recuar em suas pretensões de agenda.

A fragilidade do governo veio, em grande medida, da força de contenção das instituições. Algo que tenho enfatizado aqui e que ganhou escala nos tempos recentes. O governo sofreu uma sucessão de reveses no Supremo. A concessão de autonomia a estados e municípios para impor isolamento, o veto à expulsão dos diplomatas venezuelanos e à posse do delegado Ramagem na chefia da Polícia Federal são exemplos disso.

Contido pelo Supremo, isolado no Congresso e percebendo sua popularidade declinar, resta a Bolsonaro negociar. Sinais disso vimos na reaproximação com Rodrigo Maia (que também percebe sua base balançando pela ação do governo e muda de tom) e no encontro que Bolsonaro comanda nesta quinta-feira (21) com os governadores (onde tudo pode acontecer, inclusive coisa nenhuma).

Isso não significa que Bolsonaro deixará de ser um político errático e avesso aos bons modos, nem que a oposição subitamente se disporá ao diálogo. Mas abre espaço a alguma solução de compromisso.

Bolsonaro sabe que seu modo voluntarista de governar encontrou um limite. Ele precisa de suporte político e algum nível de pactuação.

Se ele será capaz de fazer isto e reconstruir algum padrão de governabilidade, digo que não sei. Já há gente demais por aí que sabe de tudo, de modo que me permito, em meio a esta pandemia triste, a solidão da dúvida.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Exman: Serviços de inteligência são alvejados na crise

Setor é essencial no processo decisório governamental

Psiquiatras bolsonaristas certamente contestariam o diagnóstico. Tem-se a impressão, contudo, de que o governo vive um transtorno bipolar. Oscila entre momentos de grande euforia, como nas cada vez mais frequentes manifestações realizadas em frente à rampa do Palácio do Planalto, lances de agressividade e átimos de lamentação e depressão. No afã de se livrar dos problemas, o governo joga aliados para o centro das crises e ataca instituições de Estado.

Foi assim que os serviços de inteligência, sempre prestigiados pelos chefes de governo e também pelo meio militar, passaram a figurar na desconfortável lista de danos colaterais da guerra travada entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro Sergio Moro.

A relativização da violência sempre foi uma marca do grupo político que chegou ao poder. Novo é o uso da rampa do Planalto como plataforma de filmagem e acesso do presidente para o congraçamento com manifestantes que atacam os demais Poderes, governadores e prefeitos.

Já as lamúrias das autoridades federais têm como motivação os dissabores provocados por aliados que se transformaram em adversários. Elas também passam pelas adversidades impostas pela pandemia de covid-19 aos planos de uma administração que chega aos 500 dias com a missão de evitar que o país entre na rota de uma prolongada depressão.

Prova documental do embate entre Bolsonaro e Moro, o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril tornou-se um documento histórico que traduz em imagens todo esse comportamento errático da cúpula federal.

O material possivelmente é, como o próprio presidente afirmou, o registro da última reunião do Conselho de Governo da atual gestão. O chefe do Executivo não confia em grande parte de seus auxiliares diretos e decidiu que reunirá um número mais amplo de ministros apenas em confraternizações, cafés da manhã ou outros convescotes, como as próprias manifestações em frente ao Palácio do Planalto. Mas não mais em amplos encontros de trabalho, dos quais não se poderá descobrir quem seria o responsável pelos inevitáveis vazamentos.

Desse último encontro ministerial ampliado e registrado em audiovisual, além do ápice de uma série de desentendimentos entre Moro e Bolsonaro sobre o comando da Polícia Federal, ficará no arquivo da Presidência da República um capítulo de difícil digestão para a comunidade de inteligência.

De acordo com transcrições feitas pela Advocacia-Geral da União (AGU) de determinadas falas, o presidente da República reclamou com veemência por não ter informações da PF e das inteligências das Forças Armadas. Apontou, ainda, “problemas” na Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Generalizou a crítica: “E me desculpe o serviço de informação nosso - todos - é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil”, afirmou Bolsonaro, antes de prosseguir para um trecho do encontro que já virou antológico: “Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça, não é extrapolação da minha parte. É uma verdade.”

A divulgação da íntegra do vídeo pode esclarecer quais são os problemas realmente apontados pelo presidente - se o objeto da reclamação provocou alguma falha crítica no processo decisório de questões de Estado ou se ele se refere a temas pessoais.

Os órgãos de inteligência são instituições de Estado essenciais à tomada de decisão do presidente da República. Quem encabeça esse esforço é o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, que tem a função de assessorar o chefe do Poder Executivo no desempenho de suas atribuições, sobretudo em relação a assuntos militares e de segurança, como na análise e no acompanhamento de temas com potencial geração de riscos. Outra missão do GSI é ajudar a prevenir crises e articular seu gerenciamento, conforme prevê a legislação que trata do tema, em caso de grave e iminente ameaça à estabilidade institucional.

Ele é também o órgão que coordena as atividades de inteligência federal, as quais têm capilaridade considerável. O Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) é integrado por 42 instituições, incluindo ministérios e agências reguladoras, e conta com o apoio de polícias militares e civis dos Estados.

Em 2019, o objetivo desse setor foi justamente ampliar a integração e a articulação entre os responsáveis pelas áreas de segurança pública, de inteligência e controle aduaneiro. Para 2020, a meta era integrar bases de dados nacionais e internacionais de inteligência, o que incluiria o geoprocessamento de informações estratégicas e a formação dos chamados subsistemas de inteligência em órgãos da administração pública federal e em unidades da federação.

Isso não quer dizer, entretanto, que deve ser considerado natural um presidente da República tentar ter acesso a todo e qualquer relatório de inteligência produzido nesse ecossistema.

Outra prioridade para a área este ano seria a elaboração de um Plano Nacional de Segurança das Infraestruturas Críticas (PLNSIC), o qual poderia contemplar na área de saúde, se seguisse referências internacionais, a previsão de serviços essenciais para o combate de epidemias e para a preservação de vidas em situações como as enfrentadas hoje no Brasil e em todo o mundo.

No entanto, antes de conseguir executar esse planejamento estratégico, os órgãos de inteligência foram surpreendidos pelo avanço do novo coronavírus.

Sob a coordenação da Casa Civil, eles passaram a integrar o centro de coordenação de operações do comitê de crise instalado para monitorar os impactos da pandemia. O grupo atua em tempo integral supervisionando ações e produzindo conhecimento sobre o tema. O problema é que esse tipo de material não tem ganhado a atenção do seu principal destinatário, conforme se pode depreender das queixas feitas na última reunião ministerial.


Ruy Castro: Quando ele tiver de se explicar

Um dia, diante do tribunal, Bolsonaro não poderá dizer Caso encerrado!

No dia ainda incerto, mas infalível, em que Jair Bolsonaro se sentar no banco dos réus, veremos se usará a tática a que se habituou no poder para se impor numa discussão —silenciar seus interlocutores cortando-lhes a palavra e repetindo aos gritos seus bordões, como “Chance zero!”, “Ponto final!”, “Caso encerrado!”, “Próxima pergunta!”, “O recado está dado!”, “Cala a boca!” e “E daí?”.

A Justiça não se contentará com uma argumentação tão lacônica. Bolsonaro terá de responder extensivamente sobre os episódios em que violou a Constituição, estuprou as instituições, acusou sem provas, jogou o povo contra o Congresso e o STF, botou órgãos de Estado a seu serviço, encobriu sujeiras dos filhos e dos asseclas, mentiu compulsivamente, agrediu minorias e promoveu o desmoronamento da nação com seu ministério de celerados. O crime de mandar os humildes para a morte, exortando-os a sair de casa em plena pandemia, talvez tenha de ser julgado por um tribunal com sede na Holanda.

Será fascinante seguir Bolsonaro pela TV, defendendo-se no julgamento com seu vocabulário indigente, português estropiado, expressões chulas, sotaque caipira, estoque de palavrões e abuso de taoquêis. E mais ainda porque, apesar de velho político, ele nunca fora contestado para valer —como deputado de quinta, ninguém perdia tempo com ele e, presidente, achava-se poderoso demais para discutir.

Condenado em várias instâncias, mas à espera de que se esgotem os recursos, Bolsonaro, como ex-presidente, deverá ter direito a uma sala de Estado Maior num quartel da Polícia Federal.

Talvez, então, ele já terá sido abandonado por seus seguidores. Aqueles que, nos áureos tempos, exerciam em seus ataques aos opositores um laconismo igual ao do chefe: “Lixo!”, “Chega de mimimi!”, “Simples assim!”, “Entendeu ou quer que desenhe?” e “Aceitem que dói menos!”.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Almir Pazzianotto Pinto: A reconstrução

As perspectivas são desfavoráveis, mas a missão não é impossível

A pandemia de covid-19 surgiu na China em dezembro. Fez as primeiras vítimas em janeiro. Espalhou-se pelo mundo e chegou ao Brasil entre fevereiro e março. Quando aqui aportou encontrou o País em crise, com milhões de desempregados.

Há esperanças de deixarmos o isolamento até o início de junho. Hipóteses otimistas acenam com a possibilidade de refluxo no segundo semestre. O colapso das atividades econômicas só não é mais assustador do que o número de mortos e infectados. Milhares de empresas quebraram. Outras sobrevivem com graves dificuldades. A economia interna retrocederá uma década. O produto interno bruto cairá fortemente, na pior recessão em mais de cem anos. O desemprego poderá alcançar 20 milhões até dezembro.

É tempo de planejar a reconstrução. Joaquim Levy, ex-presidente do BNDES e ex-ministro da Fazenda, entrevistado pelo Estadão (15/4), advertiu sobre a necessidade de se organizar a “saída ordenada da crise”. Alertou, porém, que “tentar reconstruir a economia como era não vai funcionar”.

A reconstrução será possível, porém sobre novos fundamentos. O “custo Brasil” é o primeiro obstáculo que exige demolição. Para o nosso tamanho, é pífia a participação no cenário econômico internacional. Produtos industriais, de tecidos a automóveis, devem se tornar competitivos além do Mercosul, graças à qualidade e ao preço. Além de reduzir a burocracia e a carga tributária, as relações entre capital e trabalho deverão desenvolver-se em ambiente pautado pela busca do entendimento. Em vez do conflito crônico, o diálogo e a negociação.

A história do movimento sindical brasileiro oscila da servil promiscuidade com o governo, como à época do Estado Novo e boa parte do regime militar, ao grevismo irresponsável, tal e qual durante o governo Sarney. Com o fim da contribuição sindical obrigatória, a estrutura desabou. Da debacle salvaram-se entidades de servidores públicos e alguns sindicatos de estatais, de sociedades de economia mista e de multinacionais do setor automotivo. De qualquer forma, a classe trabalhadora não deve ser esquecida, mas prestigiada e integrada ao esforço de reconstrução.

Resisto à ideia do pacto social, à semelhança do que se conseguiu na Espanha no final de 1977, e não se alcançou no governo José Sarney após o malogro do Plano Cruzado. Os interlocutores e as circunstâncias são outros. Garantir a manutenção dos níveis de emprego durante determinado período deverá funcionar como valiosa moeda de troca para empregadores. Dos trabalhadores se espera o compromisso da redução dos litígios. Será indispensável criar ambiente de segurança jurídica, preservando-se a validade dos acordos ajustados segundo as regras das Medidas Provisórias 927 e 936. O temor do “passivo oculto” inibe contratações.

O Brasil fechou-se ao mundo pela incapacidade de enfrentar políticas econômicas pragmáticas, como são as norte-americanas, chinesas, japonesas, alemãs e sul-coreanas. Erguemos barreiras alfandegárias como instrumento de proteção da ineficiência. A tecnologia é importada e atrasada, incapaz de se ombrear com o mundo informatizado. Somos pobres em pesquisas. A mão de obra se ressente da baixa produtividade.

O balanço final da pandemia revelará que raros países vão sobreviver ilesos. A China interromperá 20 anos de desenvolvimento. Para 2021 são previstas perdas econômicas de 6,8%. As dificuldades dos Estados Unidos não serão menores. A Europa empobreceu. Vejam-se Itália, Inglaterra, Espanha, França. A proposta de Plano Marshall é além de idiota. Pedir dinheiro ao exterior é ato criminoso, escreveu Napoleão Bonaparte (Máximas e Pensamentos, Ed. Topbooks). Não será com dinheiro vertido de fora que o Brasil se reconstruirá, mas graças ao esforço planejado e incansável de trabalhadores e empresários, unidos pelo desejo de reerguer o País. O descontrolado endividamento causou-nos imensos prejuízos e demandou anos de sacrifícios para ser pago.

As perspectivas são desfavoráveis, mas a missão não é impossível. Dependerá de quem assumir a liderança. O êxito não resultará de medidas de força, mas da inteligência, perseverança, visão e capacidade de coordenar esforços dos responsáveis pela reconstrução. Na exoneração do ministro Sergio Moro, após a demissão do dr. Luiz Henrique Mandetta, comprovou-se o que já se imaginava: o Poder Executivo federal tem à frente imprevisível e impulsivo comandante. O que esperar de alguém dotado de personalidade autoritária, praticante do monólogo e avesso ao diálogo? De alguém incapaz de compreender que o dissenso é próprio da democracia e que o consenso nasce do entendimento, não resulta de imposição da caneta?

O presidente Jair Bolsonaro desperdiça a credibilidade adquirida na campanha eleitoral. Despreza opiniões que não venham de seus apoiadores. A promessa de implantação de novo modelo político é desmentida pelos fatos. Não lhe será fácil recuperá-la.

*Ex-ministro do trabalho, fundador da Academia Paulista de Direito do Trabalho (APDT), presidiu o Tribunal Superior do Trabalho


Cacá Diegues: A estratégia da mentira

Militantes brasileiros do autoritarismo armado se dedicam à fabricação inesgotável de fake news

Todo mundo mente nesse mundo. Quando a gente é criança, mesmo que ninguém nos ensine a mentir, a gente mente. Às vezes, por motivos até louváveis, como livrar a cara de um amigo ameaçado por meninos da turma da namorada recém-conquistada. Outras, para contar vantagens inconsequentes, como na qualificação exagerada do pai ou de um tio. Pode-se mentir também por excesso de imaginação, impossível de ser contida.

Na minha infância, em Maceió, uma senhora negra tomava conta dos filhos de meus pais, narrando estórias maravilhosas para nos fazer dormir. A mim, por exemplo, Bazinha me contava as aventuras do Zumbi dos Palmares que, entre outras virtudes empolgantes, sabia voar, lá pela Serra da Barriga, perto de nossa cidade. Mais tarde, lendo de Monteiro Lobato a Ariano Suassuna, acabei verificando decepcionado que alguns heróis desses autores contavam estórias mais audaciosas que as da Bazinha. Isso para não falar dos livros de João Ubaldo Ribeiro, que li muito mais tarde, claro.

A mentira é uma característica da civilização humana e nasceu com a própria Gênesis, quando Adão e Eva tentaram iludir o Senhor, sobre terem experimentado do fruto proibido. Ou, que me desculpem a ousadia, quando o próprio Senhor ordenou a Abraão que sacrificasse, à sua glória, o filho Isaac. E era apenas uma prova de fé. Dentro ou fora de Livros Sagrados, em louvor ou não de deuses e senhores de nossas almas, a mentira se estabeleceu na cultura humana, como uma característica dela e só dela. Você já encontrou algum animal mentiroso? Nenhum deles é capaz de mentir. Só nós.

Como tudo que é humano, a mentira serve ao bem e ao mal, depende de quem e para o quê a utiliza. Foi impulsionado pela mentira organizada que Adolf Hitler se impôs ao povo alemão. Quando alguns de seus colaboradores se recusaram a apoiar o projeto de guerra para ocupação da Europa, militantes nazistas trataram de espalhar que a esposa do general Blomberg, ministro da Guerra e principal opositor ao plano guerreiro, tinha sido prostituta e que a mãe dela fora dona de um puteiro.

Até meados da Segunda Guerra Mundial, Hitler nunca teve o Exército que proclamava ter, enganando o mundo e o próprio povo alemão com exibições falsas e falsos desfiles em que soldados e equipamentos de guerra se repetiam. Na verdade, a anexação dos sudetos, as incorporações da Renânia e da Áustria, assim como o desmantelamento da Tchecoslováquia, preliminares da Guerra, não tinham sido propriamente vitórias militares, como Hitler afirmava para convencer os alemães de sua força e de seu poder. Foi com mentiras sucessivas, como essas, que Hitler desmantelou toda a estrutura democrática da Alemanha. E, com elas, quase faz a suástica cobrir o continente europeu inteiro.

Esse uso esperto da mentira, criada com certa astúcia, é a mesma estratégia usada pelos bolsonaristas no Brasil. Além de afastar de perto dos fatos políticos perigosos democratas, atropelando-os ou simplesmente desmoralizando suas decisões, os militantes brasileiros do autoritarismo armado e mentiroso se dedicam à fabricação inesgotável de fake news. Chegaram a anunciar, por redes sociais, que os caixões que vemos serem enterrados pelo Brasil afora, fazendo sofrer tanta gente, estão vazios ou carregados de pedras. O desfile de caixões serve apenas para agravar as consequências irrelevantes da “gripezinha”.

De tanto se dedicar às porradas inconsequentes e às picuinhas tão vazias sobre o governador de São Paulo, Bolsonaro acabou se tornando o cabeça de ponte no lançamento da candidatura de João Doria, para 2022. Ninguém melhor para promovê-lo. O que mais nos confunde é que a ideologia do PR não tem muita tradução lógica em seus atos. Agora mesmo, ele vetou, mais uma vez, a proteção ao audiovisual brasileiro na televisão paga, pois isso nos prejudicaria a sorte que temos de assistir às formidáveis obras estrangeiras (sobretudo americanas) que elas, as emissoras, nos oferecem diariamente. Um gesto de extremo “globalismo”, realizado por um político que não perde a oportunidade de se declarar antiglobalista. E aí, Olavo de Carvalho, você não vai se manifestar? Ou o guru talvez esteja se reservando para a estranha defesa da cloroquina, um milagroso remédio para a Covid-19, praticamente vetado por todos os médicos do mundo.

O organizado serviço de fake news, em todas as redes sociais, promovendo desprezo e desrespeito pela ciência, parece uma campanha sem direção. Não havendo um centro de discussão, nem um alvo iluminado para onde se destina, só existe a trajetória e, portanto, o desejo de crise, estado humano que se caracteriza pela possibilidade de várias alternativas propulsoras. Apenas o capricho do poder.


Fernando Gabeira: Gente em tempos sombrios

Tanto na guerra quanto na pandemia, escolhas erradas nos levam ao pior dos mundos

Dizem que vivemos a maior crise depois da Segunda Guerra. Não conheci a Segunda Guerra: ela é tão antiga que me colheu nos primeiros anos de vida.

Isso não me impede de comparar. Para o Brasil, creio, a Segunda Guerra foi menos devastadora que a pandemia do coronavírus. Perdemos 471 homens e tivemos 12 mil feridos. Nesta semana, a pandemia já alcança 200 mil casos e ultrapassa as 15 mil mortes.

Na Segunda Guerra, Vargas demorou mas acabou encontrando o rumo, e o Brasil se colocou do lado certo no conflito. Bolsonaro subestimou a importância do vírus e, infelizmente, não alterou sua posição diante dos fatos, recusando-se a desenvolver uma política nacional e solidária.

Isso configura uma tempestade perfeita. Tanto na guerra como na pandemia, escolhas erradas nos levam ao pior dos mundos.

Mas não adianta chorar. Sempre me interroguei sobre como sobreviver no pior dos mundos. Não tive respostas definitivas.

Lembro-me de que estava cobrindo a chegada dos refugiados albaneses numa praia italiana, no fim do regime. Na multidão que saía do navio, vi um casal vestido modestamente, mas com muita elegância. Pareciam tranquilos e felizes. Imaginei que eram ligados por um profundo laço amoroso, e isto os ajudou a atravessar o pesadelo do regime autoritário de Enver Hoxha.

Mais tarde li “Homens em tempos sombrios”, de Hannah Arendt. Ali era a coragem intelectual diante do stalinismo e do fascismo que despontava como elemento essencial na sobrevivência.

Finalmente, quando li os escritores cubanos dissidentes, muitos perseguidos e aniquilados, outros resistindo através de sua literatura, cheguei a uma nova conclusão.

Creio que a expressei numa introdução ao livro do poeta Raúl Rivero, cuja saída de Cuba para a Espanha acompanhei, tentando apoiá-lo também do Brasil. Nesse caso, a sensualidade inspirada no cotidiano do próprio povo pareceu-me um fator de sobrevivência e de recusa à mediocridade burocrática.

Apesar de tantas indicações na experiência de vida, a tempestade perfeita me colhe numa situação singular. Será necessário inventar porque, apesar das experiências terríveis dos outros, nenhuma das outras tempestades perfeitas apresenta os ventos, trovões e raios como a nossa. A água que aqui transborda, não transborda como lá.

Estamos diante de um inimigo invisível. Muitos de nós somos do grupo de risco. A energia popular está distante porque fomos confinados. No passado, ouvia bater de panelas. Agora, nem isso. De vez em quando, alguns gritos ao longe, ou mesmo a voz de crianças empinando pipas no sol de outono.

O governo é de extrema direita. Ainda há liberdade de criticá-lo, mas na solidão virtual. Nos anos 60, fervilhavam as assembleias, uma corrente fraternal eletrizava os opositores, amores brotavam no asfalto como as flores do poeta.

Na semana passada, preparando-me para uma live com o embaixador Marcos Azambuja, escrevi um artigo sobre as características gerais dessa tempestade: ecologia, política externa, experiências históricas de negação da realidade.

Ao concluir o artigo preparatório, cheguei à conclusão de que era preciso aos poucos responder para esta época a pergunta que me intrigava em outras épocas e lugares.

Não sou adepto da ideia do novo homem. Fico com Shakespeare e acho que a humanidade com suas misérias e grandezas não muda essencialmente através do tempo. No entanto, não há dúvida de que a pandemia nos coloca a questão da solidariedade. Por menos que seja nosso gesto, sentimos que a resposta específica para esse tempo sombrio passa por aí.

Da mesma forma, a luta pela democracia, o esforço para manter nossos valores culturais e espirituais diante do impulso destruidor da extrema direita e sua política de morte.

Só está faltando talvez a superação dos ressentimentos, a certeza de que é possível formar uma ampla unidade de diferentes, sem veleidades hegemônicas, algo que em outras épocas foi o instrumento decisivo para combater governos extremistas.

Evidentemente, não tenho a fórmula acabada para esta união. Parece-me apenas que discutir, neste momento, quem tem mais culpa na ascensão de Bolsonaro é continuar no pântano.


José Roberto Mendonça de Barros: O Brasil não será o mesmo depois da pandemia

O acordo com o “Centrão” garante que o projeto liberal de Guedes naufragou de vez

O coronavírus é o maior choque das últimas décadas. Espalhou-se rapidamente pelo mundo e é bastante letal. Como ainda não temos remédios definitivos ou vacina, a única recomendação da ciência é reduzir a circulação das pessoas por meio de uma quarentena, com diferentes graus de intensidade.

Esse recolhimento produz uma parada súbita na atividade econômica, uma vez que muitas empresas fecham e as pessoas ficam, em sua maior parte, nas suas casas. Essa situação resulta, muito rapidamente, em uma forte recessão na economia.

Como já vimos no caso de vários países, após três ou quatro meses o surto inicial do vírus começa a se reduzir e, cautelosamente, as regras de confinamento começam a ser abrandadas.

Neste momento, descobre-se que ficar fechado em casa por um longo período é uma experiência única, que será marcante na vida de todos. Ninguém será o mesmo quando tudo isso acabar. Vejo alterações em pelo menos três dimensões: enquanto cidadãos, trabalhadores e consumidores.

As pessoas, provavelmente, estarão mais próximas de uma vida mais simples e mais natural, que vai afetar, inclusive, o seu estilo de vida e o tipo de alimentos desejados, mais naturais, menos industrializados, orgânicos.

Na esfera do trabalho, muita gente terá aprendido a operar à distância e conhecido muitas técnicas e ferramentas novas, que inclusive tendem a elevar a produtividade. Entretanto, muitas pessoas perderão renda, ficarão desempregadas e dependerão por um tempo de mecanismos de transferência de renda. Para esse grupo, a demanda de alimentos se voltará para os mais básicos. Ainda na dimensão do trabalho, a pandemia vai levar muitas companhias a adotar técnicas mais automatizadas.

Finalmente, o consumidor, além da mudança de hábitos, também está alterando a forma de comprar, entrando firme na direção do e-commerce e dos novos canais de comercialização.

As empresas também serão diferentes. Na verdade, muitas nem sequer sobreviverão à recessão pela qual todos estão passando, inclusive o Brasil, mas as que conseguirem atravessar esse percurso também irão se alterar.

Pensemos um pouco no caso do comércio. O confinamento levou as famílias para a compra por internet em larga escala. Com isso, muitos consumidores aprenderam a usar novas ferramentas, inclusive comparação de preços, levando a um crescimento enorme neste canal de comercialização. As empresas já preparadas deram um salto nas vendas e se beneficiarão muito. Entretanto, muitas companhias nem sequer dispunham do canal. Como na situação pós-covid muitas pessoas ainda evitarão aglomerações, essas empresas sofrerão muito. Por outro lado, as empresas menores necessariamente terão de se encaixar nas plataformas de vendas das grandes. A organização do mercado mudará muito.

Todas essas mudanças ocorrerão no Brasil de forma muito intensa, até porque nossa economia vai cair muito mais do que pensávamos há algum tempo. Hoje, projetamos uma contração de 7,8% no PIB, algo sem precedentes, em meio a uma instabilidade enorme, capitaneada pelo radicalismo e falta de rumo do governo federal.

Sairemos da crise do coronavírus muito mais pobres. Nossa renda per capita ao cabo deste ano será algo como 15% menor em relação a 2014!

Ao mesmo tempo, o país será ainda mais desigual: o desemprego vai crescer muito e a tecnologia avançará na direção da automação. Finalmente, o pior ministro da educação de todos os tempos trouxe um enorme retrocesso na área.

O acordo com o chamado “Centrão” garante que o projeto liberal do ministro Paulo Guedes naufragou de vez, especialmente pela implosão de qualquer reorganização do regime fiscal. Da mesma forma, o Plano tipo Geisel (chamado Pró-Brasil) tem chance zero de dar minimamente certo.

A pergunta que fica: como recompor no futuro um arranjo que permita sonhar de novo com crescimento econômico?

*Economista e sócio da MB Associados.


Eliane Cantanhêde: Nada faz sentido

Reunião foi do balacobaco e ministro da Saúde tem de fazer o que dr. Jair manda

Nada faz mais sentido, com as versões oscilando entre inacreditáveis e ridículas. Mas vamos ao principal: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril confirma toda a versão do ex-ministro Sérgio Moro e deixa o presidente Jair Bolsonaro na patética situação de alegar que não falou em Polícia Federal, só em PF… Ah, bem!

O trecho divulgado pela Advocacia Geral da União, que defende Bolsonaro, deixa tudo em pratos limpos. Bolsonaro não apenas citou a PF como a citou em primeiro lugar. E todo o contexto não deixa dúvidas: “querem F…. com ele e a família”, é preciso cuidar da segurança da família e dos amigos.

O órgão responsável pela segurança pessoal da família não é a Polícia Federal (ok, a PF), é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao GSI. E nem a PF nem a Abin cuidam da segurança de amigos, vamos convir. Logo, o presidente não estava falando da segurança física nem da Abin. Estava falando, sim, da PF. E os desdobramentos confirmam à sobeja.

“Vou interferir. Ponto final”, avisou o presidente. E interferiu. Onde? Na PF. Quem foi demitido foi o diretor geral da PF, delegado Maurício Valeixo, não o também delegado Alexandre Ramagem, da Abin, que chegou, inclusive, a ser nomeado para a vaga de Valeixo. O presidente promoveu quem não estava cuidando direito da segurança pessoal da família e dos amigos?! Não.

Assim, o presidente usa nomes falsos em exames de covid-19, demora meses para entregar os laudos à Justiça, diz que não falou na Polícia Federal, mantém a versão sem sentido da “segurança pessoal”. Dr. Jair, médico renomado, também insiste em desconsiderar estudos científicos do mundo todo para impor o uso da cloroquina em pacientes iniciais, como insiste na sua cruzada contra o isolamento social. E instiga a guerra contra governadores, que “querem quebrar a economia para atingir o meu governo”. Non sense.

Saiu Luiz Henrique Mandetta, entrou Nelson Teich e nada mudou. O presidente exige que o ministro da Saúde, seja quem for, faça o que ele próprio tem na cachola. A Dra. Damares Alves topa o jogo, falando em “milagre da cloroquina”. Mas, se insistir em nomear um general para o Ministério, Bolsonaro vai criar uma saia justa. O estudo mais completo, claro e realístico sobre a importância do isolamento social foi feito pelo… Exército. Um ministro-general vai seguir os estudos científicos ou os achismos do presidente?

A semana, portanto, começa sob duas expectativas. Quem será e o que vai dizer e fazer o novo ministro da Saúde num momento dramático da pandemia? O relator Celso de Mello, do STF, vai quebrar o sigilo integral ou só parcial da reunião do dia 22? Há quem defenda que ele libere geral, em nome da transparência, há quem ache melhor a divulgação em parte, em nome da segurança e da imagem do Brasil.

Curiosos foram os argumentos do procurador geral Augusto Aras, contra a divulgação integral: trata-se de um “arsenal de uso político” e de “instabilidade pública”, “proliferação de querelas” e de “pretextos para investigações genéricas sobre pessoas”. A conclusão é que a reunião foi do balacobaco. Além do presidente falando palavrão, mostrando que é capaz de qualquer coisa para proteger a família – o que consta dos trechos da AGU –, há ministros falando qualquer coisa para agradar ao presidente.

Um verdadeiro vale tudo com provocações gratuitas contra o maior parceiro comercial do Brasil, proposta de botar na cadeia os onze ministros do Supremo, a ideia de prender junto os governadores. Celso de Mello, portanto, vai ter de decidir se os brasileiros têm ou não o direito de saber onde estão metidos e se o mundo precisa saber o que está ocorrendo no Brasil.


Bruno Boghossian: Troca de ministro reflete delinquência de Bolsonaro na crise do coronavírus

Presidente não quer uma equipe de auxiliares, quer uma casa dos espelhos

O país contava quase 3.000 mortes pelo novo coronavírus quando Jair Bolsonaro reuniu seus ministros no dia 22 de abril. O governo continuava sem rumo na pandemia, mas o time preferiu reproduzir teorias da conspiração, sugerir a prisão de ministros do Supremo e discutir a exploração de órgãos de inteligência para atender às vontades particulares do presidente.

O vídeo daquele encontro já virou peça do inquérito sobre a interferência escancarada do presidente na Polícia Federal, mas deve se tornar também um registro histórico da delinquência do governo na crise da saúde e em outros temas.

Bolsonaro lidera uma equipe absolutamente submissa a seus desejos pessoais, picuinhas políticas e fixações ideológicas. Mesmo diante da escalada descontrolada de mortes, os auxiliares só repetem a ladainha do presidente e alimentam as obsessões alucinadas do chefe.

O pedido de demissão de Nelson Teich é um dos produtos dessa relação. O oncologista só conseguiu o cargo porque se curvou e prometeu um “alinhamento perfeito” com Bolsonaro. Nem ele, contudo, foi capaz de respaldar cegamente o fim do isolamento e a propaganda da cloroquina, como encomendara o patrão.

A reunião ministerial de abril mostrou que só prosperam no governo os subordinados dispostos a amplificar as barbaridades e endossar os instintos autoritários de Bolsonaro.

Acuado e enfraquecido, o presidente se esforça para reafirmar seu poder e exigir que os ministros entrem na linha. “Vou interferir, ponto final”, disse, após reclamar da PF e de outros órgãos. “Votaram em mim para eu decidir, e essa questão da cloroquina passa por mim. Não pode mudar o protocolo agora? Pode mudar e vai mudar”, ameaçou, na véspera da demissão de Teich.

O presidente não quer um ministério, quer uma casa dos espelhos. Na saúde, a tendência é que a gestão se torne ainda mais direcionada a se adequar a seus caprichos. Não faz diferença trocar o responsável pela área. Bolsonaro continua lá.