pandemia

Celso Ming: Medo da segunda onda da pandemia

Aumentaram as evidências de um rebote global do novo coronavírus, justamente quando a atividade econômica começava a ser retomada

Os mercados globais desabaram nesta quinta-feira (veja o gráfico) porque aumentaram as evidências de que uma segunda onda do coronavírus já está atuando globalmente, justamente quando a atividade econômica começava a ser retomada – e não só nos países avançados, mas também no País.

Pelo feriado de Corpus Christi, no Brasil, o impacto sobre os mercados internos só ficará claro nesta sexta-feira. O número de mortos por aqui já ultrapassa os 40 mil e o de infectados, mais de 790 mil.

As grandes aglomerações que aconteceram na Europa e nos Estados Unidos, nos protestos contra a escalada no racismo, realizadas sem a observância mínima de cuidados, são a hipótese com maior probabilidade de se confirmar como o fator disparador mais importante desse novo agravamento. Mas não é a única. A abertura gradual e possivelmente prematura do comércio, das atividades escolares e da convivência social em alguns países também levanta suspeição.

Antes das manifestações, os epidemiologistas dos Estados Unidos e da Europa temiam possível segunda onda apenas lá por setembro ou outubro. Mas à medida que os protestos tomaram corpo, eles passaram a disparar novos sinais amarelos. Nesta quinta-feira, novas projeções da Universidade de Washington apontam o novo pico de uma nova onda na segunda semana de setembro e um total de 170 mil mortes nos Estados Unidos até 1.º de outubro.

No Brasil, onde também houve manifestações contra e a favor do governo – e menos contra o racismo –, também poderá haver novo alastramento dos casos em consequência do afrouxamento do distanciamento social. Até o fim deste mês, poderão ser contabilizadas mais de 60 mil mortes. As autoridades operaram no escuro quando exigiram a quarentena e continuam a operar no escuro com o relativo afrouxamento. O que poderia mudar essa situação seria a aplicação maciça de testes, de maneira a apenas isolar os infectados. Mas, apesar das promessas, não há esses testes.

No Hemisfério Norte, aumentaram as pressões pela flexibilização do distanciamento social e pela reabertura gradual dos negócios como condição necessária para aproveitar o início da temporada de verão.

Se esse rebote do vírus for confirmado, já se podem prever mais prejuízos para o comércio, para o setor produtivo, para o consumo de petróleo e de energia, para o turismo e para as viagens internacionais, para as competições esportivas e, certamente, novo impacto sobre o PIB global. Nesta quinta-feira, os preços do petróleo tipo Brent para entrega em agosto mergulharam nada menos que 3,4%.

É a essa lógica que os mercados passaram a responder. Na semana passada, o presidente Trump havia manifestado euforia com a criação de 2,5 milhões de empregos em maio: “É mais do que uma recuperação em V”, disse ele. Infelizmente, essa é mais uma impressão ameaçada agora de desmanche. Os analistas voltaram a prever novo agravamento do desemprego no mercado americano.

O Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) já havia avisado na última quarta-feira que os juros se manteriam muito perto de zero por cento ao ano, de modo a atender às necessidades de liquidez da economia. A pandemia continua solapando a reeleição do presidente Trump para um segundo mandato nas eleições de novembro.

Ninguém tem noção sobre as proporções dessa agora mais provável segunda onda da pandemia. Em parte, vai depender da capacidade dos governos de conseguir a observância do distanciamento social. Mas podem surgir novos fatores-surpresa, uma vez que muitos desdobramentos da atuação do coronavírus são desconhecidos e uma vacina eficaz ainda parece muito distante.

No Brasil, a flexibilização da quarentena sofre um duro golpe. Governadores e prefeitos podem se sentir obrigados a um recuo estratégico e voltar a urgir o recolhimento social. A conferir.


Fernando Gabeira: O capitão combate a verdade

Ao lado do armamento da população, esse é um passo decisivo rumo a um governo autoritário

“E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” Bolsonaro venceu as eleições citando com frequência esse versículo de João. No entanto, não se conhece na História moderna do Brasil um governo que tenha combatido a verdade em todos os níveis.

Os números do desemprego, compilados pelo IBGE de acordo com métodos internacionalmente reconhecidos, foram negados por Bolsonaro. O indice de desmatamento na Amazônia obtido com ajuda de satélites foi contestado por Bolsonaro e o cientista Ricardo Galvão, demitido. Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz sobre consumo de drogas no Brasil foram engavetadas porque não atendiam às expectativas do governo.

A briga contra os dados não se limitou ao choque contra o trabalho científico. Ele se estendeu de forma perigosa contra a própria possibilidade de acesso às informações oficiais.

Com a anuência de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão tentou fazer passar uma diretiva que permitia a funcionários de segundo escalão determinar o que era ou não passível de ser classifico como material secreto. A diretiva de Mourão caiu no Congresso.

Mal começou a pandemia, Bolsonaro, usando-a como pretexto, queria suspender parcialmente a Lei de Acesso à Informação. De novo foi derrotado, dessa vez no Supremo Tribunal Federal

A apoteose dessa medida obscurantista foi na semana que passou, com a decisão de censurar as informações sobre a pandemia de covid-19.

Inicialmente, um homem chamado Carlos Wizard, um bilionário que supõe entender de tudo, disse, em nome do governo, que os números de mortos estavam sendo inflacionados nos Estados e municípios porque os gestores queriam mais dinheiro.

Wizard foi para o espaço no momento em que se articulava na rede um boicote a suas atividades empresariais, incluídas ss de greenwashing, aquelas em que você ganha dinheiro fingindo que protege o meio ambiente. Mas foi Bolsonaro que, radicalizando sua política de negação da pandemia, ordenou que as notícias diárias sobre mortes e contaminações não poderiam ser divulgadas antes dos jornais noturnos de TV. E, mais ainda, ordenou que o número de mortos não poderia ultrapassar mil, sem explicar como combinaria com o vírus. Felizmente, as emissoras se deram conta e passaram a divulgar as notícias em plantões especiais, com audiência até maior que no início da noite.

O site do Ministério da Saúde saiu do ar. Voltou sem o número total de mortos. O governo queria baixar esse número e divulgar apenas a quantidade óbitos nas últimas 24 horas, sepultando o resultado do exame de outras mortes que não ficaram prontos no mesmo dia. Com esse expediente, o número de mortos iria baixar, pois nem todos os exames ficam prontos no mesmo dia.

Felizmente, todos perceberam. Uma onda de protesto percorreu o País, unindo Estados, Congresso, TCU, órgãos de informação, cientistas e opinião pública. A repercussão internacional também foi imediata. Jornais europeus criticaram, a própria OMS se pronunciou pela transparência.

O que aconteceu de forma escandalosa nesse momento é apenas resultado da luta de Bolsonaro contra a verdade, palavra que usou na campanha para enganar os eleitores, revestindo-a com um invólucro religioso.

A luta permanente contra a transparência é uma luta contra a democracia. Os militares, no período ditatorial, tentaram esconder um surto de meningite. Mas os tempos são outros.

A mais recente investida de Bolsonaro contra a realidade se deu na arena em que ele está apanhando muito dela: a do avanço da pandemia do coronavírus. Ele começou tachando-a de uma gripezinha. Não era. Questionou o isolamento social, o número de mortos, a existência de outras doenças entre os que foram levados pela covid-19. Um diretor da Polícia Rodoviária Federal caiu porque lamentou em nota a morte por covid-19 de um de seus comandados.

Diante da morte real, bolsonaristas começaram a contestar o conteúdo dos caixões. Houve vídeos afirmando que os caixões estavam cheios de tijolos. A deputada Zambelli chegou a insinuar que um caixão no Ceará estava vazio – é a mesma deputada intimada a depor sobre fake news e a mesma que aparece na internet, durante a campanha, dizendo que as lojas Havan pertenciam à filha de Dilma. Olha que audácia, refletia ela, usam o nome de Havan em homenagem a Cuba e erguem uma Estátua da Liberdade.

Mais tarde, ficou claro para o Brasil quem é dono da Havan. Aliás é impossivel ignorá-lo, com sua cabeça reluzente, vestido de verde e amarelo É desses seres que você não precisa perguntar quem é seu líder, pois sabe que ele o levará direto ao Palácio do Planalto.

Ao lado do armamento da população, essa luta contra a verdade é um passo decisivo rumo a um governo autoritário. Uma espontânea frente pela transparência se formou esta semana. Exatamente na semana em que as pessoas, apesar da pandemia, foram às ruas com a imensa faixa “todos pela democracia”.

Parece vago, dizem alguns políticos. Calma, digo eu. Daqui a pouco tudo fica mais claro. Na luta comum, aparecem as respostas.

*Jornalista


William Waack: Miséria, como sempre

É a pobreza de milhões de pessoas, agravada pela crise do vírus, que condiciona as agendas

O coronavírus colocou de novo no centro do nosso vocabulário uma palavra que a gente ouve há gerações e não consegue se livrar dela: miséria. O palavreado inócuo de sucessivos governos petistas alardeando exitosa “inclusão social” e “combate à pobreza” já havia sido desmentido pelos números antes mesmo da atual tripla crise política, econômica e de saúde pública – e Lula foi beneficiado por um ciclo de bonança internacional que não se repetirá por gerações.

No meio da pior crise de nossa memória o atual governo está demorando (assim como demorou para se adaptar ao jogo político) para entender que miséria é o fator que condicionará todos os cálculos políticos e estratégicos. Miséria é o que já jogou para o alto o caminho de ação no qual Paulo Guedes insistia ainda naquela semana de março na qual as medidas de emergência foram decretadas. A saber: o de que reformas estruturantes (Previdência, tributária, administrativa, de Estado, etc) produziriam dentro de um horizonte político conveniente, o de 2022, o “destravamento” da economia e consequente combate sustentável da miséria.

Ocorre que ela aumentou antes, e inverteu prioridades. A miséria está sendo agravada por uma crise que evidenciou de forma ainda mais brutal o grau de informalidade e vulnerabilidade de vastas camadas da nossa população, especialmente nas periferias das grandes capitais. Nesse contexto de pobreza gritante e crescente pode-se chamar o conjunto de parlamentares do que se quiser, menos de bobos, e a resposta que articularam até aqui (a de escancarar os cofres públicos) é o reconhecimento político da gravidade de uma situação social que ainda deve piorar antes de talvez melhorar, e não se sabe quando.

Em outras palavras, o dilema imposto ao governo pela miséria do País é como equilibrar o altíssimo custo político de parecer produzir ajuda insuficiente para milhões de necessitados versus o altíssimo custo fiscal de manter programas de renda básica. Diante da claque com que “dialoga” entrando ou saindo todo dia do Alvorada, Jair Bolsonaro já resumiu o problema para o qual ninguém tem solução. “Não tenho dinheiro para seguir nisso muito tempo”, afirmou.

Aproveitou também para repetir que a “culpa” é de governadores, do STF, de “terroristas” manifestantes, da imprensa ou, mais recentemente, da OMS, que estaria, por motivos políticos, interessada em “quebrar o Brasil” (desalojá-lo do poder, entende-se). Bolsonaro evidentemente aprecia os benefícios político-eleitorais trazidos por programas de distribuição de dinheiro, conforme demonstram as pesquisas. Porém, reconhece que não há mais espaço fiscal para criação de despesas obrigatórias (como prestação de benefícios desse tipo) – a não ser que se arrisque levar as contas públicas à insolvência.

Na busca desenfreada por uma resposta ao “que fazer” surgem as propostas lacradoras de internet, como a de reduzir salários nos três Poderes. É um poderoso símbolo, mas no mundo dos números ainda insuficiente para combater a miséria. Ou a de colocar na frente de qualquer outra reforma a do sistema tributário, que ajudasse, pela simplificação, a diminuir a informalidade – portanto, ampliando o alcance de benefícios sociais. Como é fartamente sabido, o grande obstáculo a qualquer reforma tributária é a ausência de lideranças políticas capazes de refazer o pacto federativo, fora descascar o abacaxi de equilibrar o jogo de interesses de múltiplos grupos econômicos e corporativistas.

Todos que lidam com história de campanhas políticas lembram da célebre frase de marqueteiros americanos quando tratavam de convencer um candidato à presidência (Bill Clinton) a manter o foco. “It’s the economy, stupid.” No Brasil a miséria impõe outra prioridade. “It’s the social, stupid.” É simplesmente não deixar pessoas morrerem de fome. E a gente achava que já tinha deixado isso para trás.


Míriam Leitão: Bolsonaro divulga falsa interpretação de decisão do STF sobre a pandemia

É falsa a versão de que o STF afastou o presidente do combate à pandemia. Jair Bolsonaro tem repetido essa interpretação distorcida sobre a decisão do Supremo, que definiu o papel de cada ente federativo. O presidente tem responsabilidade no combate à crise sanitária, mas não está cumprindo.  

O Supremo, consultado por estados e municípios, esclareceu que a Constituição diz com todas as letras que a Saúde é um direito de todos e uma responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios. Cada um deles tem um papel a cumprir. A corte definiu que as decisões cotidianas, como o funcionamento do comércio, se dão em nível local. Mas isso não exime a União e o presidente de suas obrigações, obviamente.   

Na sua conta no Twitter, o presidente escreveu esta semana: “Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos.” Logo depois, saiu uma mensagem no Twitter, espalhada por robôs: “só para lembrar: STF afastou Bolsonaro do controle da Covid, dando poder a governadores e prefeitos.” Foi tão imediata a transmissão dessa mensagem que confirmou como funciona a comunicação do presidente nas redes, impulsionada pelo gabinete do ódio.   

O conteúdo também é falso. O STF não afastou o presidente do combate à pandemia. O Supremo estabeleceu os limites da responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios, porque assim estabelece a Constituição. 

Toda a preocupação do presidente, desde o início da crise sanitária, é saber como a atuação dele vai ser interpretada durante a campanha de 2022. Jair Bolsonaro fala isso abertamente. Na segunda-feira ele tratou como o maior problema do país nesse momento as manifestações contra o seu governo.   

A situação é muito grave para ser tratada assim. É evidente que o maior problema atual é a pandemia, que já matou mais de 38 mil pessoas até aqui.   

O esforço inicial do presidente foi para jogar o custo da crise econômica em cima de governadores e prefeitos. Agora o foco é distorcer a decisão do STF. A realidade é que a situação seria muito pior sem as medidas de restrição tomadas por governadores e prefeitos.    

O STF não afastou o presidente das responsabilidades na Saúde, mas ele continua se omitindo o tempo todo. Bolsonaro é o presidente de uma nação que enfrenta uma crise grave, com esse grau de letalidade. Ele foge das suas obrigações de presidente. Passa o tempo todo administrando a versão dos fatos, para que possa usá-la eleitoralmente em 2022. É só com isso que se preocupa Jair Bolsonaro. Isso é impressionante. A situação é grave demais para ser tratada com essa leviandade.   

Na terça-feira, o presidente chegou a dizer algo extremamente estapafúrdio. Bolsonaro falou que ninguém no Brasil morreu por falta de respirador ou de leito de UTI, e que no futuro se descobrirá que alguns morreram por não receberem hidroxicloroquina. Ele continua obcecado, incapaz de ver a realidade. É evidente que pessoas morreram por falta de UTI e de respiradores, como mostram os veículos de comunicação. Todos vimos. De novo, o presidente constrói uma versão falsa dos fatos.  


El País: Moraes manda Governo Bolsonaro retomar divulgação total de dados da covid-19

Ministro do Supremo concedeu liminar a pedido de partidos de oposição. Antes, pasta havia fornecido boletim incompleto. Mortes vão a 37.312, segundo consórcio de veículos de imprensa

O Governo Bolsonaro sofreu mais um revés nas mãos do Supremo Tribunal Federal. No fim da noite de segunda-feira, o ministro da Corte, Alexandre de Moraes, concedeu uma liminar aos partidos oposicionistas Rede e PCdoB que obriga o Ministério da Saúde a restabelecer o formato de divulgação integral dos dados da pandemia do novo coronavírus. A pasta, dominada por militares e sem ministro titular desde a saída de Nelson Teich, decidiu, na sexta, aplicar uma mudança drástica no boletim diário sobre a pandemia, incluindo a ocultação de dados totais sobre a covid-19 no Brasil. A alteração foi alvo de uma bateria de críticas, do Congresso Nacional à Organização Mundial da Saúde (OMS), e havia pressionado o ministério a recuar em alguns pontos e anunciar uma nova plataforma, ainda não tornada pública, mesmo antes de a decisão de Moraes colocar Supremo e Planalto mais uma vez em rota de colisão.

Nesta segunda-feira, os representantes da Saúde fizeram uma apresentação à imprensa que acabaram por aprofundar a confusão em torno do tema. A pasta exibiu dados incompletos: no balanço diário consolidado da doença, ficaram de fora os números de ao menos quatro Estados. Também foi deixado de fora a informação de quantos óbitos suspeitos de terem sido causados no país pelo novo vírus seguem em investigação. Depois de atrasar para quase 22h o balanço durante toda a semana passada, agora a pasta diz que fará a divulgação diariamente por volta das 18h.

No boletim desta segunda-feira, os números oficiais foram: 15.654 casos novos da doença e 679 óbitos em 24 horas, totalizando 37.134 óbitos por covid-19 e 707.412 infecções no país. Em vez do gráfico com toda a informação resumida, como vinha fazendo sempre junto à atualização de um site, o ministério apresentou os índices em dois locais distintos. Questionado, a própria pasta admitiu que os números oficiais para o dia 8 de junho poderiam ser maiores, já que o balanço não incluía os dados atualizados dos Estados de Alagoas, Santa Catarina, Goiás e Distrito Federal. Segundo a pasta, as Secretarias de Saúde não haviam enviado as informações até o fechamento do boletim desta segunda-feira. “No caso dos Estados que não enviarem os dados a tempo, manteremos os números do dia anterior”, explicou o coronel Élcio Franco, secretário-executivo da pasta, que segue sem ministro titular em plena crise.

As seguidas controvérsias e atrasos na divulgação dos dados levaram à formação de um consórcio de veículos de imprensa —G1GloboExtra, EstadãoFolha de S. Paulo e UOL— para monitorar de maneira independente os dados junto às Secretarias de Saúde dos Estados. Neste levantamento, que estreou nesta segunda, 37.312 mortes por covid-19 e 710.887 casos confirmados. A compilação mostra que foram notificados 849 óbitos nos 27 Estados e 19.631 casos nas últimas 24 horas.

Total de mortos

Na última sexta-feira, o ministério havia excluído o número total de casos confirmados e de óbitos por covid-19 registrados no país, o que agora foi revertido pela liminar de Moraes. Depois que a imprensa e outras instituição acusaram o Governo de falta de transparência, a pasta liderada interinamente por Eduardo Pazuello já havia voltado atrás e afirmado que tais dados consolidados estão disponíveis no painel covid-19 do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass), alimentado pelas secretarias estaduais e no Datasus, a hermética plataforma de dados do SUS. Em nenhum dos dois está disponível, no entanto, o número de óbitos ainda em investigação, um dado que antes era divulgado diariamente e sinalizava o gargalo na análise de testes pelo país. Questionado pelo EL PAÍS sobre esse dado, o ministério não respondeu.

A pasta informou que vai adotar —ainda sem especificar quando— um novo modelo de divulgação, com base na data de ocorrência dos casos (quando o paciente informa os primeiros sintomas da doença) e dos óbitos, e não mais pela data de notificação deles no sistema, como vinha acontecendo desde o início da pandemia e como fazem praticamente todos os países do mundo. Como o Brasil ainda não conseguiu implementar estratégias de testagem em massa, o temor é que novo modelo apenas transforme o atraso nos resultados em uma forma de diluir a gravidade da pandemia no país.

“Temos de garantir transparência ativa, em detalhes, dos dados do Brasil. Isso nunca aconteceu desde 1975”, criticou Wanderson de Oliveira, o ex-secretário nacional de Vigilância em Saúde, em conversa com o biólogo Átila Iamarino. Oliveira contou que o sistema de vigilância epidemiológica brasileiro foi criado justamente um ano após a ditadura tentar esconder um surto de meningite em 1974. “O que mata o fungo é a luz do sol”, disse.

O cientista Vítor Sudbrack, físico que faz parte da equipe do Observatório Covid-19 BR, que analisa os dados da pandemia no Brasil, explica que a nova metodologia aplicada pelo ministério pode, sim, permitir ter um panorama mais real de como a doença de comporta no país, desde que seja feita de forma correta e sem ocultação de dados. “Na maioria dos casos, os primeiros sintomas acontecem 30 dias antes da notificação. Por isso, é bom que o Governo se atenha às datas de ocorrência e de óbito, porque aí temos um retrato do real impacto da doença, sem o atraso da notificação, que é arbitrária”, diz.

Pela análise feita no observatório, em alguns Estados, 61% dos óbitos levam mais de 10 dias para entrar no sistema do Ministério da Saúde, de acordo com Sudbrack. Ele explica ainda que o modelo prevê a correção sobre os dias anteriores, assim, uma morte ocorrida, por exemplo, no dia 5 de junho, mas cuja investigação só se conclua depois da divulgação do boletim epidemiológico de 8 junho, ainda deve entrar na soma total de vítimas fatais no país. “Resta ver se é isso que o Governo vai fazer de fato”, diz Sudbrack, cético quanto aos “truques” que o Executivo de Jair Bolsonaro tem usado para divulgar os números da pandemia.

Sudbrack conta que, no sistema Sivep-Gripe, do SUS, uma das base de dados usada pelo Observatório Covid-19 BR, também há discrepância entre os números nacionais e os das secretarias de Saúde estaduais. “Vimos que a base nacional tem menos casos que as estaduais. Em relação aos números do Estado de São Paulo, por exemplo, há 50% de casos a menos na base nacional. Já perguntamos ao Ministério da Saúde a que se deve a essa mudança, se foi aplicado algum filtro específico nos números, mas não tivemos resposta. Assim, tudo o que podemos fazer é especular", diz. Questionado sobre o tema, o Ministério da Saúde afirma que os erros nos boletins se devem à “duplicação” de dados e que “vem aprimorando os meios para a divulgação da situação nacional de enfrentamento à pandemia".

“O Brasil precisa entender onde o vírus está, como controlar os riscos. A OMS espera que a comunicação seja consistente e transparente e entende que o Governo brasileiro continuará relatando diariamente dados sobre a incidência e mortes de forma separada”, cobrou o chefe do programa de emergências da organização, Mike Ryan, nesta segunda-feira.

Enquanto isso, a pressão interna sobre a pasta também era crescente. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) anunciou, após uma reunião com líderes políticos, que a comissão mista que acompanha as ações de combate ao novo coronavírus vai trabalhar a partir de agora com os números fornecidos pelas secretarias estaduais de saúde e não pelo ministério. “É papel do Parlamento buscar a transparência em um momento tão difícil para todos”, disse ele. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, havia informado, via Twitter, que cobraria o ministro interino Pazuello sobre a divulgação de dados em reunião virtual nesta terça-feira. Antes da decisão de Moraes, Antonio Dias Toffoli, presidente da STF, já havia se unido ao coro das críticas: “Vimos hoje a realização de uma parceria colaborativa entre diversos veículos de comunicação para dar transparência aos dados da pandemia no país. A transparência é mandamento constitucional. São bem-vindas todas as medidas que visem reforçá-la”, disse ele, num evento no qual criticou as atitudes “dúbias” de Jair Bolsonaro em relação à democracia.


Ana Carla Abrão: 'Ensaio sobre a cegueira'

A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa

O isolamento imposto pela pandemia da covid-19 tem motivado várias reflexões. Numa dimensão individual, a necessidade de distanciamento físico nos obrigou a reorganizar os métodos de trabalho, trouxe as famílias de volta ao convívio e nos provocou no sentido de rever prioridades. Nesse processo, muitos resgataram uma leitura (ou quem sabe várias) relacionada a alguma grande peste que assolou o mundo – na realidade ou na ficção. Relemos Gabriel Garcia Marques, Albert Camus, José Saramago e tantos outros.

No cinema, revimos O Sétimo Selo ou, para os que são mais novos, Contágio ou algum outro filme que nos remeta a essa situação inesperada e surreal que vivenciamos hoje. Mas nem mesmo as obras mais perturbadoras conseguem refletir a nossa atual situação, que teima diariamente em ir além de várias dessas trágicas descrições ficcionais.

Nossas mazelas são maiores e mais profundas e se expõem agora como nunca. A primeira delas se refere à nossa inaceitável condição social, onde a desigualdade de renda se escancara na assimetria dos impactos econômico, social e de saúde a depender da classe de renda. Isso gerou, felizmente, uma mobilização filantrópica sem precedentes da sociedade civil e questionamentos sobre a eficácia da nossa rede de proteção social. Esperemos que também se reflita em foco naquele que é o nosso principal problema estrutural e ganhe prioridade na elaboração de políticas públicas – e não só as de complementação de renda.

Pelo lado dos orçamentos públicos, quedas inéditas de arrecadação e mudanças nas prioridades – com os gastos de saúde assumindo protagonismo – impõem um desafio adicional onde o desequilíbrio já era grande. Receitas e despesas terão de ser revistas à luz de uma nova realidade econômica, mas também com base nessas novas prioridades e no aprofundamento da crise. Não deixa de ser uma oportunidade para corrigir problemas estruturais. Mas só para os gestores que se dispuserem a abraçá-la.

Mas é no atendimento de saúde que ainda estará, por algum tempo, o principal foco. Afinal, a epidemia no Brasil já deixa um rastro trágico de cerca de 700 mil casos de contaminação e mais de 36 mil óbitos e ainda continua a se expandir. Embora tenha se espalhado de forma heterogênea pelo território brasileiro, é sabido que o avanço ainda está acelerado em algumas regiões e a atual subnotificação deve multiplicar esses números por muito. Ou seja, a realidade é muito pior. Por isso, e por alguns outros motivos, o mundo nos observa com um misto de pena e temor. Deveriam reconhecer o controle conquistado e as vidas poupadas até aqui por Estados como São Paulo e distinguir a falta de coordenação do governo federal, do esforço e planejamento de vários governadores e prefeitos.

Mas o Brasil é um só aos olhos do mundo. E quem fala pelo País é o presidente da República, que ainda hoje não reconhece a gravidade da pandemia, se recusa a seguir as orientações de higiene mundialmente consagradas, insiste na cura milagrosa de um medicamento sem comprovação científica de eficácia e manda, diariamente, sinais contrários às recomendações de distanciamento social. Ou seja, ao contrário de outros líderes que em algum momento reviram seu ceticismo, movidos que foram pelas evidências, o presidente Jair Bolsonaro continua negando os fatos. E agora ameaça mudá-los.

A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa para quem não quer reconhecê-los para evitar o constrangimento do erro. Aqui no Brasil estamos a viver essa triste repetição. Desde a semana passada, por uma determinação do presidente da República, os dados referentes à covid-19 tiveram sua divulgação atrasada para evitar que fossem notícia. Agora, sob o pretexto de que há fraudes ou manipulação dos dados, as informações estão sendo revistas. Tivesse o governo federal exercido o seu papel de organizar o processo de coleta, dar transparência às informações, garantir uma política ampla de testagem e coordenado ações nacionais de combate à pandemia, teríamos mais clareza em relação aos dados e menor incerteza sobre o número correto de contaminados e mortos. Mas, bem sabem os que lidam com as ações de resposta, se há problemas com os dados eles estão no campo da subnotificação – e não o contrário.

De toda a literatura que ressurge agora nos tempos de isolamento, a que mais nos reflete talvez seja Ensaio sobre a Cegueira e seu mar de pessoas vulneráveis, contaminadas por uma cegueira branca. Numa triste alusão à epidemia, à nossa condição social e à cegueira a que querem nos condenar, peço licença aqui para reproduzir Saramago e finalizar afirmando que “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem”.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.


Oliver Stuenkel: Brasil pagará preço incalculável por ter um presidente incapaz na pandemia

O coronavírus provavelmente moldará nossa era mais do que qualquer outro evento, elevando governantes mundo afora à posição de líderes cujas decisões terão impacto por décadas

A pandemia como a que estamos vivendo é tão rara e grave que pode ser tornar o evento histórico mais marcante de nossas vidas. Marcará o início de uma nova era. Em função disso, as decisões dos líderes no momento e nos próximos anos, em um mundo em fluxo, terão consequências sistêmicas em longo prazo para seus países e a ordem global.

Como afirmou recentemente Janan Ganesh, colunista do jornal britânico Financial Times, é provável que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha, junto com o presidente chinês Xi Jinping, a oportunidade de definir os fundamentos da era pós-pandemia. Cita como exemplo histórico o presidente americano Harry Truman, que chegou ao poder depois da morte de Franklin D. Roosevelt no fim da Segunda Guerra Mundial. Em circunstâncias normais, Truman dificilmente teria sido um líder relevante. O momento histórico em que se tornou presidente, porém, era atípico. Truman implementou o Plano Marshall para reconstruir a economia da Europa Ocidental e fundou a OTAN, tornando-se o líder americano de maior impacto da segunda metade do século 20. Por décadas, seus sucessores operaram dentro do sistema geopolítico que ele havia desenhado. Em um mundo em fluxo, líderes ao redor do mundo se tornaram altamente relevantes para suas nações naquele momento, desde Konrad Adenauer na Alemanha, Mao Tsé Tung na China até o premiê indiano Jawaharlal Nehru e o líder israelense David Ben-Gurion. Como observa Ganesh, “as circunstâncias contavam mais do que o indivíduo.”

Tal como em 1945, há cada vez mais evidência de que a atual pandemia será um momento de transformação, elevando governantes mundo afora, mais uma vez, à posição de líderes cujas decisões terão impacto em seus países por décadas. A resposta confusa dos EUA ao novo coronavírus sugere que a época marcada pela liderança global de Washington chegou ao fim, iniciando um processo complexo de transição para um sistema liderado por duas potências. A pandemia também deve simbolizar o fim da hiperglobalização, provavelmente com um maior papel do Estado na economia e taxas de crescimento mais baixas em países em desenvolvimento. James Crabtree, professor da Universidade Nacional da Singapura, escreveu recentemente que todo o conceito de Mercados Emergentes deve deixar de existir, com profundas consequências para a distribuição global de poder e o futuro do capitalismo. A crise sanitária global causará o primeiro retrocesso no desenvolvimento humano global em três décadas, causando aumentos bruscos nas taxas de pobreza e instabilidade política em numerosos países ao redor do mundo, alimentando a xenofobia, o nacionalismo e acelerando a crise do multilateralismo. Até a chegada de uma vacina, países terão que intercalar a flexibilização da quarentena com novos períodos de isolamento, sempre acompanhados de milhares de testes.

No meio disso tudo, nascerá uma ordem diferente, moldada pelas estratégias adotadas por líderes ao redor do mundo. Como as escolhas durante a atual pandemia deverão definir o contexto no qual futuros governos operarão, os países que atualmente têm líderes inteligentes e visionários provavelmente serão recompensados ​​desproporcionalmente —simplesmente porque, devido ao momento histórico, suas lideranças terão maior impacto. Países com governos eficientes sairão da crise mais unificados e resilientes, com sociedades mais empáticas e seguras de sua capacidade de superar desafios complexos. Nesse países, cientistas e profissionais da saúde ganharão mais visibilidade e respeito, e há um debate público construtivo sobre como encontrar o equilíbrio certo entre aumentar a capacidade de monitoramento do Estado e a proteção da privacidade, como reabrir a economia sem pôr vidas em risco e como financiar os pacotes de estímulo econômico.

Países que atualmente têm maus líderes, por outro lado, podem acabar sendo punidos mais do que em circunstâncias normais. Além de gerir mal a pandemia e prorrogar a crise sanitária e econômica, eles não levam evidência científica em consideração e não atuam de maneira transparente. Deixarão de estabelecer as bases necessárias para iniciar a dolorosa adaptação de longo prazo. Ao invés de unificar seus países, deixarão suas sociedades mais divididas e desconfiadas, inviabilizando um debate público sobre os numerosos desafios, desde o futuro da educação, da economia, do emprego, do transporte e até do processo eleitoral em tempos de pandemia. Como sempre na história, países com lideranças inteligentes aproveitarão do mundo em fluxo para galgar posições, enquanto as nações à deriva perderão relevância.

Levará muito tempo para se poder avaliar as consequências geopolíticas da pandemia e o inevitável rearranjo na distribuição de poder entre nações. Porém, até agora, tudo indica que o Brasil será um dos grandes perdedores geopolíticos deste momento histórico. Quando o Brasil não foi nem sequer convidado para lançar, em abril, a iniciativa “Colaboração Global para Acelerar o Desenvolvimento, Produção e Acesso Equitativo a Diagnósticos, Tratamento e Vacina contra a Covid-19”, que reúne Governos, organizações internacionais, fundações e empresas privadas, revelou-se ali uma irrelevância internacional do Brasil que pode ser o novo normal pós-pandemia —e que demoraria anos para ser revertida. A triste realidade é que, neste momento, o Brasil traz muito pouco à mesa dos debates sobre os maiores desafios que a humanidade enfrenta. É relevante apenas no sentido em que causa preocupação dentro e fora do país. Além das muitas mortes que poderiam ser evitadas com uma resposta mais coerente e baseada em evidências científicas, o Brasil pode chegar a pagar um preço muito maior, por muito mais tempo, do que a maioria acredita.


Folha de S. Paulo: Veículos de comunicação formam parceria para dar transparência a dados de Covid-19

Jornalistas de Folha, UOL, Estadão, Extra, O Globo e G1 vão coletar nas secretarias de Saúde, e divulgar em conjunto, números sobre mortes e contaminados

Em resposta à decisão do governo Jair Bolsonaro de restringir o acesso a dados sobre a pandemia de Covid-19, os veículos O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo, G1 e UOL decidiram formar uma parceria e trabalhar de forma colaborativa para buscar as informações necessárias nos 26 estados e no Distrito Federal.

Em uma iniciativa inédita, equipes de todos os veículos vão dividir tarefas e compartilhar as informações obtidas para que os brasileiros possam saber como está a evolução e o total de óbitos provocados pela Covid-19, além dos números consolidados de casos testados e com resultado positivo para o novo coronavírus.

O governo federal, por meio do Ministério da Saúde, deveria ser a fonte natural desses números, mas atitudes recentes de autoridades e do próprio presidente colocam em dúvida a disponibilidade dos dados e sua precisão.

Como o Ministério da Saúde mudou a divulgação dos dados de Covid-19

Divulgação de dados da Covid-19 à imprensa em 14 de abril, na gestão de Luiz Henrique Mandetta; quadro traz aumento percentual diário

Mudanças feitas pelo Ministério da Saúde na publicação de seu balanço da pandemia reduziram a quantidade e a qualidade dos dados.

Primeiro, o horário de divulgação, que era às 17h na gestão do ministro Luiz Henrique Mandetta (até 17 de abril), passou para as 19h e depois para as 22h. Isso dificulta ou inviabiliza a publicação dos dados em telejornais e veículos impressos. “Acabou matéria no Jornal Nacional”, disse o presidente Jair Bolsonaro, em tom de deboche, ao comentar a mudança.

A segunda alteração foi de caráter qualitativo. O portal no qual o ministério divulga o número de mortos e contaminados foi retirado do ar na noite da última quinta-feira. Quando retornou, depois de mais de 19 horas, passou a apresentar apenas informações sobre os casos “novos”, ou seja, registrados no próprio dia. Desapareceram os números consolidados e o histórico da doença desde seu começo. Também foram eliminados do site os links para downloads de dados em formato de tabela, essenciais para análises de pesquisadores e jornalistas, e que alimentavam outras iniciativas de divulgação.

Entre os itens que deixaram de ser publicados estão: curva de casos novos por data de notificação e por semana epidemiológica; casos acumulados por data de notificação e por semana epidemiológica; mortes por data de notificação e por semana epidemiológica; e óbitos acumulados por data de notificação e por semana epidemiológica

Neste domingo (7), o governo anunciou que voltaria a informar seus balanços sobre a doença. Mas mostrou números conflitantes, divulgados no intervalo de poucas horas.

Em razão das omissões, a parceria entre os veículos de comunicação vai coletar os números diretamente nas secretarias estaduais de Saúde. Cada órgão de imprensa divulgará o resultado desse acompanhamento em seus respectivos canais. O grupo vai chamar a atenção do público se não houver transparência e regularidade na divulgação dos dados pelos estados.1 9

Pacientes com Covid-19 na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Municipal Dr. Moyses Deutsch, no M'Boi Mirim Lalo de Almeida/ FolhapressLeia Mais

"Numa sociedade organizada como a brasileira, é praticamente impossível omitir ou desfigurar dados tão fundamentais quanto o impacto de uma pandemia. Com essa iniciativa conjunta de levantamento de dados com os estados, deixamos claro que a imprensa não permitirá que nossos leitores fiquem sem saber a extensão da Covid-19 “, afirmou Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha.

“É nossa responsabilidade cotidiana transmitir informações confiáveis para a sociedade. E, agora, no momento mais agudo da pandemia, precisamos assegurar à população o acesso a dados corretos o mais rápido possível, custe o que custar”, disse Murilo Garavello, diretor de Conteúdo do UOL.

“É triste ter que produzir esse levantamento para substituir uma omissão das autoridades federais. Transparência e honestidade deveriam ser valores inabaláveis na gestão dessa pandemia. Vamos continuar cumprindo nossa missão, que é informar a sociedade”, afirmou João Caminoto, diretor de Jornalismo do Grupo Estado.

"O jornalismo tem a missão de levar à população os números mais precisos sobre a pandemia. É fundamental conhecer a real extensão dos fatos. Esses dados são decisivos para que as pessoas saibam como agir nesse momento tão difícil", destacou Humberto Tziolas, diretor de redação do Extra.

“Neste momento crucial, deixamos nossa concorrência de lado por um bem comum: levar à sociedade o dado mais preciso possível sobre a pandemia. Essas informações orientam as pessoas e as políticas públicas. Sem elas, o país mergulha em um voo cego. O jornalismo cumprirá seu papel”, afirmou Alan Gripp, diretor de redação de O Globo.

"A missão do jornalismo é informar. Em que pese a disputa natural entre veículos, o momento de pandemia exige um esforço para que os brasileiros tenham o número mais correto de infectados e óbitos”, afirmou Ali Kamel, diretor-geral de Jornalismo da Globo (TV Globo, GloboNews e G1). “Face à postura do Ministério da Saúde, a união dos veículos de imprensa tem esse objetivo: dar aos brasileiros um número fiel."


Eliane Cantanhêde: Me engana que eu gosto

Bolsonaro esconde números, mas Trump conta ao mundo o fracasso do Brasil na pandemia

Além de negar a pandemia, o presidente Jair Bolsonaro quer esconder os balanços de mortos, contaminados e recuperados, achincalhando o Ministério da Saúde. Demitiu um ministro, expeliu outro, nomeou um general intendente como interino, descartou o isolamento, empurrou a cloroquina garganta abaixo de médicos e especialistas e agora isso: sonegar os números.

Pois vamos a eles: são mais de 35 mil mortos (35 mil!) e quase 650 mil contaminados (650 mil!), numa expansão macabra, fora de controle. O presidente dá de ombros para os mortos – “E daí?” – e os governadores relaxam atabalhoadamente o isolamento para abrir lojas e serviços na pior hora. Logo, vai piorar.

O “amigão” Donald Trump fala mais uma vez do fracasso brasileiro e informa ao mundo que os EUA teriam não 108 mil, mas até 2,5 milhões de mortos, se tivessem agido como o Brasil e a Suécia – país, aliás, que Bolsonaro citou como referência no combate à pandemia, contra o isolamento, com tudo aberto, e hoje é um exemplo mundial de derrota.

Assim, o Brasil divide o pódio de mortos: EUA em primeiro lugar, Reino Unido em segundo, Brasil em terceiro, perto de chegar ao segundo. O que os três têm em comum? O negacionismo de Trump, Boris Johnson e Bolsonaro. Com uma diferença, literalmente, vital: Trump e Johnson (que pegou a covid-19) ridicularizaram e negaram, mas voltaram atrás, enquanto Bolsonaro continua obstinadamente negacionista.

A pandemia mata inclemente, mas o presidente só pensa e age numa direção: a política. Para salvar seu mandato e armar sua reeleição, com o cerco se fechando no Supremo (PF e fakenews, que pode chegar ao “gabinete do ódio”), no Congresso (CPMI das fakenews e 30 pedidos de impeachment) e TSE (oito ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão). O temor do Planalto é que elas afunilem e um pressione o outro. Uma rede, uma máquina do mal.

O que o presidente não entende é que essas ações isoladas só terão chance se confluir para um movimento único contra seu mandato com um empurrão decisivo: o total fracasso pessoal dele na condução – e percepção – do coronavírus, com efeito na economia, nas empresas, nos empregos e, portanto, na estabilidade social. O destino de Bolsonaro não depende das cinco frentes de investigações e, sim, como seus erros gritantes vão potencializá-las.

De jet-ski, helicóptero ou a cavalo, brincando de tiro ao alvo e animando shows antidemocráticos sem usar máscara, Bolsonaro não governa o País, não dá uma palavra sobre o combate ao vírus, nem sobre a economia, nem sobre a articulação federativa. É o oposto. Quando abre a boca sobre a pandemia, reclama da “histeria” e diz “e daí?”, “é o destino de todo mundo”. Sobre a economia, ou joga para Paulo Guedes (que submergiu) ou culpa os governadores, “esses m….”, “bostas” e “estrumes”, capazes de fazer tudo isso só para prejudicá-lo. Uma confusão mental.

Diante das condições adversas, Bolsonaro corre para setores católicos (com verbas de mídia), consolida o apoio evangélico (com uma forcinha da Receita), dá aumento para as polícias e centenas de cargos para o Centrão. Pela mesma janela que a Lava Jato saiu com Sérgio Moro, entram os alvos da Lava Jato com Roberto Jefferson, Valdemar da Costa Neto, Arthur Lira.

Não há pesquisa sobre a “posição das Forças Armadas”, mas a cúpula do Exército abre canais com Judiciário e Legislativo, enquanto milhares de oficiais fecham olhos e ouvidos para os absurdos de Bolsonaro e dividem alegremente os nacos de poder com o Centrão. O discurso para defender o indefensável na pandemia, na economia e na política ainda é a esquerda e o liberalismo de costumes. Mas é só pretexto. No fundo, o toma-lá-dá-cá é uma delícia, tentador. Me engana que eu gosto.


Míriam Leitão: Velho racismo à brasileira

O sentimento de indignação dos negros no Brasil não é cópia. É legítimo, tem raízes locais e números de exclusão e violência

O Brasil é racista. Sempre foi. O racismo é complexo, é durável, produz violência e exclusão. Para permanecer, ele nega a própria existência e diz que a sociedade aqui sempre foi diferente da dos Estados Unidos. Escrevi muitas vezes isso neste espaço no acalorado debate das cotas. Nos últimos anos, uma geração de estudiosos negros tem ajudado a ilustrar esse debate no Brasil com teses, artigos e livros. O sentimento de indignação de pessoas pretas e pardas no Brasil, com a estrutura que os exclui, não é cópia do que acontece nos Estados Unidos. É legítimo, tem razões locais profundas e números aterradores.

Paulo César Ramos ficou em dúvida no ensino médio entre ser soldador e estudar ciências sociais. Optou pelo que parecia mais difícil. Hoje é sociólogo e membro do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Cebrap. Estuda violência policial e movimento negro.

Ao buscar as raízes do movimento negro, seu estudo o levou a 1978. Um comerciante da periferia de São Paulo, Robson Silveira da Luz, foi torturado e morto em uma delegacia do distrito de Goianases no estado. O caso ganhou muita repercussão e houve atos em São Paulo e no Rio que denunciaram o que sempre acontecia no Brasil.

— Houve atos nas escadarias do Teatro Municipal em 7 de julho de 1978, que é a fundação do Movimento Negro Unificado, a mais capilarizada organização. Esse era um dos casos que eu queria reconstituir no projeto de doutorado, mas descobri que havia vários casos emblemáticos. Tive que redirecionar a estratégia da pesquisa, reconstituí 10 casos, e decidi reconstruir o protesto negro contra a violência policial — conta. Esses atos fizeram parte da luta pela democracia.

O sociólogo Mário Medeiros da Silva, professor do Departamento de Sociologia da Unicamp, alerta de cara para que não se incorra no erro muito comum cometido nas comparações entre Estados Unidos e Brasil.

— A primeira coisa que a gente precisa observar e não cometer é o erro de cair no argumento de que há diferença gritante entre o Brasil e os EUA, a ideia de que lá os negros se rebelam e aqui são mais pacíficos. Há 42 anos o Movimento Negro se organizou. Mulheres negras se uniram, como as Mães de Acari, que tiveram filhos mortos pela violência policial. Há uma série de mobilizações, ações, coletivos que tiveram ganhos políticos, agora sob ataque, como a criação da Fundação Palmares. As ações afirmativas são conquistas do Movimento Negro.

Medeiros explica as semelhanças: Brasil e Estados Unidos são sociedades criadas na violência da escravidão, cujas marcas não se apagaram:

— São duas sociedades muito violentas. Tem um problema que a gente precisa enfrentar aqui que é a aparente indiferença e a falta de empatia com a morte de famílias negras. Uma família foi fuzilada com 80 tiros e isso não virou uma grande comoção pública. Temos tido casos de crianças negras que morrem de forma violenta até em casa. O garoto que caiu em Pernambuco. Falta empatia.

No Rio, a morte do menino João Pedro, de 14 anos, foi seguida de outros assassinatos de crianças da mesma forma. O menino Miguel, de 5 anos, em Recife, que morreu quando a patroa, Sarí Corte Real, o deixou no elevador e ainda apertou o nono andar:

— A vida negra no Brasil vale muito pouco. E as pessoas negras morrem duas vezes — diz Medeiros, lembrando o caso da vereadora Marielle, difamada após ser assassinada.

Paulo Ramos acha que este padrão se repete sempre. Uma pessoa negra é morta pela polícia e em seguida seus amigos e familiares precisam provar que ela era inocente. Se a pessoa teve passagem pela polícia, vira, segundo explica, uma espécie de autorização.

No Brasil as estatísticas mostram quem é o alvo principal da violência policial: jovens negros do sexo masculino. Pelo último Atlas da Violência, 75% dos assassinatos são de indivíduos negros. Enquanto a taxa de homicídios de brancos caiu de 37,5 por 100 mil habitantes para 30, entre 2000 e 2017. A de negros subiu de 57,7 para 82.

— Não conseguimos pensar em um projeto democrático de polícia, segurança e poder. Todas as instituições de repressão foram forjadas durante a ditadura — diz Paulo Ramos.

Os números da educação e do trabalho trazem as cicatrizes das inúmeras formas de exclusão das pessoas pretas e pardas no Brasil. Não ver o que salta aos olhos é uma das táticas do racismo à brasileira.


Dorrit Harazim: A era da inocência acabou?

Não é apenas um perdigoto invisível que mata uma pessoa por minuto. É a falência múltipla dos órgãos do Estado

O entorno de George Floyd era uma barulheira só — carros passando, ronco urbano de Minneapolis à luz do dia, rádios da polícia apitando, transeuntes gritando que aquele homem negro imobilizado no asfalto, algemado pelas costas, precisava respirar. Apesar da barulheira, seu murmúrio final está registrado em vídeo e não carece de tradução: “Momma! Momma! I’m through”. A mãe de Floyd morrera em 2018. O filho que a invocou conseguiu chegar aos 46 anos até tornar-se o 11º caso de cidadão negro assassinado pela polícia de Minneapolis desde 2010. Teve altos e baixos na vida. Nasceu e cresceu no mesmo bairro texano do qual Beyoncé partiu para o estrelato, quase emplacou como atleta, quase terminou a faculdade, quase descarrilhou de vez ao ser preso por roubo à mão armada, mas retornou. Formou família, trabalhava onde possível e para isso foi parar em Minneapolis. Contraiu Covid-19, mas não sabia. Morreu rodeado da gente errada — sob as botas dos quatro policiais brancos de farto currículo de abusos, agora indiciados.

É possível que a partir da morte de Floyd a sociedade americana se olhe no espelho com menos complacência. Talvez tenha expirado o prazo de validade do mantra “não somos isso”, “somos melhor do que isso”, repetido com fervor após cada episódio de infâmia racista. Hoje, quem inunda as ruas em protesto e cobrança sabe que os EUA são, sim, uma sociedade racista, e parece disposto a aceitar a realidade para poder construir uma cidadania de que não precise se envergonhar. Passadas duas gerações desde que o governo Lyndon Johnson aprovou a Lei dos Direitos Civis em 1964, é o racismo no sistema prisional, judiciário e policial que entra em pauta. Como, porém, ele não se sustenta em nenhuma lei segregacionista, e portanto passível de ser derrubada sob pressão, trata-se de uma realidade mais encruada e complexa de ser desmontada. Ela depende essencialmente da formação moral ou disciplinar, e da índole de cada indivíduo com autoridade para bater, prender ou sufocar. E o ser humano, quando adulto e solto, é pouco confiável.

O menino negro Miguel Otávio Santana da Silva precisaria de mais 41 anos para chegar à idade de Floyd. Não deu. Morreu aos 5, sem qualquer ser humano por perto. Caiu do nono andar de um edifício em Recife enquanto a mãe, que trabalhava como doméstica no quinto andar do mesmo prédio, passeava com o cachorro da família por ordem da patroa. As circunstâncias dessa tragédia são o retrato cru e nu da vida brasileira. Mirtes, a mãe de Miguel, trabalhava há quatro anos para o casal Sérgio Hacker e Sari Corte Real. Errado: na verdade, segundo apuração da repórter Ciara Carvalho, do “Jornal do Commercio” de Pernambuco, Mirtes aparece na folha de pagamento da prefeitura de Tamandaré, cidade da qual o patrão é prefeito. Está cadastrada como gerente de divisão CC6, sem carga horária específica. Possivelmente uma “funcionária laranja” a mais, sem sabê-lo.

Os patrões de Mirtes haviam contraído a Covid-19. Ela, sua mãe e Miguel também estão entre os mais de 16 mil casos registrados no Recife. Com as creches da cidade fechadas por causa da pandemia, Mirtes levara o filho ao trabalho, sem suporte social ou patronal para evitar a exposição. Na tarde da tragédia a patroa requisitara os serviços de uma manicure, profissão considerada não essencial para tempos de coronavírus, mas essencial para a primeira-dama. Tudo errado novamente.

Relatos iniciais atestam que Miguel tornou-se choroso com a ausência da mãe, e câmeras do prédio mostram o menino, sob as vistas da patroa, conseguindo entrar sozinho no elevador, do qual vários botões foram apertados. Vê-se um Miguel desnorteado à procura da mãe, descendo no nono andar que lhe era desconhecido, com acesso fácil a uma área reservada à ventilação dos aparelhos de ar-condicionado do prédio. Ali ele teria subido num gradil e “virou estrela”, nas palavras da mãe. Foram 35 metros de queda do espigão de luxo conhecido como “Torres Gêmeas”. Apesar do alto padrão e localização nobre, o condomínio terá de explicar a elementar falha de segurança que permite a uma criança de 5 anos saltar para o vazio a partir de uma área comum.

Dentro do seu apartamento no quinto andar, a patroa só soube da morte do menino sob sua guarda depois que Mirtes encontrara o filho único no chão, na volta da caminhada. Miguel foi atendido pelo SUS. A patroa prestou depoimento no dia seguinte, pagou R$ 20 mil de fiança e responderá a processo por homicídio culposo. Invocando a Lei de Abuso de Autoridade, a delegacia encarregada do caso procurou não divulgar a identidade da patroa de Mirtes. É o Brasil cordial com prefeitos e primeiras-damas.

“Pois muito bem”, escreveu a acadêmica e feminista negra Djamila Ribeiro, em contundente artigo sobre negritude na “Folha de S.Paulo”, “Só que a era da inocência acabou, já foi tarde”.

Oxalá. Nas periferias da vida brasileira, não é apenas um perdigoto invisível que mata 1 pessoa por minuto. É a falência múltipla dos órgãos do Estado. Do governo Jair Bolsonaro. Se “escória maldita” há, é ali que ela está aninhada.


Vinicius Torres Freire: Três horror e uma saída pós-pandemia

Acemoglu pinta panoramas de opressão estatal e privada, mas aponta saída progressista

O mundo pode continuar no caminho da degradação até o ponto de surgir algo ainda pior do que desigualdade, descrença na democracia e nacionalismo populista. Pode sucumbir à tentação de adotar um despotismo eficaz como o da China. Talvez se renda à opressão privada das empresas gigantes de tecnologia.

Daron Acemoglu pinta esses cenários para um mundo depois da pandemia. Saída: retomar os avanços da social-democracia, prejudicada pela maré conservadora que subiu nos anos 1980.

Economista, historiador e professor do MIT, Acemoglu ficou mais conhecido pelo livro “Por que as Nações Fracassam”, que escreveu com James Robinson. Cedo ou tarde, deve ganhar um Nobel por algum dos seus trabalhos teóricos, um monte impressionante. Na idiotice do debate brasileiro, seria chamado de “ortodoxo”. Publicou no site Project Syndicate um artigo sobre o Estado no pós-Covid.

A pandemia é o que chama de “momento crítico”, um dos raros abalos que tiram a história dos países de certo movimento inercial. As consequências desses choques são incertas, mas pequenas diferenças nas decisões ou oportunidades de como enfrentá-los levam a desenvolvimentos muito diferentes e dificilmente reversíveis no longo prazo. O abalo atual é o enorme aumento do papel do governo (mais gasto, mais intervenções, mais vigilância) e/ou a necessidade de governança maior e mais competente.

No cenário “business as usual trágico”, não há mudança institucional. A desigualdade social e econômica se torna endêmica, assim como o desprezo por especialistas e ciência. A polarização e a descrença nas instituições democráticas se agravam.

Assim, governos mais poderosos e maiores, mas incapazes de lidar com a crise socioeconômica, provocam mais revolta ou mais indiferença pela vida pública. A tragédia é a desintegração da política democrática, como já se vê.

No cenário “China de Leve”, insegurança e incerteza podem levar as pessoas a querer um Leviatã. Pelo menos a pandemia indica que um governo forte é necessário para lidar com emergências.

A China seria um exemplo: sua infraestrutura política e técnica de controle social deu resposta mais rápida e eficaz à desgraça do vírus. Democracias seriam tidas como ineficientes e lerdas para lidar com crises tais e um mundo globalizado.

Aos poucos, o poder ampliado dos governos e a imitação de exemplos do despotismo opressivo mais eficaz dos chineses levariam os EUA a serem uma versão “bastarda” da China, sem as competências burocráticas tradicionais, um “Detran” atrapalhado por tuítes presidenciais.

No cenário “servidão digital”, as grandes empresas de tecnologia substituem cada vez mais o governo. Começam por testar e rastrear doentes; dão soluções à administração remota de fábricas e escritórios. Quanto mais indispensáveis, mais poderosas, dadas a subserviência e a inoperância dos governos.

O público deixaria de vez de se opor à coleta e à mercantilização de seus dados; à manipulação de seu comportamento. A economia da inteligência artificial seguiria na sua toada, que não é inevitável: produz desigualdade e obriga trabalhadores a viver da ninharia da renda básica.

A saída é pela social-democracia. Por que tal movimento não ocorreu até agora, se a tensão social e econômica fervilha ou explode, como nos protestos nos EUA? Acemoglu não diz. A crise é uma oportunidade de reorganizar a campanha por mais seguros sociais e regulação mais inteligente até para domar a iniciativa privada da inteligência artificial, de modo a criar mais empregos.

O governo, maior depois da epidemia, tem de ser controlado por novos meios de participação política democrática. Já aconteceu, depois da Grande Depressão e da Segunda Guerra. É preciso fazer política para que dê certo de novo.