pandemia

Hélio Schwartsman: Desigualdade na morte durante a pandemia

É preciso monitorar de perto os pacientes para reduzir a mortalidade na rede pública

A Covid-19 funciona em muitas situações como uma enzima, acelerando processos que já estão em curso. Isso é particularmente notável na economia (aumento da desigualdade), mas também na política (governos autoritários acumularam superpoderes) e até no comportamento (expansão do home office).

A saúde não é exceção. Um bom exemplo disso está no levantamento feito pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira, que revela que a mortalidade de pacientes de Covid-19 em UTIs públicas é quase o dobro da das privadas (38,4% contra 19,5%). Os dados foram obtidos de 16.399 pacientes de Covid-19 que passaram por UTIs de março a maio.

A principal explicação para a diferença é que os pacientes da rede pública já chegaram às UTIs em pior estado. Numa das escalas que mede a gravidade, a Sofa, usuários do sistema público apresentaram um índice que é quase o dobro do dos serviços privados. E isso apesar de a taxa de comorbidades dos dois grupos ser a mesma e de a concentração de idosos ser maior nos hospitais privados.

Uma possibilidade é que a superlotação tenha retardado a ida dos pacientes da rede pública para a UTI. Isso pode ter acontecido em alguns casos, mas não parece ser o panorama geral, já que a média de ocupação das UTIs não excedeu muito os 75% em nenhum dos dois sistemas.

Também é interessante notar que a diferença na mortalidade foi bem menor entre os pacientes ventilados (70,5% contra 63,6%) do que entre os que precisaram de UTI, mas não de suporte respiratório mecânico.

Disso tudo, parece lícito concluir que a melhor maneira para reduzir a mortalidade na rede pública é monitorar de perto os pacientes, internados ou não, para levá-los à UTI ao primeiro sinal de agravamento e postergar ao máximo a intubação, investindo em pronação e fisioterapia. O maior quadro de equipes multiprofissionais é um dos traços que distingue a rede privada da pública.


Eliane Brum: Mães Yanomami imploram pelos corpos de seus bebês

A indignidade com que os indígenas são tratados na pandemia de covid-19 abriu um novo e pavoroso capítulo de violação dos direitos dos povos originários pelo Estado brasileiro

Três mulheres vivem um horror para o qual será preciso inventar um nome. Elas são Sanöma, um grupo da etnia Yanomami, e sua aldeia, Auaris, fica no que os brancos chamam de Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Elas não compreendem a ideia de fronteira, para elas a terra é uma só —e não tem cercas. Elas não falam português, elas falam a sua língua. Em maio, essas mulheres e seus bebês foram levados para Boa Vista, capital de Roraima, com suspeitas de pneumonia. Nos hospitais, as crianças teriam sido contaminadas por covid-19. E lá morreram. E então seus pequenos corpos desapareceram, possivelmente enterrados no cemitério da cidade. Duas das mães estão com covid-19, amontoadas na Casa de Saúde Indígena (CASAI), abarrotada de doentes. Lá, corroídas pelo vírus, elas imploram pelos seus bebês.

Com a ajuda de várias pessoas, uma delas conseguiu me enviar uma mensagem, gravada, em Sanöma. Ela conta o que vive. E diz: “Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”. Eu escuto a mensagem antes da tradução. Não entendo as palavras. Mas compreendo o horror. A linguagem universal daquela que está sendo arrancada do mundo dos humanos.

Ser arrancada de uma aldeia no interior da floresta amazônica porque seu filho tem sintomas de uma doença, a pneumonia, transmitida pelos primeiros brancos que dizimaram parte da população Yanomami, no século passado, é uma violência. Passar deste mundo para o espaço de um hospital, e de um hospital superlotado por conta da covid-19, é outra violência. Ter seu bebê contaminado por uma segunda doença, quando estava ali para ser curado da primeira, que ainda era uma hipótese, é mais uma violência.

E então ela perde o filho. Cada uma delas perde o filho.

As mães Sanöma não entendem o português. Apesar de Roraima ser o Estado mais indígena do Brasil e quase duas centenas de Yanomami já terem sido contaminadas pelo novo coronavírus, não há tradutor para essa população. Ninguém explica nada a elas. As mulheres não entendem o que os brancos falam. E os corpos de seus filhos desaparecem. Uma das lideranças da comunidade, que entende português, explica que os três bebês podem ter sido enterrados no cemitério. Mas não há certeza. Ninguém dá certeza nem a elas nem às lideranças.

O procurador da República em Boa Vista Alisson Marugal enviou um ofício ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) para obter informações sobre o paradeiro dos corpos dos bebês. “A situação é muito complicada, especialmente com relação à população Yanomami. Tivemos quatro óbitos oficiais e, em todos eles, tivemos problemas. O primeiro foi o caso do adolescente de 15 anos. Tivemos problemas de atendimento, tivemos falta e desencontro de informações e estamos também apurando se houve falta de assistência médica”, afirma. “O caso dos bebês Sanöma só começamos a apurar agora. Não sabemos se houve o diagnóstico de covid-19 e, se houve, qual protocolo foi aplicado e qual foi o local de enterro.”

Marugal assumiu o posto em plena pandemia, conta estar trabalhando de segunda a segunda para enfrentar um cenário com grandes desafios. “Não descarto a possibilidade de, futuramente, ingressar com uma ação civil pública pedindo danos morais não só para os pais, mas para toda a etnia yanomami”, afirma.

Enterrar o corpo de um Yanomami é arrancá-lo do mundo dos humanos

A quantidade de violência contida nessa série de atos infligidos às mulheres Sanöma é enorme até mesmo para os padrões do Estado brasileiro, um histórico agente de agressões contra os povos indígenas. Mas a violência avança para muito mais, porque se, para um branco, a dor é a que tantas famílias estão vivendo, nesta pandemia, sem poderem se despedir daqueles que amam, sem poderem sepultá-los devidamente, devido ao protocolo de biossegurança, para uma mulher Yanomami, para um homem Yanomami, enterrar um dos seus é incompreensível —e inaceitável.

Os Yanomami não são enterrados. Nunca, sob nenhuma hipótese se enterra um corpo. Os corpos são cremados e há um longo ritual para que o morto possa morrer para si e para a comunidade. Os Yanomami não são indivíduos, como um branco que vive no Brasil ou na Espanha ou nos Estados Unidos é. Um Yanomami se compreende como parte de uma comunidade e se entrelaça com várias dimensões de mundos visíveis e invisíveis em relações mediadas pelos xamãs. Os rituais de morte devem ser seguidos em todos os detalhes e levam meses e até anos para se concluírem. Várias aldeias vão até a comunidade do morto para participar da cremação, num primeiro momento. As cinzas então são guardadas.

Meses depois haverá a segunda parte, quando os visitantes mais uma vez retornam para as celebrações. O morto então será lembrado em seus feitos, em suas desavenças, em todas as marcas importantes de sua trajetória. Será lembrado para então poder ser esquecido, suas marcas serem apagadas e a comunidade seguir adiante. No último ato, as cinzas dos mortos são diluídas em mingau de banana para que aquele que morreu se dissipe no corpo de todos.

O ritual faz o morto morrer também como memória, para que os vivos possam viver. Se o ritual não for realizado, o morto não poderá ser esquecido nem se deixará esquecer, o que provoca muito mal a seus parentes e a toda a comunidade. O ritual de morte dos Yanomami é de uma extrema complexidade e sabedoria em sua simbologia. O rito é coletivo e é também momento de estabelecer relações sociopolíticas e até amorosas. Ao final, há apenas um morto, o que morreu —e não vivos que seguem mortos por não terem sido capazes de fazer o luto, como acontece tantas vezes no mundo dos brancos, que já não têm tempo nem espaço para fazer a transmutação da falta em ausência de que falava Carlos Drummond de Andrade.

Enterrar o corpo de um morto é um horror absoluto para o povo Yanomami. É arrancá-lo do mundo dos humanos. “Para essas mães, saber que seus filhos estão enterrados no cemitério da cidade é equivalente a uma mulher branca ter que conviver com a ideia de que o corpo de seu filho está jogado e exposto em praça pública”, diz Sílvia Guimarães, professora de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), que faz pesquisa junto ao povo Sanöma há muitos anos. Ela é uma das 40 pesquisadoras e apoiadores da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, formada para enfrentar a invisibilidade dada ao sofrimento dos Yanomami, durante a pandemia, a partir da divulgação de análises qualificadas.

Sem um plano emergencial, 40 % do povo Yanomami pode ser contaminado

Terra Indígena Yanomami abarca uma área de cerca de 9,6 milhões de hectares na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, nos Estados do Amazonas e de Roraima. Mais de 26.000 indígenas se distribuem em mais de 300 aldeias. O subgrupo Sanöma é composto por 3.164 pessoas, segundo dados de 2018 do Instituto Socioambiental. Alguns grupos vivem em isolamento voluntário, o que significa que preferem não conviver com os brancos. Desde que os Yanomami tiveram os primeiros contatos, a partir de 1910, eles vêm sendo dizimados por doenças, que chamam de xawara, e também a tiros, pelos garimpeiros que invadem suas áreas em busca de ouro.

Davi Kopenawa, o grande intelectual e líder Yanomami, tem denunciado ao mundo que seu povo corre o risco de genocídio. Ele chama os brancos de " povo da mercadoria”. Seu filho, Dario Kopenawa, da Hutukara Associação Yanomami, lidera a campanha “Fora Garimpo! Fora Covid!”. Em plena pandemia, há mais de 20.000 garimpeiros na terra Yanomami, considerada a mais vulnerável ao novo coronavírus na Amazônia. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais, pelo Instituto Socioambiental e pela Fundação Oswaldo Cruz mostrou que, caso não exista um plano de contingência emergencial para a transmissão entre os Yanomami, 40% da população que vive em aldeias próximas ao garimpo poderão ser contaminados.

Segundo o boletim mais recente da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, de 21 de junho, há 168 contaminados e cinco mortos. A Casa de Saúde Indígena (Casai), onde ficam os Yanomami levados à cidade, tornou-se um dos principais focos de contaminação. Segundo a rede de pesquisadores, mais de 80 indígenas já foram infectados ali, 48% dos casos de covid-19 entre os Yanomami e Ye’kwana. Há casos de pacientes Yanomami que tiveram alta de outras doenças e aguardavam há mais de dois meses seu retorno à Terra Indígena. Acabaram sendo infectados por covid-19 na Casai.

Desde que o primeiro adolescente Yanomami, de 15 anos, morreu de covid-19, em 9 de abril, o desespero se multiplicou. Vítimas de massacres de todos os tipos perpetrados pelos brancos, parecia impossível que houvesse alguma forma de violência ainda desconhecida. Mas sempre há. E então os Yanomami começaram a ver os corpos desaparecerem, seguidos de explicações vagas de enterros por parte de autoridades que mal conseguem entender. “É um enorme desrespeito com a nossa cultura. Os corpos são enterrados sem que ninguém explique nada, sem que as famílias sejam consultadas, sem que peçam autorizações para as mães. Elas não sabem onde seus filhos estão enterrados, eu, que sou representante, não tenho nenhuma ideia de onde estão enterrados”, diz Dario Kopenawa. “Queremos saber onde estão e quando poderemos desenterrar os corpos para levá-los para a aldeia, onde nasceram e cresceram, onde seus pais, seus tios, seus primos estão morando, onde a alma das crianças pode ser feliz. Entendemos a necessidade dos protocolos [de biossegurança], mas precisamos ter informação e compreender o que vai acontecer. Precisamos saber quando os corpos serão devolvidos. Queremos saber quanto tempo o vírus sobrevive no corpo. Se os infectologistas nos explicam, a gente entende e pode respeitar. E podemos transmitir essa informação para a comunidade.”

O protocolo de biossegurança, segundo a Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, determinaria três anos para a exumação do corpo, mas até agora não há nem mesmo comprovação de que as crianças tinham a doença. “Por que três anos? Por que não mais? Por que não menos? Quem explica às mulheres Yanomami?”, questiona Sílvia Guimarães, em entrevista ao EL PAÍS.

Braulina Baniwa é uma das mulheres indígenas que, apesar de pertencer à outra etnia, se solidarizou com as mães Sanöma: “Essas mulheres estão sofrendo uma violência sem tamanho. É uma parte de cada uma delas que vai ficar fora do território”, diz. “Além de tudo o que estão vivendo, elas não falam português e não há sensibilidade para entendê-las.” Antropóloga, ela faz parte do Laboratório Matula, criado a partir do grupo de pesquisa do CNPq “Sociabilidades, diferenças e desigualdades”.

Em carta pública, o Matula afirmou: “No caso das mulheres Sanöma, sobressai aqui a dor da indígena mulher nesta pandemia, que deixa os corpos de seus filhos sem a possibilidade de negociar os termos das cerimônias de encerramento desta vida, o que viola seus direitos enquanto povo. Essa cena se repete em vários locais do Brasil, mas, qual é o peso desta dor para uma indígena mulher, que não domina o português, encontra-se distante de sua rede de apoio e aguarda para saber se está contaminada? Qual é a possibilidade de ter sua fala ouvida, de ter sua experiência sobre a morte compartilhada e decidida? Concordamos que as formas de contágio são múltiplas e de grandes riscos, mas há ainda algumas perguntas a serem feitas: é possível ser transparente, se abrir para o diálogo, compartilhar conhecimento e decisões? Que critérios éticos iremos viver nesta pandemia? Essa pandemia escancara a desigualdade social e o que era normalizado. A infraestrutura dos serviços públicos se omitiu para essa parcela da população, os riscos das mortes dos filhos e suas mães indígenas se agudizam. E vigora a paralisia para a ação. As mulheres Sanöma são a força dessa mulher indígena, do território, da floresta, da roça, do alimento, dos rios, que manejam para cuidar da vida e merecem respeito, cuidado e admiração por parte do Estado”.

Mulher Sanöma, na região do rio Auaris, se preparando para ir para a roça.
Mulher Sanöma, na região do rio Auaris, se preparando para ir para a roça.SÍLVIA GUIMARÃES / ARQUIVO PESSOAL

As lideranças Yanomami reivindicam um protocolo indígena para os mortos por covid-19. “Queremos que possa haver uma higienização dos corpos ou, se isso não for possível, que eles sejam cremados. Então poderemos levar as cinzas para as aldeias”, diz Dario Kopenawa. Não há crematório em Boa Vista. E parece também não haver vontade de compreender o drama dos indígenas numa sociedade em que impera o racismo contra os povos originários —896.917 pessoas, o equivalente a 0,47% da população total do Brasil, segundo o Censo do IBGE de 2010. A riqueza cultural que representam é expressada por 256 povos que falam mais de 150 línguas diferentes. Dizimados por vírus e por balas há cinco séculos, eles resistiram até hoje. E então chegou a covid-19. O Governo Bolsonaro, que tem como um dos principais projetos abrir as terras indígenas para exploração privada, nada faz de efetivo para barrar a doença que já atravessa a floresta amazônica produzindo um novo massacre.

Segundo Dario Kopenawa, os Yanomami foram contaminados de covid-19 pelos garimpeiros. Em Boa Vista, os garimpeiros não só circulam e entranham-se no setor público, por vários portas, como também viram monumento em praça pública. Essa realidade cotidiana expressa a tensão entre os povos originários e os brancos que lá chegaram levados por projetos de Estado, no início, depois pelos próprios pés. “Antes da pandemia nós já tínhamos a doença do garimpo, nossos rios estavam sendo contaminados por mercúrio, nosso povo morria de tuberculose e de pneumonia. Agora eles nos trouxeram também a covid-19”, diz ele. Com os garimpeiros, a malária também está se alastrando e fazendo vítimas entre os indígenas por todo o território. “E depois de tudo isso, eles nos enterram”, diz Dario Kopenawa. “Nunca houve um Yanomami enterrado antes. Nunca. Penso que é, sim uma violência. Mas penso que não nos consultarem nem pedirem nossa autorização é também um crime.”

Ao saber qual era o tema da reportagem, o coordenador interino do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami, Antonio Pereira, alegou ao EL PAÍS, por telefone, que não poderia responder às perguntas porque estava em reunião. Comprometeu-se a procurar a reportagem ao final de seus compromissos. Diante da insistência para marcar um horário, passou o telefone a um assessor, que afirmou que ligariam. Até a publicação desta reportagem, não foi possível restabelecer contato com o responsável pelo DSEI Yanomami.

O bebê que nasceu, morreu e desapareceu

Há ainda uma quarta mulher Yanomami, doente de coronavírus, que foi levada para ter o parto no hospital e nunca mais viu o corpo do bebê. O recém-nascido, segundo o procurador Alisson Marugal, teria morrido de complicações não conectadas com a covid-19, mas um servidor do hospital teria colocado no documento, indevidamente, uma suspeita por coronavírus. Segundo informações obtidas pelo EL PAÍS, a família pertence a um outro grupo Yanomami, que vive na região chamada Missão Catrimani, na aldeia Nara Uhi. Nascido prematuro de sete meses, o menino nasceu e morreu em 28 de abril. E também desapareceu.

O relato do pai deste bebê à Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana mostra como o vírus começou a dizimar os Yanomami —e também como o Estado se tornou um perpetuador de violência ao produzir novos sofrimentos. Este Yanomami é conhecido entre os brancos como Remo:

“Foi assim que aconteceu. Primeiro, o xamã André apresentou os sintomas de covid. Ele é mais velho, foi o primeiro a adoecer. Então, Miguel fez xamanismo para curar o pai e também adoeceu. Um dia depois que Miguel começou a se sentir mal, ele foi caminhando até o posto de saúde na Missão Catrimani. A terceira pessoa a adoecer na nossa comunidade foi minha mulher, Zita Rosinete, que estava grávida. Teve tosse, diarreia, febre, dor de cabeça, dor no peito e muita dor na barriga. Os xamãs não fizeram trabalho pra ela, porque ficaram com medo de adoecer, já que essa doença é muito forte.

No dia seguinte, depois que a Zita Rosinete teve febre, caminhamos até o posto da Missão. Eu fiquei muito triste lá. A Rosinete desmaiou três vezes. Estava muito fraca e com muita febre. No dia 27 de abril, fomos removidos de avião da Missão Catrimani para a maternidade em Boa Vista. Quando chegamos no hospital, ela desmaiou de novo e eu fiquei segurando ela... Então, talvez eu tenha Covid dentro de mim. Mas eu fiz o exame pelo nariz e pela boca, deu negativo. [Mais tarde Remo infectou-se na Casa de Saúde Indígena e teve um teste positivo para covid-19].

Minha mulher estava com muita dificuldade de respirar, estava muito fraca e quase morreu! E eu perguntei para o médico: ‘Será que ela vai morrer?’. ‘Não. Ela está um pouco forte por dentro ainda’, disse. Na maternidade, nos colocaram para dormir separados de outras pessoas.

Meu filho morreu. No dia 28 [de abril] mesmo, no dia em que nasceu, ele morreu. Nasceu de manhã e à tarde morreu. Zita Rosinete estava muito fraca, mas estava um pouquinho forte ainda, porque ela não queria morrer. Se tivesse pensado em morrer, ela morreria.

Eu não vi meu filho. A Zita Rosinete fez nascer o bebê, os médicos pegaram e disseram: ‘Levem para o hospital, para a UTI’. Então, ele morreu. Eu fiquei muito triste. Eu estou triste ainda. O médico não disse por que ele morreu. Só me perguntou: ‘Ei, você é papai?’. ‘Sim, eu sou papai’. ‘Desculpa aí, seu filho morreu. Ele estava com muita dificuldade de respirar e por isso morreu’.

Ele morreu acho que às 14h, mas não sei… Só tem no documento. Eu disse para o enfermeiro: ‘Eu quero visitar meu filho!’. Mas ele disse: ‘Espera, só depois. Os médicos estão examinando ainda’. Aí eu esperei, esperei, esperei e depois chegou informação: ‘Seu filho morreu de dia’. O corpo, acho que está lá ainda na UTI, eu não sei onde está. Na Casai [Casa de Saúde Indígena], eles também não disseram onde está o corpo do meu filho. Eles não dão informação sobre onde está o corpo. Eu tenho um papel que fala sobre o meu filho [declaração de nascido vivo] e aqui na Casai a enfermeira perguntou: ‘Onde é que está o seu filho?’. Eu disse: ‘Morreu!’. ‘Onde está o documento falando que ele morreu no hospital maternidade no dia 28?’. ‘Não sei! Os médicos não me deram!’”.

Remo e Rosinete só conseguiram voltar em 19 de junho para a sua aldeia. Sem o corpo do filho. E assim se abriu mais um rasgo de violência no povo Yanomami. O Ministério Público Federal está investigando o caso e também o de outras mortes de adultos cujo corpo é reclamado pelos Yanomami

O antropólogo francês Bruce Albert compara “o enterro secreto e compulsório (‘biosseguro’!)” das vítimas Yanomami da covid-19″ com o “‘desaparecimento” dos corpos das vítimas dos torturadores na ditadura militar (1964-1985). “Roubar os mortos alheios e negar o seu luto sempre foi o estágio supremo da barbárie, no desprezo e na negação do Outro (étnico e/ou político”, afirma em entrevista ao EL PAÍS. Albert escreveu, junto com Davi Kopenawa, um livro que é um marco na história da Antropologia: A queda do céu (em português, publicado pela Companhia das Letras).

Em 1993, o episódio conhecido como “Massacre de Haximu”, em que 16 indígenas foram assassinados por garimpeiros, mostra a importância inegociável que o povo Yanomami dá aos seus rituais funerários. “Mesmo com o terror de estarem sendo caçados pelos garimpeiros, eles não hesitaram em colocar sua vida em risco para recuperar seus mortos, chorá-los e queimá-los devidamente em seu caminho de fuga”, lembra Albert. “Para os Yanomami, mais vale a pena morrer do que deixar seus mortos sem sepultura.”

Nas guerras antigas, os Yanomami sempre davam uma trégua para que as mulheres dos seus inimigos pudessem recuperar seus mortos na floresta e chorá-los devidamente. Fazer “desaparecer” os inimigos mortos, segundo o antropólogo, era considerado “uma desonra e uma manifestação de hostilidade literalmente inumana: digna dos animais ferozes ou dos espíritos maléficos da floresta”.

Ao final da entrevista, Bruce Albert ainda diz: “Espero que seja útil para que seus leitores entendam: não há pior afronta e sofrimento para os Yanomami do que fazer ‘desaparecer’ seus mortos”.

O caso dos bebês Sanöma expressa a abertura de um novo capítulo de violência de Estado contra os povos originários. O desrespeito e a indignidade com que a morte é tratada pelas autoridades públicas são os mesmos da vida. Não basta matar pela contaminação por vírus, há ainda que torturar mulheres e também homens. Este capítulo está só começando, mas as vítimas já deram a ele um título: genocídio.


George Gurgel: Brasil sustentável - Qual a Política Sanitária? Uma perspectiva pós pandemia

Os desafios da Política Sanitária no Brasil é reverter a triste e desoladora realidade de mais da metade da população não ter acesso ao saneamento básico, como um compromisso permanente do Estado, do mercado e de toda a sociedade brasileira.

Como construir esta nova perspectiva pós-pandemia?

A pandemia deu maior visibilidade à nossa tragédia social: são mais de 100 milhões de pessoas sem instalações sanitárias nas suas residências, demonstrando a ineficiência do atual sistema sanitário brasileiro, agravado com o isolamento social e a crise política vivida por todos nós.

Questões mais amplas e estratégicas são partes desta nossa reflexão: a situação das nossas bacias hidrográficas, a qualidade e os usos múltiplos da água para a geração de energia, a produção agrícola, industrial, residencial, o turismo e o lazer, fundamentais para a vida e a sustentabilidade econômica, social e ambiental brasileira e de uma parte significativa da população mundial, dependente das exportações nacionais de papel e celulose, de minérios e de alimentos.

Em relação à Política Sanitária em si, devemos vê-la como parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS). O saneamento básico no SUS é o caminho para uma melhoria efetiva da saúde e da qualidade de vida dos brasileiros. Esta concepção deve ser fundamento de uma nova Política Sanitária a ser construída no País.

O Município como foco da Política Sanitária
Os municípios devem ser o foco da Política e da Gestão Sanitária e das políticas públicas em geral. São nos municípios que as pessoas vivem e realizam suas vidas.

Atualmente, o Brasil possui 5.570 municípios distribuídos pelos 26 estados da Federação (IBGE, 2014). Minas Gerais concentra o maior número deles (853), seguida de São Paulo (645). No outro extremo, os estados localizados na região norte são os que possuem o menor número, apesar da grande extensão territorial: Amazonas (62), Rondônia (52), Acre (22), Amapá (16) e Roraima (15). O mais populoso é São Paulo com mais de 11 milhões de pessoas e o de menor população é Borá, também em território paulista, com apenas 805 habitantes. A maioria dos nossos municípios enfrentam problemas de custeio e contam apenas com as cotas constitucionais.

Assim, a maioria das administrações municipais não conseguem atender às expectativas de suas populações, excluídas dos seus direitos básicos constitucionais, a saber: trabalho, moradia, segurança pública, saúde e educação. Portanto, a questão sanitária é parte integrante desta realidade.

Quais as razões dessa crise permanente dos municípios, incluindo a crise sanitária? Qual o papel dos governos, do mercado e da sociedade civil no enfrentamento desta crise?

A questão sanitária e o novo marco regulatório de saneamento básico devem ser avaliados considerando estas questões.

Devemos dimensionar os desafios de uma política pública sanitária, em cada município brasileiro, relacionando-a com a realidade econômica, social e ambiental regional e nacional.

A pandemia e a crise política vividas pelo Brasil não apontam caminhos para a melhoria da política de saneamento básico. As relações dos governos municipais com os estaduais e com o governo federal ficam muito a desejar.

Assim, há que se discutir a realidade sanitária e o novo marco regulatório de saneamento básico, associados às mudanças necessárias no caminho de um novo pacto político, econômico e social entre o governo federal e os dos estados e municípios.

Quais as questões estruturantes a serem consideradas neste contexto frente a essa realidade sanitária brasileira?

Há que se considerar que a maioria da população brasileira vive nas cidades. A vida social é predominantemente urbana. As cidades dão a tônica das regiões onde estão inseridas. Assim, a qualidade da Política Sanitária a ser construída será definida pelo pacto entre estes diversos atores políticos, econômicos e sociais em questão.

Quais seriam os desafios de uma Política Sanitária nesse contexto?

A Política Sanitária deve construir mecanismos de elaboração, participação e avaliação permanentes da cidadania, através de Planos, Programas e Projetos que venham a atender a demanda sanitária municipal, em sintonia com as outras políticas públicas municipais, no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental.

Portanto, deve-se discutir a questão sanitária como parte integrante da sustentabilidade do município de uma maneira mais ampla, com foco na região onde está inserido e suas respectivas áreas urbanas, concentradoras de populações, violências e desigualdades sociais.

A crise dos municípios e das suas administrações reflete um conjunto de distorções, disfuncionalidades e limites das atuais estruturas político-administrativas que são responsáveis pela formulação e implementação das políticas públicas municipais, tanto na esfera do próprio município, quanto nas áreas estadual e federal. Esta crise pode ser resumida na insuficiência de receita, na falta de visibilidade em relação às decisões sobre despesas e investimentos, na insuficiência de recursos técnico-administrativos e, ainda, na falta de participação da população na política e na gestão municipal.

Neste contexto, urge realizar as reformas política, administrativa e tributária que não mudem apenas os critérios de redistribuição de recursos entre União, Estados e Municípios, melhorando a situação atual da maioria dos municípios, como também garantir aos Estados e à União recursos que viabilizem a implementação de políticas públicas, particularmente nas áreas de educação, saúde e saneamento básico, criando as condições para o enfrentamento da difícil realidade econômica e social da maioria dos municípios brasileiros.

Qual regulação?
Um dos desafios fundamentais de uma nova Política Sanitária é que a agência reguladora setorial funcione com autonomia.

No Brasil, falta às agências reguladoras a devida autonomia frente aos atores políticos, econômicos e sociais. O modelo de regulação, inspirado na experiência das democracias europeias, não funciona de maneira satisfatória frente à realidade brasileira. Aqui, desde quando foram criadas as agências reguladoras na década de 1990, a atuação das agências nas áreas de energia, telecomunicações e saúde, entre outras, fica muito a desejar.

A questão democrática aqui se coloca de maneira contundente. A sociedade civil e a cidadania brasileira estão desafiadas a construir relações de maior autonomia das agências reguladoras frente às relações entre o Estado e o mercado. O funcionamento do Estado e do mercado no Brasil não atendem às demandas históricas e atuais da maioria da população. São os nossos dilemas permanentes a serem superados para a ampliação da democracia brasileira, com a inclusão desta maioria excluída da população, não apenas na falta de saneamento básico, como também de educação, moradia, saúde, segurança, mobilidade e trabalho, condições elementares para a dignidade da vida social.

Em geral, as agências reguladoras, em suas diversas áreas de atuação, sofrem forte pressão de lobbys políticos e econômicos, prejudicando a defesa dos interesses mais amplos da sociedade, impactando, na maioria das vezes, os socialmente excluídos. Caso explícito do saneamento básico no Brasil: os 100 milhões de excluídos não podem pagar o serviço de saneamento e os governantes não criaram as condições políticas e econômicas para enfrentar e superar esta situação.

A autonomia da agência reguladora, em relação ao Estado e ao mercado, é o desafio fundamental da nova política de saneamento do Brasil. A regulação feita, nas últimas décadas, pela Agência Nacional de Saúde (ANVISA), não avançou de maneira efetiva para a melhoria do saneamento básico brasileiro. No novo marco regulatório, a responsabilidade é da Agência Nacional de Águas (ANA), desafiada a enfrentar e apontar caminhos de inclusão da maioria da população brasileira sem água tratada e saneamento básico.

A participação de empresas estatais e privadas, inclusive internacionais, já faz parte do modelo de saneamento brasileiro, desde os anos 1990. A participação privada, inclusive internacional, não trouxe os resultados esperados para a melhoria da política de saneamento neste período.

Portanto, além dos investimentos necessários – que devem ser procurados, independente da natureza do capital –, o que se deve trabalhar frente aos nossos gigantescos desafios sanitários é um Plano Nacional de Saneamento, com metas a serem alcançadas nos próximos anos e devidamente acompanhado pelos governos, pelas agências reguladoras, pela comunidade científica e por organizações empresariais e da sociedade civil, comprometidos com a Política Sanitária Nacional.

Além disso, devem-se criar mecanismos institucionais para acompanhar e avaliar as relações entre a agência reguladora com as próprias empresas a serem reguladas e as relações destas empresas e da própria agência reguladora com os atores políticos, econômicos e sociais nacionais e regionais.

Assim, a eficiência de uma Política Sanitária está relacionada com os seus resultados efetivos, no tempo e no espaço. A saber: seus resultados obtidos através do Plano Nacional de Metas a serem perseguidas, considerando os custos e objetivos econômicos, sociais e ambientais; também a qualificação profissional e a base técnica utilizada para atingir os resultados almejados. A natureza do capital não influi diretamente nos resultados de nenhuma organização empresarial. São inúmeros os exemplos na história do capitalismo de organizações na Europa, EUA, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, estatais, privadas ou mistas, bem sucedidas ou não. Todas elas sempre precisam do Estado, em tempos de crise ou não. O inverso também é verdadeiro: o Estado democrático de Direito precisa de todas as organizações e da sociedade para o funcionamento da economia e das políticas públicas em geral, isto acontece também na área de saneamento básico.

Estes são os dilemas permanentes e os desafios das sociedades democráticas – a necessidade de pactuar entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais. A experiência europeia avançou na inclusão social, com conquistas efetivas para a cidadania, nos momentos em que foi possível uma maior taxação do capital, garantindo políticas públicas inclusivas para a maioria da população.

Assim, uma política de saneamento básico deve ser parte integrante de uma visão mais ampla da realidade econômica, social e ambiental do município e estar comprometida com a reorganização do espaço urbano a favor do público, melhoria das condições de moradia, educação, saúde, segurança, mobilidade urbana e ampliação da renda familiar em função dos que mais necessitam.

Finalmente, é importante destacar os limites impostos pelo atual pacto federativo para a construção de uma Política Sanitária Nacional, em função das crises política, econômica, social e de valores, nestes tempos de pandemia, vivenciados pela sociedade brasileira, particularmente na área federal. Portanto, a Política Sanitária é uma questão nacional, que se realiza em cooperação e conflito entre os interesses do Estado, do mercado e da sociedade civil, com a participação proativa da cidadania.

*Professor da Universidade Federal da Bahia e do Instituto Politécnico da Bahia


Vladimir Safatle: O Brasil e sua engenharia da indiferença

O principal esforço até agora não consistiu em se mobilizar para evitar as mortes durante a pandemia, mas em banalizá-las

Talvez fosse o caso de começar lembrando que a substância ética de um povo é definida através da maneira com que ele lida com a morte. Este é um tema maior presente entre os gregos, a saber, como uma sociedade se destrói a partir do momento em que ela não dá aos mortos o direito ao luto. Pois o luto mobiliza questões vinculadas à memória, à universalidade, ao reconhecimento, à suspensão do tempo e ao intolerável. Se uma das maiores tragédias que os gregos nos legaram ―Antígona―, é exatamente sobre a defesa incondicional do direito ao luto, mesmo para o “inimigo do Estado”, era porque ela expressava a consciência tácita de que a banalização do apagamento dos corpos sem vida representava o caminho mais seguro para dissolução da própria comunidade. Estes dois pontos estão ligados de forma indissolúvel: o destino dos vivos e o destino dos mortos, o governo dos vivos e o governo dos mortos.

Para uma sociedade como a brasileira, fundada no binômio genocídio/esquecimento, sociedade construída sobre os escombros do genocídio indígena e negro, lembrar da força política do luto é uma operação decisiva. Nós fomos formados a partir da fantasia originária da “tabula rasa”. Aqui, não haveria povos com grandes estruturas estatais, como os maias, astecas e incas. Toda tomada de posse seria processo civilizatório tendo em vista retirar essa terra de seus arcaísmos, o arcaísmo das sociedades sem Estado. Por isto, o genocídio indígena não seria genocídio algum, apenas a marcha violenta, porém necessária, do desenvolvimento histórico. No Brasil, “desenvolvimento” significa uma forma de “desaparecimento”, de apagamento. Uma sociedade que começa desta forma sem nunca conseguir olhar para trás e recuperar aquilo que foi destroçado, só pode terminar como catástrofe.

Pois essa indiferença bruta do esquecimento é um verdadeiro projeto de governo. Governar é gerir circuitos de afetos. Só assim é possível definir o que visível e invisível, sensível e insensível, perceptível e imperceptível. E controlar os regimes de sensibilidade, de visibilidade e percepção é controlar o fundamento daquilo que pode afetar a vida social. É definir a velocidade das urgências, a determinação do tolerável, estabelecer quais conflitos deverão ser reconhecidos e quais não deverão.

Neste sentido, este cozinhar os afetos sociais no fogo brando da indiferença é a base de toda uma engenharia social. E não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que a indiferença à morte. Lembremos das condições libidinais para que a tese da banalização do mal pudesse funcionar. Era necessário que os carrascos nazistas fossem capazes de naturalizar a desafecção. Só assim o assassinato em massa poderia se transformar em um problema de logística. Só assim ele poderia se tornar um problema de como os trens chegarão aos fornos, em quanto tempo, com quanto custo, estejam eles transportando pessoas a serem eliminadas ou mercadorias a serem entregues.

Vale a pena lembrar isto porque o verdadeiro projeto político com força transformadora, aquilo que deveria nos unir, é a luta por uma mutação de afetos que passe pela compreensão da desafecção como base de nossa verdadeira miséria. Temos, até o momento, mais de 60.000 pessoas mortas pela pandemia, isto se acreditarmos em números subnotificados. Mas o principal esforço até agora não consistiu em mobilizar os esforços e riquezas do país para evitar as mortes. O principal esforço consistiu em banalizá-las. Afinal, não é verdade que morre todo o ano mais de 60.000 pessoas por violência neste país? Qual a razão então para todo esse alarmismo? Como se os números da violência não fossem por si alarmantes, nos provocando indignação a todo momento. Números estes, diga-se de passagem, que descrevem, principalmente, a violência policial: peça maior da gestão social desse país.

Mas notem como essa desafecção é peça fundamental para o tipo de laboratório que o Brasil se tornou: um laboratório mundial para o neoliberalismo autoritário. Porque esse programa econômico que se impõe a nós, com ou sem pandemia, tem uma economia libidinal que lhe e própria. Para ele funcionar, é necessário que a sociedade exploda toda possibilidade de solidariedade genérica, essa solidariedade, que obriga a realização social de princípios estritos de igualdade e redistribuição. Entre nós, a crítica do Estado corrupto aparece apenas como exigência de dessolidarização final. Não se trata de exigir do Estado que ele se volte à defesa do bem comum, mas que ele desapareça de vez para que qualquer obrigação de solidariedade não tenha mais voz. Se a sociedade implode qualquer forma transversal de solidariedade, então a via estará aberta para o retorno final à acumulação primitiva.

A solidariedade, desde o direito romano, é um tipo de obrigação contraída com vários na qual um pode quitar a dívida de todos. Ela é um sistema de obrigação na qual a ação de um tem o efeito da ação de todos, o que explicita sua natureza radicalmente implicativa. Neste sentido, ela traz a ideia de um corpo social que se organiza sob as bases do mutualismo. Um mutualismo que tem força transformadora porque se trata de compreender como dependo de pessoas que não se parecem comigo, que não tem minha identidade, que não fazem parte de meu lugar.

Por isto, a verdadeira solidariedade nada tem a ver com empatia. Temos uma tendência, muitas vezes, de psicologizar o campo social porque não queremos ver a força real de conceitos eminentemente políticos. Empatia é um tipo de implicação limitada: tenho empatia por você, o que não significa que terei empatia por outro. Há traços seus que provocam minha empatia, enquanto em outro é a repulsa que fala mais alto. Já a solidariedade não pressupõe empatia alguma pois não é um modo de relação entre sujeitos, mas entre o sujeito e o corpo social. Posso não ter empatia alguma por você, o que não implica que serei incapaz de ter solidariedade por ti. Pois a solidariedade é o regime de comprometimento com o corpo social do qual fazemos parte. É a compreensão de que o corpo social defende todos os que dele fazem parte, sem perguntar-se pelos sentimentos particulares de um para com os outros. Sua força transformadora vem exatamente daí, a saber, da sua capacidade de criar mutualidade entre diferenças.

Seria bom lembrarmos disto a fim de se perguntar sobre as razões pelas quais assistimos, nestes últimos meses, a um verdadeiro cortejo macabro de expressões de desprezo pelos mortos, de exercício de desafecção e indiferença. Como disse anteriormente, isto é uma forma de governo que nada tem de gratuito. Foi assim que este país foi criado. Esse é seu eixo central. Por isto, não se trata de recuperar esse país marcado em seu seio pela brutalidade da violência sem voz. Trata-se de terminar com ele, de uma vez por todas. O país no qual podemos habitar ainda não existe. Seria mais fácil se assumíssemos, de uma vez por todas, que precisaremos criá-lo. E o primeiro passo para criá-lo é se recusar a aceitar mais um genocídio.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo


Eduardo Rocha: Qual austeridade fiscal ou quem pagará a conta (4)?

Os artigos anteriores apresentaram resumidamente a essência clássica de uma austeridade fiscal conservadora para fazer frente aos déficits fiscais que se fazem presentes em determinados momentos históricos. Destacaram ainda que tal essência volta a ser defendida por círculos financistas como a “vacina” ideal para a recuperação financeira do Estado e enfrentamento da brutal depressão econômica verificada no Brasil, como prova a queda histórica 13,5% do Produto Interno Bruto (PIB) na comparação de abril de 2020 com abril de 2019, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).

O avanço veloz da pandemia do novo coronavírus Sars-Cov-2 e da Covid-1 criou uma situação fiscal preocupante: por trás, os gastos; pela frente, a dívida e, na cabeça, a dúvida. Com as reduções do PIB, do emprego, da renda, do consumo, da receita e o crescimento dos gastos, do déficit e da dívida pública, defende-se aqui que a austeridade não pode nem deve repetir seu receituário clássico conservador, pois sua reedição aprofundará a depressão e agravará o quadro social.

Destinar mais uma vez os resultados financeiros da austeridade em favor das oligarquias e do parasitismo financista especulativo – essa economia dos papeis que compra tudo o que é fruto concreto do saber e do suor humanos – é um crime social e econômico.

É necessária uma austeridade fiscal democrática financeiramente eficaz, socialmente inclusiva, promotora do desenvolvimento, que combata o desperdício, a ineficiência, a ineficácia e elimine a concessão de recursos públicos a grupos sociais e econômicos dominantes fortemente articulados politicamente no aparelho estatal e centros decisórios da República.

A natureza de uma austeridade democrática casada a uma reforma social e econômica rompe, assim, a histórica, repetitiva, criminosa e imoral austeridade fiscal que consistiu até agora em sacrificar os miseráveis mantendo intocáveis os privilégios do “andar de cima”, emprestando aqui a definição de Elio Gaspari.

Tal austeridade democrática supera a estreiteza de perspectivas e ações que caracteriza a política de austeridade conservadora defendida pelos grupos econômicos e financeiros dominantes e entusiasticamente cultuada pelos círculos financistas em torno ministro da Economia, Paulo Guedes.

Reunida quantitativamente a força política para lhe dar vida, o que não é nada fácil, os resultados financeiros da austeridade fiscal democrática podem ser qualitativamente direcionados para a melhoria dos serviços públicos essenciais, a inclusão produtivo-social de milhões cidadãos e ao apoio às empresas do presente e do futuro. (continua…)

*Eduardo Rocha é economista


Zeina Latif: Vamos falar de trabalho?

Será necessário redirecionar recursos para abertura de novas empresas

O s números do mercado de trabalho preocupam. Houve uma redução de 7 milhões de pessoas ocupadas no trimestre encerrado em maio em relação ao mesmo período do ano passado. Os informais são, de longe, os mais afetados (menos 5,7 milhões).

As medidas do governo para conter a queda do emprego com carteira, no entanto, ajudaram a evitar um quadro bem pior. O programa de redução temporária de salários e de suspensão de contratos beneficiou 11,7 milhões de trabalhadores até o dia 26 de junho.

Os dados do emprego com carteira do Caged reforçam essa avaliação, pois o 1,4 milhão de vagas líquidas fechadas na mesma comparação decorreu muito mais da baixa geração de vagas do que de demissões.

Comparações mundiais são particularmente complexas, até porque as diferentes legislações trabalhistas têm impacto na flexibilidade para contratar e demitir. Mesmo assim, vale citar que, de uma lista de 32 países com informações disponíveis em maio último, o Brasil está no grupo de países mais preservados em termos de aumento da taxa de desemprego (12,9% ante 12,3%), em que pese o fato de partir de uma base elevada, das piores no mundo, sofrendo as consequências da recessão passada e do baixo crescimento.

Esse resultado, no entanto, camufla uma dura realidade, que é o desalento daqueles que não buscam trabalho, pois sabem que não terão sucesso, inclusive por conta do isolamento social. Não fosse isso, a taxa de desemprego estaria em 20,3%. Isso significa que em um possível cenário de lenta geração de vagas e elevação paulatina da procura por trabalho, a taxa de desemprego poderá subir muito nos próximos meses. Ações são necessárias.

A situação de outros países da América Latina – que também sofrem muito com a informalidade elevada – é bem pior: tiveram alta expressiva da taxa de desemprego, apesar da redução da procura por trabalho até mais forte do que a ocorrida no Brasil. O desemprego na Colômbia está em 21,4% ante 10,5%; Peru, com 13,1% ante 6,7%; e Chile com 11,2% ante 7,2%. Em todos esses casos, a queda de ocupados foi bem mais expressiva do que no Brasil.

Quanto aos informais, mais penalizados, medidas de socorro não têm faltado. O auxílio emergencial de R$ 600 beneficia em torno de 65 milhões de pessoas, cifra sensivelmente acima da soma de informais (40 milhões) e microempreendedores individuais (10 milhões) – nem todos elegíveis.

O governo prorrogou por mais dois meses o benefício por conta do isolamento social. Contabilizando os cinco meses totais, o custo do programa deverá ultrapassar R$ 250 bilhões, valor muito além da renda gerada pela metade mais pobre da população, que não ultrapassa R$ 150 bilhões.

A transferência de renda é uma medida relativamente simples de ser implementada e tem grande apelo político, mas não convém perder de vista a necessidade de preparar a mão de obra para o retorno ao mercado de trabalho e estimular a geração de vagas em um quadro de fechamento de negócios. São pautas tecnicamente mais difíceis e menos sedutoras politicamente, mas que precisam ser enfrentadas.

Rever e focalizar os vários programas sociais de transferência de renda entrou no radar do governo. A reavaliação de políticas públicas tornou-se ainda mais urgente.

Não há dúvidas que, mesmo no curto prazo, passado o isolamento social, é necessário ir além da transferência de renda. Não só pelo elevado custo do auxílio emergencial, mas pelo impacto na oferta de trabalho dos indivíduos.

Ricardo Paes de Barros recomenda a “inclusão produtiva”. A renda dos indivíduos decorreria da prestação de serviços, notadamente aqueles essenciais em tempos de pandemia, como os associados a saúde, medidas sanitárias e assistência social. Avalio que também será necessário redirecionar recursos para a abertura de novas empresas e modernização das atuais por meio da redução de renúncias tributárias ineficientes e injustas.

Além disso, deveria se reduzir obrigações que oneram a contratação de trabalhadores, como a contribuição do Sistema S. Precisamos estimular o trabalho. Isso sim.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Míriam Leitão: Forças Armadas, para que servem?

Atuação das Forças Armadas na pandemia fica encoberta pela mistura que Bolsonaro faz entre elas e os seus objetivos políticos

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, estava ontem em território Ianomâmi. Foi numa viagem de rotina para acompanhar a operação de atendimento médico e orientação nas aldeias. Os aviões da FAB já deram o equivalente a 11 voltas ao mundo, em três meses, só levando e trazendo material e equipamento médico que antes eram deslocados pela aviação comercial. Sete mil e quinhentos militares foram contaminados com o vírus, exatamente porque eles estão presentes em muitas frentes ao mesmo tempo. Há uma sensação nas Forças Armadas de que seu trabalho no combate ao Covid-19 não aparece em função dos enormes ruídos causados pela discussão política sobre o risco de um novo golpe.

— Estamos apanhando mais atualmente do que nos últimos 30 anos. Assuntos que já estavam resolvidos voltaram com uma força enorme — disse um oficial superior.

O relato do que as Forças Armadas estão fazendo neste momento é interessante porque ilumina exatamente o seu papel no meio de uma pandemia num país continental, com gigantescos desafios. Sendo, como têm que ser, uma instituição do Estado, e não braço de um governo, tudo fica mais fácil de ver e de valorizar. Lá dentro se diz que é nisso que as tropas estão realmente pensando, no seu papel tradicional. Enquanto isso, manifestantes bolsonaristas fazem passeatas pedindo intervenção militar, e o próprio presidente fez constantes ameaças que alimentaram velhas dúvidas e temores. Certos fatos incendiaram ainda mais o debate, como o dia em que o ministro Azevedo sobrevoou com o presidente uma dessas manifestações que pediam o fechamento do Supremo.

Na época das Olimpíadas havia uma grande preocupação com o risco de atentados terroristas. Houve um investimento nas Forças Armadas em treinamento e qualificação para ações de defesa contra ameaças química, nuclear e radiológica. Isso ficou como um legado e foi usado agora no combate ao Covid-19. Militares fizeram mais de duas mil descontaminações de espaços públicos. E até por ser em áreas de muita população essas ações tiveram mais visibilidade. Estiveram em locais de mais difícil acesso, ilha de Marajó, por exemplo, para distribuir cestas básicas. Ao todo, em vários pontos do país, e até aldeias indígenas, em três meses distribuíram mais de meio milhão de cestas básicas.

— Tem um programa que nasceu também na esteira dos Jogos Olímpicos, em que crianças carentes saíam da escola e iam no contraturno para os quartéis para a prática de esporte. Trinta mil crianças nesse programa. De uma hora para outra, as escolas fecharam, e eles não iam mais para o reforço escolar. Ficaram sem duas refeições. O dinheiro foi revertido em kit alimentação para a família dos jovens — conta um oficial.

Um programa entre CNI, Senai e hospitais, para consertar respiradores no Brasil inteiro, foi possível porque os aviões da FAB ou caminhões do Exército ficaram no leva e traz de equipamentos. Foram 1.500 respiradores consertados. Quando os restaurantes à beira das rodovias pararam, o país poderia ter tido um colapso logístico, porque os caminhoneiros não teriam onde se alimentar. Os militares fizeram pontos de parada e distribuição de quentinha para os motoristas.

Médicos militares foram deslocados para alguns hospitais com falta aguda de pessoal. Saíram, por exemplo, do Sul, que estava pouco afetado, para regiões de quase colapso como Macapá, São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga.

Porque estiveram em várias frentes de combate o índice de contaminação de militares foi de 2%, considerado alto. Morreram 20 dos 7.500 contaminados, mas já estão recuperados 80%.

— O militar mesmo está com pouco tempo para discussão política. Há pontos no país onde só nós conseguimos chegar com rapidez, uma ONG bem intencionada consegue ajudar, mas as Forças Armadas fazem em grande volume. Isso sem falar em todo o trabalho de sempre, de patrulhamento, de vigilância de fronteira — me disse um oficial.

A politização das Forças Armadas foi evitada durante 30 anos. O presidente Jair Bolsonaro, de forma deliberada, fez uma mistura entre seu governo e o poder que elas têm. Se os militares forem viabilizadores de um governo que estimula o conflito, e que está em crise, será, como tenho dito aqui, um risco para o país e para a própria instituição.


Maria Hermínia Tavares: Brasil entra na lista de Bachelet

Há correspondência entre a perversidade de Bolsonaro no trato da pandemia e do ambiente e a nossa política externa

Reunido em Genebra, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas ouviu nesta terça-feira (30) o relatório da alta comissária Michelle Bachelet sobre os efeitos da Covid-19 para a situação dos direitos humanos no mundo.

A ex-presidente do Chile censura de maneira forte e direta a atitude dos governos que, ao negarem o perigo de contágio pelo vírus e ao mesmo tempo apostarem na polarização política, pode agravar a severidade da pandemia. O seu relatório chama pelo nome os países que a preocupam: Belarus, Brasil, Burundi, Nicarágua, Tanzânia —e, naturalmente, Estados Unidos.

A crítica de Bachelet acrescenta outra demão de desgaste à corroída imagem internacional do Brasil. Agora é o descaso do governo em face da pandemia; nas duas semanas anteriores foi o seu descompromisso com a proteção ambiental. Vinte e nove fundos europeus de investimento e pensão, além de eurodeputados e importantes organizações do bloco empenhadas na defesa do meio ambiente, foram a público denunciar que a conivência de Brasília com o desmatamento criminoso da Amazônia põe em risco o aporte de capitais de risco ao país, nossas exportações de commodities e o futuro do acordo comercial Mercosul-União Europeia.

Todo país constrói sua imagem com boa diplomacia, mas a resposta alheia depende tanto ou mais da percepção do que ocorre dentro de suas fronteiras. A derrubada da hiperinflação e as reformas econômicas do governo Fernando Henrique, o esforço bem-sucedido de seu sucessor Lula para reduzir a pobreza e as desigualdades e o empenho de ambos em fortalecer as instituições democráticas deram lastro à nossa política externa no passado recente.

Os dois presidentes e seus hábeis chanceleres Luiz Felipe Lampreia, Celso Lafer e Celso Amorim lideraram a alta do prestígio do Brasil, uma democracia de massas empenhada em reduzir o atraso e as injustiças, aspirando a maior protagonismo nos foros multilaterais.

Não por acaso, saúde e ambiente foram áreas em que a diplomacia do soft power brasileiro se destacou, tanto na batalha pela quebra das patentes de medicamentos retrovirais quanto na Rio-92 e conferências seguintes do gênero, nas quais o regime internacional de mudanças climáticas foi ganhando vigor e legitimidade. Isso não teria sido possível sem consistentes políticas domésticas de combate à Aids e de proteção ambiental.

Hoje, continua havendo perfeita correspondência entre a perversidade de Bolsonaro no trato da pandemia e da devastação ambiental e a vergonhosa política externa de Ernesto Araújo. E assim fomos parar na lista de Bachelet.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Especialistas e lideranças políticas debatem reflexos da pandemia na vida das mulheres

Série de webconferências chega a sua 18ª edição. A FAP faz a retransmissão em seu site, página no Facebook e em seu canal no Youtube

Pandemia e a crise do ponto de vista das mulheres é o tema da webconferência desta sexta-feira (3/07), às 14h30. O evento faz parte do Ciclo Diálogos, Vida e Democracia, uma série de videoconferências promovidas pelo Observatório da Democracia (OD), que chega a sua 18ª edição. A mesa será coordenada por Jaqueline Moraes, que é empreendedora individual e Vice-Governadora do estado do Espírito Santo. Participam também a deputada federal e ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina(PSOL/SP), a presidente da Ação da Mulher Trabalhista, vice-presidente do PDT e vice presidente da Fundação Leonel Brizoal-Alberto Pasqualini, Miguelina Vecchio; a ex-ministra de Políticas para as Mulheres do governo Dilma Rousseff/PT, Eleonora Menicucci e a dirigente nacional do PCdoB, ex-senadora e ex-procuradora da Mulher no Senado Federal, Vanessa Grazziotin.

Ao Vivo!

Os debate estão sendo transmitidos on-line e gratuitamente pelo canal no Youtube do Observatório (clique aqui). Em seu site, na sua página no Facebook e em seu canal no Youtube, a FAP fará a retransmissão da webconferência.

Não é exagero dizer que a pandemia tem causado transtornos maiores na vida das mulheres, que já é difícil numa situação normal, pois elas assumem a maioria das tarefas domésticas, ganham menos ocupando cargos com as mesmas responsabilidades dos homens, assumem os cuidados com idosos e crianças e, além disso, são as maiores vítimas da violência doméstica. Daí a importância da videoconferência A Pandemia do ponto de vista das mulheres, que vai debater as várias consequências trazidas pela tripla crise: política, sanitária e econômica vivida pelo Brasil hoje. Além disso, serão debatidas as propostas de políticas de auxílio às mulheres neste momento. As palestrantes que são mulheres de lugar de fala diversificado, possuem experiência e competência para apontarem rumos num momento em que eles são extremamente necessários.

O ciclo conta com a realização de diversas mesas temáticas feitas por videoconferências, sempre a partir das 14h30. As seguintes acontecerão dia 07/07 (terça-feira) A Pandemia e a crise do ponto de vista dos negros, dia 11/07 (sábado) Meio ambiente e Amazônia: na Crise, qual Sustentabilidade?

O Observatório da Democracia é formado pelas Fundação Perseu Abramo (PT), Fundação João Mangabeira (PSB),Fundação Mauricio Grabois (PCdoB), Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (PSOL), Leonel Brizola-Alberto Pasqualini (PDT), Fundação da Ordem Social (PROS) e Fundação Claudio Campos e Fundação Astrojildo Pereira (Cidadania).

Serviço
Ciclo Diálogos, Vida e Democracia – Videoconferências
Mesa 18: A Pandemia e a crise do ponto de vista das mulheres
Data: 03/07
Horário: 14h30
Onde: Acompanhe as videoconferências do ciclo Diálogos, Vida e Democracia, no Facebook, pelas páginas das fundações Astrojildo PereiraLeonel Brizola-Alberto PasqualiniPerseu AbramoLauro Campos e Marielle FrancoMauricio Grabois e João Mangabeira.

Ou se inscreva no canal do Observatório da Democracia no youtube.

programação completa pode ser acessada aqui.

Veja vídeos de webconferências anteriores:

Lideranças estudantis e dos trabalhadores debatem a educação em tempos de pandemia

Ex-ministros e gestores avaliam a crise na Educação durante webconferência nesta quinta (25/6)

Videoconferência aborda a pandemia e saídas para a economia

Presidentes de partidos debatem Democracia e política em webconferência

O Mundo do Trabalho e a Pandemia é tema de webconferência

Webconferência discute o valor da C&T e da Inovação como política de Estado

Cultura em tempos de coronavírus é tema de webconferência

Webconferência debate defesa das instituições do Estado democrático

Jornalismo, comunicação e política nas redes sociais é tema de webconferência

Líderes partidários fazem webconferência para discutir o país

Especialistas debatem o coronavírus, isolamento social e saúde pública

Governadores debatem pacto federativo durante pandemia do coronavírus

Fundações partidárias debatem pandemia, recessão e saídas para a crise

Analistas discutem Brasil no contexto mundial da pandemia do coronavírus

Economistas debatem pandemia e alternativas em meio à crise do coronavírus


O Estado de S. Paulo: Vamos ter uma alteração estrutural da economia no pós-covid, diz Edmar Bacha

Integrante da equipe que criou o Plano Real disse que recuperação do Brasil será lenta, mas abrirá espaço para a questão da distribuição de renda do País e o aumento dos gastos públicos

Vinicius Neder, O Estado de S.Paulo

RIO - O economista Edmar Bacha, diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (IEPE/CdG) e integrante da equipe que criou o Plano Real, vê pouco espaço para uma recuperação rápida, em “V”, da economia brasileira, que entrou em recessão no primeiro trimestre deste ano, conforme o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Membro do órgão colegiado, Bacha acha que o mais provável é que o ritmo de recuperação da atividade estacione num platô, à medida que o impulso das medidas do governo for passando.

Embora seja favorável à discussão sobre a manutenção dos auxílios emergenciais via unificação dos programas de transferência de renda, Bacha ressalta o aperto dos gastos públicos no País, que exige reformas para liberar espaço para ampliar o investimento em políticas focadas na redistribuição da renda.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Estamos em meio à recessão, mas há espaço para recuperação em “V”?

Nos Estados Unidos, como reportou a Marcelle (Chauvet, professora da Universidade da Califórnia, integrante do Codace, na reunião da última sexta-feira, 26), foi feita uma pesquisa muito interessante com economistas sobre a forma da retomada. Já houve duas rodadas da pesquisa. Na primeira, a maior parte dos economistas colocou o “V”, e, agora, todo mundo mudou do “V”, para algo que começa com um “V” inclinado, mas logo depois atinge um platô. E essa questão do platô é fundamentalmente por causa do esgotamento dos impulsos fiscal e creditício que o governo está dando. Quando isso acabar, como vai ficar? Depois, do lado do vírus, tem a questão de que isso vai exigir uma realocação muito pronunciada da atividade econômica. O mundo pós-covid não vai ser o mesmo. Vai ser bastante diferente. A natureza da atividade econômica vai ser muito distinta, com setores que vão ser beneficiados e os setores que vão ser prejudicados. Vamos ter uma alteração estrutural, se não permanente, pelo menos prolongada na estrutura das atividades econômicas.

No caso do Brasil, o quadro é diferente, já que o espaço fiscal para manter medidas é menor?

Obviamente, o Brasil tem bastante menos espaço fiscal do que os países que têm moeda-reserva. (…) Com esse agravamento do quadro fiscal, estamos indo para uma relação dívida pública sobre PIB de 100%. Agora, se temos menos espaço fiscal, temos um pouquinho mais de espaço monetário. Os juros lá (nos países desenvolvidos) já estão em zero. Isso é uma questão complexa, que vai depender muito da capacidade que temos de reestabelecer o ânimo empresarial e a disposição dos consumidores a gastar.

Os impulsos ficais ajudam no consumo das famílias, não?

Nos Estados Unidos, por causa das transferências, houve uma retomada muito forte, praticamente no nível anterior, do consumo das classes mais pobres. O consumo que está retraído é o consumo dos 25% mais ricos, do pessoal que fugiu de Manhattan. Esse consumo vai voltar quando o medo passar. O curso do vírus é que vai determinar um pouco esse processo de retomada do consumo da parte mais substantiva do total. Embora seja menos gente (os 25% mais ricos), o poder de compra é muito maior.

Isso vai acontecer no Brasil ainda?

Com certeza. Não temos ainda esse tipo de dado. Nos Estados Unidos é um pouco mais fácil porque aqui as pessoas mais pobres ainda gastam em dinheiro. Isso é mais difícil de traçar.

Diante disso, deveríamos investir na manutenção dos auxílios emergenciais?

O ideal seria a gente encontrar um espaço fiscal para fazer uma ampliação do Bolsa Família. Esse é um tema que está em discussão muito ampla, tem propostas pipocando para todo lado, algumas mais fantasiosas, outras mais realistas. Há uma coisa emergencial, que é o prolongamento do auxílio, dado que o vírus não se abateu no período que estávamos com esperança que se abatesse. A outra questão é como será o formato mais ou menos prolongado desse processo.

O sr. é favorável a uma ampliação das transferências?

Acho importante, temos que discutir isso. Podemos fazer desta crise uma oportunidade para uma discussão séria sobre distribuição de renda no País.

É possível fazer isso sem reformas, como a administrativa e a tributária?

A alternativa a isso seria aumentar brutalmente os impostos, o que não é o caso. Já estamos com uma carga tributária, para nosso nível de renda, bastante alta. Temos que conseguir um jeito é de redistribuir o gasto. E tem que melhorar a qualidade dos impostos, obviamente.

Qual a consequência de continuar aumentando a dívida pública?

Isso seria autodestrutivo, porque a retomada depende do restabelecimento de um ambiente de negócios. As oportunidades estão aí. A do saneamento está sendo criada (com a aprovação, na semana passada, do novo marco regulatório para o setor). A questão é saber se o pessoal (os investidores) vai vir. Para vir, precisa ter confiança no ambiente de negócios e em tudo o mais. Num País que está com a dívida descontrolada, quem vai ser louco (de investir)?

Como fazer as reformas?

Vai ter que fazer uma redistribuição. Então, vai haver perdedores, sem dúvida. Não é fácil. Não é uma coisa para fazer do dia para a noite. Vai precisar de um debate amplo na sociedade, para ter uma avaliação muito clara para as pessoas do que se trata. Não vai chover dinheiro. Vamos tirar dinheiro de um lado e colocar no outro. É importante que esse debate seja bastante amplo, porque se depender só dos lobbies que pressionam o Congresso, não vamos chegar a lugar algum.

O sr. está mais pessimista ou otimista com os rumos da economia?

Estamos numa situação extremamente difícil. Normalmente, os períodos de expansão são muito mais prolongados do que os períodos recessivos. É uma característica do ciclo econômico tradicional. Agora, pega essa última leva. Tivemos um período recessivo, de 2014 a 2016, que é praticamente da mesma extensão (11 trimestres) que a expansão que tivemos até o ultimo trimestre do ano passado (de 12 trimestres). Só isso já é uma sinalização bastante clara da precariedade. A economia já estava andando de lado. Essa expansão não foi nada para ficar muito entusiasmado. A economia já não vinha bem das pernas. Precisamos ter um conjunto de mudanças muito substantivas para uma retomada mais vigorosa e para termos um espaço mais amplo para essa discussão dos sistemas redistributivos, que são tão importantes no Brasil.

As medidas dos países desenvolvidos podem beneficiar o Brasil com um crescimento global maior?

Já estamos nos beneficiando da retomada na Ásia. As exportações brasileiras para a Ásia estão indo muito bem, obrigado. Nesse sentido, sim, mas isso olhando para os próximos meses. A questão que se coloca mais à frente, pós-covid, é como vai ser essa reestruturação, a recomposição da economia mundial, toda essa questão do protecionismo e do papel das organizações internacionais. Isso vai depender muito do resultado das eleições (presidenciais) americanas (marcadas para novembro).


Demétrio Magnoli: A esquerda no espelho da epidemia

O vírus tem lado ideológico

A crise ensina. A emergência sanitária do coronavírus evidenciou o negacionismo criminoso de Jair Bolsonaro, desmoralizando seu governo aos olhos de todos que não sucumbiram ao fanatismo ideológico da extrema direita. Contudo, de um modo menos óbvio, ela também lançou um penetrante jato de luz sobre a esquerda, expondo suas vísceras. A imagem resultante não é bonita.

Capítulo um: hipocrisia.

A esquerda ocupou a linha de frente do exército que clamava pela imposição de lockdown. Na Itália, na Espanha e na França, rígidas medidas de lockdown travaram o avanço dos contágios, circunscrevendo regionalmente as epidemias. Lockdown não é, porém, um ato de pura vontade. O congelamento geral da vida econômica e social exige uma ditadura totalitária (China) ou a conjunção de dois fatores inexistentes na paisagem brasileira: consenso político e coesão social.

Não se faz lockdown sob um governo central em campanha permanente contra o distanciamento social. Não se faz lockdown com vastas parcelas das populações metropolitanas carentes de renda e redes de proteção social, que se concentram em cinturões periféricos e favelas desassistidas. A esquerda que ignora essas realidades escolheu dialogar exclusivamente com as classes médias.

Semanas atrás, deputados do PT de São Paulo recorreram, sem sucesso, aos tribunais para impor ao governador Doria a execução de um lockdown. No Rio, um clamor similar emanou de lideranças do PT e do PSOL. Um eventual lockdown nas duas metrópoles demandaria massiva mobilização de forças policiais nas periferias e favelas. As PMs patrulhariam as ruas onde vivem os pobres e ocupariam favelas controladas por milícias e facções. Os partidos de esquerda ofereceriam apoio às inevitáveis implicações repressivas do lockdown?

Capítulo dois: oportunismo.

Quarentenas têm limites temporais, definidos pelo esgotamento da resistência econômica e psicossocial da população. Nenhum país do mundo manteve quarentenas por mais de três meses. As reaberturas conduzidas pelos governos estaduais não são exemplos de planejamento, eficiência ou lógica. A esquerda, porém, escolheu criticar as próprias reaberturas, não suas inúmeras deficiências, aderindo a um iracundo fundamentalismo epidemiológico. A finalidade é disputar as eleições municipais acusando governadores e prefeitos de subordinar vidas a negócios.

Capítulo três: corporativismo.

As escolas estão, em geral, fechadas desde março. Na Europa, com exceção de raros países, a reabertura escolar foi medida prioritária na etapa de relaxamento das quarentenas. Os governos europeus concluíram que crianças são fracos transmissores do vírus — e a experiência comprovou que isso é verdade. Na França, de 40 mil escolas reabertas, surgiram focos de infecção em meras 70. O Brasil, porém, enxerga o ensino público como a mais dispensável das chamadas “atividades não essenciais” — e cogita-se retomar aulas presenciais apenas nas calendas de setembro.

As crianças pobres carregarão para a vida adulta os prejuízos cognitivos e de sociabilização causados pela interrupção escolar de sete meses. Mesmo assim, sindicatos de professores dirigidos por lideranças de esquerda resistem à reabertura em setembro, declarando-a “prematura” e ensaiando movimentos grevistas. Médicos, enfermeiros, comerciários, motoristas, operários e incontáveis outras categorias podem trabalhar presencialmente durante a epidemia. Professores, jamais, na opinião dos sindicatos.

Capítulo quatro: duplicidade moral.

Lá atrás, as manifestações públicas da militância bolsonarista foram qualificadas pela esquerda como atos criminais de difusão de contágios. A esquerda criticou menos o conteúdo antidemocrático delas que a produção de perigosas aglomerações. Há pouco, porém, setores da esquerda voltaram às ruas, em protestos contra Bolsonaro. Nesse caso, as aglomerações não geraram escândalo.

O vírus tem lado ideológico: as manifestações deles provocam infecções, potencializam a epidemia, causam mortes em massa; as nossas são belas, justas e higiênicas. A esquerda que emerge da Covid nada aprendeu.


Dorrit Harazim: Sobras de guerra

Mortandade tão vasta e tão abstrata dificulta o luto individual, exceto quando ele nos atinge de perto

Não é de hoje que números redondos são ferramentas infalíveis para atrair leitores, concentrar homenagens, turbinar emoções. Não fosse a pandemia que imobiliza este 2020 fantasmagórico, o 250º aniversário do nascimento de Beethoven e os festejos pelos 75 anos do final da Segunda Guerra na Europa seriam mais tonitruantes. Basta comparar com o passado recente: em 2019 o mundo se entregou a comemorações voluptuosas pelos 50 anos de Woodstock, os 30 anos da Queda do Muro de Berlim, e tantos outros marcos históricos.

Em tempos de coronavírus, números redondos também são ferramenta de primeira linha, só que às avessas — eles nos arrancam do torpor de um amanhã incerto. Sabidamente o medo que mais imobiliza o ser humano é o medo de ver o que está à sua frente. Isso inclui o presidente da República. Para Jair Bolsonaro, cada novo número-choque da pandemia no Brasil tem impacto dobrado, pois atesta sua falha histórica como governante da nação em tempos turvos.

Na linha desse tempo pandêmico o mundo mal teve tempo de atravessar o choque do primeiro milhão de infectados. No momento rumamos para 10 milhões mundo afora, e logo mais a régua terá de ser levantada. Na manhã da última sexta-feira dados apontavam para 55.304 mortos no Brasil. Portanto nova barreira redonda derrubada, com a anterior (50 mil) já esquecida.

Como nossas mentes dificilmente registram o número por inteiro, é mais provável que em conversas de quarentenados tenhamos arredondado para 55 mil. Em textos jornalísticos ou legendas noticiosas, o número completo acaba encurtado para “mais de 55 mil”. Ou, “55,3 mil”. Acabam ficando de fora do nosso imaginário as chamadas “sobras da guerra” — no caso, os 4 últimos dessas 55.304 vidas perdidas para a Covid. É natural: quem pensa nos centavos diante de um cheque de 10 mil reais, certo?

Mortandade tão vasta e tão abstrata dificulta o luto individual, exceto quando ele nos atinge de perto. A morte em massa se torna a soma de vidas anônimas tragada por essa avalanche. Só que, ao contrário do que ocorre em furacões, terremotos ou guerras, a mortandade por pandemia é condenada ao silêncio. E esta, em particular, parece não ter fim.

Na Guerra do Vietnã, onde morreram 58.209 G.I.s, foi fácil levantar a identidade dos dois últimos soldados americanos a não voltarem para casa. Um se chamava Charles McMahon, estava prestes a completar 22 anos e desembarcara em Saigon 11 dias antes de morrer. O outro, Darwin Lee, de 19 anos, também era novato na guerra que durou 7 anos. Ambos tinham por missão proteger a Embaixada dos Estados Unidos. Morreram juntos na manhã do 29 de abril de 1976, atingidos por um foguete. No dia seguinte, a guerra acabou, Saigon foi tomada pelos comunistas, e o que restava de presença americana bateu em retirada afoita. Inglória das inglórias, os corpos de McMahon e Lee foram deixados para trás. Só conseguiram ser recuperados um ano mais tarde por mediação da diplomacia.

Historiadores da Segunda Guerra Mundial também puderam cravar a identidade do último soldado das tropas aliadas a morrer no front europeu: Charles Havlat, 34 anos. No dia 7 de maio de 1945 seu pelotão avançava na região da Tchecoslováquia quando sofreu emboscada de uma divisão de tanques alemães. Fatalidade: nove minutos antes fora negociado o cessar-fogo que levaria à rendição incondicional da Alemanha, comemorada em 8 de maio.

Difícil imaginar que pesquisadores do futuro conseguirão identificar a última vítima da pandemia de Covid-19 no Brasil. Isso porque, por trás de números tão monumentais, se escondem várias causas mortis. Inclusive a falta de medicamentes críticos em várias UTIs do país. O estoque de 22 insumos indispensáveis para pacientes que precisam ser intubados (sedativos, anestésicos, bloqueadores neuromusculares) está à míngua em 21 hospitais de referência, aponta um levantamento nacional divulgado esta semana. Sem esses medicamentos, o paciente não morre de Covid, morre por não poder ser intubado.

Também pode morrer por ter desistido de entender o emaranhado de protocolos de segurança e reclassificações de atividades.

Desistido de aguardar o auxílio emergencial do governo, desistido de se proteger. O método universalmente reconhecido como o mais simples e barato — o uso de máscara — é sabotado pelo presidente da República. Como levar a sério um protocolo municipal que libera viagens de pé em ônibus mas limita a ocupação no interior do veículo em 2 pessoas por metro quadrado? Isso, na cidade do Rio de Janeiro! O efeito sanfona das medidas de flexibilização desnorteia mais do que disciplina, a lição primeira de lavar as mãos com sabão não serve para os mais de 100 milhões de brasileiros hoje ainda expostos ao esgoto a céu aberto.

Em resumo, no Brasil de 2020 ainda vai se morrer muito durante a Covid-19. Sobras desnecessárias da soma de irresponsabilidades nacionais.