pandemia
Míriam Leitão: O impossível não acontece
Um consultor e uma alta autoridade dizem que o país não aguentará mais dois anos e meio deste grau de tensão provocado por Bolsonaro
‘Em 40 anos de consultoria, o que eu aprendi é que o impossível não acontece.’ Foi essa a resposta que me deu um experiente consultor quando perguntei se o governo Bolsonaro concluiria seu mandato. Isso foi em 7 de maio. No mesmo dia, ele previu que o Brasil seria o segundo país com mais mortes. Parecia exagerado, afinal era o oitavo. Na sexta-feira, virou o segundo. “É impossível mais dois anos e meio dessa tragédia que nós estamos vivendo. Com esse grau de dissonância, ruído, complicação, briga. Isso não acontece”, disse ele. Esse é o grande assunto entre cientistas políticos, economistas, cenaristas em geral. Para permanecer, Bolsonaro teria que mudar. A nota assinada pelo presidente, o vice e o ministro da Defesa na noite de sexta-feira tem como alvos o ministro Luiz Fux e TSE, mas há uma ameaça implícita a qualquer voz divergente.
A hipótese de Bolsonaro mudar, distensionar o país e, assim, conseguir concluir o mandato é improvável. Bolsonaro não vai mudar. Por incapacidade mesmo. Ele será sempre criador de atritos constantes. Ele não sabe governar, por isso precisa dos confrontos. As brigas serão com pessoas, grupos sociais ou instituições. Escolherá aleatoriamente os “inimigos” para hostilizar. Quando faltar adversários, ele vai atirar para dentro do seu próprio governo.
Fiz a mesma pergunta que havia feito ao consultor — se o presidente terminaria o mandato — a uma alta autoridade da República, fora do Executivo. A resposta que eu ouvi:
— Com ele ignorando os conselhos que recebe, com essa estrutura que Bolsonaro criou, o Brasil explode antes de 2022. Do ponto de vista social e econômico. Eu tenho certeza. Como é que resolve? Dentro da democracia.
A democracia tem muitos caminhos. O afastamento de um presidente é remédio extremo, usado já duas vezes desde o começo do atual período da República. Bolsonaro pensa estar se blindando de duas formas. Usando as Forças Armadas como manobra dissuasória e comprando o centrão com cargos para ter votos no parlamento. Para evitar um impeachment precisa de apenas 171 votos. Parece pouco, mas quando um governo desmonta, nada há que o sustente. O centrão estava no governo Dilma. Esse grupo de partidos vai para onde soprar o vento. Distribuir cargos não é suficiente.
No horizonte dos riscos ao presidente está agora o Tribunal Superior Eleitoral onde tramitam oito processos de cassação da chapa. Os dois primeiros foram suspensos por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes e tratam de um ataque virtual a um site de mulheres contra Bolsonaro durante a campanha. Dos restantes, quatro tratam do assunto mais delicado: a contratação dos serviços de disparo em massa de mensagens pelo WhatsApp.
As investigações do inquérito das fake news estão caminhando na mesma direção. É difícil saber a evolução desses processos, mas a nota divulgada pelo presidente, pelo vice Hamilton Mourão e pelo ministro da Defesa é grave porque contém uma ameaça, ao dizer que as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas, como a tomada de poder, mas também “não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”. O núcleo militar do governo está convencido de que o Judiciário está interferindo em áreas do Executivo. Portanto, isso é uma ameaça. E é um aviso prévio ao TSE que só aceitará resultado favorável. Se por acaso houver um processo de impeachment eles farão as mesmas ameaças. No Congresso, o julgamento é político.
O ministro Luiz Eduardo Ramos disse em entrevista à revista “Veja” que é “ultrajante e ofensivo” para as Forças Armadas dizer que pode haver um golpe militar no Brasil. Segundo ele, o presidente jamais falou em golpe.
Mesmo? O presidente vai a manifestações com faixas pedindo intervenção militar, fechamento do Congresso e do Supremo. Em uma delas, disse que as Forças Armadas estavam com eles, os manifestantes. Ministros de origem militar fazem constantes insinuações intimidatórias. O próprio Ramos disse na entrevista: “Não estiquem a corda.”
É impossível manter o país por mais dois anos e meio neste grau de tensão, com um presidente como Bolsonaro que estimula o conflito, ataca pessoas ou instituições, ameaça a democracia, e põe em risco o pacto civilizatório que o Brasil penosamente construiu. Isso não acontece.
Hélio Schwartsman: Covid-19 é um rinoceronte cinza, já que era totalmente previsível
Infectologistas apontavam que era questão de tempo até que uma pandemia viral nos atingisse
Até o final do século 17, europeus, inspirados por versos do poeta Juvenal, usavam a expressão “cisne negro” para designar uma impossibilidade. Todos os cisnes até então avistados eram brancos.
Não foi sem assombro, portanto, que descobriram, a partir de relatos de exploradores, que havia cisnes negros na Austrália. O termo passou, então, a designar a falácia lógica da generalização apressada e, de maneira menos técnica, eventos surpreendentes.
Mais recentemente, o escritor Nassim Taleb popularizou a noção de cisne negro como um acontecimento raro, de enormes consequências e que não foi previsto pelos especialistas. Exemplos de cisnes negros incluem a dissolução da URSS, o surgimento da internet e o 11 de Setembro.
A Covid-19 entra nessa lista? Penso que não. Taleb também. Ele prefere chamá-la de rinoceronte cinza, já que era totalmente previsível. Com efeito, infectologistas afirmavam havia décadas que era uma questão de tempo até que uma pandemia viral nos atingisse em cheio. Havia dúvidas em relação ao “quando”, mas não quanto ao “se”.
Há outros rinocerontes cinza. Sabemos que um dia um megaterremoto vai devastar cidades da costa oeste dos EUA, mas, ainda assim, milhões de pessoas vivem nelas tranquilamente. Sabemos que, se não usarmos antibióticos com mais sabedoria, logo teremos um gigantesco problema com bactérias resistentes. Sabemos que o aquecimento global é uma realidade.
Por que não fazemos tudo o que está a nosso alcance para evitar desastres previstos? Eu receio que o conhecimento intelectual, que é o que a ciência é capaz de oferecer, não seja um grande motivador.
Nossos cérebros, afinal, são pré-científicos. É só ver que temos um medo irracional de cobras, que não matam quase ninguém em ambientes urbanos, mas não nos incomodamos em pular o exercício nem em comer além da conta, que respondem por um bom pedaço dos óbitos modernos.
Dorrit Harazim: O tempo encurta
No Brasil de Bolsonaro, dia sim dia não algum militar da ativa, de pijama ou de ministério nega riscos de qualquer tipo de golpe
A jornalista americana de origem russa Masha Gessen usa de impiedade cirúrgica quando descreve tiranos. Basta ler “O homem sem rosto”, seu livro-reportagem sobre Vladimir Putin, o líder russo de alma soviética ou líder soviético de alma russa, tanto faz — para reconhecer em Gessen amplo conhecimento em viciados do poder. A mais recente investida da escritora tem por título “Surviving Autocracy” (sobrevivendo à autocracia) e chega em boa hora. Embora a obra centre foco no esgarçamento do tecido democrático em curso com Donald Trump, o tema adquire urgência diante da proliferação de candidatos a autocrata mundo afora.
O presidente americano ainda estaria na primeira etapa de uma escalada ao poder antidemocrático, uma vez que as instituições, a oposição e a imprensa livre do país continuam de pé. Segundo uma sequência elaborada pelo sociólogo e ex-ministro da Educação húngaro Bálint Magyar, Trump vive a fase da “tentativa autocrata”. Ela antecede às duas seguintes do ciclo autoritário estudado por Magyar: a “ruptura autocrática” e a “consolidação da autocracia”.
Até recentemente Trump demonstrou ser um aspirante bastante sólido à supremacia do poder pelo poder, com eleitorado personalista fidelíssimo e um Partido Republicano curvado em servilidade. Mas tudo mudou com a devastação provocada pela Covid-19, que já ultrapassou a marca de dois milhões de contaminados e 110 mil óbitos nos EUA. A razia do vírus somou-se ao destemido despertar antirracista nas ruas do país e, de repente, a cinco meses da eleição presidencial, Donald Trump tem pressa.
Seu índice de popularidade voltou a despencar fora da bolha que lhe é fiel, e o adversário democrata Joe Biden, apesar de física e mentalmente fraquejante, está oito pontos percentuais à frente. Com ou sem pandemia, é imperioso para Trump voltar aos comícios em arenas fechadas, de forma a dominar o noticiário e turbinar o eleitorado. A adição de um pré-requisito para participar de seus comícios merece mais do que um rodapé na história: o apoiador precisa confirmar, on-line, ter ciência do risco de exposição ao coronavírus, e garantir, voluntariamente, que não vai acionar Donald J. Trump na Justiça no futuro. Temos aí um díptico perfeito da peste de 2020 e da mente do 45º presidente dos Estados Unidos. Como é que ninguém do Palácio do Planalto ou de seus porões não pensou em algo semelhante para Jair Bolsonaro?
Faz parte do perfil de um aspirante a autocrata ceder o poder em caso de derrota nas urnas, mesmo que esperneando e afogado em teorias conspiratórias. Mas e se ele quiser pular etapas e partir para a “ruptura”? Dias atrás, correu mundo um discurso em vídeo do general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos. Dirigida a cadetes da Universidade Nacional de Defesa, a fala visou a ouvidos civis e militares, republicanos e democratas.
A mais graduada autoridade militar americana pedia desculpas à nação. Milley servira de figurante a uma desastrosa encenação de Trump nas ruas, que resultara em violenta repressão a manifestantes pacíficos. “Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna… Nós que usamos as insígnias da nossa nação, que viemos do povo, devemos sustentar o princípio de Forças Armadas apolíticas…”, disse o general. Em privado, ele também alegou que fora convocado de surpresa pelo presidente e o acompanhou sem saber do que se tratava — o que por si só já seria péssimo, vindo de um chefe militar da maior potência mundial. Mais grave, contudo, é o fato em si: nos EUA de Trump foi necessário esclarecer que as Forças Armadas têm raízes firmes na base republicana da nação. Coisa rara, senão inédita. E inquietante.
Lá não é como no Brasil de Bolsonaro, onde dia sim dia não algum militar da ativa, de pijama, ou de ministério nega riscos de qualquer tipo de golpe —seja presidencial ou de quepe.
Por ora, a nossa aberração nacional tem tintas próprias. Na Praia de Copacabana a areia amanhecera com cem cruzes de madeira sobre covas rasas, simbolizando as mais de 40 mil vidas brasileiras que o coronavírus já levou e enterrou às pressas. Lá pelas tantas um bípede grisalho de peito estufado e passada firme sai do calçadão e adentra a instalação montada pela ONG Rio de Paz. Ele não usa máscara, prefere óculos de sol. Avança pela areia sem tirar o tênis e passa a arrancar as cruzes uma a uma, em movimento cadenciado, quase militar. Hesita só uma vez, indeciso diante da bandeira nacional que enfeitava uma das cruzes. Sacrilégio derrubar a bandeira pátria no chão. Tinha plateia, silenciosa.
Até que outro brasileiro irrompe na cena. Márcio Antonio perdera o filho de 25 anos para a Covid sem poder lhe dar um enterro decente. Caminhava pelo calçadão com a mulher quando percebeu o destruidor de cruzes em ação. De chinelo nos pés e camisa no pescoço, também invadiu a areia. Em cadência igualmente obsessiva foi refincando as cruzes tombadas uma a uma, com paixão. Foi xingado com estridências. Ouviu “Vai pra Venezuela!”, como se a Venezuela já não fosse aqui. De outro espectador recebeu o conselho de baixar o tom da raiva.
Se ninguém se mexer, os aspirantes daqui vencem.
Vera Magalhães: Derrotados
Crimes de Bolsonaro levam Brasil a perder a batalha da pandemia
Perdemos. O Brasil não se recuperará da derrota acachapante nesta pandemia. Caminhamos resolutos para romper a barreira de 50 mil mortes e 1 milhão de infectados relegados à própria sorte: sem ministro da Saúde, sem isolamento social em canto algum, sem estratégia, sem governos.
E com um presidente da República que comete crimes diariamente e não é impedido de fazê-lo ou porque os que o cercam, seus ministros e seu vice, são cúmplices, ou porque os que tentam têm à sua disposição instrumentos legais e institucionais que não são capazes de lidar com a sanha autoritária e genocida que Jair Bolsonaro já não faz questão de esconder. O que vai pará-lo? Ou vamos assistir inertes a uma escalada que não tem limites?
Em fevereiro, quando informei que Bolsonaro estava escondidinho no WhatsApp convocando atos golpistas contra o Supremo e o Congresso, ele mentiu e me ofendeu.
Agora, aquelas mensagens parecem coisa de criança perto do que o capitão já fez às claras, ao vivo, em rede nacional, nos palácios que ocupa como se fossem a casa da mãe Joana.
Um breve retrospecto: o presidente já participou, de carro, a cavalo, de helicóptero, a pé ou na boleia de caminhonetes de pelo menos seis atos de natureza claramente antidemocrática. Os convocou, chancelou, festejou, apoiou e abriu a rampa do Planalto para eles; Bolsonaro mandou censurar e maquiar os números de covid-19 no Brasil. Só recuou depois que o Supremo exigiu; em sua sanha persecutória, demitiu um ministro da Saúde e viu outro se demitir porque queria que eles prescrevessem remédio sem eficácia comprovada ou maquiassem os números que depois o general interino topou torturar; agora o presidente deu de flertar abertamente, inclusive em notas nas redes oficiais, com a interpretação golpista do artigo 142 da Constituição, com a assinatura de Hamilton Mourão e dos demais generais ministros, para tentar acossar o Supremo; como se não bastasse tudo isso e muito mais que não cabe em uma coluna, o presidente atingiu o suprassumo da bestialidade ao conclamar (e ser imediatamente atendido) seus apoiadores igualmente lunáticos a invadirem hospitais para filmarem leitos vazios.
Isso precisa parar. O presidente precisa ser instado, a partir de representação imediata do Ministério Público Federal ou dos partidos ao Judiciário, a se retratar de maneira inequívoca dessa última sandice que é crime contra a saúde e a ordem públicas e afronta de maneira textual vários artigos de textos legais, da Constituição à Lei de Abuso de Autoridade, passando pelo Código Penal de cabo a rabo.
É uma vergonha que ministros que se dizem democratas aceitem jogar sua biografia na lata do lixo servindo a um regime que condena o País a esses atentados diários ao bom senso, à paz social, à saúde pública e à economia, porque ninguém mais é capaz de acreditar na balela cínica de que alguém que age dessa forma tresloucada tem qualquer preocupação com empregos e crescimento.
Paulo Guedes pode até fingir que acredita que vamos voltar (voltar?) a crescer depois desse pesadelo, mas não é possível que coloque a cabeça no travesseiro à noite e não reconheça que nenhum investidor com juízo vai colocar dinheiro num País desgovernado.
E governadores e prefeitos, que tiveram do STF a delegação de cuidar das suas populações já que o governo federal não era capaz? Jogaram a toalha e resolveram também se fingir de loucos.
Reabrir a economia na base do vale-tudo, como estão fazendo de Norte a Sul, é tão criminoso quanto o show de horrores diário de Bolsonaro. As ruas abarrotadas, as filas em shoppings, as festas cobrarão seu preço em mortes e hospitais colapsados. E não será possível jogar a culpa toda em Bolsonaro. Fracassamos como País.
Elio Gaspari: A desastrada canetada militar do capitão
Como colocou um general no Ministério da Saúde, presidente deveria escolher um médico para aconselhá-lo em assuntos militares
Tendo colocado um general no Ministério da Saúde, Jair Bolsonaro deveria escolher um médico para aconselhá-lo em assuntos militares. Fazendo isso, evitaria lambanças como a que produziu assinando um decreto que permitia ao Exército operar com aeronaves de asa fixa. Assinou o decreto no dia 2 e revogou-o uma semana depois. No escurinho de Brasília e na confusão da pandemia, passava-se uma boiada que criaria a aviação do Exército.
A incorporação de aeronaves às forças de terra e de mar é uma velha encrenca doutrinária. Caxias usou balões fixos na Guerra do Paraguai, antes do voo do primeiro avião. O Exército teve uma aviação, e seu patrono é o tenente Ricardo Kirk , que em 1915 morreu ao cair em Caçador (SC), combatendo os revoltosos do Contestado.
A Força Aérea não gosta da ideia de aviões com a Marinha ou com o Exército. Em 1964. o marechal Castelo Branco teve que descascar o abacaxi da aviação embarcada que tripularia o navio aeródromo Minas Gerais. Nessa crise, um capitão da FAB metralhou o rotor de um helicóptero da Marinha que pousou na base gaúcha de Tramandaí. Esse foi o único incidente em que os desentendimentos militares ocorridos durante a ditadura tiveram tiros. Em todos os outros as questões foram resolvidas por telefone. O presidente Castelo Branco viu no episódio “um deplorável estado de espírito” de “vários elementos da Marinha e da FAB”. Em poucos meses caíram dois ministros da Aeronáutica e um ministro da Marinha.
Finada a ditadura, durante o comando do general Leônidas Pires Gonçalves, sem quaisquer atritos, o Exército organizou uma força de helicópteros que vai muito bem, obrigado. Iam assim as coisas até que alguém teve a ideia do decreto que daria aviões à tropa terrestre. Como era previsível, a FAB incomodou-se e certamente a Marinha também não gostou. Se uma iniciativa desse tamanho tivesse sido tomada com algum debate público, cada lado teria bons argumentos. Depois da canetada, o melhor caminho foi pegar a Bic para revogá-la.
Bolsonaro fala em “minhas Forças Armadas”. Elas não são suas, mas o capitão precisa saber o que fazer com elas. Vá lá que batalhe pela cloroquina, que ouvisse seu ministro da Educassão e tentasse passar a boiada das nomeações de reitores. A ideia de equipar a aviação do Exército é velha. Tratar essa questão com uma canetada foi um despropósito, tanto assim que nunca havia sido tentado.
Se Bolsonaro tivesse consultado um médico antes de assinar o decreto, certamente teria sido dissuadido.
Estupidez e sabedoria
Está em curso um momento de cretinismo das massas inebriadas pela paixão política. Nos Estados Unidos. decapitaram uma estátua de Cristóvão Colombo. Na Inglaterra, jogaram num rio o bronze de um comerciante de escravos do século XIX. Estupidez nada tem a ver com manifestação política, é apenas estupidez.
Racistas vandalizaram estátuas de Martin Luther King e, em 1871, a Comuna de Paris derrubou a coluna da Praça Vendôme que celebrava a vitória de Napoleão na batalha de Austerlitz. (Felizmente ela foi reconstruída).
Dói ver a polícia protegendo a magnífica estátua de Winston Churchill em Londres e em Praga, em cujos pedestais picharam que ele era racista. Era, mas ajudou salvar a civilização ocidental quando parecia que o nazifascismo dominaria o mundo.
O traficante de escravos não deveria ser homenageado e sua estátua não deveria ter sido jogada no rio. Não era preciso. Os russos ensinaram ao mundo como lidar com esse problema. Depois do colapso da União Soviética, as estátuas dos dirigentes comunistas foram retiradas de seus pedestais e colocadas num parque. (Um dos bons negócios do início do século foi comprar a preço de banana quadros de alguns pintores do realismo socialista soviético.)
Na Cidade do México, há uma estátua do rei espanhol Carlos IV e, no seu pedestal, uma placa informa que ela está ali pelo seu valor artístico.
Fizeram melhor os brasileiros. Dona Maria I, rainha de Portugal, mandou enforcar o alferes Joaquim José da Silva Xavier. Seu neto homenageou o pai (D. Pedro I) com uma linda estátua equestre na praça da Constituição. Veio a República e a Casa dos Bragança foi desterrada, mas a estátua de D. Pedro ficou lá, na praça à qual foi dado um novo nome, o de Tiradentes.
Trump derrete
Donald Trump achou que teve uma boa ideia quando ameaçou botar as Forças Armadas americanas nas ruas diante dos atos de vandalismo praticados durante os protestos contra o racismo. A ideia parecia tão boa que o general Mark Milley, a mais alta autoridade do serviço ativo, acompanhou-o numa de suas palhaçadas.
Passados alguns dias, Milley desculpou-se: “Eu não deveria estar lá”.
Esse episódio poderá vir a ser um marco no derretimento da candidatura de Trump à reeleição.
Freixo e Witzel
O deputado Marcelo Freixo disse tudo:
“Alçado ao poder com apoio do Bolsonaro, Witzel cai como um aprendiz do Sérgio Cabral.”
Reitores janeleiros
O ministro da Educassão, Abraham Weintraub, convenceu Bolsonaro e tentou criar a figura do reitor janeleiro.
Em vez de chegar ao cargo pela escolha de seus pares, ele entraria pela janela. Faz tempo, os alunos da Faculdade Nacional de Direito mobilizaram-se para impedir que um professor mal concursado assumisse a cátedra.
À época, o movimento estudantil tinha senso de humor. Os jovens expressaram seu descontentamento murando uma das janelas do velho prédio, onde havia funcionado o Senado do Império.
Os Invisíveis
A última reunião do Ministério podia ser transmitida para casas de família. Nela, o ministro Paulo Guedes revelou que a pandemia ensinou muitas coisas ao governo e disse o seguinte:
“Aprendemos durante toda essa crise que havia 38 milhões de brasileiros invisíveis e que também merecem ser incluídos no mercado de trabalho.”
Ninguém aprendeu que existiam milhões de brasileiros sem proteção. Todo mundo sabia disso, inclusive Paulo Guedes. O que a epidemia poderá ensinar é que esse tipo de sociedade não funciona direito.
A nova moda é fingir que esse problema foi revelado pela pandemia. Passada a crise sanitária, vai-se fingir que ele também se foi. Quando isso acontecer, o capitão poderá repetir: “E daí?”
PT assustado
O PT começa a acordar para um pesadelo: terminada a eleição municipal, estará fora do segundo turno no Rio e em São Paulo.
Saudades de Teich
Era pedra cantada que o ministro Luiz Henrique Mandetta deixaria saudade.
O que ninguém esperava era sentir saudades do doutor Nelson Teich.
Eliane Cantanhêde: Esticando a corda
Guerra assimétrica: um lado tem as leis e a Constituição, o outro tem armas
A nota conjunta do presidente Bolsonaro, do vice Mourão e do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, é uma clara ameaça e está em sintonia com o secretário de Governo da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos, que disse à revista Veja que é “ultrajante” falar em golpe militar, para em seguida ressalvar: “Mas não estica a corda”. A frase ficou no ar. Faltou completar: senão…
O que significa “não esticar a corda”? Enquanto a resposta não é clara, soa como advertência a um menino levado, desobediente: “Ou você se comporta, ou vai ficar de castigo, levar uma palmada”. O que nos remete às ameaças de “ruptura” e de AI-5, já alardeados por ninguém menos que o filho do presidente da República, que orna a parede da sala de jantar com a imagem de uma metralhadora.
Nos remete também às “consequências imprevisíveis” citadas pelo general Augusto Heleno contra uma decisão do STF e encampadas pelo general Fernando – que é o primeiro militar a ocupar o Ministério da Defesa e desfilou num helicóptero com Bolsonaro para saudar manifestações contra o Supremo e o Congresso. Outros militares de alta patente prestigiaram atos assim, como o próprio Ramos, que é da ativa. Do alto da rampa do Planalto, mas ele estava lá.
Quanto à nota, Bolsonaro e os dois militares dizem que as Forças Armadas estão sob autoridade suprema do presidente e não cumprem “ordens absurdas, como a tomada de poder”. E ressaltam: “Também não aceitam a tomada de poder por outro poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”. Novamente, faltou: senão…
É preciso especificar, ou decifrar, o que significa dizer que as FA “não aceitam” isso ou aquilo. No caso, a tomada do poder pelo Executivo (um auto-golpe) ou por um “outro poder”. E vem o dedo em riste: um outro poder que possa fazer “julgamentos políticos”. Vale para o Judiciário, citado literalmente, já que responsável por julgamentos. E vale para o Congresso, que faz julgamentos legal e legitimamente políticos, como o que sofreu Dilma Rousseff.
Em resumo, portanto, temos que o presidente, o vice e o ministro da Defesa anunciam ao País que não aceitam julgamentos do STF, do TSE e do Congresso. Não por que eventualmente contrariem a Constituição e as leis, mas os que ameacem suas posições e interesses. E isso é álcool na fogueira de manifestações antidemocráticas.
É uma situação delicada, a ser tratada com maturidade institucional e firme consciência democrática, num momento em que o Supremo investiga a acusação do ex-ministro Sérgio Moro de intervenção de Bolsonaro na Polícia Federal, o TSE analisa oito ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão, STF e CPMI acumulam dados sobre fake news que podem chegar ao Planalto e, na presidência da Câmara, pousam 30 pedidos de impeachment de Bolsonaro.
Com trocas de informação, pedidos de vista daqui e dali e declarações variadas contra impeachment, as instituições se autodefendem das ameaças de “ruptura” e acumulam arsenal. O TSE deu sinal verde para embolar as investigações sobre fake news num mesmo processo: no TSE, denúncias de uma máquina de robôs para disparar mentiras na campanha de 2018; no STF, a rede de ataques contra ministros, suas famílias e a própria instituição.
Quem ameaçou primeiro, porém, tem armas, arsenal literalmente mais letal. E é aí que essa guerra se torna assimétrica e nos arrepia. De um lado, a democracia, com apoios e uma resistência difusa, mas atuante, na sociedade civil. Do outro, as armas – e não só das FA. Onde Bolsonaro quer chegar? Até onde as nossas Forças Armadas se sujeitam a ir? E qual a força da munição do Supremo, do Congresso e do TSE para resistir?
Merval Pereira: Fazer o que é certo
Temor do governo é que empresários bolsonaristas investigados sejam envolvidos na acusação de impulsionamento ilegal de WhatsApp durante a campanha presidencial
O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF), encaminhará esta semana ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) os dados das quebras dos sigilos e das comunicações dos investigados relacionados com a campanha eleitoral de 2018.
A maior parte do material colhido anteriormente, neste ano de investigação, não tem a ver propriamente com a eleição presidencial, e já foi encaminhada à primeira instância. Empresários que sofreram busca e apreensão em suas residências e escritórios, o mais notório sendo Luciano Hang, são investigados pelo financiamento do chamado “gabinete do ódio”, que veicula, fake news através de uma ampla atividade nas redes sociais, e podem estar envolvidos também nos impulsionamentos ilegais de noticias pelo WhatsApp durante a campanha eleitoral, o que provaria o abuso do poder econômico a favor da chapa Bolsonaro-Mourão.
A alusão a “julgamentos políticos” inaceitáveis pelas Forças Armadas na estranha nota oficial que o presidente Bolsonaro emitiu na sexta-feira à noite, co-assinada pelo vice-presidente General Hamilton Mourão e pelo ministro da Defesa General Fernando Azevedo, é seu ponto mais delicado politicamente, pois se refere ao julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) da chapa presidencial vitoriosa.
No mesmo dia mais cedo saíram a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Fux, que formalmente desclassifica a interpretação de que o artigo 142 da Constituição dá às Forças Armadas o papel de poder moderador entre os Poderes, e a decisão do relator do TSE, ministro Og Fernandes, de compartilhar com o Supremo as provas do inquérito relatado pelo ministro Alexandre de Moraes sobre as fake news.
Foram movimentos isolados que se juntaram na leitura do governo de que estaria sendo orquestrado um “julgamento político” para impugnar a chapa Bolsonaro-Mourão. O presidente do TSE, ministro Luis Roberto Barroso, aproveitou uma entrevista a correspondentes estrangeiros para rebater indiretamente: “O TSE fará o que tem que ser feito”, disse ele, garantindo que o julgamento dos diversos processos contra a chapa de Bolsonaro será técnico, e não político.
Reconhecido como um juiz “consequencialista”, o ministro Barroso faz questão de distinguir essa característica, que ele não repudia, da tomada de decisão de acordo com a repercussão de seu voto. O “consequencialismo” não pressupõe abrir mão do que é certo ou errado para tomar uma decisão política. Como parte do pragmatismo, o consequencialismo apenas entra em cena se houver mais de uma possibilidade razoável sem ferir o direito de ninguém.
Nesses casos, as decisões podem levar em conta suas consequências. Antes disso, porém, ressalva Barroso, há o certo e o errado, que será sempre a base da decisão, como ele disse aos jornalistas estrangeiros. No Palácio do Planalto há a convicção de que está sendo armada uma decisão politica para tirar Bolsonaro do poder, e por isso a nota oficial foi assinada também pelo vice-presidente Mourão, uma informação de que o General não estaria disposto a fazer um acordo político para ficar no lugar do presidente em caso de impugnação.
O temor do governo Bolsonaro é que, como o ministro Og Fernandes disse em sua decisão de aceitar o compartilhamento de provas, é que empresários bolsonaristas investigados no inquérito do Supremo sejam envolvidos na acusação de impulsionamento ilegal de WhattsApp durante a campanha presidencial, pois o ministro Alexandre de Moraes pediu a quebra de sigilo recuando até julho de 2018.
O relator do TSE citou nominalmente Luciano Hang ao se referir aos recursos que financiam os mesmos grupos, que distribuem noticiais falsas (fake news) e o dos impulsionamentos ilegais a favor de Bolsonaro, ou contra seus adversários, durante a campanha presidencial de 2018. O ministro Og Fernandes abriu mão até mesmo de esperar a decisão do Supremo sobre a legalidade do inquérito das fake news, cujo julgamento se encerrará nesta semana, quando também expira o prazo de 15 dias dados à Polícia Federal para entregar os laudos.
El País: O labirinto de Bolsonaro
O mais negacionista dos líderes eleitos democraticamente na pandemia, presidente flerta com o autoritarismo e evoca militares para tentar se blindar de tentativas de destituição
Naiara Galarraga Gortázar, do El País
Seguir a política brasileira é uma mistura entre subir numa montanha russa e ver uma telenovela. Trepidante, o enredo é sempre complexo. Principalmente quando alguém como Jair Messias Bolsonaro, de 65 anos, praticamente monopoliza a cena. Nestes tempos de pandemia, ele conseguiu se destacar no mundo como o mais negacionista entre os líderes eleitos democraticamente e o único que demitiu não um, mas dois ministros de Saúde. Em vez de dedicar seus esforços para gerir a crise do coronavírus, concentra-se em satisfazer seus fãs com selfies e apertos de mão. Resultado: a curva de contágios continua subindo no país mais populoso da América Latina, novo epicentro de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). O Brasil é o segundo país com mais casos e (e isso que pouca gente faz o teste) e o também o segundo com mais mortos ―mais de 42.000 no balanço mais recente, neste sábado.
Bolsonaro politizou a pandemia como poucos mandatários. Deixou isso claro ao proclamar: “Os de direita tomam cloroquina; os de esquerda, tubaína.” A polarização que atinge o Brasil nos últimos anos se estendeu ao coronavírus por obra do presidente ―que, de quebra, ativa sua base eleitoral.O Brasil é o segundo país do mundo em número de casos de Covid-19. A curva de contágios continua subindo
A crise sanitária preocupa, mas também inquietam cada vez mais os flertes de Bolsonaro com o autoritarismo. “É preciso resistir à destruição da ordem democrática, para evitar o que aconteceu na República de Weimar quando Hitler, após eleito pelo voto popular e posteriormente nomeado pelo presidente Paul von Hindenburg como chanceler da Alemanha, não hesitou em romper e em nulificar a progressista, democrática e inovadora Constituição de Weimar, impondo ao país um sistema totalitário de Poder”, escreveu o ministro Celso de Mello a seus colegas do Supremo Tribunal Federal (STF), dias atrás, pelo WhatsApp.
O presidente deixou claro, desde o primeiro contágio, que as recomendações sanitárias lhe pareciam uma idiotice; e os meios de comunicação, histéricos. Embora oscile de tom à medida que se abrem tumbas nos cemitérios, ele não deixou de incentivar atos multitudinários e, mais recentemente, incentivou apoiadores a invadir hospitais para checar se havia mesmo doentes neles. O que tira seu sono não é o vírus, e sim a possibilidade de que este arrase a economia, que parecia começar a se recuperar lentamente. Apesar das críticas dentro e fora do país, ele nunca deixou de defender a reabertura das empresas. Quer se desvincular a todo custo da hecatombe econômica que espreita logo ali. Os milhões de desempregados, um eventual aumento dos crimes e a instabilidade social... Quer assegurar que a culpa pela situação que o país enfrentará na pós-pandemia poderá ser jogada em outros ―os governadores, os prefeitos. E evitar, de qualquer jeito, que um bichinho invisível frustre sua reeleição em 2022.
Bolsonaro ameaça não cumprir ordens que considera “absurdas”. Nesta sexta, fez seu ministro da Defesa acompanhar uma nota em que diz que não apenas ele, mas também as Forças Armadas, não vão cumprir “ordens absurdas” ou vereditos de “julgamentos políticos”. A escalada retórica coincide com as novas frentes se abrem contra dele. A demissão de um símbolo anticorrupção como o ex-juiz Sergio Moro desatou várias reações em cadeia. A investigação que o Supremo abriu para saber se o presidente interferiu na Polícia Federal para proteger seus filhos, o espetáculo de uma reunião ministerial que mais parece um encontro “conspiranoico” e uma avalanche de pedidos de impeachment. Nesta semana, uma nova trama se juntou à coleção de problemas: dois dos oito processos contra a chapa Bolsonaro-Mourão começaram as ser julgados no TSE (Tribunal Supremo Eleitoral). Apesar dos trâmites serem extremamente lentos, as ações, especialmente as que investigam o suposto envolvimento de sua campanha em um esquema massivo de fake news, podem custar o mandaro a ele e ao vice. Bolsonaro está fraco, sim, mas a chave é quanto. “É o seu momento de maior fraqueza com relação ao poder institucional. Mas, se olharmos fora do campo democrático, não saberia dizer se ele está mais fraco ou mais forte”, explica Flávia Bozza Martins, professora de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná. “Sempre tivemos Governos que, com erros e acertos, tinham um pacto com os princípios democráticos.”
O ambiente político está muito tenso. A erosão da democracia avança com os constantes ataques do mandatário à separação de poderes e à imprensa. Bolsonaro legitima o golpismo que cresce em grupos de WhatsApp quando, nos atos públicos, incentiva os seguidores que defendem uma intervenção militar. Os desmentidos dos ministros militares são quase rotina. A cúpula das Forças Armadas parece não estar confortável, mas, ao mesmo tempo, a sua cara mais visível é justamente o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, que se mostrou ao lado de Bolsonaro em manifestações e agora na nota ameaçadora.
Nesse contexto, não surpreende que a rejeição a Bolsonaro bata recordes. Seus críticos, que antes da pandemia eram metade dos entrevistados, agora são dois terços. Os bolsonaristas mais pragmáticos, os que votaram nele para ver o Partido dos Trabalhadores (PT) longe do poder, agora o abandonam por causa de Sergio Moro ou porque veem o líder avançando sem considerar os perigos. Mas esse um terço que ainda o apoia se mantém firme. São os bolsonaristas duros, os que viram a demissão de Moro como uma traição. Os que votaram no capitão reformado para dar um bom “chute no traseiro” do sistema. “São os que se extasiam ao vê-lo na reunião ministerial enquanto fala dezenas de palavrões, os que consideram que esse vídeo mostra o Bolsonaro genuíno.”
É um respaldo sólido. Três vezes maior que o apoio que Dilma Rousseff tinha quando caiu no impeachment de 2016. Embora haja dezenas de pedidos de destituição, neste momento as contas para um julgamento político como aquele são insuficientes. Bem sabe disso a destituída presidenta de esquerda. “Bolsonaro tem os votos garantidos para impedir um impeachment. Esta será uma luta longa”, explicou Dilma recentemente a um grupo de correspondentes por videoconferência. Uma destituição assim demanda o que a jornalista Vera Magalhães chama de “uma alinhamento de astros: vontade do Congresso, apoio popular, uma economia em frangalhos e justificativa de crime de responsabilidade.” Até pouco tempo, as únicas manifestações de rua desde que a pandemia colocou meio país em quarentena eram as de partidários de Bolsonaro, exigindo a flexibilização das medidas de segurança. Mas esse quadro começou a mudar há duas semanas, com atos anti-Bolsonaro de torcidas organizadas que se autodenominam “antifascistas” ao qual se uniram também movimentos antirrascistas e alguns partidos de oposição —neste domingo, os dois lados prometem voltar às ruas. Na economia, todos os indicadores são ruins, mas ainda não estão em queda livre, embora o Banco Mundial preveja para o Brasil uma recessão pior do que a média mundial, com recuo de 8% em 2020. Por fim, resta ver as chances de prosperarem as acusações contra ele no campo legal, já que em todos os caminhos, menos o do TSE, é preciso autorização do Congresso para avançar.
O impeachment é a via política clássica, precisando do endosso inicial do presidente da Câmara dos Deputados, até agora inexistente, para existir. Mas também existe a via penal, no inquérito que corre no Supremo. Embora ainda em fase de investigação, é a frente mais avançada. O procurador-geral, apontado por Bolsonaro em setembro passado, decidirá se há material para denunciá-lo ―mas, em qualquer caso, o pedido precisaria de autorização do Congresso para virar uma ação penal e afastar o presidente. A tentativa de se blindar com apoio parlamentar está em pleno vapor. O presidente, que que governou o primeiro ano com uma maioria parlamentar instável, agora investe em assegurar cargos para garantir os votos do chamado Centrão. Recriou até um ministério exclusivamente para isso.
No horizonte, há outro fator: o general da reserva Hamilton Mourão. O vice-presidente assumirá o poder se Bolsonaro cair —salvo que ambos sejam retirados nas ações que correm no TSE. Ainda que Mourão tenha sido a primeira escolhida do presidente, os seguidores de Bolsonaro consideram que o fato de Mourão proceder das Forças Armadas poderia ser um elemento dissuasivo ante a tentação de destituir o presidente. A cientista política Martins aponta outro fator importante: “Mourão não é um político, o que dificulta sua conversa com o Congresso” para realizar uma eventual destituição. Salvo surpresas, as eleições municipais previstas para o fim do ano, e a renovação do comando do Senado e da Câmara no começo do ano que vem, serão o melhor termômetro para medir as forças de Bolsonaro e seus aliados.
Demétrio Magnoli: Pela esquerda ou pela direita, país não dá a mínima para a educação pública
Área foi catalogada oficialmente como a mais supérflua das 'atividades não essenciais'
O plano de Doria saiu há 18 dias, com cinco colunas descrevendo as fases de reabertura de São Paulo e 15 linhas elencando previsões de reativação de cada atividade.
Lá no fim, na linha educação, um retângulo vazio indica a ausência de previsão de retomada de aulas presenciais. Escolas, só depois de indústrias, escritórios, shoppings, igrejas, parques, restaurantes, bares, passeatas e futebol. A história se repete, Brasil afora. A educação foi catalogada oficialmente como a mais supérflua das "atividades não essenciais". Weintraub é a cara da elite governante nacional.
Ciência? Um artigo publicado na Lancet (https://bit.ly/30sNBeN), revisando diversos estudos internacionais, conclui pela falta de evidências de que o fechamento de escolas seja efetivo contra a Covid-19, cujo comportamento epidêmico é o oposto daquele da gripe: o coronavírus tem alta transmissibilidade mas incidência muito menor em crianças. Experiência? Na Europa, 22 países reabriram as escolas no ponto de partida da flexibilização, seis a oito semanas atrás, seguindo restrições sanitárias, sem gerar focos significativos de contágio.
A esquerda enxerga a escola pelos óculos do sindicalismo (remunerar professores), enquanto a direita a vê pelos olhos do mercado (fornecer mão de obra).
Se os professores continuam recebendo e os empregadores só precisam de um contingente limitado de profissionais qualificados, quem se importa com o fechamento das escolas?
Boatos sugerem que São Paulo reativará a rede pública em agosto, mas na forma de piada macabra, com um dia de aula semanal por turma. Inexiste escândalo. Na imprensa, formadores de opinião ignoram o assunto --e quando, raramente, circulam ao seu redor, é para fingir que acreditam na lenda do ensino a distância nas escolas públicas.
A prioridade europeia de reinício das aulas não se deve à merenda e apenas parcialmente ao fardo imposto às famílias trabalhadoras de cuidar o dia todo de crianças sem aulas. Por lá, a urgência derivou do reconhecimento dos direitos dos alunos, conceito desconhecido entre nós.
Os educadores sabem que a falta prolongada de escola prejudica, para sempre, o desenvolvimento de habilidades cognitivas essenciais.
As crianças e adolescentes sem aulas ao longo de um semestre inteiro estão sofrendo uma amputação intelectual oculta, que as acompanhará pelo resto da vida. Claro, isso com exceção dos filhos da elite, que dispõem de livros em casa, ensino a distância razoável e aulas particulares de reforço. Ah, sim: os filhos dos governantes pertencem ao grupo da exceção.
A cegueira de classe manifesta-se como epidemiologia militante. "Deus! Você arriscaria uma única vida só por causa de artigos científicos e das experiências de 22 países?"
Vidas relevantes, vidas descartáveis. Os fundamentalistas da saúde simulam não saber que, nas periferias urbanas, os mais jovens jamais praticaram o caro esporte da quarentena. Eles não aventam a hipótese de que, nas escolas, os alunos venham a receber orientações sanitárias superiores às vigentes nas ruas.
É verdade que três quartos das escolas municipais de São Paulo carecem de sabonete líquido nas pias (Folha, 28 de maio). Mas, com muito boa vontade, Covas poderia resolver isso, no hiato entre uma e outra intervenção viária piramidal."Lápis, nunca mais/Livros, nunca mais/Do verão/Até o outono/Talvez não voltemos jamais/A escola foi estilhaçada/Sem escolas no verão/Sem escolas para sempre".
Doria tinha 14 anos em 1972, quando o roqueiro Alice Cooper cantava "School's Out" enredado numa cobra de estimação. Acho que ele ouviu, gostou e dançou. Hoje, aos 62, deixando em branco o último retângulo do seu plano, realiza um sonho delinquente.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Míriam Leitão: O louco que nos governa
O país já está anestesiado pelas atrocidades diárias do presidente da República. Ainda assim tomou um susto com a criminosa atitude de estimular pessoas à invasão de hospitais. Isso é crime contra a saúde pública, é perturbação da ordem e incitação à prática de ilícitos. Coloca em risco pacientes, médicos e a população. Os seguidores do presidente podem seguir a proposta e executar tal desatino. Ele avisou que encaminhará os vídeos que receber à Polícia Federal. Se o fizer, será denunciação caluniosa. O negacionismo de Bolsonaro levou-o à loucura. Um louco nos governa.
Vamos olhar as leis. O código penal estabelece o crime de pôr em perigo a saúde de outrem (artigo 132), violação de domicílio (150) , infração de medida sanitária (268), incitação ao crime (286). Atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de utilidade pública (265). Na lei de abuso de autoridade, o artigo 22 estabelece que é crime “invadir ou entrar astuciosamente ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio”, no artigo 25, obter provas, em procedimento de investigação ou fiscalização, de forma ilícita. Essa lei prevê o ato de cometer crime por meio de terceiros. Na lei das contravenções penais, artigo 42: “perturbar alguém, o trabalho, ou o sossego alheios, com gritaria ou algazarra”.
Para entrar em um hospital, em qualquer momento, é preciso apresentar documentos, passar pela segurança, saber se a pessoa pode receber visita, lavar as mãos, passar álcool gel, respeitar as restrições. Numa pandemia, todos esses cuidados aumentam. Se é crime invadir um hospital em períodos normais, imagine no meio de uma pandemia. Os governadores do Nordeste em carta o chamaram de inconsequente.
A proposta é um desrespeito aos pacientes, invasão de privacidade desses doentes, ameaça aos médicos e enfermeiros e coloca em risco a própria pessoa que o fizer, porque ela pode contrair o vírus e ser um vetor de contágio. O presidente está levando pessoas à morte com uma fala como essa.
Confesso que num primeiro momento não acreditei. Dei ao presidente Bolsonaro o benefício da dúvida. Infelizmente era verdade. O crime é agravado por ele ser o presidente da República. Ele acha que assim serão desmascarados os governadores e prefeitos, que, no seu delírio persecutório, estariam mentindo sobre os números de mortes e infectados e a respeito da sobrecarga do SUS, para ter ganhos políticos.
Bolsonaro repetiu a afirmação de que ninguém no Brasil morreu por falta de leitos ou respiradores. Está convencido de que há uma conspiração entre imprensa, governadores, Organização Mundial da Saúde (OMS), os que ele acha que são seus inimigos. Todos estariam inventando mortos. Indício claro de transtorno psíquico.
Bolsonaro voltou a atacar o “penúltimo”, que é como ele chama o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, dizendo que o número está alto agora porque Mandetta havia “dado uma inflada”. Vamos desenhar para o primeiro mandatário: quando ele foi demitido, em 16 de abril, os números oficiais eram de 1.933 mortos e de 30.449 contagiados, de acordo com o Ministério da Saúde. Ontem, estávamos com mais de 41 mil mortos e mais de 800 mil infectados. O aumento desde então foi de 20 vezes. Mesmo que todos os óbitos registrados no período do ex-ministro fossem apagados, ainda assim o país teria 39 mil mortes. Aliás, desde que o general Pazuello assumiu, as vítimas fatais pularam de 14.817 para 41.828.
Na frente desta guerra pela vida estão médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, todo o pessoal de apoio. Eles trabalham duro, diariamente, longe muitas vezes das suas famílias, com risco de contaminação, em cargas horárias pesadas, com equipamento de proteção desconfortável e insuficiente, vendo a falta de remédios, passando por momentos de estresse. Inúmeros integrantes das equipes médicas dos hospitais públicos já morreram de Covid-19. Como vítimas desta tragédia, estão os doentes, tentando se recuperar nos hospitais, ou sofrendo numa UTI entre a vida e a morte. Seus parentes estão aflitos à espera de notícias. A todos eles, médicos, pacientes, familiares, o presidente Jair Bolsonaro desrespeitou com essa imperdoável atitude de convocar seus seguidores para invadir hospitais. Que pessoa sã faria isso?
El País: Brasil salta de quinto a segundo país com mais mortos por coronavírus no mundo em duas semanas
Com 41.828 óbitos, país ultrapassa Reino Unido. Pesquisadores veem aceleração da doença com reabertura do comércio. Projeção calcula 60.000 mortos até o fim do mês
Bastaram duas semanas para o Brasil saltar da quinta para a segunda posição no ranking de países com maior número de mortes pela covid-19. Nesta sexta-feira, o país ultrapassou o Reino Unido (que tem 41.481 mortes) ao registrar 41.828 vítimas fatais do novo coronavírus. De acordo com os dados do Ministério da Saúde, o país soma 828.810 infecções —com 909 novos óbitos e 25.982 casos notificados em 24 horas— e ainda investiga 4.033 mortes.
Há um mês, autoridades de saúde e cientistas alertam sobre a tendência de que o Brasil se torne o próximo epicentro global da pandemia, posto atualmente ocupado pelos Estados Unidos, com 2.083.548 de casos confirmados e 116.130 mortes. No ranking de óbitos por milhão de habitantes, o Brasil ocupa a 11ª posição global, com 180 mortes por milhão de pessoas. A Bélgica lidera a contagem, com 831 óbitos por milhão, seguida pela Espanha, com 580 mortes por milhão, de acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
No início de maio, quando o Ministério da Saúde sequer registrava 8.000 óbitos pelo novo coronavírus, estudos da Universidade Johns Hopkings e um levantamento do Observatório Covid-19 BR indicavam que o país superaria 1,6 milhão de infecções. Na mesma época, especificamente no dia 8 de maio, a Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto publicou um estudo que apontava que o Brasil já teria dois milhões de casos de covid-19. Considerando essa estimativa, teríamos, hoje, quatro milhões de casos.
Em 20 de maio, o EL PAÍS estimou que apenas um em cada 20 casos é notificado pelo Governo e que o número de infectados no Brasil pode chegar a 3,7 milhões de pessoas. Esse é o número obtido quando se aplica o método de um grupo de matemáticos e epidemiologistas da London School of Hygiene and Tropical para calcular a subnotificação.
Vitor Engrácia Valenti, doutor em Ciências e professor da UNIFESP, que também trabalha com projeções feitas pela Oxford University de Londres, aponta que o Brasil já pode ser o epicentro global da pandemia. “Era esperado que, com uma estimativa de comportamento da doença, o pico de contágios chegasse em dois ou três meses depois do primeiro caso, mas a covid-19 ainda está em avanço no Brasil”, diz o pesquisador.
Valenti aponta que, com o recente relaxamento das medidas protetivas —comércio e outros serviços reabriram esta semana em São Paulo, a principal cidade do país— o Brasil pode registrar mais de duas mil mortes diárias no começo de julho. Já o professor de medicina Domingos Alves, responsável pelo Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, esse registro pode ser ainda maior. “Nós somos o único país no mundo que depois do dia 50 estava acelerando no número de casos e de óbitos. Temos projeções que indicam que podemos chegar a 5.000 óbitos por dia em julho”, afirma.
“Como não podemos prever o comportamento das pessoas, se vão respeitar o isolamento social ou não, é possível que tenhamos 3.000 ou 4.000 mortes por dia no próximo mês”, pondera Valeti. Um estudo do qual ele fez parte demonstra que o isolamento salvou pelo menos 10.000 vidas no país. Para o cientista, o que é certeza é que já não existe a possibilidade de se falar em um “cenário otimista” para o Brasil. “Em nossa projeção realista, o país teria 41 mil óbitos por covid-19 no dia 9 de junho, uma cifra muito próxima da registrada oficialmente na data [38.406], considerando a polêmica sobre a transparência nos números divulgados pelo Ministério. De acordo com a projeção pessimista, podemos chegar a 60 mil mortes até o final deste mês”.
Rogério Furquim Werneck: Limites do senso de missão
Militares vêm sendo arrastados para constrangedor comprometimento com os descaminhos do governo
Engolfada pelo turbilhão da pandemia, da recessão e da crise política, a nação assiste, estarrecida, à escalada de desatinos que continua a marcar a forma com que o governo vem lidando com o devastador alastramento da Covid-19.
Basta acompanhar o que vem ocorrendo em outros países, inclusive vizinhos, para perceber quão desastrosos foram os equívocos por aqui cometidos nessa frente de batalha. E é preciso ter em conta que, ao amplificar as proporções da pandemia e alongar sua fase mais crítica, o governo vem condenando o país a enfrentar uma recessão cada vez mais profunda e um quadro fiscal que se torna a cada dia mais alarmante.
Tendo apostado no discurso irresponsável de desdém pela pandemia e na fantasia de poder empurrar o ônus político da recessão para governadores e prefeitos, o presidente parece ter-se dado conta, afinal, de quão impensada se revelou sua aposta. E já não esconde sua crescente apreensão com o desgaste político que o avanço da pandemia vem impondo ao governo.
Aflito com a torrente de más notícias, não ocorreu ao Planalto melhor ideia do que passar a maquiar os dados de disseminação da Covid-19, acompanhados a cada dia, com crescente interesse, pela opinião pública. E é espantoso que tenha encontrado no Ministério da Saúde quem se prestasse a levar tal desatino adiante.
Tendo já se defrontado com dois médicos que se recusaram a contemporizar com seus desmandos, o presidente preferiu manter como ministro interino da Saúde o oficial-general de intendência que vem tripulando altos cargos do ministério com dezenas de militares.
Será lamentável se, no combate à pandemia, militares continuarem a ser mobilizados para preservar as linhas de suprimento da longa marcha de insensatez que vem sendo promovida pelo governo Bolsonaro, e permitir que o país se embrenhe ainda mais no terreno da irracionalidade.
O desatino, já sustado pelo STF, enseja uma discussão mais ampla sobre a forma como, no Brasil, militares encaram o papel que lhes cabe quando nomeados para altos cargos públicos civis no governo federal. Há boas razões para crer que, em geral, percebem suas nomeações como missões a eles atribuídas pelo presidente da República, seu superior hierárquico máximo, como comandante em chefe das Forças Armadas.
O problema é que isso os deixa não só em posição desconfortável para se opor a encaminhamentos inadequados de certas questões, como resistentes a pedir demissão. E, portanto, mais vulneráveis a manipulações do presidente. Não é por outra razão que militares de todas as patentes, do Ministério da Saúde ao Palácio do Planalto, vêm sendo progressivamente arrastados para constrangedor comprometimento com os descaminhos do governo Bolsonaro.
Não faltará quem alegue que não há o que fazer a respeito. Que a percepção do cargo público civil como uma missão da qual não se pode desvencilhar é intrínseca aos militares. Não é uma alegação convincente. No próprio governo Bolsonaro, já houve vários militares cujas reações não se enquadraram nesse padrão. Resistiram ao que deles foi exigido e acabaram saindo do governo.
É bom também ter em conta o que vem ocorrendo nos EUA, num governo tão caro ao Planalto. Ao longo do mandato de Donald Trump, houve muitos casos de militares que se recusaram a compactuar com os desígnios do presidente. E que acabaram se demitindo ou sendo exonerados. Ou vindo a público para se retratar, como fez agora, com grande repercussão, o general Mark Milley, no mais alto comando militar dos EUA.
Pobre do país cujo presidente não teme que ministros e ocupantes de altos cargos públicos se demitam. No caso do governo Bolsonaro, é mais do que sabido que, na área econômica, as coisas só puderam ser mantidas sob relativo controle porque o presidente sempre temeu que um abuso maior de sua parte pudesse levar à demissão do ministro da Economia. Por fantasioso que seja, vale indagar: como teria sido este governo se, desde o início, Bolsonaro estivesse tomado do mesmo temor em relação aos demais ministros?
*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio