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El País: Governo Bolsonaro impõe apagão de dados sobre a covid-19 no Brasil em meio à disparada das mortes
Portal do Ministério da Saúde exclui número total de infectados pelo novo coronavírus e acumulado de óbitos no país desde o início da pandemia. Secretários de Saúde, Judiciário e entidades da sociedade civil criticam omissão de dados: “Tragédia”, classifica ex-ministro Mandetta
O Ministério da Saúde do Governo Jair Bolsonaro apagou de sua plataforma oficial os números consolidados que revelavam o alcance do novo coronavírus no Brasil, provocando críticas imediatas dos demais Poderes e da sociedade civil organizada. Depois de ficar horas fora do ar nesta sexta-feira, o site oficial foi republicado neste sábado, entretanto, somente com as notificações registradas nas últimas 24 horas. Não constam mais o número total de pessoas infectadas pelo vírus Sars-Cov-2 no país desde o início da pandemia, nem o acumulado de óbitos provocados pela covid-19 no território brasileiro. Também foram apagadas do site as tabelas que mostravam a curva de evolução da doença desde que o Brasil registrou seu primeiro caso, no final de fevereiro, e gráficos sobre infecções e mortes por Estado. Na noite deste sábado, seguindo essa política, o Ministério da Saúde divulgou 904 óbitos notificados e 27.075 casos confirmados da doença nas últimas 24 horas. A reportagem somou os números ao computado até a sexta-feira, totalizando em 35.930 óbitos e 672.846casos da doença em todo o país.
A ocultação dos dados já havia sido realizada nesta sexta-feira, quando o Governo excluiu as informações do boletim epidemiológico diário. Mas a mudança da plataforma é mais um passo firme rumo ao apagão de conhecimento sobre a real amplitude da crise sanitária do Brasil ―que é o segundo país no mundo em infecções (atrás apenas dos EUA) e o terceiro em mortes (atrás dos Estados Unidos e Reino Unido).
O presidente Bolsonaro defendeu a mudança na comunicação sobre a covid-19 no Brasil. “Ao acumular dados, além de não indicar que a maior parcela já não está com a doença, não retratam o momento do país. Outras ações estão em curso para melhorar a notificação dos casos e confirmação diagnóstica”, publicou o mandatário, em seu Twitter. A suspensão da comunicação acontece na mesma semana em que o Ministério da Saúde passou a atrasar em cerca de cinco horas a distribuição dos boletins, para às 22h, horário depois do fim do Jornal Nacional e depois do horário de fechamento das edições impressas dos principais jornais do país. “Acabou matéria do Jornal Nacional”, afirmou Bolsonaro ao ser indagado sobre a estratégia.
Além da supressão de dados sobre a doença, o Ministério da Saúde tornou cada vez mais raras as entrevistas coletivas técnicas, em que profissionais da pasta esclareciam dúvidas de jornalistas sobre a pandemia. A pasta argumenta que o atraso nos boletins visa “evitar subnotificação e inconsistências”, por isso, diz que “optou pela divulgação às 22h, o que permite passar por esse processo completo. A divulgação entre 17h e 19h, ainda havia risco subnotificação. Os fluxos estão sendo padronizados e adequados para a melhor precisão”, completou.
Sem a notificação oficial dos dados acumulados da doença, os números brasileiros sobre o novo coronavírus desapareceram, por algumas horas, também da plataforma da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, que monitora desde o princípio o avanço do vírus, em 188 países ―e cujos dados são utilizados inclusive pelo EL PAÍS para monitorar a evolução da pandemia.
O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, chamou de “tragédia” a omissão dos números, ao que atribuiu à uma “lealdade militar burra”. “É uma tragédia o que a gente está vendo agora, o desmanche da informação”, disse. O ex-ministro comparou a mudança à uma missão militar para “sonegar as informações, colocá-las em horário inacessível, ou rever, torturar os números para que eles confessem verdades que eles entendam que sejam as que melhor se encaixam para o momento”, continuou. “Não informar corretamente significa que o estado pode ser mais nocivo do que a doença”, disse ele neste sábado, ao participar de um evento sobre saúde pública.
Mandetta foi demitido por Bolsonaro, por discordar do presidente sobre o uso da cloroquina para tratar pacientes com a doença e sobre a flexibilização das medidas de isolamento social, medidas exigidas por Bolsonaro. Depois dele, assumiu o oncologista Nelson Teich, que pediu demissão um mês depois pelos mesmos motivos de Mandetta, em 15 de maio. Desde então, o Ministério da Saúde está sob o comando do general Eduardo Pazuello, ministro interino.
“A manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários. Tenta-se ocultar os números da #COVID19 para reduzir o controle social das políticas de saúde. O truque não vai isentar a responsabilidade pelo eventual genocídio”, reclamou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, em sua rede social, neste sábado.
Proposta de recontagem de mortos
Além da mudança e atraso nos boletins e da ocultação de informações da plataforma da covid-19, a declaração do empresário Carlos Wizard, convidado por Pazuello para assumir a Secretaria da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (do Ministério da Saúde), de que o Governo vai recontar os mortos da covid-19 nos Estados provocou revolta entre as secretarias estaduais de Saúde. “Tinha muita gente morrendo por outras causas e os gestores públicos, puramente por interesse de ter um orçamento maior nos seus municípios, nos seus estados, colocavam todo mundo como covid. Estamos revendo esses óbitos”, afirmou ao jornal O Globo, no sábado.
“A tentativa autoritária, insensível, desumana e antiética de dar invisibilidade aos mortos pela Covid-19, não prosperará”, criticou o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), em nota publicada neste sábado, como reação às declarações de Wizard. “[A fala] Insulta a memória de todas aquelas vítimas indefesas desta terrível pandemia e suas famílias”, completou o Conass.
“As medidas contrariam a Constituição Federal, a Lei de Acesso à Informação, as boas práticas de transparência pública reconhecidas internacionalmente e evidenciam, mais uma vez, o espírito antidemocrático do governo de Jair Bolsonaro”, repudiou a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). “A Abraji repudia o abuso de autoridade por parte do alto escalão do governo federal e condena tentativa de impor obstáculos às atividades jornalísticas através da ocultação de informações de interesse público. Também apela aos demais poderes da República para que fiscalizem e punam eventuais atos de improbidade administrativa com o máximo rigor da lei", completou a entidade, em nota. “A transparência de informação é um instrumento poderoso no combate à epidemia”, criticou Paulo Jerônimo de Sousa, presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), em nota na qual acusa o governo de “tentar silenciar a imprensa tarde da noite”.
A ocultação dos dados pelo Governo não deve, entretanto, passar incólume. De acordo com o G1, a Defensoria Pública da União (DPU) ingressou com um pedido de liminar na Justiça Federal de São Paulo para que o Governo volte a divulgar os dados sobre a pandemia integralmente. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirmou ter feito um “apelo” ao ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, para que o Governo “restabeleça a transparência”. Já o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), também afirmou que estuda propor que seja estabelecido um horário limite para que os Estados e o Governo federal divulguem os dados.
Enquanto isso, nas redes sociais, a comparação entre Bolsonaro e o norte-coreano Kim Jong-Un dispararam ―a Coreia do Norte não divulga seus mortos pelo novo coronavírus e o nome do país era trending topic mundial justamente pela comparação entre os dois líderes. “Agora será padrão Kim Jong-Un? O ditador da Coreia do Norte decidiu que ninguém morreu de Covid19 no seu país. Funciona assim em ditadura", escreveu o jornalista Guga Chacra.
Ricardo Noblat: Bolsonaro copia Stalin e manda apagar a tragédia do Covid-19
Novo modo de luta contra o vírus
Admita-se por uma questão de justiça: tudo o que o presidente Jair Bolsonaro faz de errado (ou seja: quase tudo), ele faz muito bem feito. O caso do combate à pandemia do coronavírus é um exemplo. Bolsonaro poderia ter ignorado o vírus, o que já seria um suicídio político, mas não. Chamou-o de gripezinha, calculou que mataria no máximo 800 brasileiros, como se isso fosse pouco, e declarou que o mais importante seria salvar a economia.
Satisfeito? Não. Demitiu o ministro da Saúde, o mais popular do governo, porque ele era… Era o ministro mais popular do governo, o que o incomodava. Substituiu-o por um médico sem experiência em administração pública e tentou impor todas as suas vontades a ele. O médico pediu demissão em menos de um mês. Foi sucedido por um general com fama de ser especialista em logística. A única coisa que se fato sabe é dizer amém a Bolsonaro.
Bastou? Não. Para completar sua obra quase perfeita, que o imortalizará quando for escrita a história da pandemia que assolou o mundo no começo do século 21, Bolsonaro apelou para um recurso muito usado pelo ex-ditador comunista soviético Joseph Stalin: apagar imagens que o desagradam. Stalin mandava apagar das fotografias oficiais figuras que haviam caído em desgraça por divergirem dele. Antes ou depois, mandava executá-las.
Inconformado com o número crescente de mortos pela gripezinha, e assustado com os estragos políticos causados à sua imagem de governante relapso, Bolsonaro mandou apagar os números sobre a tragédia oferecidos por páginas oficiais na internet. No início da noite, saiu do ar o site oficial da covid-19 que apresentava um balanço detalhado sobre a situação da pandemia. No início da madrugada, a página do Portal da Transparência.
Um dia após tornar-se o 3º país com mais mortes por coronavírus, o Brasil registrou 1.005 novas mortes nas últimas 24 horas, o que eleva o total para 35.026. É o quarto dia consecutivo que o país contabiliza mais de mil mortes em 24 horas. De quinta para sexta, foram confirmados ainda 30.830 novos casos da doença, o que aumentou o total de casos para 645.771. Isso acontece quando as medidas de isolamento estão sendo relaxadas.
O Ministério da Saúde vai recontar o número de mortos. Segundo o milionário Carlos Wizard, ligado a negócios do ramo de hospitais e que já despacha como futuro secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do ministério, os dados atuais seriam “fantasiosos ou manipulados”. Antes da ascensão do general e do milionário, ambos bolsonaristas de berço, o ministério reconhecera que há um grande número de subnotificações.
Mas não é disse que se trata. Afirma Wizard: “Tinha muita gente morrendo por outras causas e os gestores públicos, puramente por interesse de ter um orçamento maior nos seus municípios, nos seus estados, colocavam todo mundo como covid. Estamos revendo esses óbitos”. Entendeu? Rever para enxugar os números. Enxugar para que eles pareçam menores. Como se isso fosse capaz de desidratar a tragédia. Como se assim fosse possível reescrevê-la.
O país aguarda os novos números para debochar deles. Nos últimos 3 dias, por orientação de Bolsonaro, o governo atrasou a divulgação dos boletins sobre o coronavírus com o objetivo de prejudicar sua veiculação pelos telejornais no horário nobre. Os boletins saíam nos fins de tarde. Passaram a sair depois das 19h. Ultimamente, perto das 22h. “Não interessa de quem partiu [a ordem]”, decretou Bolsonaro quando perguntado a respeito.
Marcus Pestana: Estamos #JUNTOS
“Somos cidadãs, cidadãos, empresas, organizações e instituições brasileiras e fazemos parte da maioria que defende a vida, a liberdade e a democracia”.
“Somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”.
“Somos a maioria de brasileiras e brasileiros que apoia a independência dos poderes da República e clamamos que lideranças partidárias, prefeitos, governadores, vereadores, deputados, senadores, procuradores e juízes assumam a responsabilidade de unir a pátria e resgatar nossa identidade como nação”.
Assim é aberto o manifesto “estamos #JUNTOS” assinado por expressivas lideranças da sociedade e de diferentes partidos, artistas, intelectuais e por milhares de brasileiros e brasileiras. É o mais expressivo de outras reações da sociedade civil contra a escalada autoritária e a favor da democracia como o BASTA e o SOMOS 70%.
Os manifestos e algumas manifestações de rua mostram que a sociedade brasileira começa a despertar de uma longa anestesia política e se preparando para os embates futuros. Fica evidente que é uma reação às sucessivas mobilizações pela volta do AI-5 e pelo fechamento do Congresso Nacional e do STF, pilares da República e da democracia brasileira. Após 35 anos da transição democrática, imaginávamos que teríamos cristalizado a estabilidade política e institucional na vida do país. A realidade está nos mostrando que essa verdade é relativa e, afinal, que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.
Destoando desta reação uníssona das forças democráticas veio, mais uma vez, o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva, que no seu narcisismo calculista e doentio disse que “não é Maria vai com as outras” e que não assinaria ao lado de alguns dos signatários do manifesto. Nenhuma surpresa. Em 1985, o PT não votou em Tancredo Neves, timoneiro da redemocratização, no Colégio Eleitoral, contra a candidatura de Paulo Maluf. Expulsou três deputados que entenderam a importância histórica da luta no Colégio Eleitoral e votaram em Tancredo contra a orientação do partido: Bete Mendes, José Eudes e Aírton Soares.
Em 1988, o PT e Lula votaram contra a “Constituição Cidadã”, assim chamada pelo presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães. Depois acabaram assinando a nova Carta Magna. Em 1992, após o impeachment de Collor, o PT se negou a participar do governo de união nacional em torno do Presidente Itamar Franco, afastando a ex-prefeita de São Paulo e atual deputada federal, Luiza Erundina, que aceitou se tornar ministra-chefe da Secretária da Administração Federal. Havia embutido na atitude um cálculo político oportunista, exclusivista e eleitoreiro, mirando a sucessão presidencial de 1994.
Também diante no Plano Real, de diversas reformas estruturais e da Lei de Responsabilidade Fiscal, no governo de FHC, o PT sobrepôs os interesses partidários aos nacionais, demarcando campo próprio e buscando um isolamento tático. Enfim, como disse Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Ficou famosa a máxima “entre o Brasil e o PT, o PT fica sempre com o PT”. Mas a sociedade brasileira não ficará prisioneira de posturas exclusivistas e auto-referenciadas.
Apesar da pandemia e do necessário isolamento social, ocorreram já algumas manifestações de rua em defesa da democracia. E aí, é importante aprender com as jornadas de 2013. Não é possível que meia dúzia de Black Blocks, tão autoritários como aqueles que pedem um novo AI-5 e agridem as instituições democráticas, comprometam um movimento amplo da sociedade em defesa da liberdade.
Na segunda metade dos anos de 1970 erguemos uma agenda unitária que unificava todos os democratas: anistia ampla, geral e irrestrita; Constituinte livre e soberana e eleições diretas. Este aprendizado deve nos iluminar em 2020. A nossa agenda deve perseguir unir a direita, o centro e a esquerda democráticos e lideranças da sociedade brasileira que não obrigatoriamente convergem em questões estratégicas de longo prazo, mas se unem na defesa da democracia. Devemos procurar o que nos une, e não o que nos divide. Defesa da liberdade e da democracia, defesa das instituições republicanas e democráticas e defesa da Constituição, estes são os pontos. Simples assim, fácil de entender e semente de uma ampla unidade.
A nossa história republicana é turbulenta e não foi fácil construir as bases do maior período democrático da nossa trajetória como povo e Nação. A democracia brasileira está ameaçada. Vários países democráticos assistiram retrocessos indesejáveis. A unidade de todos aqueles que defendem a democracia é essencial para que superemos a pandemia, seus perversos efeitos econômicos e garantamos a integridade de nosso tecido social e a retomada do crescimento. Quem se colocar contra será atropelado pelos fatos e pela dinâmica do processo histórico.
Míriam Leitão: Os desafios e a resistência
Índios fazem isolamento. O desmatamento pode causar novas pandemias. Há resistência contra o desmonte. As ideias de um debate
Os índios estão se afastando das aldeias e entrando mais profundamente na floresta para fazer o isolamento social. Foi o que o fotógrafo Sebastião Salgado contou. O desmatamento pode liberar outros vírus e bactérias que hoje vivem em equilíbrio no ecossistema da Amazônia, por isso, preservar a floresta é proteger a humanidade contra novas pandemias. Foi o que disse o cientista Paulo Artaxo, da USP. Temos o que celebrar na área ambiental: a resistência do ambientalismo, da comunidade científica, da sociedade brasileira. É o que pensa a ex-ministra Marina Silva.
Ontem, eu mediei um debate entre os três aqui no jornal, pelo dia do meio ambiente. Cada um de sua casa, como convém nos tempos atuais. De Paris, Sebastião Salgado está em contato direto com o solo da Amazônia. Ele disse que das comunidades indígenas saem as informações mais precisas do que ocorre na floresta. Perigos imensos rondam os povos indígenas.
— Na terra Yanomami há 22 mil garimpeiros, e eles podem levar a Covid-19, além da destruição ambiental. No Vale do Javari, onde vivem os isolados Korubo, há também os garimpeiros. É conhecido que os indígenas não têm as defesas imunológicas que nós temos. Na Amazônia há a maior riqueza cultural do planeta, mais de 300 tribos que falam quase 200 línguas, há 120 grupos que nunca foram contactados. Pode haver um genocídio — diz Salgado.
Paulo Artaxo disse que há paralelos entre as crises do clima, da perda de biodiversidade e a da Covid-19. Para todas elas a solução está na ciência:
— A extrema-direita não aceita a ciência, a não ser quando é do seu interesse. Essas três crises juntas podem ter efeitos devastadores. O desmatamento da Amazônia tem impacto climático, provoca perda de biodiversidade e cria desequilíbrio num ecossistema que evoluiu por milhões de anos onde há inúmeros patógenos, vírus e bactérias. Eles podem ser liberados, como aconteceu com o ebola na África.
Para enfrentar os três problemas juntos, Artaxo recomenda procurar o desmatamento zero e proteger as populações indígenas, que são os guardiões da floresta. As áreas mais preservadas da floresta são exatamente as terras indígenas.
Marina disse que a sociedade brasileira tem resistido aos constantes ataques ao meio ambiente nos últimos anos:
— Para não ficar apenas nas tristezas, diante do desmonte da governança ambiental por um ministro que conspira contra a sua própria pasta, é preciso lembrar que estava tudo pronto para aprovar a MP da grilagem e ela saiu de pauta, Salles tentou passar sua boiada e mudar a Lei da Mata Atlântica e teve que revogar seu ato. Por isso digo que é preciso celebrar, neste e em outros governos, os momentos em que a resistência venceu — disse a ex-ministra que, no seu tempo no Ministério do Meio Ambiente, criou um plano de combate ao desmatamento que foi mantido mesmo após a sua saída e reduziu em 83% a taxa anual de destruição da Amazônia.
Paulo Artaxo disse que sempre perguntam a ele, em seminários, quando o mundo voltará ao normal. Ele estranha a pergunta:
— Não é normal destruir 10 mil km2 de floresta amazônica por ano, não é normal emitir 48 gigatoneladas de CO2 por ano, não é normal ter sete milhões de carros em São Paulo criando transtornos e fazendo a população respirar o ar insalubre. O aumento da temperatura pode tornar o Nordeste inabitável em poucas décadas. Não existe lockdown para o clima. O normal seria buscar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Salgado diz que o desmonte que o governo Bolsonaro tem feito ameaça o estado brasileiro. A Funai, que já teve grandes antropólogos na direção, hoje é dirigida por um delegado de polícia. Há outros órgãos sob ataque:
— Temos que evitar a venezuelização do Brasil. Bolsonaro está empregando muitos militares, para dar a impressão de que o Exército está apoiando a extrema-direita, um grupo sectário, mas não está. O Exército é uma grande instituição que está na Amazônia protegendo nosso território e os povos indígenas.
Marina disse que atualmente grupos da sociedade civil estão se unindo, em movimentos como o Juntos, ou Somos 70%, para proteger a democracia. Ela acha que a pandemia mostrou que a nova economia é ainda mais necessária, e que a inclusão tem que ser também digital. Hoje, quem está excluído digitalmente não consegue estudar nem trabalhar.
Aline Passos: O argumento mais relevante
Considero a pandemia o argumento mais relevante. Não é possível ir às ruas sem levar em consideração que estamos em plena curva ascendente de propagação do coronavírus. Há, no entanto, justaposta à crise sanitária, uma crise política, e é preciso também considerar que quem convocou as manifestações talvez integre a parcela da população para a qual combater o governo se tornou uma exigência incontornável, inclusive e sobretudo, por causa da crise sanitária.
Nós sabemos que, com quase 3 meses de isolamento social, permanecer isolado tem sido cada vez mais marcador de privilégio de classe. Dito isto, não sou eu que vou dizer a quem já está diariamente exposto ao contágio, porque submetido a condições precárias de existência, que não se manifeste por causa do risco de… contágio. Prefiro pensar que é hora de mobilizar redes de solidariedade. Distribuir máscaras, doar álcool em gel, providenciar isolamento para quem puder se isolar pós-manifestação, dentre outras coisas.
Todo esse debate me lembrou muito um trecho do livro "Black Blocs" de Francis Dupuis-Déri, em que se debatia por que imigrantes sem documentação e pessoas negras não costumavam participar dos blocos, pelo menos não lá, onde o autor pesquisava. A resposta sempre foi muito óbvia. Igualmente óbvia era a postura das pessoas em condições sociais privilegiadas que construíam, a partir dos seus privilégios, uma ética que os levava às ruas por entenderem que quanto menos vulnerável você é, mais obrigado a se colocar na linha de frente da batalha você está.
Isso me diz algo sobre a situação que vivemos hoje. É um recado para quem teve o privilégio do isolamento social, do acesso a equipamentos de proteção individual e não pertence, não é responsável e nem coabita com pessoas dos chamados grupos de risco. A bola está com vocês.
Sobre o argumento do perigo de agentes infiltrados que vão insuflar a polícia a agir de forma truculenta, mal consigo escrever, tamanha a bobagem. Se fosse por isso ninguém se manifestaria jamais e junho de 2013, por exemplo, nem teria existido. O que inibe P2 é mais, não menos, gente na rua.
No que concerne ao risco de golpe, sobretudo após o tocador ter tangido o gado para o curral: talvez seja mesmo uma indicação de incremento significativo da repressão. Só que esta hipótese, uma vez colocada, não resolve o problema. Afinal, diante do risco de fechamento do regime, isso é mais ou menos motivo para ir às ruas? Se, de fato, avalia-se que a boiada já passou e já houve golpe, isso é mais ou menos motivo para ir à ruas?
Em todo caso, fiquei bastante incomodada com posicionamentos públicos de intelectuais e parlamentares que, com conforto material a partir de carreiras consolidadas e estáveis, ao invés de procurarem os convocantes das manifestações de forma discreta para avaliar os riscos, correram às redes sociais e demais meios de comunicação para desautorizá-los. Se considerarmos o perfil de quem convocou as manifestações, a postura dos intelectuais e parlamentares se torna ainda mais problemática, porque vertical, paternalista, preconceituosa.
Não está dado a qualquer habitante de gabinete dizer a uma torcida organizada (TO) que não se manifeste. Muito menos ir a público orientar as pessoas a abandonarem os convocantes nas ruas numa hora dessas. No limite, se avaliaram que era melhor não ter manifestação, que chamassem as TOs para uma conversa e tentassem convencê-las a retirar, elas próprias, a convocatória.
Sr. Luiz Eduardo Soares, se existia alguém que possuía uma rede importante de contatos, capaz de fazer as preocupações com a pandemia e a repressão chegarem ao destino correto para avaliação e convencimento, sem expor os convocantes aos escrutínios mais espúrios e ao abandono iminente, este alguém era o Sr. Espero que reavalie sua postura, e diante do estrago já causado, dirija-se a manifestação mais próxima. Leve máscara e álcool em gel.
Por fim, advogados e advogadas antifascistas, preparemo-nos. Há dentre nós os que poderão e deverão estar nas ruas, independente de concordar ou não com a convocatória. Há os que deverão estar de plantão e plenamente disponíveis aos manifestantes. Haverá os necessários para, nos dias e meses seguintes, acompanharem procedimentos e processos.
Alerta geral: não fica ninguém para trás.
Monica De Bolle: Vida ou morte
Apesar dos riscos que manifestações pró-democracia em meio à pandemia podem implicar, calar-se neste momento é dar respaldo às atrocidades que levam vidas impiedosamente e com descaso
Perguntado sobre os mais de 30 mil mortos por Covid-19 no Brasil, o presidente da República respondeu, na lata, sem dó: "A morte é o destino de todos". A morte é o destino de todos. Destino de George Floyd nos Estados Unidos, nas mãos de um policial. Destino do menino João Pedro, de 14 anos, baleado enquanto obedecia a quarentena dentro de sua casa. Assassinado por policiais. A morte é o destino de todos. Destino de pessoas de idades diversas, vítimas da doença a que o presidente se recusa a dar a devida relevância. Pois bem. A morte é, de fato, o destino de todos, ou de muitos que não perderiam sua vida tão cedo em razão do desprezo pela vida que demonstra o líder do país. Manifestação? Sim, manifestação.
As manifestações no meio de uma epidemia evidentemente aumentam o risco de contágio. As pessoas precisam se proteger, sair de máscara, procurar manter distanciamento para reduzir o risco de contaminação. Mas condenar as manifestações pró-democracia por causa da epidemia?
É bom lembrar que a manifestação pró-democracia é contra o presidente da República, que não apenas repudia a democracia, mas faz troça da epidemia e da perda de vidas, todas as vidas — em especial, a vida dos mais pobres e dos negros, os mais atingidos até agora. Portanto, manifestar-se pró-democracia é posicionar-se a favor da luta contra a epidemia.
Manifestar-se pró-democracia é uma questão de vida ou morte, tal qual a própria epidemia.
Tenho visto muita gente no Brasil se recusando a enxergar aquilo que deveria ser óbvio. O país atravessa um momento insustentável, com um governante que prefere o caos à preservação do país. Um governante que detesta as instituições que regem nossa democracia. Um governante abertamente favorável à brutalidade e à opressão. Um governante que não se importa com o sofrimento de dezenas de milhares de famílias brasileiras, com dezenas de milhões de habitantes do Brasil, com os mais vulneráveis, que ele reluta em auxiliar pela renda básica emergencial. O que fazer perante essa situação? Panelaços, sim. Gritaria, sim.
Mas vejam: as ruas sempre foram um espaço privilegiado da ação política. Quando algo está profundamente errado nós buscamos as ruas porque é nelas que se tem maior visibilidade e, portanto, se encena a um maior número a contestação, na esperança de que espectadores se disponham a se tornar atores. A tomada das ruas está proibida por causa da epidemia? Não, tomá-las está mais perigoso, mas de modo algum proibido.
Cabe a todas as pessoas que queiram se manifestar — diga-se, legitimamente — contra a barbárie do bolsonarismo ir às ruas com responsabilidade. Com máscara para não se contaminar. Com máscara para não contaminar os outros.
Aqui nos EUA a morte de George Floyd levou centenas de milhares de pessoas para as ruas ao longo de mais de uma semana. Algumas dessas manifestações foram violentas. Outras foram pacíficas. Outras ainda tiveram de lidar com a brutalidade da polícia: foi esse o caso aqui em DC, onde moro. Para que Trump pudesse tirar uma foto com a Bíblia na mão de cabeça para baixo, as forças de segurança lançaram gás lacrimogênio sobre pessoas que exerciam pacificamente seu direito de protestar contra o racismo.
Há temores de que possa haver um recrudescimento da epidemia nas próximas semanas? Sem dúvida. Mas o resultado das manifestações já é visível: os policiais envolvidos na morte de Floyd que haviam sido acusados com brandura viram suas acusações se tornarem muito mais duras em razão da indignação do povo nas ruas diante da injustiça do homicídio e da condescendência com ele.
Vejo no Brasil uma relutância que, apesar do descontrole da doença, não vislumbrei aqui. São pessoas que veem no governo Bolsonaro, na figura presidencial, todos os perigos que eles representam, mas que hesitam. Hesitam por causa da epidemia. Hesitam devido a um senso de responsabilidade justificado, como preservação das vidas.
Contudo, calar-se neste momento, apequenar-se neste momento, esconder-se neste momento é dar respaldo às atrocidades que levam vidas impiedosamente e com descaso. "É o destino de todos".
‘Bolsonaro atua para destruir maiorias’, diz Lourdes Sola à Política Democrática
Em entrevista à revista da FAP, socióloga alerta para ‘aumento significativo de riscos à democracia’
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Professora aposentada e pesquisadora sênior do Departamento de Ciência Política e do Núcleo de Políticas Públicas da USP (Universidade de São Paulo), a socióloga Lourdes Sola diz que, com frequência, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) atua “não para congregar apoios, mas para destruir maiorias”. “Se uma maioria se insinua no Congresso, ele se dedica a sabotá-la. Por isso, o papel dos governadores recobra importância, tanto quanto a atuação do Supremo no fortalecimento do federalismo de fato democrático do país”, afirma ela, em entrevista exclusiva à nova edição da revista Política Democrática Online.
Acesse aqui a 19ª edição da revista Política Democrática Online!
A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília, e todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Apesar de se considerar otimista, Lourdes afirma que “tem havido aumento significativo de riscos à democracia”. “Observei, desde o início deste mandato presidencial, que Bolsonaro nunca esteve sozinho”, pondera.
Segundo a pesquisadora, logo que o presidente começou a contestar a forma de os governadores reagirem à Covid, evidenciou-se que não era só a família que o apoiava. “Havia outros atores – nem sempre forças ocultas, mas semiocultas. Eram palacianas e, também, da estrutura de nosso Estado, que ainda peca por falta de democratização, permitindo que alguns atores exerçam influência, mesmo sem ocupar cargo institucional algum”, alerta a socióloga, na entrevista à revista Política Democrática Online.
Na avaliação da socióloga, a ocorrência da pandemia aguçou a consciência de que o Brasil é um país em desenvolvimento, o que, conforme acrescenta, vai condicionar a maneira de o país reagir à Covid 19. “Os economistas consideram a quantidade de jovens na população como um bônus demográfico, mesmos nas regiões menos favorecidas, onde seremos mais afetados”, diz Lourdes.
A socióloga é autora de “Estado, mercado, democracia política e economia comparadas” (Paz e Terra, 1993), “Reforma econômica, democratização e ordem legal no Brasil” (Cepal, 1995) e “Ideias econômicas, decisões políticas: desenvolvimento, estabilidade e populismo” (Edusp, 1998).
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Maria Hermínia Tavares: O pior dos exemplos
Bolsonaro sabota esforços para conter a destruição trazida pelo coronavírus
Três meses depois da chegada da Covid-19, o país continua tateando em relação a tudo o que é importante para enfrentá-la. Muitos estados e municípios ensaiam a flexibilização do distanciamento social sem a segurança mínima que só a capacidade de rastrear os atingidos é capaz de dar. A única preocupação do presidente na matéria parece ser a de empurrar para governadores e prefeitos a imensa conta da catástrofe sanitária e econômica em curso.
Ou é ilusão, ou má-fé da parte dele. A sua responsabilidade é inequívoca e se desdobra em muitos planos: na falta de coordenação da política sanitária que caberia ao ministério cujo titular mudou três vezes em um mês; na hostilidade gratuita à Organização Mundial da Saúde, apartando o país das redes internacionais de cooperação nessa área literalmente vital; na demora em adotar medidas de proteção aos mais pobres e vulneráveis, aos empregados com carteira, aos pequenos empreendedores e às milhares de empresas necessitadas de apoio —iniciativas cujo porte mesquinho foi em parte corrigido pelo Congresso; na ausência, enfim, de qualquer noção do que fazer nos próximos meses, para não falar no próximo ano.
Como se fosse pouco, Bolsonaro comportou-se por palavras e atos como o principal agente desorganizador dos esforços para conter o impacto destrutivo do novo coronavirus. Desinformou os brasileiros e incentivou o desrespeito ao isolamento social, que até o momento é o único redutor comprovado da velocidade da contaminação.
Recente pesquisa nacional de opinião realizada pelo DataPoder360 mostra a população dividida ao meio entre os que se sentem e os que não se sentem seguros para sair de casa e retomar as suas atividades. Sintomaticamente, entre os 28% que apoiam Bolsonaro chega a 73% a proporção daqueles que acham seguro abandonar o distanciamento social. No grupo dos que o desaprovam, são apenas 37%.
À parte isso, estudo ainda inédito dos pesquisadores Ivan F. Fernandes, Gustavo A. Fernandes e Guilherme A. Fernandes —“Ideologia, isolamento e morte: uma análise dos efeitos do bolsonarismo na pandemia de Covid19”— mostra que a votação de presidente no primeiro turno, por município, tem correlação negativa com a taxa de isolamento, e correlação positiva com mortes por Covid-19. Ou seja, ali onde ele teve mais votos, o isolamento é menor e, em decorrência, maior o número de óbitos.
Embora os resultados não permitam dizer que as atitudes de Bolsonaro explicam o descaso de seus eleitores com a própria saúde e a dos outros, na melhor das hipóteses as suas bravatas o estimulam.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Ricardo Noblat: Balanço da trágica parceria entre Bolsonaro e o coronavírus
O pior ainda está por vir
O coronavírus matou até ontem no Brasil 32.548 pessoas – 1.349 delas nas últimas 24 horas, uma a cada 64 segundos, um novo recorde. Dos 5.570 municípios brasileiros, 4.496 têm menos de 32.550 habitantes, segundo o IBGE.
É como se em pouco mais de dois meses tivesse sido dizimada a população de Exu em Pernambuco, ou de Três Marias em Minas Gerais, ou de Itatiaia no Rio, ou de Ilha Solteira em São Paulo, ou de São Pedro das Missões, no Rio Grande do Sul.
O número de infectados pelo vírus está próximo dos 600 mil. É como se todos os habitantes de Joinville, em Santa Catarina, tivessem ficado doentes. Ou de Londrina, no Paraná. Ou de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Ou de Macapá, capital do Amapá.
O Brasil é segundo país do mundo em número de casos da doença. Só perde para os Estados Unidos. E o quarto em número de mortos, atrás dos Estados Unidos, Reino Unido e Itália. Enquanto nesses países diminui o número de casos novos, aqui aumenta.
O que o presidente Jair Bolsonaro chamou de gripezinha, destinada a matar 800 pessoas, deverá custar a vida de cerca de 50 mil até o próximo dia 20, segundo estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E o pior não terá passado
“A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todos”, disse o presidente. Uma pesquisa realizada pela Associação Paulista de Medicina com 2.808 profissionais, apontou que 84,5% dos médicos acreditam que o pior ainda está por vir.
Quando vier, o país estará mais exposto do que jamais esteve desde quando foi dada a largada para o confinamento social. Sob a pressão de Bolsonaro, de empresários e de prefeitos, governadores por toda parte relaxaram as medidas de isolamento.
O resultado será colhido em breve. E se for o previsto pelos cientistas, ou as medidas serão restabelecidas ou haverá o caos desejado pelo presidente. Ele sempre afirmou que o vírus só será vencido depois de contaminar 70% da população. Estupidez pura!
São muitos os candidatos a dono de uma das alças dos caixões dos mortos pela pandemia. Mas uma delas, por merecimento, com toda certeza é de Bolsonaro. O Brasil é o único país do mundo que trocou duas vezes de ministro da Saúde em menos de 60 dias.
Criou-se, ontem, a figura do ministro interino oficial da Saúde para elevar o status do general Eduardo Pazzuelo que sucedeu a Nelson Teiche, que por sua vez sucedera a Luiz Henrique Mandetta, demitido por Bolsonaro porque estava muito bem no cargo.
A levar-se em conta sua nova condição de ministro interino oficial da Saúde, o general seria o quarto em dois meses. Porque sucede também a ele mesmo que até então era apenas ministro interino. Mais uma contribuição de Bolsonaro à administração pública.
Eduardo Rocha: Qual austeridade fiscal ou quem pagará a conta (2)?
Na ausência da utópica “mão invisível do mercado” para combater os efeitos maléficos da devastadora recessão econômica causada pela Covid-19, Europa, Estados Unidos e Brasil escantearam seus dogmas fiscalistas restritivos e partiram direta, aberta e desavergonhadamente para a abertura do bolso do Estado (até emissão de dinheiro fizeram) para salvarem empresas e desafortunados da crise.
Agora, ganha força a pregação da austeridade fiscal como um dos instrumentos de recuperação financeira do Estado brasileiro (União, estados e municípios), mas o modo como será aplicada determinará a salvação de uns ao paraíso dos privilégios fiscais e a condenação de outros ao inferno dos castigos tributário-sociais.
A natureza da austeridade fiscal será determinada pela correlação de forças econômicas, sociais e políticas que, ora à luz do dia ora nas sombras clandestinas, lutam entre si para determinar quem pagará a conta dos gastos extraordinários para fazer frente aos efeitos econômicos e sociais da pandemia.
Os cavaleiros do apocalipse fiscal afirmam que a austeridade e as “reformas estruturantes” são a precondição necessária para operar os milagres da retomada do crescimento econômico; da redução do déficit primário, da dívida pública/encargos; da recapacitação financeira do Estado; da ampliação do crédito, do consumo, dos investimentos, do emprego etc.
Os ingredientes dessa sua austeridade são a criação de mecanismos impeditivos ao acesso aos benefícios sociais e a redução de valores e contingentes do programa Bolsa Família, do Benefício Programado Continuado (BPC), do abono salarial, do seguro-desemprego, dos aposentados e pensionistas; do corte salarial dos servidores; a perpetuação da defasagem da tabela do Imposto de Renda; a manutenção dos benefícios fiscais aos grandes grupos econômicos e dos privilégios a militares, magistrados e parlamentares.
Completa essa austeridade fiscal a privatização ampla, geral e irrestrita; a desregulamentação total da economia; a aniquilação dos direitos trabalhistas; a redução de impostos a empresas (e igrejas); a desoneração da folha de pagamento, entre outras.
A natureza política da austeridade defendida pelo ministro Paulo Guedes é a expressão concentrada dos interesses dos grandes grupos econômicos e financeiros, que desejam reformas que consolidem um Estado máximo para uma minoria e um Estado mínimo para a maioria de modo a viabilizar um Estado máximo para a acumulação de capital e um Estado mínimo para o social.
Tal austeridade amplia os muros das desigualdades e mantém invicta a cabeça de Medusa que petrifica o desenvolvimento, perpetua os flagelos dos hediondos déficits sociais históricos que envergonham e frustram a nação.
Outra austeridade fiscal é necessária e falaremos dela.
Eduardo Rocha é economista
Andrea Jubé: Os dois gigantes que movem a política
Autoridades veem risco de confrontos e até black blocs
Se estivesse vivo, o professor Emilio Mira y López identificaria na realidade nacional pelo menos dois dos “quatro gigantes da alma”, que ele radiografou no clássico da psicologia universal: o medo e a ira. O Brasil é hoje um país dominado pelo temor do coronavírus, da ruína econômica, da ruptura democrática, e tudo isso embalado pelo ódio político, que amplia a turbulência e gera insegurança.
Num momento em que o amor e o respeito à pátria são invocados para legitimar despautérios, como discursos autoritários e ataques às instituições democráticas, vem à tona a atualidade da obra de Mira y López escrita em 1947, depois que o autor, filho de um médico militar, vivenciou duas grandes guerras mundiais e lutou contra o franquismo na Espanha.
“O ódio político é extremamente devastador porque pode invocar para satisfazer-se, a cada momento, o sagrado prestigio da pátria. Assim, basta acusar o vizinho odiado de ser “traidor da pátria” para que sobre ele caiam os anátemas dos que são incapazes de dar a essa palavra um valor variável, em função do marco em que é empregada”.
Professor de psicologia e psiquiatria da Universidade de Barcelona, Mira y López, publicou um estudo cientifico pioneiro das três emoções primárias do homem: o medo, a ira e o amor. Ele as classifica como as três grandes reações neuropsicológicas, que somadas à força repressiva do meio social - o dever - formam os “quatro gigantes da alma”, título da obra, uma referência intelectual nos anos 50 e 60.
É nesse cenário em que o medo e a ira movem a política nacional que as convocações nas redes sociais para a realização de novos atos em defesa da democracia no próximo fim de semana, inclusive na Esplanada dos Ministérios, acenderam o alerta entre as forças de segurança da Presidência da República e do Distrito Federal.
Autoridades do alto escalão receiam confrontos entre apoiadores e opositores do governo. Numa análise ampliada, o temor é de que a tensão política, num cenário de crise sanitária e alto desemprego, desemboque em convulsão social, com saques e depredação de patrimônio.
Alvo de ameaças - ele e seus pares do Supremo Tribunal Federal - o ministro Gilmar Mendes alertou que é preciso “combater o discurso do ódio” para evitar que o pior se concretize. “Tememos que essa violência verbal se convole em violência física, isso não é bom para o país, independentemente de quem seja o alvo”, alertou em entrevista à GloboNews.
É nesse contexto que não foi ao acaso o conselho do presidente Jair Bolsonaro ontem aos seus apoiadores para que não repetissem os atos no fim de semana. “Estão marcando no domingo um movimento né, deixem [os opositores] sozinhos”.
O acirramento da radicalização política nos últimos anos, agravado num cenário de pandemia e crise econômica, transformou o Brasil em uma panela de pressão prestes a explodir. De um lado, o país ultrapassou a marca de meio milhão de infectados pelo coronavírus, com quase 30 mil vítimas, segundo dados oficiais. Em paralelo, a pobreza parece avançar na mesma velocidade da pandemia. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) diz que os desempregados somam 12,8 milhões de brasileiros - o mesmo que a população inteira da cidade de São Paulo.
Esse somatório de perdas - de vidas humanas, de emprego, de esperança -, tendo como pano de fundo a ameaça democrática, torna-se um campo fértil para a revolta popular.
Por meio do Centro Integrado de Operações (Ciop), que reúne 29 órgãos do Distrito Federal, a Secretaria de Segurança Pública vem monitorando as manifestações de apoiadores de Bolsonaro aos domingos, há mais de um mês, na Praça dos Três Poderes. Sem oposição, os atos têm sido pacíficos, embora questionáveis pela violação ao decreto que proíbe aglomerações.
Fontes da secretaria ressalvam que há um impasse legal, que autorizaria os protestos, seja de que lado forem, porque a Constituição Federal assegura o direito de manifestação. É essa prerrogativa constitucional que estará em debate caso a Justiça seja acionada para proibir os protestos do próximo fim de semana para evitar confrontos.
Vários cenários estão sendo analisados pelas forças de segurança federal e dos Estados para evitar atos de violência no próximo fim de semana. Um dos temores é o ressurgimento de grupos radicais como os “black blocs”, responsáveis por ações violentas nas manifestações de 2013.
Outro receio envolve a eventual prisão da ativista Sara Winter, apoiadora do presidente, que fez ameaças públicas ao ministro do STF Alexandre de Moraes e é investigada pela Polícia Federal. Há dúvidas se a sua detenção teria o efeito de advertência para conter os excessos dos demais ativistas, ou acirraria os ânimos dos bolsonaristas.
Outro temor é de que os protestos antirracistas que ocorrem há uma semana nos Estados Unidos - e ganharam ampla cobertura da imprensa brasileira -, contra o assassinato de George Floyd, estimulem os protestos nacionais.
No limite, há quem arrisque que restará ao governador Ibaneis Rocha (MDB) imitar o seu antecessor, Rodrigo Rollemberg (PSB), que ergueu um muro de dois quilômetros de extensão nos gramados da Esplanada para dividir os grupos adversários no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e evitar as vias de fatos entre os dois grupos.
Mira y López ficou conhecido como o “teórico da liberdade”: exilado após a luta contra o regime de Franco, ele viveu nos Estados Unidos, Argentina e Uruguai, até radicar-se no Brasil, onde faleceu em 1964, em plena ruptura democrática.
Ele não se conformava com a radicalização política, porque para ele esse ódio esbarrava na essência da atividade política, que deveria ser “modelo de tato, compreensão e respeito ao ser humano”. Sua conclusão foi de que o ódio político remonta à tendência do homem, “desde sua mais remota ancestralidade”, a ambicionar o poder, “não para servir, mas para dele se servir”.
Coronavírus: ‘Pandemia deve produzir maior queda da economia do capitalismo’
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, José Luis Oreiro analisa perspectiva econômica do Brasil e guerra no governo
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O governo do presidente Jair Bolsonaro criou mais uma disputa interna entre a equipe econômica do governo e a ala militar, encabeçada por Braga Neto, originada no fato de que a agenda de privatização, reformas estruturais e abertura comercial não tem apresentado os resultados prometidos. A avaliação é do pesquisador e professor associado do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília) José Luis Oreiro, em artigo que ele produziu para a 19ª edição da revista Política Democrática Online.
Acesse aqui a 19ª edição da revista Política Democrática Online!
A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, e todos os conteúdos podem ser acessados gratuitamente no site da entidade. Em sua análise, Oreiro observa que, entre os economistas das mais diversas tendências de pensamento, formou-se um consenso: “a pandemia em curso deverá produzir a maior queda do nível de atividade econômica na história do capitalismo, superando em intensidade a Grande Depressão de 1929”.
De acordo com o autor, uma vez contida a pandemia e suspensas as medidas de distanciamento social, a recuperação econômica será extremamente lenta e dependerá, tal como na década de 1930, de uma forte atuação do Estado na forma de vultosos investimentos em infraestrutura. “No caso dos países europeus, abre-se uma janela de oportunidade para realizar mudança estrutural importante, qual seja: a descarbonização da economia, com vistas à redução da emissão de CO2 na atmosfera de maneira a conter o fenômeno do aquecimento global, ameaça de longo-prazo a sobrevivência da própria humanidade”.
O volume de investimentos necessários para essa mudança estrutural é gigantesco, constituindo-se, portanto, no vetor de demanda necessário para a recuperação das economias europeias no pós-pandemia, de acordo com o artigo da revista Política Democrática Online. “O Brasil também terá que recorrer ao investimento público, para se recuperar dos efeitos da crise atual”, afirma o professor da UnB.
O ritmo anêmico de crescimento da economia brasileira anterior à pandemia, segundo o pesquisador, já era prova cabal de que, sem aumento significativo do investimento público em infraestrutura, não é possível obter aceleração consistente do crescimento. “A história brasileira mostra de forma muito clara que, no período de crescimento acelerado, entre as décadas de 1930 a 1980, o investimento público, direto ou por intermédio de empresas estatais, teve papel fundamental”, analisa.
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