pandemia

Cacá Diegues: O Ministério de Ontem

Está tudo tão antigo, tão ligado a ideias que pareciam mortas e enterradas, a ações já tentadas e vencidas em outros tempos

Tem dias que a gente acorda meio molenga, dá uma olhada nas notícias on-line, lê umas coisas nos jornais e fica tentando descobrir em que ano estamos. Está tudo tão antigo, tão ligado a ideias que pareciam mortas e enterradas, a ações já tentadas e vencidas em outros tempos, que, durante uns segundos, a gente pensa que segue amarrado a um sonho que não termina. Sonho, não. Pesadelo.

Corre pelo mundo uma pandemia danada, matando gente em tudo que é continente. Na China, onde o vírus primeiro apareceu, parece que está tudo sob controle. O que não acontece ainda na Europa, que está quase chegando lá. No Sudeste Asiático e na Nova Zelândia estão os heróis da humanidade, intrépidos vencedores do vírus diabólico. Ele é o único inimigo que devíamos estar enfrentando com empenho, todos juntos, unidos e inseparáveis, porque pode acabar com todos nós, sejamos de que partido formos. De direita, de esquerda ou de todas as tendências de centro. O vírus só reina onde não se tem nenhuma consciência política disso, ali está a crise aguda.

Na América do Norte, um presidente insensível, que só pensa na reeleição cada vez mais difícil, odiado por todo mundo que ainda crê na viabilidade do amor, resume sua participação na guerra contra o vírus a crises de mau humor com os que censuram suas mentiras virtuais. E, na parte de baixo do continente, a América do Sul inteira fecha suas fronteiras para o perigo que vem do Brasil, isolado dali e do mundo. De nosso país, é que podem chegar os perigos da Covid-19 para nossos vizinhos de língua espanhola, que já tiveram muita inveja de nós e de nosso jeitinho esperto de viver. Hoje, eles nos evitam, como se fôssemos apenas amantes protetores e fiéis do vírus diabólico. A porta aberta para que eles invadam a vizinhança.

As notícias da manhã me levam a um mundo agendado por uma espécie de Ministério de Ontem, onde a política se repete numa evidente tentativa de golpe de Estado, comandado por gente doente e doida, desta vez eleita, mesmo que ocasionalmente e por engano. Eles não só não nos deixam pensar na luta contra o vírus, nos concentrarmos na defesa de todos nós contra a “gripezinha”, como agem contra toda tentativa de enfrentar o bichinho maldito. Como se o vírus não existisse e não estivesse atrás de nós, é tudo invenção desses comunistas. Enquanto isso, brincam de espingarda na gravata e gritos apopléticos de horror, cada vez que são apanhados em flagrante.

Como não temos partidos em que podemos confiar, com os quais nos identificamos e a eles seguimos, cada vez que temos uma eleição decisiva ficamos diante de escolhas que não sabemos por onde analisar. No meio do caminho, somos muitas vezes obrigados a topar a violência de um impeachment, afastando do governo, por meio de manobras de salão, quem foi eleito pela simpatia espontânea da população. Nas duas últimas vezes em que isso aconteceu na política brasileira, o eleitor já não tinha muita confiança em ter acertado em sua escolha. E isso foi o que nos salvou de uma crise mais longa e mais séria.

O capitão foi eleito como uma reação da população aos 15 anos do oposto no poder, por causa de grave decepção popular. O número de eleitores arrependidos hoje é imenso. Arrependidos, não. Eleitores que simplesmente deploram não lhes ter sido dada opção mais sã e mais sólida, como alternativa. O primeiro sinal que tive do resultado futuro da eleição de 2018 foi-me dado pelos motoristas de táxi. Todos iam votar no capitão. Agora, antes da quarentena, todos afirmavam sua decepção com o voto que deram. Mas sempre acrescentando a pergunta melancólica: mas eu ia votar em quem?

A nós, que prestamos mais atenção, sempre nos ocorreu o que podia acontecer. Ou ninguém se lembra que, graças aos apresentadores do “Jornal Nacional”, os espectadores não viram as páginas abertas da “cartilha sexual” que o Ministério da Educação do governo anterior havia preparado para as crianças, onde a chupeta tinha uma forma de pênis? Foi o casal de jornalistas que não deixou que o então candidato mostrasse a cartilha pervertida, típico objeto de fake news, para as câmeras.
Em grande parte, quem ganhou a eleição graças a esses disparates receia que eles sejam agora criminalizados.

Insisto que, se o cara foi eleito democraticamente, mesmo que por engano (a democracia, às vezes, também se engana), temos que respeitar esse resultado, sempre atentos ao que ele pode aprontar. Serão mais dois anos e meio de desacertos, sustos e ameaças. A não ser que ele pise na bola mais gravemente, o que se há de fazer?


Sergio Lamucci: O desolador cenário para o consumo

Situação do mercado de trabalho é muito complicada e nível de endividamento é elevado, uma combinação negativa para o principal componente do PIB pelo lado da demanda

O ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda sonha com uma recuperação em “V” da economia brasileira, passado o impacto mais forte da pandemia, mas a aposta nessa trajetória exige grandes doses de otimismo. As perspectivas para o investimento são muito negativas, num país em que o combate à pandemia é desorganizado, há uma grave crise política e existe enorme capacidade ociosa. Além disso, o consumo das famílias vai sofrer muito, tendo um cenário extremamente complicado pela frente. O panorama para o mercado de trabalho é preocupante e os consumidores deverão sair ainda mais endividados do quadro atual.

Em resumo, o consumo privado, com peso de dois terços no PIB pelo lado da demanda, não deverá ser o motor da retomada, o que tampouco tende a ocorrer com o investimento. A política fiscal atuará neste ano de modo contracíclico, com expansão de gastos e de crédito dos bancos públicos, atenuando em alguma medida o tombo do PIB, mas a situação difícil das contas públicas é um grande obstáculo para as despesas governamentais sustentarem a atividade.

O setor externo pode trazer algumas boas notícias, com as exportações de produtos agrícolas em alta e o efeito do câmbio desvalorizado. As vendas externas, porém, têm um peso relativamente pequeno no PIB.

Na sexta-feira, ao comentar as possíveis trajetórias para a economia brasileira, Guedes disse que ainda prefere “trabalhar com o ‘V’”: Segundo ele, “pode ser um ‘V’ meio torto, caiu rápido e vai subir um pouco mais devagar, mas ainda é um ‘V’”. Até mesmo essa retomada mais suave, porém, parece hoje pouco factível.

No primeiro trimestre, o PIB recuou 1,5% em relação ao trimestre anterior, puxado pela queda de 2% do consumo das famílias. As medidas de isolamento social começaram a vigorar apenas a partir de meados de março, e mesmo assim o impacto foi forte.

No segundo trimestre, o efeito das iniciativas de confinamento será obviamente muito mais intenso, especialmente nos meses de abril e maio. As previsões apontam para uma retração do PIB no segundo trimestre na casa de 10% ou mais na comparação com o trimestre anterior.

Além disso, os números do mercado de trabalho mostram uma situação especialmente preocupante. De fevereiro a abril, houve perda de quase 5 milhões de empregos na comparação com os três meses encerrados em janeiro. A taxa de desemprego nos três meses até abril ficou em 12,6%, e o número só não foi muito maior porque muitos trabalhadores deixaram de procurar ou não conseguiram buscar emprego, devido ao efeito do distanciamento social. Se a população economicamente ativa (PEA, quem está ocupado ou em busca de ocupação) tivesse se mantido no nível de fevereiro, a taxa de desemprego seria de 15,9%, como dizem os economistas do Safra.

Os analistas do banco observam que, na série com ajuste sazonal, a desocupação subiu de 11,6% nos três meses até março para 12% nos três meses até abril, com recuo de 3,4% da população ocupada.

“Analisando esse movimento por tipo de ocupação, observamos uma forte queda nos empregos sem carteira assinada, mas também vemos retração no emprego com carteira. As demais ocupações, que incluem trabalhadores domésticos, também foram severamente afetadas. Por outro lado, o emprego no setor público apresentou elevação pelo segundo mês consecutivo”, afirma o relatório do Safra.

O resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua indica que os rendimentos nominais se elevaram, mas o aumento se deveu “principalmente ao fato de que boa parte das pessoas que estão entrando no mercado de trabalho ou que continuam estáveis em seu emprego possuem capacidade de fazer ‘home office’ e, logo, trabalham em empregos mais qualificados e melhor remunerados”, notam os economistas do banco. Desse modo, “o salário médio se elevou principalmente devido a um aumento na desigualdade do mercado de trabalho”, dizem eles, acrescentando que a massa salarial teve forte contração, devido à queda do nível de ocupação. “O cenário que acabamos de descrever ilustra o forte impacto que a pandemia terá sobre o PIB no segundo trimestre de 2020”, resume o Safra. “Entretanto, mesmo após o final da quarentena nas principais cidades, o mercado de trabalho deve permanecer enfraquecido por alguns meses, com impacto direto sobre o consumo.”

Para completar, há 8,2 milhões de trabalhadores que tiveram acordos de suspensão do contrato de trabalho ou de redução de salário e de jornada. Esses empregos por ora foram preservados, mas com queda expressiva de rendimento em muitos casos.

Uma medida que ajuda a contrabalançar em parte a perda de renda é o auxílio emergencial de R$ 600. O benefício deve ser estendido por mais algum tempo, mas possivelmente com um valor mais baixo, dado o custo elevado. Mesmo se for adotado um programa permanente de transferência de renda mais ambicioso, o quadro para o consumo deverá continuar pouco animador.

O cenário para o endividamento também não é favorável. No fim do primeiro trimestre, as dívidas das famílias correspondiam a 45,9% da renda acumulada em 12 meses, o nível mais alto da série iniciada em 2005, de acordo com números do Banco Central (BC). Como efeito da recessão recente, houve redução do nível de endividamento de abril de 2015 até dezembro de 2017, mas as famílias haviam começado a tomar novos empréstimos e financiamentos, num quadro de retomada da atividade, ainda que vagarosa. Com a perspectiva de juros baixos por um longo tempo e de melhora da confiança, esse processo poderia ser sustentável. A crise causada pela covid-19, contudo, mina esse processo, pegando os consumidores com um endividamento já elevado, que deve aumentar, e o mercado de trabalho em situação adversa, uma combinação obviamente desfavorável para o consumo.

Por fim, o combate frouxo à pandemia e os seguidos confrontos políticos causados pelo presidente Jair Bolsonaro afetam o consumo. Se o efeito mais evidente desse cenário de incerteza se dá sobre o investimento, um ambiente de indefinição como o atual também contribui para tornar o consumidor mais cauteloso. O país, desse modo, deve ter um ano marcado por queda recorde do PIB - talvez de 8% - e uma recuperação vagarosa.


Bernardo Mello Franco: Um país fora de foco

A crise institucional desviou o foco do que realmente deveria importar: o combate ao coronavírus. Sob pressão, os estados começam a capitular

Nos últimos dias, a Polícia Federal apertou as milícias virtuais do bolsonarismo, o presidente elevou o tom das ameaças ao Supremo e a crise institucional se aproximou perigosamente de um ponto de ruptura. Nem parece, mas tudo isso aconteceu num país devastado pela pandemia do coronavírus — com mais de mil mortes diárias e sem ministro da Saúde.

A tensão política desviou o foco do que realmente deveria importar: o combate ao coronavírus. No sábado, o Brasil se tornou o quarto país com mais mortes pela Covid-19. Entre hoje e amanhã, deve ultrapassar a marca de 30 mil vidas perdidas.

Apesar desses números, os governos de Rio e São Paulo acabam de divulgar planos de reabertura da economia. Os anúncios preocuparam médicos e cientistas que acompanham as curvas de contágio.

“Estamos nos aproximando do pico da pandemia. Definitivamente, não é o momento para a reabertura do comércio”, afirma o epidemiologista Roberto Medronho, da UFRJ. “A quarentena é um remédio amargo, mas ainda é o mais adequado para o quadro que estamos vivendo”, prossegue.

A opinião é endossada pelo cientista Miguel Nicolelis, professor de neurobiologia da Universidade Duke. “A população precisa entender que a situação é muito grave. Estamos enfrentando uma guerra biológica. A prioridade central deve ser reduzir o número de mortos”, defende.

O sanitarista Daniel Dourado, da USP, também vê riscos numa retomada precoce. “Não se pode reabrir a economia sem a segurança de que a transmissão foi controlada. Sem isso, o número de casos vai explodir e os governos terão que fechar tudo de novo”, avisa.

Na Europa, os países que relaxaram o distanciamento social já haviam registrado quedas expressivas na taxa de contágio. Para os cientistas, o índice de transmissão deve cair abaixo de 1, o que significa que 10 pessoas com o vírus podem infectar outras 10. No Rio, a taxa ainda está em 2,3.

“Entendo a angústia de prefeitos e governadores, que estão com a corda no pescoço. Mas o risco de forçar a abertura antes da hora é provocar um repique da doença”, alerta o professor Medronho.

Até a semana passada, Rio e São Paulo resistiam às pressões do Planalto, que sempre sabotou as medidas de isolamento. Agora os governadores indicam que começaram a capitular. Além de enfrentar a fúria bolsonarista, eles sofrem forte assédio de empresários, que reclamam da paralisia econômica, e de prefeitos, preocupados com as eleições deste ano.

“Qualquer país civilizado teria colocado as diferenças políticas de lado para salvar vidas. No Brasil, o governo federal não montou um comitê científico, não ajuda os estados e agora não tem mais ministro da Saúde. A coordenação evaporou”, critica Nicolelis.

O neurocientista assessora os governos do Nordeste, mas ressalta que o poder dos técnicos é limitado. “O que podemos fazer é oferecer a melhor ciência. A decisão do que fazer está nas mãos dos gestores”. Nas últimas semanas, ele tem convivido com a pandemia até durante o sono. “Sonho com curvas e números da doença. Parece que estamos vivendo um pesadelo”, resume.


Arminio Fraga: Uma resposta à altura da crise

Reformas menos impactantes nos deixariam na ciclotimia medíocre de décadas

Em minha última coluna discorri sobre a tempestade perfeita de crises que assolam o Brasil: sanitária, econômica e política. Argumentei que o desafio exigia liderança esclarecida por parte do Executivo. De lá para cá a tormenta recrudesceu.

Já não é de hoje que o governo vem dando sinais preocupantes. Ataques constantes à imprensa. Rejeição à política e ao diálogo. Repressão ao terceiro setor e à cultura. Desdém pela ciência, meio ambiente, questões identitárias, pela própria democracia. O vídeo da reunião de abril confirmou de forma assustadora esses sinais.

Resulta daí grande incerteza. E não surpreende, portanto, que o investimento nacional esteja há tempo parado em seu menor nível histórico.

No campo econômico, a agenda pouco evoluiu. A privatização, a PEC Emergencial (de natureza fiscal) e a abertura da economia não andaram. As cruciais reformas tributária e administrativa não foram sequer apresentadas.

O ambiente político anda crescentemente tenso, como no título do livro “A Batalha dos Poderes”, de Oscar Vilhena Vieira, colega aqui nesta Folha. O governo parece se alimentar do confronto. Chama a atenção nesse contexto a montagem de uma base de apoio em linha rejeitada na campanha. Sugere uma guinada para modo de sobrevivência. Não é um bom sinal.

Independentemente do rumo que a política brasileira vier a tomar, cabe um alerta quanto ao cenário econômico.

A crise econômica tem suas raízes nas equivocadas escolhas da gestão de Dilma Rousseff, amplamente debatidas, embora não devidamente absorvidas. Meu resumo: modelo econômico velho (intervencionista, de baixa produtividade) e crise de confiança por descontrole fiscal a partir de 2014 (fato frequentemente esquecido).

A despeito da aprovação da reforma da Previdência e da introdução do teto para o gasto público, que impactaram positivamente os mercados, faltam ainda condições objetivas para que o teto seja cumprido a médio e longo prazos. Como resultado, o investimento público, que já vinha baixo, caiu para próximo de zero. As despesas livres foram também espremidas e se aproximam de um limite mínimo. Houve sim estabilização da dívida pública (como proporção do PIB), mas de maneira insustentável.

Nesse contexto chega o vírus. O governo saiu gastando agressivamente em saúde e assistência social, corretamente, mas sem planejamento. Como nossa convivência com o vírus pelo visto vai durar bem mais do que se imaginava, o buraco fiscal deve aumentar bastante. Estima-se um déficit primário que pode neste ano chegar a inimagináveis 12% a 15% do PIB (num cenário em que o PIB caia entre 6% e 10%). A implacável aritmética levará a dívida pública dos atuais 75% para mais do que 90% do PIB.

O orçamento chamado de guerra (que veio em boa hora) acertadamente proíbe que os gastos extraordinários adentrem 2021. Mas as pressões para mais gastos serão enormes. A despeito das regras legais, há risco que ocorram (lembremo-nos aqui que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi violada a partir de 2014). É bem possível que ano que vem a dívida se aproxime de 100% do PIB.

As enormes e crescentes necessidades de financiamento do setor público forçarão um encurtamento no prazo da dívida. Vejamos como. Um aumento do endividamento como o que está programado gera insegurança e reduz a demanda por títulos de longo prazo. A consequência direta é que sobe o custo da dívida de longo prazo, o que já está ocorrendo. No limite, a demanda pode secar completamente, como em 2002. Nesse contexto, o Tesouro é obrigado a encurtar o prazo de suas captações.

Esse encurtamento pode ocorrer através de vários mecanismos, que a não especialistas parecem misteriosos. Alguns envolvem o Banco Central. Mas no final das contas, o que importa é que o prazo da dívida pública em poder do público vai encurtando. Ou seja, parte da dívida vai se transformando em uma quase moeda.

O encurtamento reduz o custo do financiamento, mas cria a dependência de rolagens frequentes e grandes da dívida. Quando em algum momento os financiadores se assustam, as taxas de juros de curto prazo também ficam pressionadas. Parte do dinheiro pode inclusive querer sair do país, o que pressiona também a taxa de câmbio e, eventualmente, a inflação.

Como bem advertiu Edmar Bacha em evento quinta-feira passada na Câmara dos Deputados, não precisamos ir muito longe para vermos que inflação pode coexistir com recessão: basta ir à Argentina (ou consultar nossa própria história).

Temos assim diante de nós um colossal desafio para 2021 e adiante. Considero gestão temerária estabilizar a dívida pública em patamar superior a 70% do PIB, especialmente com prazo encurtado. Algumas economias avançadas podem fazê-lo, mas não o Brasil, com seu histórico de inflação, confiscos, controles de câmbio e moratórias. Temos que sair dessa! Para tanto, será necessário fazer um ajuste fiscal de 4 a 5 pontos do PIB. Assim se garante que a dívida entre em trajetória crível de queda, o que acalmaria as expectativas.

Além do ajuste macroeconômico, será necessário obter recursos para investimentos públicos em áreas como saúde, tecnologia e infraestrutura, algo como quatro pontos do PIB. A soma bate sim em 8 a 9 pontos do PIB. Não podemos nos iludir —esse é o tamanho do desafio. Tenho plena convicção de que valeria a pena enfrentá-lo.

De onde viriam os recursos? Cabe aqui o que no mundo empresarial seria chamado de um benchmarking. No caso, uma comparação com outros países, em busca de oportunidades para mais economia e eficiência. No Brasil, os gastos com Previdência e funcionalismo atingem cerca de 80% do total das despesas públicas. Na esmagadora maioria dos países esse número não passa de 60%. Se as duas contas fossem para 60%, cifra ainda alta, daria para economizar até sete pontos do PIB (20% dos 35% do PIB de gastos totais).

Como? Do lado da Previdência, com uma reforma adicional que inclua os estados e elimine algumas folgas nas regras. Assim seria possível se obter um total de três pontos por ano. O projeto coordenado por Paulo Tafner em 2018 oferece um exemplo detalhado de como se chega a esse resultado.

Uma reforma da área de recursos humanos do Estado deveria gerar mais três pontos do PIB (além de melhores serviços para a população). A reforma incluiria uma redução do número de funcionários (ao longo de alguns anos), avaliações de todos os funcionários, fim de promoções automáticas, ajustes nos planos de carreira e correções de distorções (como supersalários). Seria possível simular caminhos e criar metas detalhadas.

Há ainda uma terceira fonte de recursos, que viriam de uma redução de subsídios que não fazem sentido econômico ou social. No orçamento de subsídios da União é possível identificar economias de 2 a 3 pontos, sobretudo nas regras dos regimes especiais do Imposto de Renda, que são absurdas sob o ponto de vista distributivo. Esse passo teria o benefício adicional de conferir autoridade moral ao conjunto de propostas, pois deixariam claro que as perdas seriam proporcionalmente maiores para os mais capazes de arcar com elas.

Que fique claro também que sem as reformas as perdas gerais seriam imensas e recairiam sobre os mais pobres.

No curto prazo, creio que com contenção de salários e de contratações no setor público e com a eliminação de subsídios se poderia chegar a um ajuste de três pontos do PIB. As reformas mencionadas aqui cuidariam do restante, ao longo de alguns anos.

Estamos diante de problemas enormes. Felizmente, como demonstrei, existem respostas de igual dimensão. Se adotado, o roteiro apresentado aqui porá o Brasil em uma trajetória de crescimento sustentável e inclusivo. Reformas menos impactantes nos deixariam na ciclotimia medíocre em que estamos há décadas. Nada fazer nos garantiria um final distópico.

*Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).


Guilherme Amado: Como Fukuyama, Levitsky e Mounk veem a situação do Brasil

Conversei nos últimos dias com três dos maiores especialistas mundiais em democracias. Suas respostas mostram como a visão do presidente entre a nata da ciência política mundial é ainda pior do que a que grande parte da população brasileira tem hoje

Jair Bolsonaro costuma dizer que jornalistas e analistas brasileiros são demasiadamente críticos com seu governo, por considerar injusto que se apontem os erros de sua gestão e os excessos e irregularidades cometidos por alguns de seus familiares. Mas o Bolsonaro 2020 está muito pior do que o Bolsonaro 2019, e nada sugere que um Bolsonaro 2021 vá ser melhor do que o atual. Não bastasse o descaso com as mais de 25 mil mortes por Covid-19, doença cujo combate ele mais atrapalha que ajuda, o presidente passou, neste ano, a flertar ele mesmo com uma ruptura democrática, volta e meia usando as Forças Armadas como um espantalho, como se colocasse medo no restante da sociedade. Ou se faz o que ele quer, sem Supremo Tribunal Federal ou Congresso se contrapondo, ou ele usa os militares para dar um golpe. É quando esse tipo de comportamento é criticado que o presidente se irrita. Pensando em dar mais pluralidade à análise do governo, conversei nos últimos dias com três dos maiores especialistas mundiais em democracias. Perguntei aos americanos Francis Fukuyama e Steven Levitsky e ao alemão Yascha Mounk como eles veem a crise atual do governo do ex-capitão e o combate à Covid-19 no Brasil.

As respostas mostram como a visão do presidente entre a nata da ciência política mundial é ainda pior do que a que grande parte da população brasileira tem hoje.

Bolsonaro foi detectado por Francis Fukuyama como uma ameaça democrática séria muito antes do que aqui no Brasil. O americano, um dos mais estrelados nomes da Universidade Stanford, na Califórnia, colocou em 2017 o então deputado federal na aula sobre democracia que dá há anos aos alunos da graduação. Bolsonaro era citado como integrante do que ele chama de Internacional Populista, ao lado do húngaro Viktor Orbán, do americano Donald Trump e da francesa Marine Le Pen. Por causa disso, Fukuyama me deu uma entrevista, publicada no jornal O GLOBO exatamente um ano antes de Bolsonaro ser eleito, em que ele afirmava, sem rodeios, que o então candidato era um “populista perigoso”. Foi chamado de comunista pelos seguidores do presidente, o que chega a ser ao mesmo tempo revelador da ignorância do séquito bolsonarista e engraçado: a carreira de Fukuyama foi marcada pelo ensaio O fim da história?, publicado em 1989, onde defendia que o desenvolvimento levara a um fim da história não marxista — ou seja, uma utopia comunista —, mas sim hegeliano, de um Estado liberal com uma economia de mercado.

Fukuyama, portanto, acompanha Bolsonaro há tempos. Não se informa somente pelo que lê na imprensa americana. Tem fontes no Brasil, com quem conversa regularmente para tomar pé da situação, e é provavelmente por isso que impressiona o nível de conhecimento que tem da política brasileira. “Tenho acompanhado os acontecimentos no Brasil com grande preocupação. Meu maior temor é que Bolsonaro vá chamar o Exército para se manter no poder, à medida que sua popularidade afunda”, alertou, fazendo uma ressalva: “A pergunta, para mim, entretanto, é se o Exército vai querer tomar o poder nessas circunstâncias, tendo de lidar com a epidemia e com uma economia colapsada”.

Até aqui, a cúpula das Forças Armadas de fato tem demonstrado seguir o livrinho de 1988. O atual comando do Exército é em alguns aspectos até mais obediente à Constituição do que o anterior. Edson Pujol não tem conta no Twitter nem se mete publicamente em assuntos civis, como fazia Eduardo Villas Bôas, o ex-comandante do Exército que Bolsonaro disse ser “um dos responsáveis” por ele ter sido eleito e cuja filha tem um emprego no Ministério dos Direitos Humanos, com um salário de R$ 10 mil.

Do outro lado da costa americana, o professor de Harvard Steven Levitsky é alguns decibéis mais duro com Bolsonaro. Levitsky escreveu, com Daniel Ziblatt, um dos livros de cabeceira para entender a crise atual das democracias, Como as democracias morrem, em que analisam a eleição de Donald Trump em 2016 e diversos regimes autocratas no mundo, fazendo uma autópsia de como nem só com golpes se mata uma democracia, mas também por meio de líderes eleitos democraticamente, que vão usando artifícios dentro da legalidade para aos poucos restringir liberdades. É o que vem ocorrendo no Brasil, por exemplo, com a liberdade de imprensa, quando jornalistas são obrigados a se retirar da porta do Palácio da Alvorada por não ter mais segurança para trabalhar.

Levitsky avalia que a pandemia está ensinando o preço de eleger populistas. “Populistas como Jair Bolsonaro chegaram ao poder criando sua própria versão da realidade: uma narrativa em que eles são os heróis de que os países desesperadamente precisam e quem deles discorda é um vilão sinistro. Mas, nos últimos meses, muitos países aprenderam como é caro o preço que pessoas comuns acabam pagando por esse voo rumo à fantasia”, analisou, avaliando a resposta brasileira à Covid-19 como entre “as piores do mundo”. “Comparando ao redor do mundo, a resposta do governo brasileiro está, tragicamente, entre as piores. Bolsonaro é um de um punhado de presidentes populistas — Trump é outro — que negaram a seriedade da pandemia e teimosamente recusaram-se a tomar providências para proteger dezenas de milhares de vidas.”

O terceiro com quem conversei foi Yascha Mounk, também professor de Harvard e da Johns Hopkins, em Washington. Seu O povo contra a democracia mostra como governos antissistema querem restituir o poder ao “povo” — com essa nomenclatura, mas referindo-se apenas à parcela da população que mais os apoia —, e ir contra qualquer obstáculo institucional (alô, STF, alô, Congresso!). É a turma verde-amarela que vai para a porta do Planalto aos domingos pedir o fechamento dos dois outros Poderes, ignorando ou fingindo ignorar que é porque existem os outros Poderes e por haver democracia que eles estão ali protestando.

Mounk também é duro ao analisar a resposta brasileira à pandemia. “O Brasil é agora um dos países com o mais alto número de casos de coronavírus no mundo. O vírus ainda está se espalhando pelo país e num ritmo rápido. E a taxa de mortalidade está crescendo todos os dias. O Brasil teria de ter se esforçado em conter o vírus”, criticou.

Para o alemão, a eleição de Bolsonaro foi o evento mais importante da história do Brasil desde o fim da ditadura. No prefácio da edição brasileira de seu livro, em 2019, Mounk já havia sido direto ao prever o que seria o período Bolsonaro: “Pelos próximos anos, o povo terá de lutar pela própria sobrevivência da democracia liberal”. Agora, quando lhe perguntei sobre a situação atual, não poupou adjetivos: “Até um governo competente teria penado para impedir o sofrimento que agora está na casa de tantos brasileiros. Mas o que faz a situação brasileira atual tão triste e revoltante para observadores externos é a inação desavergonhada, temerária e, vamos dar o nome certo, criminosa do presidente”.

Mas nada disso há de importar a Bolsonaro. Certamente Fukuyama, Levitsky e Mounk devem ser petistas empedernidos que querem fazer do Brasil uma nova Venezuela.


RPD || Reportagem especial: Busca por auxílio emergencial revela legião de brasileiros na invisibilidade

No total, mais de 46 milhões de brasileiros não estão em nenhuma lista do governo e correm para conseguir benefício durante pandemia do coronavírus

Cleomar Almeida

Na geladeira da faxineira Marizete Coelho (37 anos), duas garrafas de água. É só o que tem. Mãe solteira, ela e os dois filhos (8 e 9 anos) sobreviviam com 800 reais mensais que conseguiam com bicos de limpeza em espaços de festas e eventos, que foram suspensos por causa da pandemia do coronavírus. Metade do dinheiro era para o aluguel do barracão de três cômodos onde moram, em Santa Maria, a 26 quilômetros de Brasília. Até hoje, ela não conseguiu se cadastrar para receber o auxílio emergencial de 600 reais.

Assim como milhares de brasileiros, Marizete já passou vários dias em grandes filas da Caixa Econômica Federal para tentar regularizar sua situação, mas sem êxito. Ela não está em lista alguma do governo. Não recebe nem Bolsa Família porque os filhos não estudam. Não tem CPF ativo nem conta bancária, que são exigidos para conseguir a ajuda de emergência. “Minha renda sempre foi da faxina pra colocar a comida em casa. Também nunca tive patrão para pedir documento, porque sempre trabalhei para fazer bico com ajuda de pessoas que já me conheciam”, diz ela.

A situação de Marizete não é isolada. No total, segundo dados oficiais, mais de 46 milhões de brasileiros não se enquadram nas regras e não estão em qualquer lista do governo. São trabalhadores informais que ficaram sem renda por causa da pandemia e dependem dessa ajuda para sobreviver. São os invisíveis do Cadastro Único do Governo Federal. Muitos não têm nem acesso à internet para se regularizar. 

O efeito da pandemia sobre a vida das pessoas é ainda mais trágico se considerados os 12,9 milhões de desempregados em março, conforme dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apenas nos três primeiros meses deste ano, 2,3 milhões perderam o emprego, sendo 1,9 milhão de informais, o que reforça o peso catastrófico da pandemia sobre esse grupo. As principais pesquisas sobre ocupação da população foram interrompidas ou enfrentam problemas.

O primeiro desafio do governo era inscrever 11 milhões que não estavam no Cadastro Único, mas têm direito ao benefício, segundo cálculo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O segundo era fazer o pagamento. Para quem não tem conta em banco, a Caixa Econômica Federal prometeu criar 30 milhões de poupanças digitais, movimentadas via aplicativo.

De acordo com pesquisa do Instituto Locomotiva, mais de 5,5 milhões de brasileiros com renda de até meio salário mínimo, elegíveis para receber o benefício, não têm nem conta em banco ou acesso regular à internet.  São eles que correm o maior risco de não receber o auxílio. “A crise do coronavírus tirou renda e jogou para a pobreza muita gente que tinha pouco, mas não era alvo de programas sociais. O vírus joga luz a problemas que já existiam, como a baixa renda dos informais, e acentua uma desigualdade histórica”, diz o presidente do instituto, Renato Meirelles.

Pesquisadores do IPEA defendem ações urgentes e integradas entre União, Estados e municípios para socorrer os invisíveis. “O fundamental é partir da estrutura que já construímos, para atender de imediato às famílias mais pobres. Do contrário, o risco é de só conseguirmos operacionalizar o benefício tarde demais”, alerta o representante do IPEA, Pedro Ferreira de Souza. “Nossas simulações mostram que é possível garantir renda mínima para famílias vulneráveis com custos relativamente baixos, considerando a gravidade da situação”, diz.

O furacão de invisíveis, que aumenta cada vez mais, tem engolido até as expectativas do próprio governo. “Temos um volume muito grande de pessoas que literalmente trabalham durante o dia para comer à noite. Para atender a esse problema, saímos em busca dos que eram considerados invisíveis, os informais, que não têm uma atividade formalizada, organizada. Tínhamos a expectativa, a FGV [Fundação Getúlio Vargas] e outros institutos, de encontrar sete ou oito milhões desses invisíveis. Já encontramos 20 milhões", disse o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, no início de abril.

No dia 20 de abril, o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, reconheceu a dimensão ainda maior da população até então inexistente para o governo, em entrevista à imprensa. “Esses invisíveis hoje são 42,2 milhões de brasileiros e nós estávamos conversando, pensamos que chegaremos a 50 milhões de brasileiros. É um número maior do que imaginávamos”, afirmou.

O desespero dessas pessoas faz diminuir ainda mais o isolamento social, medida preventiva ao coronavírus, já que, na ânsia de conseguirem os 600 reais, têm de correr para as filas das agências da Caixa, para tentarem regularizar sua situação e serem vistas oficialmente pelo governo. A realidade socioeconômica torna essas pessoas ainda mais vulneráveis.

A professora Ana Carolina de Aguiar Rodrigues, do Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), da Universidade de São Paulo (USP), diz que, no Brasil, diferentemente de outros países, medidas de isolamento também devem passar por questões socioeconômicas. Ela ressalta que esse aspecto deveria moldar as diretrizes e ações a serem tomadas pelos governos no país. 

“Definitivamente, esse valor não é suficiente”, diz ela, referindo-se aos 600 reais do auxílio emergencial. “Mas é importante dizer que, na hora que esse dinheiro cair na conta, as pessoas vão reduzir suas saídas de casa”, avalia a professora da USP. O técnico do IPEA Pedro Herculano de Souza, que estuda desigualdade de renda, concorda: "O auxílio é bem desenhado. O desafio é chegar a todos".

É exatamente isso que Marizete almeja. A faxineira conta que não vai sossegar em casa enquanto não conseguir regularizar sua situação junto ao governo. “Tenho dois meninos para criar, a geladeira está vazia. Não temos o que comer”, diz.  Durante a pandemia, ela sobrevive com ajuda de vizinhos e de grupos de doação. “A gente sabe que o melhor é não sair de casa, mas hoje existir nos registros do governo é questão de sobrevivência. Só assim eu vou conseguir ter alguma ajuda nessa crise do coronavírus”, afirma.


Solidariedade socorre desassistidos pelo governo

Na ausência do Poder Público, a solidariedade tem-se tornado o melhor remédio de força para comunidades inteiras se ajudarem e passarem o período da pandemia do coronavírus. Em diversos Estados, grupos de vários segmentos da sociedade se unem para amenizar a fome ou auxiliar pessoas sem acesso à internet a fazerem o registro no Cadastro Único.

Em Goiânia, após a confirmação da progressão geométrica de casos de pessoas contaminadas pelo coronavírus, um grupo de amigos passou a se mobilizar pelas redes sociais para juntar alimentos e doá-los a quem necessita. Os beneficiados são, principalmente, pessoas consideradas invisíveis, de acordo com um dos organizadores.

“Muita gente não tem nada em casa nem perspectiva de quando vai receber algum dinheiro do governo. Já encontramos situação de trabalhadores do lixão que sequer tinham RG ou CPF. Parece inacreditável, mas é preciso visitar os lugares mais esquecidos para enxergar a realidade”, afirma o dentista Rogério Leal, voluntário do projeto. “Toda semana, entregamos cestas básicas a mais de 100 famílias desamparadas. Essa ajuda só é possível graças à sensibilidade de donos de supermercados”, diz ele.

Em Belo Horizonte, outro grupo tem-se reunido durante a semana, para ir até a casa de moradores da periferia e leva-los de carro até agências da Caixa Econômica Federal, para que consigam cadastrar a solicitação do auxílio emergencial. “Muita gente não tem pão para o café da manhã, muito menos vale-transporte para pegar ônibus e ir até uma agência”, afirma o advogado Lucas Mendonça, que se mobiliza com um grupo de evangélicos para auxiliar famílias carentes. “Nosso intuito é amparar da melhor forma possível. Se temos carro, usamos o veículo para ter função nas comunidades”, pondera.

No Rio de Janeiro, uma associação de camelôs cadastra e faz o acompanhamento do pedido do auxílio emergencial de 600 reais para colegas sem internet ou conta em banco. "Fazemos o pedido e monitoramos o andamento", conta a ativista Maria de Lourdes do Carmo. "Se a gente não se unir, todo mundo vai sofrer", acentua. Segundo ela, mais de 100 pedidos do benefício realizados por meio da associação já foram aprovados.

Além de grupos de amigos, a ajuda vem de Organizações Não-governamentais (ONGs) e associações que nunca tiveram a simpatia deste governo, na avaliação do diretor da FGV Social, o economista Marcelo Neri. "É preciso agir: a crise chegou após cinco anos de aumento da pobreza. No fim de 2019, a desigualdade de renda do trabalho, enfim, parou de subir, mas deve voltar a crescer”, alerta.


Número de auxílios liberados é três vezes maior que o projetado

O número total de auxílios emergenciais liberados a trabalhadores informais até a primeira quinzena deste mês já é o triplo do previsto pelo governo em março e deve aumentar ainda mais ao longo deste ano. A Caixa Econômica Federal informou que, até este mês, 58,7 milhões de trabalhadores informais tiveram o benefício autorizado.

A projeção inicial do Ministério da Economia era de que até 20 milhões de pessoas seriam beneficiadas pelo auxílio emergencial, o que, segundo o órgão, geraria custo de R$ 15 bilhões aos cofres públicos. Com o passar dos dias, as autoridades foram surpreendidas pelo crescente número de brasileiros que se enquadravam nos critérios do benefício.

Depois, o próprio governo teve de fazer novos cálculos e liberar novo crédito, que passou para próximo de R$ 124 bilhões. O prazo para os interessados se cadastrarem no programa vai até o mês de julho, o que ainda deixa o governo em alerta sobre possíveis aumento nos dados.

Diante do cenário de incerteza, a equipe econômica quer incluir no debate a possibilidade de revisão do que chama de gastos ineficientes. Os técnicos querem reavaliar gastos como abono salarial, seguro-defeso (pago a pescadores artesanais no período de reprodução dos peixes, quando a pesca é proibida) e farmácia popular.

Na avaliação da equipe econômica, a revisão nesses benefícios poderia abrir espaço no Orçamento para acomodar renda básica à população ou outra proposta de fortalecimento das políticas sociais no Brasil. No formato atual, o auxílio emergencial custa cerca de R$ 45 bilhões ao mês, uma despesa que, na avaliação dos técnicos, não cabe no Orçamento nem no teto de gastos, mecanismo que limita o avanço das despesas à inflação.

A manutenção do auxílio emergencial de R$ 600, além dos três meses definidos inicialmente pelo governo, já é defendida por parlamentares e entrou na conta das projeções de mercado para o resultado fiscal do Brasil em 2020. No entanto, economistas alertam para o risco de o país repetir os erros da crise de 2008, quando políticas temporárias para resgatar empresas e famílias se tornaram permanentes e contribuíram para o processo de deterioração das contas públicas.

No Congresso, o argumento de parlamentares é evitar que as famílias fiquem sem renda alguma em um momento em que a circulação do coronavírus no país ainda poderá inviabilizar a retomada plena das atividades e do emprego.


RPD || Pedro Scuro Neto: Admirável vírus novo

Em tempos de crise, até mesmo inimigos podem ajudar-se uns aos outros para superar os desafios impostos pela pandemia do novo coronavírus Covid-19 em todo o mundo. Papéis da Ciência, da mídia e da administração pública passam por reavaliação, avalia Pedro Scuro Neto


Que maravilha!
Quantas boas criaturas temos aqui!
Como a humanidade é bela!

Oh admirável mundo novo

Que tem gente assim.

William Shakespeare, A Tempestade.

A sociedade trata os intelectuais com desconfiança, mas, em tempos de crise, fecha os olhos e daqueles menos escrupulosos encomenda profecias. Narrativas que a grande imprensa, na função de sentinela do sistema, agenda para fazer a opinião pública confiar que “quando tudo isto tiver passado, o mundo não será mais o mesmo”. [1] E o que esse mundo será, um dos literatos, dentre os profetas o favorito, se encarrega de dizer. Um mundo diferente, em que aprenderemos a lidar com “políticos irresponsáveis”, os mesmos que nos fizeram perder a confiança na ciência, nas autoridades e na mídia, que doravante serão os grandes mediadores das mudanças. Para fazer a diferença a palavra-chave será “solidariedade”, pois se “escolhermos desunião apenas prolongaremos a crise, trazendo catástrofes ainda piores”. Mas, se, ao contrário, “optarmos pela solidariedade global, venceremos não somente o coronavírus, mas toda e qualquer epidemia ou crise que sobrevier neste século”. [2] E como fazer isso? Em tempos normais, não se pode resgatar a confiança perdida, mas, como estes são “tempos de crise”, os espíritos podem mudar e até mesmo inimigos encontrarão “reservas secretas de confiança e amizade, dispondo-se a ajudar um ao outro”.

Na base de soluções proféticas estão sempre estratagemas. Neste caso, o truque é “naturalizar” o surto como se fosse algo íntimo, uma crise pessoal, que pede mudança de lentes para se enxergar melhor. Exige, sobretudo, confiar em intermediários, a mídia, a ciência e as autoridades, que, sob a influência da “maior crise da nossa geração”, vão ficar mais sintonizadas e sensíveis aos dramas de cada um. Em vez de monitorar, como sempre fizeram, vão propiciar “escolhas pessoais mais informadas”. A decisão final, porém, seguirá sendo dos indivíduos. Razão pela qual “a crise do coronavírus pode ser a batalha decisiva, pois entre privacidade e saúde as pessoas escolherão a segunda”. Mas, o que fazer com os incorrigíveis “egomaníacos”, os políticos, os “irresponsáveis” a quem deve ser imputada toda a culpa da crise de confiança nos “mediadores”? Neste preciso momento, desmorona toda a argumentação do profeta favorito, que desconhece os fatos e os atores.

Para começar, a ciência, o “mediador” mais neutro, fonte de probidade e veracidade, porém há décadas imerso em uma crise que nada tem a ver com políticos, mas com práticas ruins. A saber, em primeiro lugar, reprodutibilidade insatisfatória – recentemente, um projeto replicou 100 experimentos descritos em revistas indexadas de uma determinada ciência, cujos “efeitos alcançaram apenas a metade da magnitude original”.[3] Em segundo lugar, abusiva dependência de métricas, metas e indicadores, que, em lugar de sustentar avaliação qualificada, oprimem consciências, distorcem comportamentos e corrompem carreiras. Por último, problemas de revisão por pares, a menos ruim de todas as formas de governança acadêmica, mas assim mesmo assombrada por escândalos e denúncias. Tudo isso foi tema do livro de um sociólogo norte-americano, o primeiro a entender que os problemas da ciência não estão em seus fundamentos epistemológicos, mas nas imperfeições de suas práticas. Meio século depois, ele ainda denuncia as “pressões corruptoras” de uma “ciência industrializada”, cujos “incentivos perversos” obrigam os cientistas a se submeter a uma gig economy de contratos de curto prazo, sem direitos, sob o domínio de supervisores caprichosos.[4]

Por conta disso, a qualidade tornou-se instrumentalizada e a excelência perdeu espaço para o “impacto”, a nova regra do jogo. Situação agravada por tecnologias de guerra cientificamente informadas, pela manipulação financeira e pela predação ambiental, que, mesmo “aumentando as possibilidades de uma catástrofe civilizacional”, mostram que “o rei está nu”. Não se depender de literatos agenciados pela mídia para desviar nossa atenção de práticas ruins e de seus verdadeiros agentes.

Na administração, o segundo “mediador”, a prática mais nociva é a corrupção, “inerente às indústrias de mineração, petróleo e gás, construção e engenharia, todas de alto risco e objeto de investigação no mundo inteiro”.[5] A questão não é tanto o governo ou os políticos, mas o setor, num contexto em que a influência de organizações multilaterais se tornou preponderante. Caso do Banco Mundial, que, em 2011, orgulhosamente anunciou que seu braço no setor privado, a International Finance Corporation, tinha aberto linha de crédito de 50 milhões de dólares para a construtora Norberto Odebrecht. Fundos imediatamente transformados em ações de 250 milhões, como garantia de contratos de projetos de obras públicas.

Tudo documentado, mas, quando sobrevieram os escândalos, rapidamente deletado da base de dados do banco: “parcerias público-privadas” de 30 bilhões de dólares que a Odebrecht e outras quatro empreiteiras receberam de um banco estatal de desenvolvimento para operações na África e América Latina. Parcerias e suas indefectíveis “renegociações contratuais”, “terreno fértil para corrupção” – segundo Christopher Sabatini, professor da Universidade de Columbia, para quem “todo mundo sabia”, ou seja, que “a Odebrecht agenciava corrupção” com a chancela do Banco Mundial. Uma “tramoia evidente desde o começo”, na qual a IFC e o banco não corriam nenhum risco – “investigações de corrupção não chegam a outros países implicados e, nos países-clientes, os representantes do banco estão blindados contra processos judiciais”.[6]

O último ‘mediador’ do admirável mundo novo anunciado pelo profeta é a mídia, cujo “papel satânico” (Bauman) é “revolucionar os mecanismos de percepção do mundo” e instrumentalizá-los. Indústria conformadora de consciências que permeia todos os setores da sociedade, assumindo funções de controle e orientação. Não devido à informação que transmite, mas ao “conteúdo” – o que Marshall McLuhan chamava de “pedaço de carne”, que o ladrão traz para distrair o cachorro enquanto saqueia a casa. Indústria em crise, não por conta de políticos, mas de fatores estruturais relacionados com uma drástica queda na venda de mídia impressa e na saturação do mercado que obriga à competição com modalidades de mídia menos formais e profissionais. O que obriga a mover céus e terras para manter a clientela e fatias de mercado através da exploração do sensacionalismo, de uma incessante produção de notícias e de uma frenética busca por “inimigos”, para os quais se antecipa punição.

Crise não de agora, mas desde quando o primeiro grande centro produtor e difusor de notícias, a Igreja Católica, começou a perder o monopólio dos púlpitos e o status de “fonte” suprema, à qual todos, do mais rico e poderoso ao mais miserável, davam ouvidos com reverência.

Na antiguidade, os futurólogos eram “profetas da desgraça” que anunciavam cruéis castigos de Jeová para o povo – principalmente para dirigentes indignos (“os políticos”). Os atuais parecem mais atraídos por “renunciantes” budistas portadores de notícias acerca da “vida boa”. Laicizadas, mas sempre avessas à linguagem da democracia, suas derrapadas metafísicas desbordam o contexto estritamente religioso e invadem o âmbito da intimidade pessoal – cujas sutilezas só podem ser entendidas através dos inesgotáveis recursos da literatura. O que fez Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) há noventa anos, imerso na tempestade perfeita desencadeada depois da Primeira Guerra. Identificou estabilidade como a “necessidade original e derradeira” da civilização que luta para sobreviver a crises múltiplas. Como as de hoje, causadas por um modelo social, econômico e político falido, miseravelmente pego de surpresa por um minúsculo agente infeccioso. Crises agravadas por superpopulação e pelos meios de controle usados para submetê-la – dentre os quais Huxley destacaria as drogas e a sugestão subliminar, pedindo resistência para defender a democracia contra o autoritarismo, mais uma vez aos nossos portões.

No mundo real, enquanto os países se mobilizam para conter o coronavírus e suas nefastas consequências – a pior das quais é o colapso dos sistemas de saúde – não se pode perder de vista quadro bem mais assustador: uma nova pandemia é só uma questão de tempo. O surto global de Covid-19 não foi uma anomalia; doenças infecciosas emergem e reemergem em velocidade nunca vista ao longo da história. De 1980 a 2013, o número de epidemias anuais oscilou de 1.000 a mais de 3.000. Doenças infeciosas como Zika, MERS-CoV, SARS, cólera, tuberculose, HIV, influenza e ebola matam milhões todos os anos e, no seu rastro, destroem economias, causam pânico e, como no Brasil, crises institucionais. Situação que expõe a fragilidade das economias, a insuficiência das redes de segurança social e permanente subinvestimento em sistemas de saúde pública.

É preciso, primeiro – e antes de qualquer coisa – reforçar a capacidade do sistema de saúde na detecção e contenção de doenças com organismos centralizados de vigilância de dados que articulem informações de laboratório com dados populacionais e medidas clínicas. Em segundo lugar, desenvolver comunicação e coordenação, articulando centros de controle e prevenção com organismos da sociedade civil capazes de guiar respostas durante as crises e preparar protocolos baseados em evidências e boas práticas de saúde mesmo em tempos em paz. Finalmente, focar nas desigualdades que fazem as crises tão devastadoras, atentando para pequenas empresas, trabalhadores e pessoas mais vulneráveis.[7]

 

* Pedro Scuro Neto é sociólogo, diretor da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris), autor de Sociologia Geral e Jurídica, cuja 8ª edição (A Era do Direito Cativo) é publicada pela Saraiva: S. Paulo.

Mais informações:

[1]  Francesca Melandri (2020). https://www.theguardian.com/world/2020/mar/27/a-letter-to-the-uk-from-italy-this-is-what-we-know-about-your-future

[2] Yuval Harari (2020). https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75

[3] https://osf.io/ezcuj/wiki/home

[4] Jerome Ravetz (2016). https://www.theguardian.com/science/political-science/2016/jun/08/how-should-we-treat-sciences-growing-pains

[5] Andreas Pohlmann, Folha de S. Paulo, 22/9/2015.

[6] Roberto Bissio (2017). Leveraging corruption – How World Bank funds ended up destabilizing young democracies in Latin America, http://www.socialwatch.org.

[7] Jane J. Kim e Michelle A. Williams (2020), https://fortune.com/2020/03/29/coronavirus-pandemic-public-health-preparedness.


RPD || Maria Amélia Enríquez: Vida e economia nos tempos da Covid-19

Contradições da sociedade brasileira são expostas fortemente por conta dos efeitos da pandemia do coronavírus Covid-19. Debate sobre quem é mais importante, a defesa da vida ou da economia, ganha força

A pandemia do Covid-19 tem permitido escancarar as profundas contradições da sociedade brasileira, reveladas pelas péssimas condições sanitárias de 48% da população, sem esgoto e sem saneamento básico; precariedade do trabalho informal de 38,6 milhões de brasileiros, 41% da força de trabalho; míseros R$ 420,00 com que 52 milhões de brasileiros subsistem e, seu oposto, a extrema concentração da renda, a segunda maior do mundo, em que os 1% mais ricos detém 28,3% da renda total do País. Paralelamente, a pandemia e seus efeitos têm provocado um debate, até então pouco aprofundado, sobre o suposto antagonismo entre a defesa da vida e a defesa da economia.

Esse falso dilema pressupõe que a esfera econômica está apartada da vida das pessoas e tem existência própria, manifestando-se no mercado financeiro, na bolsa de valores, câmbio, transações bancárias, números do PIB etc. A vida real dos cidadãos e suas famílias, por seu turno, se passa em outra esfera, em seus domicílios e na rotina de seu cotidiano. O desastre econômico desencadeado pela pandemia mostra quão irreal é essa percepção.

Além de acesso aos recursos ambientais e materiais, a economia, enquanto reprodução material da vida, depende fundamentalmente da motivação humana, da energia, do engenho, da coragem, da criatividade, enfim, do trabalho e do talento das pessoas que precisam, antes de tudo, estarem vivas, confiantes e dispostas, para além de produzir e poder consumir.

Adam Smith (1776) demonstrou que o trabalho humano é a principal causa do desenvolvimento econômico. A tradição clássica subsequente reafirmou a produtividade do trabalho como chave para geração da riqueza e, não obstante todo o avanço da era digital e da indústria 4.0, com a retirada de cena de parte do trabalho por causa da pandemia assiste-se a um tombo na economia sem precedentes.

Mas, para além do trabalho, a dinâmica econômica requer confiança para consumir, gerar emprego e investir, enfim, assegurar a indispensável “demanda efetiva”. Para Keynes (1938), é o “estado de confiança” que molda as expectativas sobre essas decisões econômicas cruciais, mas, quando não há confiança do setor privado, surge uma onda de negatividade, com aumento do desemprego e queda da renda, o que gera e aprofunda a “armadilha recessiva”. Para combatê-la, a solução é aumentar as inversões públicas, que devem ser financiadas com déficit. A renda injetada provoca efeito de encadeamento que restabelece a confiança, essencial para impulsionar o crescimento.

Fukuyama (em Trust, 1995) demonstrou que o vínculo entre confiança e economia é a cooperação, fator explicativo dos diferentes padrões de crescimento entre países; além de substância do “capital social”, básico nos processos de desenvolvimento.

Assim, partindo-se do pressuposto de que a confiança é indispensável para a saúde econômica, nada mais lhe é tão nocivo quanto o medo, medo da morte por uma doença cruel, que exclui e isola do convívio familiar o paciente, cujo corpo nem poderá ser visto para consumar o rito. A argumentação de que doenças como H1N1 e dengue matam quantitativamente mais pessoas não tem sustentação, pois, além de as fatalidades ocorrerem em menor intensidade e escala, são conhecidas, evitáveis ou tratáveis. O que mais aterroriza na Covid-19 é a roleta russa que impõe, principalmente porque, no Brasil, um quarto das mortes é de jovens e sem comorbidade.

Como então readquirir motivação ao trabalho e confiança para consumir, investir e gerar emprego? Simples, se houvesse cura ou vacina, mas como ainda não existem, os cenários ajudam a ponderar. Em um cenário de ampla abertura das atividades, como lidar com a (falta de) confiança e cooperação no ambiente de trabalho e entre empresas? Como equacionar o mercado internacional se não houver demanda, já que outros países igualmente enfrentam depressões profundas?

O Brasil saiu na vantagem de entrar na pandemia “tardiamente”, mas não levou a sério a lição de que a única maneira de adiar a propagação do vírus para evitar uma crise humanitária seria o isolamento social e está presenciando a acumulação de cadáveres nos IMLs, em especial na Região Norte. Portanto, o cenário de ampla abertura da economia em meio à pandemia, além de cruel, apenas posterga os custos econômicos que inevitavelmente ocorrerão.

Monica de Bolle tem reiterado que a pandemia alterou por completo os rumos da economia e que o mundo não voltará automaticamente ao que era antes[1]. Ressalta, assim, a necessidade de uma renda básica permanente para pessoas em extrema vulnerabilidade e a reconversão industrial para a produção de insumos e equipamentos médicos. Este cenário impõe enorme desafio para países emergentes e com crônicos problemas de financiamento, como o Brasil.

Apresentar desde já um horizonte crível para a crise é um dos melhores meios para se resgatar a confiança. Todavia, parafraseando Galbraith (1995), o futuro será a resultante de ações realizadas no presente que, por seu turno, são fruto das decisões do passado. E, olhando para trás, constata-se que, em nome da economia, foram cometidas muitas atrocidades com as pessoas e a natureza. A pandemia está dissolvendo concepções e demonstrando que pode haver caminhos diferentes.

A ruptura das cadeias de valor, a dissolução dos preços do petróleo e das commodities em geral, o respiro ambiental nos grandes centros, as inúmeras demonstrações de compassividade e cooperação em prol do bem comum de empresas e da sociedade, em especial dos mais humildes, como é o caso de Paraisópolis (SP), abrem espaço para repensar a crônica insustentabilidade do modelo dominante de reprodução material da vida humana.

Talvez um dos efeitos secundários dessa crise seja ousar pensar na possibilidade da emergência de uma nova economia, que tenha como pilar estruturante a regeneração da natureza e da sociedade, uma “economia da reconversão”, que permita resgatar dívidas social e ambiental, tendo como valores o compromisso e a solidariedade com as gerações presentes e futuras. Isso é possível a partir de investimentos em atividades de alta efetividade que sejam economicamente sustentáveis. Para isso, a crise sanitária oferece excelente oportunidade de, finalmente, realizar investimentos maciços em saneamento básico, abastecimento de água, coleta e tratamento de resíduos; pois o déficit é brutal e o retorno é crescente, com vantagem de empregar muitas pessoas e resolver um dos problemas estruturais mais críticos do país[2].

A crise também permite revalorizar cadeias produtivas locais, mas, para isso, é imprescindível um amplo programa de qualificação e requalificação a esse novo mundo do trabalho, como a experiência, de baixo custo e de alto impacto, do “Pará Profissional” [3], vencedor do prêmio “Excelência em Competitividade”; além de estímulos ao aumento da competitividade com a intensificação da transferência de tecnologia para os processos produtivos locais, a partir de incentivos à pesquisa aplicada. Enfim, há muitas iniciativas e bons exemplos que precisam ser replicados e ganhar escala, mas para que ocorram é imperativo o engajamento com a causa!

 
* Maria Amélia Enríquez é economista, Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), conselheira da Fundação Astrogildo Pereira (FAP).

Mais informações:

[1] https://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2020/04/17/monica-de-bolle-a-economia-requer-mais-imaginacao/

 [2] Segundo o Instituto Trata Brasil, a falta de saneamento básico provoca mais de 300 mil internações por ano no país. Excluídas as doenças, há ineficiência da entrega de água. Em 2017, o Brasil teve prejuízo de R$ 11 bilhões, o que daria para ter abastecido 30% da população, além do que o país ganharia R$ 1,1 trilhão nos próximos 20 anos se universalizasse o saneamento básico, a um custo de R$ 470 bilhões.

[3] http://www.sectet.pa.gov.br/not%C3%ADcias/par%C3%A1-profissional-ganha-pr%C3%AAmio-excel%C3%AAncia-em-competitividade-2018


RPD || Lilia Lustosa: A morte do cinema. De novo?

Novas tecnologias, como o som, cores, a televisão, o VHS e a tecnologia digital transformaram o cinema desde o seu nascimento, em 1895. Hoje, em tempos de pandemia e na era do streaming, a disputa entre a telona e a telinha ganhou novos contornos, tons e sonoplastias, analisa Lilia Lustosa em seu artigo

Desde o nascimento do cinema, em 1895, vários foram os momentos em que sua existência foi colocada em questionamento. A chegada do som, em 1927, foi um dos mais marcantes. Salas de cinema tiveram que ser adaptadas, e sets de filmagem, reconfigurados, já que a exigência da proximidade dos ainda não tão potentes  microfones acabava por limitar o movimento dos atores. O resultado foi uma espécie de retrocesso na mise-en-scène dos filmes até que toda a indústria pudesse estar adaptada à novidade. E muitos foram os cineastas que se opuseram à mudança, defendendo que a fala acabaria com a aura da nova arte. Charles Chaplin fazia parte desse time, resistindo a não mais poder à incorporação do som, rendendo-se, finalmente, em 1940, ao lançar seu corajoso O Grande Ditador.

A chegada da televisão, do VHS e, mais recentemente, da tecnologia digital foram outros momentos de grandes medos e transformações, em que mais uma vez se questionou a sobrevivência do cinema. Técnicos tiveram que aprender a manejar novas câmeras e novos softwares de edição; cineastas tiveram que apurar o olhar à nova imagem, agora com menos textura e mais artificialidade; atores tiveram que aprender a contracenar com fundos verdes ou azuis, a usarem fios grudados em seus corpos; e as salas de projeção tiveram  mais uma vez que ser adaptadas  para receber as novas máquinas. Até hoje, ainda há diretores que se recusam a filmar em digital, apegando-se à pureza da imagem analógica, ao granulado e à nostalgia de sua composição. Tarantino é um deles! Além de filmar exclusivamente em película, comprou até o pequeno New Beverly Cinema, em Los Angeles, só para garantir a preservação do cinema à moda antiga.

Estamos agora na era do streaming, e a existência da sétima arte como concebida naquele longínquo 1895 parece mais ameaçada do que nunca. A disputa entre telona e telinha, que já andava acirrada nos últimos tempos, ganhou novos contornos, tons e sonoplastias... E não foi pela chegada de uma nova tecnologia, não! A ameaça agora vem de um vírus que pegou a todos de surpresa, atingindo de uma só vez o corpo e a alma do cinema, contaminando toda a cadeia cinematográfica. De repente, não mais que de repente, criadores e espectadores tiveram seus movimentos engessados. A pandemia da Covid-19 fechou salas, interrompeu filmagens, adiou lançamentos e fez com que milhões de profissionais perdessem seus empregos. As ações das grandes produtoras despencaram, e a maioria dos exibidores e das pequenas produtoras está decretando falência. E o pior, tudo isso ainda sem solução no curto prazo, já que teatros, cinemas e shows estão entre as últimas atividades a serem retomadas, em função de suas naturezas aglomerativas.

Em meio a esta crise sem precedentes na história do cinema, as empresas de plataformas de streaming saem como as grandes (e talvez únicas) beneficiadas, com suas ações atingindo índices altíssimos e com o número de clientes aumentando a uma velocidade “de contágio” maior que a do próprio coronavírus. Um a zero para a telinha nesta fase da era do streaming! E, sem querer tomar partido nessa disputa, a meu ver, incongruente, a sobrevivência da sétima arte parece estar assim ao menos assegurada, já que assistir a filmes se tornou um dos grandes antídotos para sobreviver à dura realidade do confinamento. Nunca se assistiu a tantos filmes e séries como agora!

Seria, então, o “algoz” da sétima arte – segundo alguns puristas –  hoje seu salvador? Será esse o futuro do cinema? O da telinha? A chance é grande, até porque nada pode nos garantir que esta pandemia seja a última do século. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood já até alterou seu regulamento a fim de permitir que filmes lançados e exibidos apenas na Internet possam concorrer ao Oscar em 2021, encerrando briga recorrente nos últimos anos. E, apesar de a maior parte dos grandes estúdios ainda se recusar a lançar seus blockbusters diretamente pelas plataformas digitais, lançamentos como o de Trolls 2, da Dreamworks/Universal Pictures, feito diretamente em VOD (video on demand), demonstraram ter seu valor. Cada visualização, a 19,99 dólares, rendeu cerca de 100 milhões em alguns dias “em cartaz”. Nada mal para um lançamento sem salas de cinema!

O fato é que, depois que as quarentenas forem levantadas, a experiência de ir ao cinema não será mais a mesma. Mudanças terão que ocorrer para que os espectadores possam se sentir seguros para voltar às telonas. Nos Estados Unidos, alguns Estados começam a dar os primeiros passos nessa direção. O Texas já autorizou a reabertura de salas, desde que com apenas 25% de ocupação. Massachusetts, que anda também ensaiando a reabertura, anunciou as mudanças que devem ocorrer: fileiras e cadeiras serão retiradas para que haja pelo menos 1,5m de distância entre os espectadores; as compras de ingressos serão feitas exclusivamente online, com impressão do bilhete feita em casa pelo espectador ou apresentação no formato digital (celular);  álcool em gel estará disponível em vários pontos das salas, que, por sua vez, contarão com mais portas de saída. 

Diante do novo cenário, é impossível não prever aumento no preço dos ingressos, o que fará com que a ida ao cinema seja cada vez mais um programa de elite. Mais pontos para a telinha?

Outro problema que se impõe quando da reabertura das salas é o dos conteúdos a serem exibidos. Quer dizer, com as produções todas em pausa por tantos meses, a que filmes iremos assistir? Em um primeiro momento, o mais provável é que entre em cartaz a leva represada de blockbusters – Viúva NegraMulan, Tenet007 etc. – que tiveram seus lançamentos adiados por medo de não conseguirem recuperar o montante estratosférico de dinheiro investido, caso tivessem optado pelo lançamento digital.

 Em seguida, tendem a ganhar força as produções mais baratas, que exijam equipes pequenas, menos equipamentos e mais agilidade na conclusão dos projetos. Documentários também devem ter seu destaque, porque, em geral, cabem dentro de um orçamento mais modesto e podem ser montados com imagens de arquivos, entrevistas e, consequentemente, menos contatos humanos envolvidos. Quem sabe, agora, pequenas produtoras e coletivos de cinema ganhem mais espaço. Quem sabe consigam finalmente ter seus filmes devidamente distribuídos nas novas salas carentes de conteúdos. Estaríamos diante de um “neo Neo-realismo” ou de um “novo Cinema Novo” ? 

Independentemente do que esteja por vir, neste cenário pós-pandemia, o Estado terá papel decisivo na retomada da atividade cinematográfica. No caso do Brasil, então, então, com uma indústria bem menos consolidada do que a americana, tendo tido também vários lançamentos adiados (A Menina que matou os pais, Três Verões, A Febre etc.) e produções interrompidas, a Ancine pode (e deve) ser a grande ferramenta de reconstrução do cinema nacional, ampliando as linhas de financiamento às pequenas e médias produções, criando linha de crédito para que os exibidores possam reabrir suas salas e incentivando as grandes empresas a investirem em cinema em troca de incentivos fiscais. Coisa que já acontecia, claro, mas que esteve ameaçada nos últimos tempos e que agora não pode falhar nem faltar. Obviamente, essas ações não vão impedir que a indústria cinematográfica entre em uma crise profunda, mas, além de aliviar o tamanho da queda, servem para dar-nos esperança e tempo para repensar o formato do cinema nestes novos tempos pandêmicos. 

A pergunta que fica martelando é: quando tudo isso passar e o corona vírus já tiver virado História, voltaremos às salas de cinema como antes? Ou estaremos já tão acostumados à tela pequena que não nos daremos mais ao trabalho de sair de casa em prol da experiência coletiva da sala escura e da tela grande? Teremos aprendido a dar mais valor a produções mais artísticas, menos cheias de efeitos especiais? E os blockbusters, com seus budgets exorbitantes e suas equipes gigantescas, tornar-se-ão coisa do passado, símbolos de uma época sem riscos de contaminação? 

Sobram perguntas e escasseiam respostas. Mas, nestes tempos de incertezas, angústias e questionamentos, uma única coisa parece certa: o cinema não vai morrer. Não vai ser desta vez… 

*Lilia Lustosa é doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).


RPD || José Luis Oreiro: Plano Pró-Brasil: Um New Deal para a economia brasileira?

Governo Bolsonaro criou mais uma disputa interna entre a equipe econômica do governo e a ala militar, encabeçada por Braga Neto, originada no fato de que a agenda de privatização, reformas estruturais e abertura comercial não tem apresentado os resultados prometidos  

No final de abril, o ministro Chefe da Casa Civil, General Braga Neto, anunciou a intenção de realizar um grande pacote de investimentos em obras de infraestrutura até 2031, no valor de R$ 280 bilhões, dos quais R$ 30 bilhões sairiam dos cofres públicos e os restantes R$ 250 bilhões seriam obtidos por intermédio de concessões à iniciativa privada. Na coletiva de imprensa na qual o anúncio foi feito, notaram-se duas ausências. A primeira foi o detalhamento dos projetos que fariam parte do assim denominado “Plano Pró-Brasil”. Na verdade, a apresentação de Braga Neto se resumiu a sete lâminas de power point, em que absolutamente nada de substantivo foi apresentado. A segunda ausência foi a do ministro da Economia Paulo Guedes, quem, em tese, deveria encabeçar esse tipo de iniciativa.

Comentários de bastidores que circulam livremente em Brasília mostram a existência de disputa entre a equipe econômica do governo, liderada por Paulo Guedes, e a ala militar, encabeçada por Braga Neto. Essa disputa tem sua origem no fato de que a agenda de Paulo Guedes – Privatização, Reformas Estruturais e Abertura Comercial – não tem apresentado os resultados prometidos em termos de aceleração do crescimento econômico. Com efeito, apesar da aprovação de uma reforma da previdência muito mais profunda do que a pensada durante o governo Temer, o primeiro ano do governo Bolsonaro conseguiu a proeza de apresentar taxa de crescimento de apenas 1,1%, inferior à média obtida no governo Temer (1,2% entre 2017 e 2018) e muito abaixo da tendência de longo prazo de 2,81% a.a para o período 1980-2014. 

Em segundo lugar, a equipe econômica do governo mostrou, nas primeiras semanas da crise do corona vírus, enorme dissonância cognitiva, recusando-se a tomar as medidas necessárias para atenuar os efeitos econômicos das medidas de distanciamento social; sendo assim atropelada por iniciativas que partiram do Congresso Nacional, como, por exemplo, o programa de renda emergencial. Esse comportamento contrastava com as medidas adotadas de forma célere pelos governos dos países desenvolvidos, os quais destinaram valores que somavam 20% do PIB (por exemplo, no caso da Espanha), para atenuar a queda abrupta do nível de atividade econômica. 

Entre os economistas das mais diversas tendências de pensamento, formou-se um consenso de que a pandemia atualmente em curso deverá produzir a maior queda do nível de atividade econômica na história do capitalismo, superando em intensidade a Grande Depressão de 1929. Uma vez contida a pandemia e suspensas as medidas de distanciamento social, a recuperação econômica será extremamente lenta e dependerá, tal como na década de 1930, de forte atuação do Estado na forma de vultosos investimentos em infraestrutura. No caso dos países europeus, abre-se uma janela de oportunidade para realizar mudança estrutural importante, qual seja: a descarbonização da economia, com vistas à redução da emissão de CO² na atmosfera, de maneira a conter o fenômeno do aquecimento global, ameaça de longo prazo à sobrevivência da própria humanidade. O volume de investimentos necessários para essa mudança estrutural é gigantesco, constituindo-se, portanto, no vetor de demanda necessário para a recuperação das economias europeias no pós-pandemia. 

O Brasil também terá de recorrer ao investimento público para se recuperar dos efeitos da crise atual. O ritmo anêmico de crescimento da economia brasileira anterior à pandemia já era prova cabal de que, sem aumento significativo do investimento público em infraestrutura, não é possível obter aceleração consistente do crescimento. A história brasileira mostra de forma muito clara que, no período de crescimento acelerado, entre as décadas de 1930 a 1980, o investimento público, direto ou por intermédio de empresas estatais, teve papel fundamental. No período pós-pandemia, os níveis elevados de desemprego e de ociosidade da capacidade produtiva vão inviabilizar qualquer retomada da atividade liderada pela demanda do setor privado.

Também é pouco provável que, dada a demanda por financiamento nos países europeus, os investidores internacionais se mostrem dispostos a financiar volume grande de projetos em infraestrutura no Brasil. A retomada do crescimento irá exigir um New Deal para a economia brasileira. O problema é que os militares não têm, ainda, a mais remota ideia de como fazer isso. 

*José Luis Oreiro é professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e Pesquisador Nível IB do CNPq. E-mail: joreiro@unb.br. Página pessoal: www.joseluisoreiro.com.br.


RPD || Adriana Novaes: Filosofar com Hannah Arendt em tempos de Covid-19

Em tempos em que o novo coronavírus torna pior o que era ruim e faz com que os problemas fiquem ainda mais dramáticos, a filosofia atenua a aflição e nos socorre, avalia Adriana Novaes em seu artigo

 O escritor argentino Ernesto Sabato escreveu que quase nunca acontecem coisas. No início deste ano de 2020, uma coisa aconteceu. Uma nova doença transformou nosso cotidiano e instalou a incerteza. São tempos graves. Uma situação-limite que desafia os cientistas, os profissionais de saúde, os economistas, os políticos, os educadores. Ninguém está livre de sua ameaça e do impacto das mudanças que provocou. Já vivíamos em um período tenso, crítico, instável e incerto. A Covid-19, o Sars-Covid-2, o novo corona vírus veio para tornar o que era ruim ainda mais exposto, fazer os problemas ficarem ainda mais dramáticos, como a imensa desigualdade de nosso país. 

É nesses momentos de incerteza que a filosofia nos socorre. Não porque ela dê respostas definitivas, nem mesmo porque atenue a aflição. De modo algum. Ela é o despertar e a investigação acerca do que tem significado, a paralisação do espanto e a exigência da busca por possibilidades novas. É nas situações-limite que a filosofia vem em nosso auxílio, é nos momentos graves que somos chacoalhados e instados a nos perguntar sobre as coisas, a suspender certezas, a rever posições, a reconsiderar valores e referências. O filosofar é provocado pelas experiências que ativam de modo intenso nossa vida do espírito.

A vida do espírito foi examinada pela filósofa Hannah Arendt no final de sua vida, a última etapa de uma trajetória intelectual marcada pelo esforço de compreensão do fenômeno mais importante e traumático do século XX, o totalitarismo, e o novo tipo de mal que surgiu nele, a banalidade do mal. Dedicada ao estudo da política, dos elementos constitutivos históricos dos regimes totalitários, das revoluções, dos desdobramentos do colapso moral ocorrido na Segunda Guerra Mundial, Arendt se viu desafiada a examinar as atividades do espírito, suas concepções ao longo da história da filosofia, e resgatar seus significados. São os novos contextos emergenciais os que mais exigem de nossa vida espiritual.

Essas atividades são espirituais porque não correspondem apenas a estruturas de nossa mente, mas são capacidades em inter-relação dinâmica, habilidades que nos dão perspectivas de viver e dotar de sentido, criar e escolher, aquilo que há de mais complexo e extraordinário em nossa condição humana. Essas atividades – o pensar, o querer e o julgar – são faculdades que precisamos exercitar para agirmos de acordo com a potência de nossa humanidade.

Pensar é o exercício que fazemos ao nos retirarmos do mundo, no distanciamento, agora forçado e, às vezes, não tão só. Mas poder parar e pensar é fundamental para nos darmos conta do que estamos fazendo, nossas ações e caminhos na vida e, especialmente para Arendt, do modo pelo qual exercemos nossa vida política. Isso significa examinar como agimos em nossa vida conjunta, enquanto uma comunidade, uma nação. Pensar é examinar-se, é conversar consigo mesmo e perguntar-se sobre o sentido real das decisões que tomamos, das escolhas que fazemos. Essas escolhas são ações de nossa capacidade de julgar. 

Julgar, para Arendt, é um grande desafio porque é encarar os problemas a partir dos pontos de vista das outras pessoas. É jamais colocar os próprios interesses em primeiro lugar, mas, ao contrário, dispor-se aos outros. Porque cada um de nós é único, vê a realidade de modo único. E a realidade é tão ampla que nunca conseguimos dar conta dela. Ela é irredutível ao pensamento. É complexa demais. Por isso, precisamos do esforço da abstração de que somos capazes pelo pensamento – o que significa lidar em nossa mente com os invisíveis, os significados das coisas – e sempre nos colocarmos no lugar dos outros. É pela consideração da realidade pelo maior número possível de pontos de vista – pela consideração de vários olhares únicos como o nosso – que podemos compreender melhor o que está acontecendo. Assim, fazemos melhores escolhas.

A tentativa de compreender é muito difícil, como escreveu Eric Hobsbawm sobre o papel do historiador no exame do violentíssimo século XX. Mas, para Arendt, compreender é a tarefa do pensamento, de nossa vida do espírito, o que temos de mais extraordinário.

Outra atividade do espírito é o querer, a vontade como ímpeto para criarmos coisas novas. E criar o novo é acolher a imprevisibilidade que sempre assusta. Nesses nossos tempos, algo que até foi previsto, mas para o que poucos deram atenção, fez o mundo parar. Um novo vírus, um desafio para médicos e cientistas, também escancarou o desastre de uma civilização estruturada pela alta tecnologia que ainda precisa conviver com toda sorte de absurdos como terraplanismo, crença em remédios milagrosos, variadas bobagens pseudocientíficas, mas também a perigosa negação da eficácia das vacinas. As falsas soluções e as mentirosas explicações são usadas por governos que encolheram e se embotaram como meras burocracias, como se nações pudessem ser equiparadas a empresas, uma deformação antipolítica que ameaça de modo ainda mais pernicioso a liberdade e a civilidade. Essa negação da política compromete a consciência e a plena atuação conjunta dos cidadãos, o envolvimento responsável com a própria comunidade, a nação da qual se faz parte. 

Resgatar a dignidade da política como a esfera de exercício de nossas atividades do espírito, como âmbito do discurso que exige nossa responsabilidade, é um desafio que a obra de Hannah Arendt nos apresenta e ao qual a situação-limite em que vivemos nos lança. É preciso encarar a realidade, por mais difícil e terrível que seja. Para enfrentá-la, temos o cultivo e o exercício de nossa vida do espírito.  

* Adriana Novaes é pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.