pandemia

Felipe Salto: Batidas na porta da frente

A hora é da qualificada elite burocrática do País. Mas isso requer liderança política

A covid-19 levou Aldir Blanc, mas sua obra é um fio permanente de beleza a nos guiar nestes tempos obscuros, a exemplo da canção Resposta ao Tempo. A resposta à crise não pode mais ser atropelada por agendas inadequadas. A falta de diagnóstico e de prognóstico turva a visão do governo. Ainda há tempo para salvar muitas vidas. A resposta tem de se pautar em dois eixos: o combate ao vírus, no curto prazo, e o planejamento para o pós-crise.

O isolamento social é inescapável, como explicou o sanitarista Gonzalo Vecina em artigo no Estadão de 20/5. A recessão econômica poderá ser pior do que a apontada no atual cenário pessimista da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, de 5,2%. Diante disso, a tarefa primordial é reduzir mortes e planejar um horizonte de recuperação da produção e do consumo. A volta à normalidade ocorrerá, tempestivamente, de maneira coordenada.

No eixo do combate ao vírus destacam-se quatro frentes de batalha: 1) guarnecer o SUS e os governos regionais; 2) disseminar os testes de diagnóstico e acelerar a compra de respiradores e a instalação de novas UTIs, em parceria com o setor privado; 3) mitigar os efeitos da crise sobre a renda dos mais pobres; e 4) intensificar as medidas de isolamento e as campanhas de higiene pessoal e de uso de máscaras. Comento cada uma a seguir.

1) Foram aprovados R$ 50,2 bilhões de auxílio aos governos estaduais e municipais, além de compensações de até R$ 16 bilhões nos fundos de participação desses entes federativos. Outros R$ 49,8 bilhões foram destinados à saúde, incluindo gastos diretos da União e transferências para Estados e municípios. Mas desse total, de R$ 116 bilhões, foram pagos apenas R$ 11,2 bilhões. É preciso transpor obstáculos burocráticos e acelerar os pagamentos, sobretudo no gasto com saúde.

2) “O tempo aprisiona”, diz a música de Aldir Blanc. A inépcia, também. É urgente promover um esforço nacional envolvendo o setor privado. Sua estrutura, seus profissionais e seu conhecimento têm de ser convertidos para as trincheiras da guerra ao vírus. Faltam testes, medicamentos, respiradores, UTIs e profissionais. Por hipótese, o aluguel ou construção de 30 mil leitos de UTI, ao custo médio diário de R$ 2 mil/paciente, por um período de três meses, representaria R$ 5,4 bilhões. É uma cifra muito pequena relativamente ao poder de fogo da União. Poderia ser comportada nos R$ 49,8 bilhões mencionados.

3) O programa emergencial de R$ 600 está sendo executado, apesar das filas e das dificuldades para acesso ao dinheiro. Dos R$ 123,9 bilhões fixados pelo governo no orçamento, R$ 76,4 bilhões já foram pagos. A IFI estima que o programa atingirá quase 80 milhões de brasileiros, ao custo de R$ 154,4 bilhões em três meses. A discussão sobre a prorrogação do auxílio é relevante, mas precisa ser feita no contexto de eventual reestruturação e unificação dos benefícios sociais já existentes.

4) As campanhas para higienização pessoal, controle de circulação de pessoas e uso de máscaras têm de ser intensificadas. Como apontado por Vecina, se o contágio não se distribuir no tempo, a demanda adicional de UTIs levará o sistema de saúde ao colapso.

No segundo eixo, o do planejamento para o pós-crise, é preciso ter claro o ponto de partida: a dívida pública aumentará mais de dez pontos porcentuais do PIB em 2020, algo como R$ 732 bilhões. Em 2021 será preciso retomar déficits públicos menores. Tarefa complexa a executar se o PIB aumentar muito pouco. A saída da crise envolve o compromisso com o controle dos gastos governamentais e com o aumento das receitas e dos investimentos públicos.

Os juros baixos ajudarão a elevar o investimento privado, mas cabe lembrar que a ociosidade da indústria já supera os 40%. Os recursos dos programas de crédito têm de chegar mais rapidamente às empresas. Também o programa de manutenção de emprego com redução de jornada merece atenção, uma vez que foram pagos até agora apenas R$ 4,5 bilhões dos R$ 51,6 bilhões previstos. Do contrário, fragilizaremos a retomada.

Um verdadeiro bunker é necessário para dirigir tudo isso. Os dois eixos são complexos e cheios de matizes que dependem de gente competente, gestores, especialistas e estudiosos. Em nada ajuda a súcia de camisas pardas a aplaudir o caos. A hora é da qualificada elite burocrática do País. Mas isso requer liderança política.

As tarefas são óbvias: coletar informações diárias de todos os Estados e municípios, com foco nos mais afetados pelo coronavírus, e agir, a partir do bom diagnóstico. E, claro, corrigir a rota quando necessário. Não é uma operação trivial.

Como na canção de Aldir Blanc, “(o tempo) sussurra que apaga os caminhos”, atropela vidas, é implacável com a irresponsabilidade. “Batidas na porta da frente. É o tempo…”. A melhor resposta? Governar.

Nota: Meu avô, Milton Scudeler, era assinante do Estadão e lia para mim os editoriais e artigos de opinião das páginas A2 e A3, onde agora tenho a honra de escrever periodicamente. Agradeço ao jornal pelo espaço aberto.

  • Diretor executivo da IFI

Hamilton Garcia: Bolsonaro e Mourão - da pandemia ao pandemônio

O segundo Governo Dilma começou a desandar na largada, quando sua titular se viu obrigada a nomear um Ministro da Fazenda que pensava o contrário daquilo que havia defendido durante sua campanha (2014), um caso de estelionato eleitoral tão notável como o confisco da poupança por Collor (1990), que na campanha lançara tal acusação contra o rival petista no segundo turno.

Tentando remediar o desastre de sua incoerência/inconsistência, Dilma fez de tudo para manter as aparências, não só praticando crimes orçamentários e fiscais para evitar descontinuidade de seus programas sociais, como também abandonando à própria sorte o ministro que nomeara. O resultado foi desgoverno e perda de apoio parlamentar (Centrão), que abriu as portas para o processo de cassação.

Bolsonaro não só repete Dilma e Collor no estelionato eleitoral, abandonando a luta anti-corrupção que ameaça tragar seu clã pelas práticas tradicionais do baixo-clero parlamentar (rachadinha) e os vínculos com o crime organizado (milícias), como também no desgoverno, por sua omissão no enfrentamento da COVID-19 e a desastrada tentativa de intervenção na PF – por ora barrada pelas denúncias de Sérgio Moro e a pronta ação do Ministro Alexandre de Moraes, do STF –, que marca a retomada de seus laços de sangue com o Centrão.

A incapacidade presidencial em construir uma coalizão governamental de centro-direita, que lhe desse base mínima de apoio político e parlamentar, já se delineara desde as demissões dos ministros Bebianno e Santos Cruz, em 2019, ganhando nova dimensão com a demissão de Mandetta e a renúncia de Moro, este último desnudando o deslocamento do eixo de ação do Governo do programa para o projeto de poder – outro aspecto do estelionato eleitoral –, não obstante a retórica do cerco político (programático). As dificuldades político-programáticas são reais, mas não se pode conceber o Centrão como um remédio para isto.

De outro lado, há claros sinais da insuficiência do programa ultra-liberal de Guedes, abraçado por Bolsonaro, a partir da constatação da tíbia recuperação econômica pré-pandemia. De lá para cá, a generalização do medo em relação ao vírus e os decretos do fim do mundo, adotados na esteira da omissão presidencial, instauraram a certeza de uma profunda recessão, agravado pela percepção do colapso da economia mundial, vale dizer, entre outras coisas, da cessação dos fluxos financeiros internacionais que alimentam a (dependência da) periferia capitalista.

A mudança radical de conjuntura fez Bolsonaro voltar a cogitar o programa econômico nacionalista que, outrora, permitira aos militares forjar o “milagre brasileiro" à partir do compromisso entre o desenvolvimentismo em si (sem desenvolvimentistas) e o liberalismo em si (mercado) – que nada tem a ver com o liberalismo para si (político). Assim, Guedes se vê em situação próxima à de Moro – cuja intransigência liberal-republicana limitou as possibilidades de transação –, podendo ser o próximo a ter que ceder os dedos – para um nacionalismo que se supunha morto – para não perder os anéis da influência privada interna no Estado.

Enquanto o Governo, expurgado de suas ortodoxias (liberais e republicanas) de campanha, se insinua ao centrão político, em busca mais de blindagem do que de governabilidade – como fizera o regime militar ao criar a ARENA e o MDB –, a velha política vê nisto a possibilidade de uma dupla blindagem: em relação aos aparatos jurídico-repressivos do Estado, via controle do MP, PF, etc., e à sociedade, por meio do anteparo bolso-cristão.

Bolsonaro, além de ter coragem política – o que o povo aprecia, pois foi o único, depois do Petrolão, que soube utilizar o capital político amealhado pelos lavajatistas para atacar a velha política, nela englobando a degeneração tucano-petista –, demonstra ter capacidade tática (readaptação) além de ter tomado gosto pelo poder, elementos essenciais ao jogo político-estatal.

O problema aqui é que sua personalidade farisaica e sua história terrorista (vide “#ELE NÃO” ou “#ELES NÃO”?) parecem indicar altos níveis de desarranjo político associado à baixos níveis de solução de problemas, o que torna crítica a questão de saber até que ponto ele terá condições de tocar seu novo Governo, com o apoio das FFAA, dos liberais encabrestados, do bolso-cristianismo e do Centrão, em meio a tantos estelionatos acumulados, aos escândalos por desabrochar e sua flagrante inapetência para a gestão.

Até aqui, o Presidente conseguiu arrefecer a perda de credibilidade nos extratos médios e altos da sociedade com apelos ao retorno do comércio e a distribuição de dinheiro (corona-voucher) às camadas populares, mas tudo isso tem prazo de validade e daqui a poucos meses estará ele diante de um quadro bastante adverso, com a população muito atingida pela epidemia, o desemprego ainda mais alto, a recessão estabelecida e um forte descrédito político geral. Quando esta situação se instalar, difícil crer que o impeachment não se tornará inevitável.

É aqui que voltamos a observar a movimentação do Vice Hamilton Mourão; não se sabe, exatamente, se no centro do gramado, onde Bolsonaro atua como dono da bola, ou à sua margem, com visão nova/própria de jogo e vontade de entrar em campo, como se viu, afoitamente, no início do governo.

Em artigo recente no Estadão[i], Mourão apontou a anomalia institucional como um problema que está "levando o País ao caos”, podendo se tornar uma questão "de segurança”, o que classicamente justificaria uma intervenção militar – no caso, um autogolpe. Para ele, a causa principal desta anomalia residiria na "polarização que tomou conta de nossa sociedade” e que é revigorada por decisões judiciais e coberturas jornalísticas "sempre pelo mesmo viés”, o que nos lembra o pensamento de seu desafeto Olavo de Carvalho em relação à guerra contra o comunismo (vide Democracia, Idiotia e Facciosismo), mas também a crítica de Oliveira Vianna[ii] ao liberalismo do início do séc. XX, cuja inviabilidade, para o autor, estaria centrada no "conflito patente entre (…a) cultura das elites metropolitanas (idealismo constitucional) e a cultura política da (…) enorme massa (…), que é quase toda a nação”.

Não obstante seu firme posicionamento à direita, Mourão, ao contrário de Bolsonaro, defende "sentar à mesa, conversar e debater” como forma de impedir a continuidade da deterioração do "ambiente de convivência e tolerância que deve vigorar numa democracia”, uma postura totalmente contrária ao do titular do Governo, que não cansa de semear o pandemônio – uma de suas predileções políticas desde a juventude.

Mesmo sua crítica à ”degradação do conhecimento político por quem deveria usá-lo de maneira responsável”, que deixa de lado o próprio titular do Governo, principal promotor de balbúrdias da República neste momento, precisa ser vista diante da impossibilidade de fazer de outro modo, sob pena de atentar contra a própria compostura do cargo que exerce (Vice-Presidência), entre outras questões.

O fato é que Mourão, mesmo citando a "profusão de decisões de presidentes de outros Poderes, de juízes de todas as instâncias e de procuradores, que (…) intentam" exercer a função Executiva para o qual não foram eleitos, o que não faz jus a seu conhecimento de filosofia política moderna – deixando de lado Montesquieu –, afirma querer deter a marcha batida do enfrentamento, apostando haver ainda "tempo para reverter o desastre”: "basta que se respeitem os limites e as responsabilidades das autoridades legalmente constituídas”, o que só pode ser obtido pelo afastamento do Presidente da República do cargo – inclusive a tempo de impedí-lo de lançar-se em aventura putschista.

Pode parecer pouco, mas diante do que temos – um Presidente que goza de forte prestígio nas franjas subalternas das FFAA e nos aparatos policiais, sobretudo estaduais, e uma militância fanática que o apoia e se mostra crescentemente inclinada à ação prática –, não é de se desprezar, sobretudo quando as instituições democráticas se mostram divididas e vacilantes, eivadas de (falsas) lideranças com vistosos rabos-presos e dispostas a tudo para mantê-los intactos.

Mourão demonstrou vontade de pacificar o país quando fez gestos, logo no início do Governo, em direção ao espectro político-ideológico opositor – gestos que foram abortados por pressão do bolsonarismo –, o que ainda hoje parece refletir a visão majoritária das FFAA sobre o papel dos governos.

Neste momento, quando tudo parece ter se turvado diante da flagrante cooptação militar promovida por Bolsonaro, é mais importante do que nunca apoiar as lideranças militares que, seguindo a filosofia do General Villas-Bôas, não apostam na força como substituta da vontade social, mas tão somente como desobstruidora do caminho por onde ela quer fluir. O bolsonarismo, definitivamente, não parece representar este caminho.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])


[i] Limites e responsabilidades, in. <www.gov.br/planalto/pt-br/conheca-a-vice-presidencia/discursos-pronunciamentos-artigos/limites-e-responsabilidades> em 18/05/20.

[ii] Instituições Políticas Brasileiras (vol. 1), ed. Itatiaia-USP-UFF/BH-SP-Niterói, 1987, p. 20.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


Vera Magalhães: O Inferno de Dante

Reunião ministerial é a representação da obra do poeta nos tempos de pós-verdade

“Deixai toda a esperança, vós que entrais!” A inscrição aparece quando o poeta italiano Dante Alighieri cruza o Portal do Inferno em sua epopeia A Divina Comédia. Vale para quem se arrisca a assistir à representação da obra nos tempos de pandemia e pós-verdade. Sim, estou falando da reunião ministerial do governo Jair Bolsonaro de 22 de abril, para a qual o único adjetivo possível é dantesca.

O fato de que alguns críticos anestesiados por tanto horror produzido por este governo tenham conseguido minimizar o que se passou ali nos leva de novo à obra do poeta italiano: são pessoas que estão ali no Vestíbulo, pouco antes do Primeiro Círculo do Inferno.

É o lugar dos covardes, fracos e indecisos, no qual se encontram hoje um bom número de homens públicos, alguns pretensos formadores de opinião e uma parcela letárgica da sociedade.

Mas há os que já desceram a alguns dos Nove Círculos do Inferno percorridos por Dante em sua viagem. Nos seis primeiros estão os que cometem pecados involuntários, nos quais há culpa, mas não dolo.

A coisa começa a ficar mais grave quando se passa aos três últimos círculos, com seus vales, fossas e esferas. É nesses lugares sombrios que estão os participantes da reunião macabra capitaneada por Bolsonaro, o capitão da versão pandêmica do inferno dantesco.

O Sétimo Círculo é o lugar dos violentos. Bolsonaro prega abertamente a criação de uma milícia paramilitar armada até os dentes para resistir a governadores, prefeitos e ordens judiciais. É a defesa da criação de um Estado paralelo, diante de ministros absolutamente silentes.

Os dez fossos do penúltimo círculo do inferno são a morada dos sedutores, aduladores, simoníacos (traficantes de coisas divinas), adivinhos, corruptos, hipócritas, ladrões, maus conselheiros, semeadores de discórdia e falsificadores.

Todas essas figuras aparecem na reunião, sem filtro. Ricardo Salles fala em aproveitar a “tranquilidade” da pandemia para barbarizar na desregulamentação de áreas como meio ambiente e agricultura. Chega a quase salivar de excitação, aos olhos de um incrédulo e novato Nelson Teich, que conseguiu ficar no vestíbulo do inferno bolsonariano, antes de se afogar em seus rios de cloroquina.

Damares Alves está lá, nos fossos do Oitavo Círculo, se esmerando para mostrar serviço ao chefe e falando em usar sua pasta para prender (!) prefeitos e governadores. É estarrecedora a distorção de realidade que ela demonstra, num semitranse, ao elencar notícias falsas para justificar que iria “pegar pesado” dali por diante. Bolsonaro adorou.

Abraham Weintraub, então, pode fazer um rodízio entre os fossos, pois preenche todos os requisitos para chafurdar naquele inferno pelo resto dos seus dias. Para júbilo de um Bolsonaro que exige de seus ministros a capitulação absoluta aos pecados logo na abertura da comédia dantesca, fala em prender “vagabundos”, entre os quais os ministros do STF.

O Nono Círculo do Inferno é o dos traidores. É o lugar de Bolsonaro, e será também o dos que insistirem em seguir com ele diante da evidência de crimes (interferir na Polícia Federal para proteger familiares de investigações, como fica comprovado pelo vídeo e pelas declarações e ações posteriores do presidente), autoritarismo e absoluta falta de humanidade, empatia e preocupação com uma pandemia que ceifa vidas de brasileiros aos milhares enquanto o presidente da República e seus asseclas atentam contra o bom senso, a saúde pública, a ética e a Constituição à luz do dia e em horário de expediente. O Inferno descrito por Dante talvez não contenha círculos suficientes para descrever o que se passou em Brasília em 22 de abril.


Dorrit Harazim: Talkey

Pouco apaziguante para um país que ultrapassara 330 mil casos de Covid-19 e um séquito de mais de 21 mil óbitos

A linguagem do decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em nada se assemelha ao idioma criado por Jair Bolsonaro para pregar a seus devotos. A sintaxe, o léxico, o conteúdo falam a dois Brasis cada vez mais estrangeiros. Na sexta-feira passada, porém, Celso de Mello se fez entender por todos ao lembrar que cabe ao Estado mandar apurar delitos apontados por “qualquer pessoa do povo”, mesmo que se trate de “alguém investido de autoridade na hierarquia da República”. Em outras palavras: nem o Mito está acima da lei, talkey? O causídico assinou dois despachos — bomba com poucas horas de intervalo —, autorizou a liberação quase integral do vídeo da polêmica reunião ministerial de 22 de abril último, e encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido de apreensão do celular de Bolsonaro e de seu filho 02, o vereador bissexto Carlos. As duas decisões são desdobramentos das investigações sobre a suposta interferência do presidente na Polícia Federal, denunciada pelo ex-ministro Sergio Moro.

A partir daí, o estado democrático de direito viu-se, mais uma vez, enroscado.

Com 48 horas de intervalo, o general de reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) também emitira dois comunicados à nação. O primeiro já teve sonoridade meio esquisita, embora pretendesse soar como afago aos historicamente inquietos. “Os militares não vão dar golpe. Isso não passa na cabeça dessa nossa geração… São provocações feitas por alguns indivíduos…”, garantiu o general durante uma live com o grupo Personalidades em Foco. Heleno acrescentou que deve isso à geração de seus instrutores, “vacinados por toda aquela trajetória de militares se intrometendo de uma forma pouco aconselhável, mas muitas vezes necessária, na política”. No segundo comunicado, em papel timbrado via Twitter, indignou-se com o pedido de apreensão e encaminhamento à PGR do celular presidencial. Considerou o pedido uma afronta à autoridade máxima, e uma interferência “inadmissível” do STF na privacidade de Bolsonaro e na segurança nacional. E assim sendo, alertava “as autoridades constituídas que tal atitude… poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

Pronto, o “inadmissível” estava colocado na mesa. Para bolsonaristas, intolerável passa a ser o pedido de apreensão do celular do presidente; para ouvidos mais maduros, inquietante é o aceno pouco velado a uma eventual instabilidade nacional. Tudo pouco apaziguante para um país que ultrapassara a marca de 330 mil casos de Covid-19 e um séquito fúnebre de mais de 21 mil óbitos notificados.

Foi nesse pano de fundo que os brasileiros puderam acompanhar a transmissão de largos trechos da reunião ministerial de 22 de abril, peça-chave na investigação sobre as acusações feitas pelo ex-ministro Moro ao chefe do Executivo, e cujo sigilo o ministro Celso de Mello liberara.

O seu conteúdo será dissecado por anos a fio, por histórico, revelador, estupefaciente. Mas como esta coluna dominical está sendo enviada dois dias antes, no meio da transmissão do material libertado, cita-se aqui apenas uma rima presidencial pinçada às pressas, que não se refere às acusações de Sergio Moro mas não deixa de ser instigante. Palavras do presidente da República um tanto alterado, estilo haikai talkey:

“Os caras querem/ A nossa hemorroida!/ A nossa liberdade!/ Isso é que é a verdade” .

Também digno de nota foi a imagem na parede de um grupo de crianças lindinhas, todas branquinhas, olhando com enlevo para um cartaz do governo com os dizeres PÁTRIA AMADA, BRASIL. Servia de pano de fundo ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, que podia ser visto e ouvido elencando seu rol de inimigos. “Odeio o termo povos indígenas” haverá de se tornar um clássico. Mandar prender todos os ministros do STF também. Não que o presidente ficasse atrás. “Estou armando o povo porque não quero a ditadura” e “Povo armado jamais será escravizado”, entoou com vigor o chefe da nação.

Talvez seja oportuno invocar o velho Bertolt Brecht dos tempos em que ele ainda acreditava na capacidade humana de renunciar ao mal. Marxista de raiz, o dramaturgo alemão escreveu este poema antes de Hitler apresar o mundo:

“O vosso tanque, general, é um carro-forte/ Derruba uma floresta, esmaga cem homens/ Mas tem um defeito/ — Precisa de um motorista/ O vosso bombardeiro, general/ É poderoso:/ Voa mais depressa que a tempestade/ E transporta mais carga que um elefante/ Mas tem um defeito/ —Precisa de um piloto/ O homem, meu general, é muito útil:/ Sabe voar, e sabe matar/ Mas tem um defeito/ — Sabe pensar.”

Pensemos, pois.


Marcus Pestana: O diabo mora no detalhe

O provérbio alemão nos ensina que grandes ideias, projetos e intenções muitas vezes tropeçam não em sua concepção, mas no detalhe. A pandemia do coronavírus escancarou que determinados desafios só podem ser enfrentados com a ação eficiente e ágil do Estado e não pela sociedade e pelo mercado. Nada que autorize a leitura que precisamos de um Estado inchado, obeso, perdulário, mas de ações governamentais qualificadas e bem pensadas. No Brasil, as ações filantrópicas das pessoas e das empresas cresceram exponencialmente durante a presente crise, mas só o aparato estatal tem escala e abrangência em sua ação para responder um desafio de tamanha envergadura.

Em meus 36 anos de vida pública, sempre oscilei entre a luta política, o desafio gerencial e o pensamento teórico. E, hoje, nestas linhas, vou pisar mais na perna gerencial, já que por 18 anos ocupei cargos executivos. Observando o desempenho das políticas públicas de enfretamento da crise sanitária e econômica em curso, percebo lacunas históricas que impedem que ação governamental cumpra plenamente seus objetivos e chegue efetivamente à população alvo. Gostaria aqui de discutir três gargalos a serem superados: a identificação única digital dos cidadãos brasileiros, os problemas de acesso ao mundo digital e à Internet e a auto-organização da comunidade para dar suporte às ações do poder público.

Diante do isolamento social necessário para evitar a propagação do vírus, a economia foi em grande parte paralisada, sacrificando, sobretudo, desempregados e trabalhadores informais, a chamada população invisível. Diante disso, o Governo e o Congresso conceberam o auxílio emergencial mensal de 600 reais por três meses para assegurar uma renda mínima a quem não participa de nenhum dos programas de transferência de renda como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, que se direcionada a idosos pobres e pessoas com deficiência. O objetivo era beneficiar de 60 a 80 milhões de brasileiros sem vínculo formal de trabalho. As dificuldades logo apareceram. Desde a dificuldade da população pobre em se cadastrar, as negativas para pessoas que deveriam se enquadrar, a inexistência de um cadastro amplo e seguro, e o gargalo para o pagamento com a formação de filas imensas nas portas das agências da Caixa Econômica, provocando aglomerações e expondo a população ao contágio.

Um dos milhares de casos cruéis e injustos quando ganham carne, osso, nomes e rostos, retratados pela imprensa, um me chamou atenção, foi a de seis famílias da favela Córrego do Eucalipto, na periferia de Recife, que compartilham o mesmo endereço em casas diferentes, o número 15 da Rua do Platô. Como o programa de ajuda emergencial prevê que apenas dois CPFs de cada endereço podem acessar o benefício, apenas uma das seis famílias conseguiu êxito. E aí que a intenção tropeça no detalhe.

No Brasil, cada um de nós tem uma parafernália de números que nos identificam. A Carteira de Identidade, o CPF, o Título de Eleitor, a Carteira de Motorista, o Certificado de Reservista, a Carteira de Trabalho, as Carteiras Profissionais emitidas por organizações profissionais, o Cartão SUS, o Cadastro do Bolsa Família, e por aí vai. São centenas de informações acopladas a cada um dessas identificações, em portentosas bases de dados, na maior parte, ilhadas em seus objetivos e sem compartilhamento recíproco e canais de comunicação, dificultando enormemente a implantação de políticas públicas de alcance geral e nacional.

Urge criar a Identificação Única Digital para todos os brasileiros. É possível? Claro que sim. A Índia com seus 1,3 bilhões de habitantes conseguiu. Vale a pena ler o diálogo entre o apresentador de TV, Luciano Huck, com o bilionário indiano, filantropo, fundador da gigante de tecnologia INFOSYS, Nadan Nilekani, que aceitou ir para o governo e presidir a Autoridade Única de Identificação da Índia. Em dez anos, o país logrou êxito, dando a cada um de seus habitantes sua Identidade Única Digital vinculada a uma conta bancária, que ao promover uma verdadeira revolução digital possibilitou o maior programa de transferência do mundo. O caderno especial com este diálogo se encontra no jornal O ESTADO de SÃO PAULO, do domingo, 17 de maio último. Na crise desencadeada pelo coronavírus, a Índia decretou lockdown e em duas semanas conseguiu depositar na conta de cada cidadão vulnerável o auxílio emergencial.

O sistema criado é simples, minimalista e leve. No cadastro constam nome, endereço, data de nascimento, sexo e a biometria. Opcionalmente o email e o número do celular. Um sofisticado sistema de rastreamento, através da biometria, evitou a duplicação e as fraudes. Os demais sistemas setoriais foram se acoplando, sem prejuízo de seus objetivos específicos, e criando uma ferramenta essencial para que a relação Estado/Cidadão ganhe eficiência e agilidade. Pergunto: qual é a dificuldade de usar o mesmo número de identificação com biometria na hora de votar, alimentar o prontuário eletrônico do SUS ou declarar o Imposto de Renda na Receita Federal? Nenhuma. A partir dele é possível acessar informações complementares setoriais para cada uso concreto e cruzar dados dos diversos sistemas.

O segundo detalhe importante que se coloca no caminho de uma cidadania plena e de bons resultados para as ações governamentais é a digitalização do Brasil e de sua população. Matéria da FOLHA DE SÃO PAULO, do mesmo domingo, 17 de maio, trouxe dados desafiadores e essenciais. Revelou que 23% da população brasileira, ou seja, 42 milhões de brasileiros, jamais acessaram a Internet. O dado piora quando se trata das classes D e E. A exclusão digital chega nesta faixa da população a 41%. Trinta e três por cento dos domicílios brasileiros não possuem internet. Mas não é só uma questão quantitativa, é também de qualidade. Setenta milhões de brasileiros têm acesso precário, com conexão de baixa qualidade. Mil e quinhentos municípios brasileiros não tem fibra ótica para viabilizar conexão em banda larga.

Esta é mais uma faceta que revela a monstruosa e desafiadora desigualdade social no Brasil. Como facilitar o acesso do cidadão aos programas públicos, como se revelou nas dificuldades de se conseguir o auxílio emergencial, sem a população ter conectividade? Mas não só isso. Como praticar o ensino a distância com este cenário de exclusão digital, ou a telemedicina no SUS, ou bibliotecas virtuais, ou serviços financeiros, ou o acesso à cultura e ao entretenimento, ou ao e-comerce popular, ou à informação jornalística? O detalhe tecnológico excluí parcelas enormes da sociedade dos benefícios do mundo digital contemporâneo. E temos dinheiro para isso. Mensalmente, nas nossas contas telefônicas, é cobrado um percentual para o FUST (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação), criado na privatização do Sistema Telebrás em 1997. São mais de um bilhão de reais a cada ano previstos para combater a exclusão social nas telecomunicações. Em 2001, quando era Chefe de Gabinete do Ministério das Comunicações, na gestão do Ministro Pimenta da Veiga, chegamos a lançar o Teleducação e o Telessaúde. Mas detalhes, sempre eles, jurídicos e institucionais, impediram que até hoje os programas tivessem saído do papel.

O último tema que queria explorar é o da auto-organização da sociedade para dar suporte a ações públicas. Existem tradicionalmente as Associações de Bairros e Comunitárias. O grau de efetividade e capacidade de mobilização é muito heterogêneo. Algumas são meramente cartoriais, outras aparelhadas politicamente, outras muito ativas e representativas. O governo pode muito, mas não pode tudo. A parceria com a comunidade pode dar outra dimensão às políticas públicas. Isto me ocorreu, em janeiro deste ano, quando Minas Gerais e Belo Horizonte foram alvos de um verdadeiro dilúvio. Pensei: porque não organizar comitês populares de defesa civil? Muitas vezes, famílias expostas ao perigo em áreas de risco são refratárias à abordagem do poder público, mas talvez se sensibilizassem mais se a ação partisse de seus vizinhos.

Chamou-me a atenção agora na pandemia da COVID-19, a ação da Associação Comunitária de Paraisópolis, que mobilizou 420 presidentes de rua voluntários, que monitoram as 21 mil residências, sendo que cada presidente cuida de 50 casas. Todos foram treinados, no início presencialmente, depois do distanciamento social, on line. Cada presidente de rua tem quatro tarefas: conscientizar e monitorar os moradores para que fiquem em casa, distribuir doações, chamar socorro, se necessário, e levar boas notícias e combater as fake news. Com apoio de uma empresa privada contrataram duas ambulâncias, uma UTI móvel, dois médicos, três enfermeiras e dois socorristas, para atender a comunidade 24 horas.

Como se vê não são apenas os grandes planos e ações que produzem resultados. Que tal remover esses “detalhes” que impedem a construção de um Brasil melhor?


Bolívar Lamounier: Um cabo de guerra na longa noite da pandemia

Ao dificultar a ação dos Estados e municípios Bolsonaro comete crime de responsabilidade

Para bem compreender o que está acontecendo no Brasil creio ser útil começar pelo dicionário. Cabo de guerra, por exemplo. O Aurélio ensina que essa velha expressão designa “um jogo ou competição em que dois grupos de contendores puxam em direções opostas as pontas de uma corda grossa, vencendo a que conseguir arrastar a outra”.

Transpondo a ideia do cabo de guerra para o plano da política, logo percebemos uma grave implicação. Se a capacidade física dos contendores for aproximadamente igual, o resultado pode ser um prolongado empate. Ora, o essencial da política pública é a escolha entre alternativas e a implementação das ações de governo que dela decorre. Vigente o empate no cabo de guerra, as duas forças se neutralizam e tais ações perdem eficácia, como temos visto no combate à pandemia do coronavírus. Esse empate pode tornar nossa situação muito mais perigosa do que a existente em outros países. A persistir tal empate, nós, cidadãos comuns, pagaremos o pato.

Em nosso cabo de guerra temos, de um lado, os governadores e prefeitos fazendo o que podem, com recursos insuficientes e enfrentando a propagação do coronavírus, um inimigo onipresente e assombrosamente ágil. Do outro, Jair Bolsonaro, um presidente que não se notabiliza por elevado senso de responsabilidade, fomentando aglomerações, forçando a barra para que o desejável relaxamento da quarentena se transforme num estouro da boiada e, não menos importante, insistindo num remédio, a cloroquina, cuja eficácia no tratamento da covid-19 não parece superior à de um licor de jenipapo.

Tem saída isso? Tem, mas para bem compreendê-la precisamos primeiro esclarecer um aspecto da nossa cultura política, em especial certas noções referentes ao sistema de governo presidencialista de governo. Não tendo escoimado de uma vez por todas o ranço caudilhista e populista que nele se incrustou desde os primórdios da República, temos inconscientemente sustentado a equivocada noção de que o presidente da República é a instância última da legitimidade política.

Fato é, no entanto, se formos um pouco além do pensamento estritamente jurídico, que a legitimidade em última instância não reside na Presidência da República, e sim no Supremo Tribunal Federal (STF). Se assim não fosse, como iríamos entender sua função arbitral de última instância? Sendo ele a cúpula do Judiciário, a ele cabe dirimir todos os impasses, incluídos aqueles que se constituem no embate entre os outros dois Poderes, entre os partidos políticos e entre os demais agentes políticos. A proposição que venho de enunciar não é fruto de especulação, pois está constitucionalmente especificada em institutos como a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a ação direta de constitucionalidade (Adin) e a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), entre outras.

Voltemos, então, ao cabo de guerra que estamos presenciando no combate ao coronavírus. Dando prioridade ao princípio federativo e ao que a Constituição expressamente determina, o STF, atribuiu aos Estados e municípios a responsabilidade primária pela missão de organizar o vírus. Não se trata, como é óbvio, de uma atribuição privativa do município, e sim concorrente com a dos Estados e da União. Essa determinação do STF implicou uma clara dilatação do papel desses dois entes federados, que se vem manifestando na aquisição de equipamentos de proteção, na imposição de restrições ao direito de ir e vir e à atividade econômica, além, é claro, da função precípua de manter os sistemas de saúde e funerários. Uma eloquente ilustração da dilatação a que me refiro é o inusitado empenho que os Estados tiveram de assumir na importação de equipamentos de proteção para o pessoal médico, tendo mesmo se deparado com dificuldades bizarras, num momento em que o comércio internacional parece ter retornado a práticas simplesmente selvagens.

Não preciso deter-me no destaque dado pela Constituição aos municípios (CF88VII). Comentando esse ponto, o professor Antônio Sérgio P. Mercier acertadamente escreve: a cooperação entre o município, o Estado e a União diz respeito, entre outras finalidades, à “prevenção ou debelação dos perigos que dizem respeito à saúde da população, como endemias, epidemias e a possibilidade do aparecimento de moléstias transmissíveis” (Costa Machado e Anna Cândida da Cunha Ferraz, organizadores, A Constituição Federal Interpretada, Editora Manole).

O que acabo de expor deve ser suficiente para ilustrar o enorme risco com que a saúde dos brasileiros se vai deparar enquanto persistir o cabo de guerra entre o presidente Jair Bolsonaro, puxando uma ponta da corda, e os Estados e municípios puxando a outra. Do exposto deve-se, pois, inferir que Jair Bolsonaro, ao dificultar a ação dos Estados e municípios durante uma emergência gravíssima, reiteradamente comete crimes de responsabilidade, configurando-se, pois, claramente, a conveniência da abertura do processo de impeachment.

*Sócio-diretor da Consultoria Augurium, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


César Felício: Bolsonaro e o abismo

Pandemia contaminou imagem do presidente

Quase todas as pesquisas de opinião no Brasil, independentemente do instituto ou da metodologia utilizada, apontam a mesma tendência. O sentimento mais poderoso que existe no Brasil, com trajetória ascendente, não é o bolsonarismo, e muito menos o petismo. O presidente e seu antecessor contam com taxas de aprovação relativamente estáveis ao longo do último ano.

É o antibolsonarismo que se desenvolve, ainda sem auferir capital a ninguém na oposição ao atual governo. É uma onda por ora sem beneficiários. Existe, de forma cada vez mais nítida, uma demanda de opinião pública a ser atendida por quem se habilitar.

Talvez seja equivocado dizer que há espaço para o tal “centro”. Há uma brecha para se desenvolver uma candidatura que signifique o repúdio a Bolsonaro e a Lula simultaneamente, o que é diferente de estar no meio do espectro ideológico.

A pesquisa XP/Ipespe, por exemplo, que foi divulgada anteontem, mostra uma queda horizontal em relação ao presidente: o repúdio a Bolsonaro cresceu na segunda quinzena de abril em todos os segmentos, independentemente da faixa de renda, da religião, do sexo, da escolaridade, da região do país.

A rejeição avança conforme o coronavírus avança. O percentual de pessoas que conhece alguém afetado pela pandemia passou de 2% para 31% entre março e maio. O de quem teve impacto na situação financeira saltou de 26% para 56%. Há dois meses 21% se diziam com muito medo da pandemia. Agora são 43%.

Isso tudo mesmo levando em conta que 34% dos pesquisados já receberam o benefício de R$ 600 do governo e que 14% acreditam que ainda vão receber. Os programas para garantir a sobrevivências básica da população, ainda que garantam em determinados segmentos um salto importante de renda, como por exemplo entre os beneficiários do Bolsa Família, não estão por ora servindo de anteparo.

Os levantamentos por “tracking” da Idea Big Data mostram alguma nuance. A Idea Big Data realizou levantamentos quantitativos específicos fora dos grandes centros urbanos nortistas e nordestinos.
Bolsonaro teria perdido nas últimas semanas oito pontos percentuais de apoio no Sul e no Sudeste, mas a queda foi amortecida, ainda que suavemente, por um crescimento de 2 a 3 pontos percentuais no Norte e no Nordeste.

O saldo final é que Bolsonaro está deixando de ter o apoio de um terço da população e caminhando para ficar com um quarto, panorama que seria mais agudo sem o auxílio emergencial.

“A rejeição a Bolsonaro cresce mais onde o repúdio ao PT é grande, abrindo espaço para uma liderança que seja ao mesmo tempo antibolsonarista e antipetista”, diz o economista Mauricio Moura, que dirige o Idea. Para ele, no Sul e no Sudeste não é o avanço da pandemia que corroeu Bolsonaro. Foi a demissão dos seus ministros mais populares, sobretudo Sergio Moro, que estava na Justiça.

No Nordeste e no Norte, a recuperação bolsonarista aparece em alguns bolsões no interior, onde a ajuda dos R$ 600 pesa mais do que nas capitais. É um eleitor que está abandonando o petismo, outra notícia ruim para os aliados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Além de desastrosa, a frase de Lula sobre o lado bom do surgimento do coronavírus, da qual ele já se desculpou, é equivocada do ponto de vista político. Lula perde, e muito, com a pandemia.

O ligeiro crescimento bolsonarista sangra o petismo, mas não compensa, nem de longe, a perda de substância do presidente nos grandes centros. Pelo menos ainda.

E fica estabelecido para o presidente um dilema: para Bolsonaro trocar sua base de apoio, e passar a ser um candidato dos pobres e não das classes médias, como aconteceu com Lula em 2006, ele precisa ir muito além. “Em Codó, no interior do Maranhão, 8 em cada 10 entrevistados acreditam que o benefício de R$ 600 é permanente. Não sabem que é temporário”, comenta Moura.

A manutenção da política de Paulo Guedes é incompatível com uma estratégia de contenção da perda de popularidade bolsonarista. Fica estabelecido um dilema. Se o benefício for diminuído de R$ 600 para R$ 200, como sugeriu anteontem o ministro, o impacto disso na popularidade de Bolsonaro é óbvio demais para ser demonstrado.
Sem uma guinada populista clara na política econômica, o presidente terá muitas dificuldades no jogo sucessório em 2022, partindo da premissa de que não haverá uma interrupção das regras legais.

Mandando a austeridade econômica às favas, é desnecessário demonstrar como o mercado financeiro reagiria e seu declínio no Sul/Sudeste pode se acentuar. Bolsonaro tem duas opções, as duas ruins para seu projeto político.

Para sedimentar o Bolsonaro pai dos pobres, é preciso ir muito além.

“Ainda não está caracterizado um realinhamento do eleitorado semelhante ao que aconteceu em 2006”, quando Lula se reelegeu, opinou o cientista político André Singer, professor da USP e ex-secretário de Comunicação Social no governo petista. “Não dá para falar que com uma guinada na política econômica o realinhamento seria automático, mas sem essa mudança, ele não tem como se dar. É uma condição necessária, mas não suficiente”, disse.

Para o dono do Ipespe, Antonio Lavareda, o problema que Bolsonaro enfrenta é muito mais complexo. Não se trata apenas do fato de a percepção de sua política econômica ser ruim. “A pandemia reverteu a tendência de influência declinante da imprensa. Todo mundo está buscando informação muito mais do que antes. De modo que o impacto de um noticiário negativo em relação ao comportamento dele na pandemia tornou-se demolidor”, disse.

Segundo Lavareda, 58% da população reprova o comportamento de Bolsonaro na pandemia. E a pandemia cada vez mais é uma espécie de tema único na sociedade. A tendência é que a curva de desaprovação do governo se aproxime deste percentual. Ou seja: ainda há mais abismo para o presidente cair.


Hélio Schwartsman: A ciência da cloroquina

Insistir no uso do medicamento deixou de ser racional para se converter em opção ideológica

Idealmente, a ciência informa as decisões dos políticos e não é influenciada por eles. Gestores só adotariam medidas que já tivessem sido testadas em pesquisas e jamais interfeririam no trabalho de cientistas.

No mundo real as coisas são mais confusas. Não é que governantes nunca ouçam especialistas, mas frequentemente preferem fazer aquilo que acreditam que aumentará sua popularidade ou apenas seguem seus caprichos. A política também afeta a ciência por vários canais, dos mais concretos, como a disponibilidade de verbas, aos mais sutis, como a ideologia.

Como essas considerações se aplicam à cloroquina? Em março, quando o presidente Bolsonaro se tornou um entusiasta do medicamento no combate à Covid-19, sua posição não era absurda. Havia uma hipótese teórica para explicar sua possível ação e alguns poucos trabalhos (de má qualidade, é verdade) a sugerir eficácia.

A partir daí, a ciência fez o que tinha de fazer. Deu início a vários programas de teste, cujos resultados estão saindo. Sem surpresa, vai se constatando que a droga não funciona contra a nova moléstia. Um purista poderia argumentar que ainda falta uma boa metanálise para derrubar a última esperança na cloroquina, mas já há elementos de sobra para recomendar que ela não seja distribuída a grandes populações. Os riscos dos efeitos colaterais superam os cada vez mais improváveis benefícios.

Insistir no uso da cloroquina deixou de ser uma posição racional para converter-se numa opção ideológica. Que pessoas façam isso é da vida. Mas, quando governos tentam determinar o que a ciência diz, as consequências podem ser catastróficas. Há quem atribua o fracasso econômico da URSS em parte à figura de Trofim Lysenko, o manda-chuva da área biológica que, por razões ideológicas, militava contra a genética mendeliana. Ela seria antissocialista. Sem genética, a agricultura soviética ficou para trás.


Monica de Bolle: Estado mínimo para quem?

Esse Brasil que Paulo Guedes carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas

Nesta quarentena da indignação não há um dia sequer em que não soframos alguma afronta do governo Bolsonaro, de seus ministros e de suas respectivas equipes. Mais uma vez, meteu os pés pelas mãos recentemente o ministro Paulo Guedes, cujos feitos dessa natureza são realmente espantosos. Perguntado sobre a prorrogação do auxílio emergencial, aquele cujo objetivo era impedir que as pessoas vulneráveis tivessem de escolher entre passar fome ou se contaminar, Guedes disse que pensa em reduzir o valor do benefício de R$ 600 mensais para R$ 200 mensais, o valor inicialmente defendido pelo governo federal. Antes dele, o secretário do Tesouro havia dito que não há dinheiro para pagar a renda básica, qualquer renda básica de natureza permanente. Quais contas ele apresentou? Em que dados fundamentou sua fala? Ora, em nenhum, evidentemente.

Neste exato momento, há pesquisadores pelo país trabalhando em diferentes propostas de renda mínima: fazem contas, buscam os fatos. Em artigo publicado no jornal britânico Financial Times, apresentei alguns cálculos para o Brasil e mostrei que daria, sim, para adotar um programa de renda básica permanente. Há vários projetos de lei para a criação da renda básica tramitando no Congresso. Destaco dois: o de autoria do senador Randolfe Rodrigues, que ajudei a elaborar, e o de autoria do senador José Serra. Em meio a todo esse trabalho, o secretário do Tesouro de Guedes teve o desplante de vir a público, mão na frente outra atrás, para dizer que não é possível fazer o que é preciso fazer sem apresentar qualquer sustentação para seu argumento. Será difícil esquecer essa fala.

Ao mesmo tempo, seu chefe tenta voltar à ladainha dos R$ 200, sumariamente atropelada em abril pela sociedade civil e pelo Congresso Nacional, que enxergaram as necessidades da população brasileira. Para piorar, Guedes tenta retomar a discussão de seu infame “coronavoucher” enquanto acena para as empresas aéreas. Sim, as empresas aéreas estão sofrendo nessa pandemia. Sim, vários países fizeram pacotes de socorro para empresas do setor, e alguns tentam fazer até mais do que já fizeram. Mas reparem: socorrer as empresas aéreas significa destinar recursos públicos para elas, uma espécie de estatização parcial. Quem está defendendo a estatização parcial é ninguém menos do que o ministro Estado Mínimo, aquele que na semana passada queria privatizar tudo. Como é isso então? Estatizamos parcialmente empresas aéreas gastando dezenas de bilhões de reais em recursos públicos, mas nada fazemos pela população que precisa do auxílio emergencial? Se o cobertor é curto, como vem nos dizendo o secretário do Tesouro, qual é a escolha moral? Essa não é uma pergunta retórica. Trata-se de uma crise humanitária.

“As escolhas de política pública, ou seja, a decisão sobre como gastar em um cenário que envolve recursos escassos e consequências mortais é uma escolha moral”

A depender de como forem feitas as opções e de quais forem os parâmetros que as determinarem, os responsáveis no mínimo terão de responder moralmente junto à sociedade. Afinal de contas, trata-se de escolher entre salvar vidas diretamente ou de preferir ignorar o único dilema que importa.

Em artigo para o jornal O Estado de S. Paulo desta semana, escrevi sobre nossa falência moral como sociedade, nossa decadência. Ela está aí, para ser vista a olhos nus. Nossos companheiros de números espantosos da epidemia são Donald Trump, Vladimir Putin e Boris Johnson — a tríade que forma a quadra nacionalista-populista-negacionista com Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro, aquele cuja popularidade cai a cada dia de desgraça. Mas, sim, divago.

Volto ao ministro e a sua equipe. A quem diz respeito o Estado Mínimo de Paulo Guedes? Aos pobres? Aos vulneráveis? Àqueles que nada podem fazer para penalizar a infinita incompetência desvelada a cada dia? Esse Brasil do Estado Mínimo para os pobres é velho, tosco, injusto, desgraçado. Esse Brasil que o ministro carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas. Paulo Guedes entrou no governo como superministro, posto Ipiranga. Se tiver sorte, sairá do governo — porque um dia tudo passa, sobretudo ministros — tão microscópico quanto seu abjeto Estado Mínimo.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Gonzalo Vecina: O fim da pandemia

O que fazer para não passar por um genocídio? Isolamento até a queda de casos e mortes

A covid-19 se alimenta de três fatos: concentração demográfica, mobilidade social e falta de acesso a serviços básicos como água tratada, alimentação e serviços de saúde. Esses são os componentes intrínsecos da dieta da pandemia. Existe um quarto componente que é extrínseco: a incompetência dos governantes. Sim, pois a ação pública consegue reduzir os impactos da epidemia - reduzir a mobilidade social, preparar os serviços de saúde, divulgar os comportamentos esperados da população, dar exemplos de condutas adequadas, testar os suspeitos e os contatos, financiar ações voltadas para o desenvolvimento de medicamentos e vacinas, preparar a rede hospitalar etc.

Mas como acabar com uma epidemia? Basicamente há três maneiras:

1) O vírus deixa de circular. É a estratégia de Wuhan. Um lockdown violento, ninguém se move por 14 dias e quem estava infectado ou morre ou se cura e o vírus diminui sua circulação. A partir daí se estabelece uma política de testagem agressiva e se controla quem sai e entra de forma muito rigorosa.

2) Se cria uma vacina eficaz e segura.

3) Se alcança a imunidade de rebanho. Aqui significa conseguir que ao menos cerca de 70% da população tenha a doença. No Brasil, algo como 147 milhões de pessoas. Com essa massa de pessoas imunizadas - tiveram a doença e morreram ou a derrotaram e, portanto, estão imunes por algum tempo - se estima que o vírus para durante algum tempo de circular. Com novos nascimentos e a entrada de migrantes a situação tende a se reverter.

No caso do Brasil as saídas 1 e 2 não fazem parte do cenário de curto prazo. Só resta a saída 3. Mas para que 147 milhões de pessoas tenham a doença, temos de levar em conta que 15% serão internados em hospitais e 5% em UTIs. No total serão 29,4 milhões de pessoas. O SUS interna algo como 20 milhões/ano. O impacto de mais uma vez e meia as internações de um ano seria insuportável para o sistema de saúde. E ainda existem as mortes - levando em conta uma das taxas de letalidade mais baixas citadas nos estudos que é de 0,36%, teremos cerca de 529 mil mortes! A questão é em quanto tempo: um ano, dois? Depende de nossa capacidade de impor o isolamento social, do contrário iremos discutir a falência dos cemitérios.

De qualquer forma, começam a aparecer as primeiras estimativas de número de pessoas imunes na sociedade e, por mais atrevidas que sejam, não passam de 5%. Ou seja cerca de 11 milhões de brasileiros estão imunes.

O que fazer até a vacina chegar sem passar por um genocídio? Isolamento social até ocorrer queda consistente do número de casos e mortes por duas semanas e daí relaxa aos poucos e, se o número voltar a aumentar, deixar as regras mais duras de novo até chegar a vacina, pois não creio que vamos chegar à imunidade de rebanho.

Paralelamente a isso, fortalecer a capacidade de gestão dos leitos do SUS estaduais e municipais organizados em um fila única e incorporando leitos privados contratados e ou requisitados. Fortalecer e pôr para funcionar a atenção primária à saúde para atender os casos que estão no início por meio de estratégias inovadoras baseadas em telemedicina e na presença dos agentes comunitários de saúde adequadamente protegidos por EPIs e realizando testagem em larga escala.

Exige-se aprimoramento de nossos sistemas de acompanhamento epidemiológico. Muita difusão de informação sobre medidas de higiene, sobre o comportamento social - uso de máscaras e distanciamento - e principalmente, criar adequadas políticas de proteção social de pobres e marginalizados.

  • É médico sanitarista

IPEA: Socorro Governamental às Pequenas Unidades Produtivas Frente à Atual Pandemia

Nota Técnica - 2020 - Maio - Número 63 - Diset

Por Mauro Oddo Nogueira, Sandro Pereira Silva e Sandro Sacchet de Carvalho

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A atual pandemia produzida pelo Sars-CoV-2, o chamado “novo coronavirus”, vem suscitando diversas discussões sobre seus possíveis impactos econômicos, marcadas por controvérsias e também por alguns consensos entre analistas e autoridades.

A despeito da duração da crise e do grau de isolamento social a que as populações estão sendo submetidas, alguns indicadores recentes já apontam que seus efeitos terão uma magnitude, ao menos, comparável às maiores crises econômicas que o mundo moderno vivenciou. As atividades econômicas ao redor de todo o mundo estão sendo massivamente afetadas, seja por imposição do isolamento social, seja por indisponibilidade de elevados contingentes de trabalhadores acometidos pela Covid-19 associada à um recolhimento voluntário das pessoas em face do medo – fenômeno que está sendo chamado de lockdown endógeno. Sendo as empresas elos importantes das cadeias produtivas, essa paralisação se propaga a montante e a jusante, tanto pela suspensão das aquisições de seus fornecedores quanto pelo desabastecimento das empresas-clientes. O resultado é uma rápida e grave propagação da “virose econômica”, desestruturando – ou mesmo destruindo – cadeias produtivas ao redor de todo o globo.

Ademais, as projeções de evolução do produto interno bruto (PIB) para os próximos meses são cada vez mais pessimistas; quanto mais duradoura e profunda for a crise, maior o grau da recessão vindoura. Evidentemente, a queda no produto terá impacto proporcional nas receitas públicas, agravando significativamente o deficit fiscal, o que fortalece a pressão sobre os governos nacionais para a tomada de medidas urgentes de enfrentamento dessa conjuntura indesejada.

Um aspecto que surge com certo consenso é o de que o “grupo de risco” mais sensível à “virose econômica” é aquele formado pelas micro e pequenas empresas (MPEs) e os trabalhadores autônomos, sobretudo os que operam no contexto da informalidade. São empresas com limitado capital de giro e baixíssimas reservas de capital (Bartik et al., 2020), cuja atuação se concentra nos setores de comércio e serviços (Sebrae, 2020b), os mais atingidos pela crise. Além disso, essas unidades produtivas estão inseridas em cadeias também formadas majoritariamente por outras MPEs. No Brasil, pequenos negócios ou autônomos, formais ou informais, ocupam quase três quartos da massa de trabalhadores (Nogueira e Zucoloto, 2019), sendo, portanto, onde as consequências sociais decorrentes de um surto de desemprego, da suspensão dos salários ou da cessação de receitas individuais impactarão mais profundamente a sociedade brasileira. Assim, devem ser esses os principais beneficiários das medidas governamentais de socorros aos agentes produtivos.

É também consensual que, independentemente de quais as formas de socorro providas pelo Estado, o fator tempo em sua implementação é crucial para que a reação em cadeia não se instaure de forma incontrolável. No caso das MPEs brasileiras, uma pesquisa realizada pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), sobre a situação das MPEs no contexto da crise atual, aponta que estas conseguem sobreviver sem faturamento somente por, em média, 23 dias (Sebrae, 2020a). Quanto aos trabalhadores autônomos, não há dúvidas de que sua fragilidade é ainda maior, dado o conjunto de vulnerabilidades com que eles se defrontam (Nogueira e Zucoloto, 2019; Silva, 2017).

Diante desse contexto, este trabalho tem por objetivo avaliar as principais ações do governo federal brasileiro, no sentido de socorrer os segmentos mais vulneráveis do aparato produtivo nacional. Como será possível observar ao longo do texto, entendemos que as medidas apresentadas até o momento não se conectam em uma perspectiva sistêmica, mas, sim, compõem uma miríade cujo entendimento está escapando à grande parte dos micro e pequenos empresários e dos trabalhadores autônomos, alvos principais das ações aqui destacadas.


Zeina Latif: Ajustar engrenagens para travessia longa

Toda ajuda estatal deve ter como objetivo a travessia nos próximos meses, e não corrigir falhas estruturais

O ex-ministro Luiz Mandetta alertou que a crise seria longa. Em 16 de março, afirmou que a curva de novos casos da covid-19 atingiria o platô apenas em julho. O declínio efetivo se daria em setembro, assumindo 50% da população imunizada (ou já infectada).

Em pesquisa recente, Fernando Reinach apontou na mesma direção. A taxa de imunização na cidade de São Paulo – provavelmente superior à média do País – está em 5,2% e chegaria a 65% em 2 meses. Uma taxa de imunização inferior a 60% seria suficiente para estabilizar a curva de infectados.

Na economia, alguns analistas – como esta colunista – alertaram que a volta da economia seria lenta, diferentemente da crise de 2008, por conta da natureza da crise e da fragilidade econômica do País.

Esse cenário se cristaliza cada vez mais, ainda que com boa dose de incerteza. Não se sabe quando o período de calamidade pública será superado.

As demandas por socorro governamental continuarão crescendo, portanto. Será necessário zelo técnico nas decisões de postergar os atuais programas e criar outros futuros. Não será possível ajudar a todos, nem seria sábio fazê-lo, pelo custo para a sociedade e gerações futuras.

Retomo esse tema por sua importância. Estabelecer prioridades em linhas gerais – como cuidar da saúde das pessoas e garantir sua subsistência – é a tarefa mais fácil. Difícil é desenhar políticas públicas focalizadas e efetivas, afastando oportunismo e desperdício; especialmente em um país com poucos exemplos de política pública bem-sucedida.

Um exemplo de medida que precisará de ajustes no caso de sua (inevitável) postergação é o auxílio emergencial. Será necessário aprimorar os controles (por exemplo, 73 mil militares receberam o auxílio) e definir um novo valor (certamente menor e talvez com diferenciação pelo tamanho da família), com base em estudos técnicos.

Conforme se avança na lista de prioridades, mais complexa a tarefa.

Definir o escopo da política de crédito subsidiado a empresas – não se trata de compensá-las por todas as perdas, mas apenas garantir a travessia durante a epidemia – não é tarefa fácil. E contrapartidas devem ser requeridas às beneficiadas, como não demitir e cortar dividendos e salários elevados.
Empresas com acesso minimamente preservado ao mercado de crédito e que podem contar com aportes dos acionistas e controladores deveriam ficar de fora.

O mesmo vale para empresas que não serão viáveis no pós-pandemia, por não serem bem geridas (vão quebrar de qualquer forma) ou por seu funcionamento depender de aglomeração de pessoas. Aqui é necessária a participação do sistema bancário na seleção dos contemplados.

Raghuram Rajan defende, para os EUA, um quesito para exclusão da ajuda estatal: pequenos negócios que poderão ser facilmente substituídos depois da crise, ao contrário de empresas com capital organizacional – um ativo intangível associado à qualidade da gestão, que gera eficiência produtiva e inovação e benefícios que vão além do ambiente da empresa.

Levando à risca os critérios acima, não sobrariam muitas empresas a serem socorridas. O Brasil tem muitas empresas ineficientes de menor porte – em grande medida fruto de benefícios tributários equivocados que as protegem. Mudar essa realidade de forma abrupta na pandemia custaria muito caro em termos sociais. Convém avaliar a recomendação de Rajan com cautela.

Não é momento de misturar questões conjunturais (agudas) e estruturais (crônicas). Toda ajuda estatal deve ter como objetivo a travessia nos próximos meses, e não corrigir falhas estruturais.

O auxílio emergencial não visa a corrigir injustiças sociais, mas sim prover subsistência aos vulneráveis. O mesmo vale para o crédito subsidiado. A ideia é estabelecer limites para o socorro estatal: de um lado, preservar estruturas organizacionais e empregos que valem a pena, e de outro, limitar a inevitável “seleção natural” no setor privado.

Há um longo caminho pela frente e as políticas públicas precisam ser bem calibradas.

*Consultora e doutora em economia pela USP