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The Economist: A covid-19 veio para ficar e temos de nos adaptar

Não é que o mundo esteja enfrentando a segunda onda de contágios: ele nunca chegou a superar a primeira

É surpreendente a rapidez com que a pandemia se espalhou, apesar de todos os esforços para detê-la. Em 1.º de fevereiro, dia em que a covid-19 apareceu pela primeira vez na nossa capa, a Organização Mundial da Saúde contabilizou 2.115 novos casos. Em 28 de junho, a contagem diária alcançou 190 mil. Nesse dia, registrou-se a cada 90 minutos o mesmo número total de casos registrados até 1.º de fevereiro.

Não é que o mundo esteja enfrentando uma segunda onda: nunca chegou a superar a primeira. Sabe-se que cerca de 10 milhões de pessoas foram infectadas. Há casos registrados em praticamente todos os lugares (menos no Turcomenistão e na Coreia do Norte, além da Antártida). Para cada país onde o vírus parece controlado, como China, Taiwan e Vietnã, há muitos outros onde a doença avança com fúria, como na América Latina e no sul da Ásia. Outros países, entre eles os Estados Unidos, correm o risco de perder o controle. Outros ainda, sobretudo na África, estão na fase inicial da epidemia. A Europa se encontra em algum lugar nesse meio.

O pior ainda está por vir. Com base em pesquisas em 84 países, uma equipe do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) calcula que, para cada caso registrado, 12 não são notificados e, para cada duas mortes por covid-19 contabilizadas, 1/3 é atribuído a outras causas. Sem uma grande descoberta da medicina, o número total de casos chegará a algo entre 200 milhões e 600 milhões no segundo trimestre de 2021. Nesse ponto, entre 1,4 e 3,7 milhões de pessoas terão morrido. Mesmo assim, mais de 90% da população do mundo ainda estará vulnerável à infecção - e muito mais se a imunidade for apenas transitória.

O resultado de fato depende de como as sociedades gerenciam a doença. Você pode conter o vírus com três táticas: mudanças no comportamento; testagem, rastreamento e isolamento. E, se tudo isso falhar, lockdowns. Quanto menos um país testa - e muitos governos não conseguiram desenvolver capacidade de testagem suficiente -, mais tem de recorrer às outras duas táticas. A boa saúde pública não precisa ser cara. Dharavi, uma favela de 850 mil pessoas em Mumbai, reprimiu um surto.

Os tratamentos melhoraram, graças à pesquisa e à experiência com os cuidados dos pacientes. Embora ainda faltem meses para a vacinação em massa, na melhor das hipóteses, já estão disponíveis boas terapias. Sabe-se mais sobre como gerenciar a doença - não colocar as pessoas nos respiradores logo de cara, fornecer oxigênio mais cedo. A melhoria no tratamento ajuda a explicar por que a parcela de pacientes hospitalizados que precisaram de terapia intensiva no Reino Unido caiu de 12% no final de março para 4% no final de maio.

E as economias se adaptaram. Ainda estão sofrendo, é claro. O J.P. Morgan prevê que, nas 39 economias que o banco monitora, o declínio na primeira metade do ano será de cerca de 10% do PIB. Mas os trabalhadores presos no inferno do Zoom descobriram que podem fazer uma quantidade surpreendente do trabalho em casa. 

Agora que os lockdowns nacionais terminaram, os governos podem fazer arranjos mais razoáveis - proibindo, digamos, grandes reuniões em locais fechados e permitindo a reabertura de escolas e lojas. Às vezes, como aconteceu em alguns Estados americanos, as autoridades flexibilizam demais e precisam voltar atrás. 

O problema é que, sem cura ou vacina, a contenção depende de as pessoas aprenderem a mudar de comportamento. Depois do pânico inicial da covid-19, muitos estão ficando cansados e resistentes. As máscaras ajudam a evitar a doença, mas, na Europa e nos EUA, algumas pessoas se recusam a usá-las. A lavagem cuidadosa das mãos mata o vírus, mas quem ainda não recaiu nos velhos e maus hábitos? As festas são perigosas, mas os jovens confinados por meses já não estão nem aí. E mais importante: à medida que os meses se arrastam, as pessoas precisam ganhar algum dinheiro.

É difícil mudar as normas sociais. Basta olhar para a aids. Há décadas sabemos que podemos evitá-la com sexo seguro e agulhas limpas. Mesmo assim, em 2018, 1,7 milhão de pessoas se infectaram com o HIV. 

Mudanças de comportamento requerem que figuras confiáveis, nacionais e locais, tenham uma comunicação clara. Mas muitas pessoas não acreditam em seus políticos. Em países como EUA, Irã, Reino Unido, Rússia e Brasil, que têm os números de casos mais altos, presidentes e primeiros-ministros minimizaram a ameaça, acovardaram-se, deram maus conselhos ou ficaram mais preocupados com seu destino político do que com o país. Às vezes, fizeram tudo isso ao mesmo tempo.

A covid-19 veio para ficar, pelo menos por um tempo. Os vulneráveis terão medo de sair e a inovação desacelerará, criando uma economia que nunca chegará a atingir 100% de seu potencial. Muitas pessoas vão adoecer, algumas vão morrer. Talvez você tenha se cansado da pandemia. Mas ela não se cansou de você. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU 

© 2020 THE ECONOMIST NEWSPAPER 

LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. 

TRADUZIDO POR CLAUDIA BOZZO, 

PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO 

ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM 


Mario Vargas Llosa: Casa de loucos

Livro de Bolton fala o que sabíamos: Trump carece de preparo para ocupar o cargo

Embora a Casa Branca tenha tentado de todas as formas impedir a publicação das memórias de John Bolton, que foi conselheiro de Segurança Nacional do presidente Donald Trump, entre abril de 2018 e setembro de 2019, o livro, intitulado The Room Where It Happened (A sala onde tudo aconteceu, em tradução livre), acaba de ser lançado nos EUA, logo após ser autorizado por juízes.

Trata-se de um ensaio volumoso no qual Bolton narra com riqueza de detalhes sua experiência de trabalhar por um ano e meio com Trump e o critica severamente, dando exemplos abundantes do que todos já sabíamos. O presidente dos EUA carece da preparação mais elementar para ocupar o cargo que tem e os erros e as contradições que comete a cada dia, por essa mesma razão, apesar da popularidade que conquistou nos primeiros anos de seu governo e parece ter perdido. Segundo as últimas pesquisas, o democrata Joe Biden venceria as eleições de novembro.

A expectativa que o livro suscitou nos EUA e no mundo se deve, sobretudo, ao fato de Bolton ser um ultraconservador, mas culto e bem instruído, que colaborou em cargos importantes com os governos de Ronald Reagan e George Bush, dos quais foi embaixador na ONU.

Tanto em seus trabalhos públicos como em seus comentários na Fox News, Bolton sempre defendeu as opções mais extremas - como, por exemplo, no caso de Israel, tornar Jerusalém a capital do Estado sionista, a ocupação militar da Cisjordânia e, agora, sua anexação. Desde que ganhou as eleições presidenciais, Trump sinalizou que ele teria um cargo importante em seu governo.

De fato, foi nomeado conselheiro de Segurança Nacional, encarregado de orientar diariamente o presidente em questões internacionais, acompanhá-lo em suas viagens e junto ao secretário de Estado, de coordenar e dar uma direção coerente à política internacional dos EUA.

A primeira coisa que Bolton descobriu em seu novo trabalho foi que o presidente não gostava dos grossos bigodes de morsa que ele usa e, a segunda, foi como Trump não tem noção de coisas tão elementares como a situação da Finlândia, a qual o presidente americano acreditava, ingenuamente, que não era um Estado independente, mas fazia parte da Rússia.

Embora esses erros tão grosseiros, que documentam uma ignorância suprema da geopolítica, apareçam às vezes nas memórias de Bolton, estas não têm em nada o caráter fofoqueiro e delator que muitos leitores esperavam. Pelo contrário, é um documento rigoroso, praticamente um diário de sua experiência de ter de informar, primeiro, e em seguida, lidar com as iniciativas intempestivas, e muitas vezes desconcertantes, do presidente (corrigir seus erros, pode-se dizer), que têm marcado sua gestão governamental.

Bolton pertence a uma família da classe trabalhadora de Maryland e cursou direito em Yale graças a uma bolsa de estudos e a empréstimos. Desde muito jovem, é republicano e defende as opções mais conservadoras e reacionárias, com argumentos, é preciso dizer, muito mais sólidos do que aqueles que se costuma usar naquela unidade política.

Desde cedo, declarou-se seguidor das teses do filósofo e historiador irlandês Edmund Burke e seu primeiro livro, no qual explica suas convicções políticas, Surrender Is Not an Option (Render-se não é uma opção, em tradução livre), foi um best-seller. Este novo livro também estará entre os mais vendidos e, talvez, seja o mais divertido, pois, em razão da oposição a Trump, a esquerda foi rápida em festejá-lo.

Bolton chegava em seu escritório na Casa Brancas às 6 horas e ali tomava o café da manhã com autoridades diplomáticas e militares, era a primeira reunião de trabalho do dia. Em teoria, seu trabalho consistia em traçar as grandes linhas da política dos EUA em seu âmbito internacional. Na verdade, sua obrigação era, sobretudo, tentar entender o que Trump queria neste domínio e tratar de pôr em ordem, dar algum sentido e fazer desaparecer os infinitos erros que o chefe de Estado cometia diariamente nessa área.

O que conta é perfeitamente explicável. Como geralmente não sabia onde estava, o presidente Trump desconfiava de todo mundo - exceto, talvez, de sua filha Ivanka e de seu genro - e prestava muito mais atenção à imprensa e, acima de tudo, à televisão, do que aos grandes assuntos do dia.

As reuniões com seus colaboradores mais próximos se caracterizavam, principalmente, pela abundância de palavrões ferozes que proferia e pelo frenesi com que demitia e mudava de assessores. Bolton ter permanecido ao seu lado por mais de um ano e meio foi algo milagroso. No final, ele o forçou a renunciar, acusando-o de ter abusado ao viajar demais usando aviões militares, uma acusação sem sentido quando alguém lê essas memórias, onde Bolton especifica com doentia meticulosidade as viagens que fez e as condições em que viajou.

O livro desenvolve todos os tópicos internacionais importantes nos quais Bolton interveio, da Líbia à China, do Irã a Cuba, da Rússia à União Europeia, do Afeganistão ao Reino Unido e, sinceramente, o leitor fica tonto com essa atividade frenética que, além disso, era pouco valorizada por Trump, se não brutalmente contradita por suas declarações prematuras à imprensa, as quais, mais tarde, os conselheiros, e especialmente Bolton, tiveram de dar um jeito, sem parecer que estavam desmentindo seu chefe. O caos que esse livro documenta sem humor, e no qual o mau humor aparece fatalmente, nos permite chamar a Casa Branca, sem exagero, de uma verdadeira casa de loucos.

Por razões óbvias, as quase 50 páginas que Bolton dedica à Venezuela são de especial interesse para o escritor desta coluna. Observa-se, desde o primeiro momento, que Trump e seus principais colaboradores ficaram surpresos com a enorme oposição a Maduro, que parecia apoiar Guaidó, e imediatamente concordaram em apoiá-lo, mas descartando de cara a possibilidade de uma ação militar contra o regime chavista. Como deve ser lembrado, apesar deste acordo, o presidente Trump ameaçou Maduro mais de uma vez com uma ação armada, sabendo perfeitamente que isso estava descartado de antemão e suas bravatas careciam de toda a consistência.

Por outro lado, naquelas reuniões privadas e secretas, Trump mostrava certo ceticismo com a figura de Guaidó e, mais ainda, certa simpatia secreta por Maduro, “esse cabeça dura”, a mesma que, apesar de tudo, também tinha pelo novo czar da Rússia, Vladimir Putin.

Bolton analisa, com rigor, as difíceis relações que Trump manteve com seus antigos aliados na Europa Ocidental e sua tendência sistemática de realizar reuniões com ditadores meio malucos, como o gordo que lidera a Coreia do Norte com mão de ferro ou o senhor da Rússia.

O que acontecerá agora nos EUA se a maioria do povo americano mantiver Trump no poder nas eleições de novembro? Eu acho que seria uma grande desgraça para os EUA, em particular, e para o mundo livre, em geral. Por causa de sua ignorância e arbitrariedade, Trump conseguiu distanciar seu país de seus aliados tradicionais e, em vez disso, se aproximar de seus inimigos, sem nem mesmo perceber que era esse o caso.

Este é o testemunho mais importante dessa memória de John Bolton. Se isso acontecer, por mais quatro anos, eles ganhariam ainda mais terreno do que já alcançaram nesses primeiros quatro anos de governo. Que paradoxo que um americano ultrarreacionário como Bolton tenha mostrado como e por que Trump deve ser derrotado nas eleições. / Tradução de Romina Cácia

  • É Prêmio Nobel de Literatura

Cacá Diegues: Onde estamos agora

Aglomeração nos bares é um elogio à irresponsabilidade de quem mandou e à ignorância de quem foi para as ruas

Estou convencido de que, se as atividades sociais diminuíram ou simplesmente desapareceram com a Covid, as responsabilidades pessoais cresceram muito nesse novo tempo. Não nos interessam mais, às vezes até odiamos, certos gestos e compromissos coletivos de “antigamente”; mas somos fiéis a comportamentos relativos a um caso ou a uma pessoa, que nem sempre precisam de nós. Aos primeiros, já sabemos recusar sem culpa, não participamos deles sem precisar montar desculpas mirabolantes. Aos segundos, atendemos sem vacilação, como se o esforço ou o sacrifício pessoal fossem virtudes naturais. Continuamos seres sociais, mas agora preocupados e dedicados a um outro de cada vez.

Claro que pensamos e discutimos política, por exemplo. Mas a contrariedade com o governo não vem mais de um programa para a nação, mas de uma forma de pensar o ser humano e, portanto, agir sobre seu destino. Mesmo não sendo e nunca tendo sido de direita, podemos até admitir, muito serenamente, que os direitistas devam fazer parte do poder, desde que respeitem o pensamento e o programa do outro, a eventual maioria que não pensa como eles. Nos velhos tempos de hegemonia marxista, socialista ou apenas trabalhista, aqui ou em outros países, isso era impensável. No mínimo, uma traição à verdadeira luta popular, traição merecedora de uma Sibéria ou de um PSDB qualquer.

Com a pandemia, estamos aprendendo a compreender o valor da solidão e a valorizar a solidariedade. Entendemos finalmente que a solidão é a condição em que viemos ao mundo e vivemos nele. Somos os únicos responsáveis por nós mesmos, sobre nós mesmos e o que possa repercutir sobre nossos semelhantes. Sobretudo quando corremos algum perigo, isolados de tudo. Assim como a única arma que possuímos para conviver com o resto do mundo é a solidariedade, o amor sem sentimento de propriedade sobre o outro. Solidão e solidariedade (elas devem ter a mesma raiz latina, não é não?) são coisas indispensáveis no mundo de hoje.

Não podemos saber o que vai acontecer depois da pandemia e é inútil tentar adivinhar. Não sabemos, e não sei se um dia saberemos, quantos seres humanos ainda vão morrer enquanto ela durar. A pandemia é como a invasão de um exército inimigo que veio para tomar nosso espaço vital. Só não fica para sempre se formos capazes de enfrentá-lo com as armas que formos capazes de inventar. Essa flexibilização doida, a “abertura do confinamento” que as fotos do Leblon noturno registraram nos jornais deste fim de semana, esse monte de gente que não sabe que não se retorna nunca ao que já foi, de pessoas tolas a sorrir como se estivessem numa feira inocente e solar, não passam de um elogio à irresponsabilidade de quem mandou e à ignorância de quem foi para as ruas cheias e agressivas.

José Bonifácio Sobrinho, o Boni vitorioso da televisão, declarou a um jornal que só sai de casa quando inventarem a vacina. E ele tem razão. Há mais de quatro meses que sou um membro absolutamente disciplinado do grupo de risco — faço tudo que me mandam fazer, não saio de casa, lavo as mãos o dia inteiro, uso máscara e álcool em gel sempre que necessário. Mas quero poder abraçar meus amigos, beijar minhas filhas e meus netos, sair de casa para passear pelo bairro, reconhecer as esquinas da minha cidade, ver como anda o mundo.

Quero, por exemplo, entrar num cinema do Grupo Estação, que frequento há tantos anos, e que está ameaçado de fechar por falta de público na pandemia. Foi naquelas salas que chorei com “Jules e Jim”, que acreditei no retorno do cinema brasileiro depois de “Central do Brasil”, que torci pelo “Parasita” redentor de tantos filmes de cinematografias como a nossa. O Estação me ajudou a fazer filmes com o que vi lá, tanto quanto os livros que li e as conversas que tive com mestres mais velhos do que eu, como Nelson, Ruy e Roberto, porque escola de cinema eu nunca fiz. Em homenagem ao que sei, vou ajudar o Grupo Estação a sobreviver.

Não vou me meter a adivinhar o futuro, acho que ninguém sabe o que vai acontecer (se soubesse, certamente não estaríamos onde estamos). Mas tenho a impressão de que, desse caos escandaloso, desse mundo pouco nítido em que vivemos, dessa tristeza de quem está perto do fim, alguma coisa nova virá nos salvar como uma luz modesta que aprenderemos a cultivar. Tenho a impressão de que o mundo será mais leve, que os que julgam saber murmurarão a verdade a meus ouvidos, em vez dos urros loucos que todos os lados nos berram agora. Enfim, só há duas alternativas. Ou escolhemos o lado sombrio de negacionistas autoritários e egoístas; ou vamos em direção ao sol do afeto e da transigência.


Ricardo Noblat: No ar, a nova versão de Paulo Guedes redescobrindo o Brasil

Uma guinada e tanto…

Em entrevista, ontem à noite, à CNN Brasil, o ministro Paulo s anunciou uma radical mudança na política econômica do governo Jair Bolsonaro. Sai de cena o que chamou de “buraco negro fiscal”. No seu lugar entrarão emprego, renda e saúde. É uma guinada e tanto, a conferir nos próximos meses se será assim mesmo.

“Nossa preocupação essencial, hoje, não é mais o buraco negro fiscal como até um ano atrás, mas sim emprego, renda e saúde”, garantiu Guedes. Segundo ele, a pandemia de covid-19 desnudou a realidade “perversa” de 38 milhões de brasileiros na informalidade que ficaram sem dinheiro para suas necessidades básicas.

Em face disso, o Brasil terá de assistir ao aumento da dívida pública para ajudar empresas e pessoas físicas na fase atual da pandemia. O plano agora é criar uma “rampa de ascensão social” para a população mais vulnerável, de modo que ela consiga se reinserir no mercado de trabalho.

No fim de semana, Guedes foi mordido por um cão de sua família e obrigado a vacinar-se. Mas isso nada teve a ver com o seu novo modo de ver as coisas. Para quem, há três meses, ainda falava em aprovação de “reformas estruturantes” e achava que 5 bilhões de reais bastariam para atravessar a pandemia, é de louvar-se.

A caça ao quinto ministro da Educação em 18 meses de governo

Olavo de Carvalho e os três filhos zero querem ganhar mais essa

A levar-se em conta que o professor Carlos Decotelli foi nomeado e forçado a demitir-se antes de tomar posse, não será exagero dizer que o empresário Renato Feder, convidado por Jair Bolsonaro na última quinta-feira, foi o quarto ministro da Educação em um ano e meio de governo. Um recorde, salvo engano.

Bolsonaro disse a Feder que ele fora escolhido para suceder Decotelli, que por sua vez sucedeu a Abraham Weintraub, que sucedeu a Ricardo Vélez. Aproveitou o telefonema e combinou encontrá-lo em Brasília no início desta semana. Feder, que já fora cogitado para a vaga de Weintraub, comemorou pela segunda vez.

O que prova que ele punha mais fé em Bolsonaro do que Bolsonaro merecia. Para quem diz e repete que no governo é ele que manda e que a Constituição é ele, a nomeação abortada de Feder é mais uma prova em contrário. No mais das vezes, Bolsonaro não sabe o que fazer. Com frequência, é frouxo. Avança e recua.

Afrouxou no caso de Feder porque seus três filhos zero, e mais alguns líderes evangélicos do tipo Sila Malafaia, e mais o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho e sua turma se opuseram à indicação do atual Secretário de Educação do Paraná. Valeram-se das redes sociais para degradá-lo.

Aos olhos dessa gente, Feder não merecia confiança por ser ligado ao governador João Doria (PSDB) e a paulistas muito ricos. De resto, seus pontos de vista sobre o consumo de maconha e o sexo em geral não estavam em linha com o que Bolsonaro pensa. Não bastasse, o Centrão deitaria e rolaria com Feder ministro.

São argumentos de ocasião, alguns dos quais não correspondem à verdade. O que os órfãos de Weintraub querem mesmo é emplacar seu substituto à sua imagem e semelhança. O Ministério da Educação sempre foi coisa deles desde o início do governo, assim como o das Relações Exteriores, assim como o do Meio Ambiente.

Bolsonaro promete que não passará desta semana a escolha do seu quinto ministro da Educação. E enquanto ele se distrai com isso, o país ultrapassará hoje a marca dos 65 mil mortos pelo coronavírus e de 1. 605 mil contaminados.


Mathias Alencastro: Centro-esquerda está saindo renovada e fortalecida da era populista

No Brasil, porém, a Executiva Nacional do PT resiste graças a falácias

Poucos discordam que a sequência marcada pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a detenção de Lula em 2018 definiu o atual projeto do Partido dos Trabalhadores. Todavia, outra dinâmica não menos importante, comum a outras formações de centro esquerda, também influenciou esse processo.

Os anos 2015-2020 são caracterizados pela ascensão e queda de novas formações de esquerda como o espanhol Podemos, a França Insubmissa e, mais importante ainda, pela tomada de poder de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista britânico.

Todos defendiam uma estratégia de acirramento da contestação política e de mobilização apaixonada das bases.

Eles ofereceram o respaldo teórico e prático ao PT para dar uma guinada programática depois de treze anos no poder. Naquela altura, a prioridade do partido era evitar ser ultrapassado pela esquerda.

O que resta dessa experiência? Dirigido por uma tirania familiar, o Podemos virou uma muleta ineficiente do governo Pedro Sánchez.

A França Insubmissa fracassou na sua tentativa de capturar o eleitorado de esquerda órfão do Partido Socialista. Os trabalhistas sofreram algumas das suas mais humilhantes derrotas sob o comando de Jeremy Corbyn.

Contra todas as expectativas, a pandemia abriu um novo capítulo. O moderado Keir Starmer reconstruiu as fundações dos trabalhistas no Reino Unido e, em poucos meses, recuperou a popularidade perdida nos anos Corbyn.

Na França, ambientalistas e socialistas triunfaram nas municipais. Juntos, eles formam a alternativa mais credível ao governo Macron, firmemente ancorado à direita. Um pouco por todo o lado, a centro-esquerda está saindo renovada e fortalecida da era populista.

No Brasil, porém, a Executiva Nacional do PT resiste graças a duas falácias. A primeira é denunciar a eleição de Jair Bolsonaro como parte de uma interminável conspiração contra o partido. A segunda falácia é a ideia de que o PT deve continuar girando em torno de Lula.

O advento do Consórcio do Nordeste, a maior força de oposição ao governo, e a atuação dos melhores quadros petistas nas discussões da Frente Ampla, deixam claro de que isso não passa de uma ilusão sustentada por burocratas desprovidos de capital eleitoral.

O PT não é o primeiro grande partido de centro-esquerda a ter dificuldades em gerir a transição para a oposição depois de um longo período no governo. Basta olhar para a travessia do deserto dos trabalhistas depois da queda de Tony Blair. Tampouco é o primeiro partido a ter de lidar com a onipresença de um líder histórico. Por décadas, o Partido Socialista francês viveu na sombra do seu fundador e idealizador, François Mitterand. Embora delicadas, essas questões seriam facilmente superadas por uma nova geração de dirigentes.

Mas o PT é a única formação que optou por renovar o mandato de uma Comissão Executiva Nacional com uma agenda rejeitada pela sociedade e descartada no mundo inteiro. Por isso, não vale a pena perder tempo tentando debater as sempiternas querelas sobre golpe, Lava Jato e a Venezuela. Para a atual Executiva do PT, o único projeto é o impasse.

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra)


Luiz Carlos Trabuco: A distopia do novo anormal

Uma pergunta nos é feita nesta época de pandemia: como será a vida em sociedade, a economia, o trabalho, o lazer e as manifestações de cordialidade e de afeto, além de inúmeros outros aspectos de nossa rotina, quando a crise acabar?

A dúvida se justifica, diante de tantas modificações em nosso cotidiano trazidas pela covid-19. E o que nos angustia é que ainda não temos resposta, diante de um evento drástico e assustador.

Mas podemos fazer conjecturas a respeito do futuro. Sobre duas hipóteses. A primeira é o “novo normal”. A partir de agora, as pessoas procurariam isolar-se sempre que possível. As demonstrações de amizade e carinho, como o abraço e o aperto de mãos, seriam abolidas da etiqueta. Festas, comemorações, eventos artísticos e esportivos, tão importantes para a unidade social, em declínio. A busca do isolamento se repetiria no plano mundial. Teríamos de conviver com fronteiras fechadas e um nacionalismo inamistoso, além de toda sorte de preconceitos.

A globalização perderia impulso. O futuro se transformaria em algo de hostil. Seria o mundo da distopia do “novo anormal”, vida sem sonhos, propósitos, o reverso do avanço civilizatório. Viveríamos em uma sociedade feita de distanciamento e frieza.

Outra hipótese, mais provável, é que os incômodos provocados pela pandemia desapareçam com ela. Precisamos confiar no surgimento, em breve, de uma resposta científica para o vírus: a vacina. Afinal, a ciência do século 21 é poderosa, como prova a evolução da expectativa de vida. Os sistemas de saúde se fortaleceram na pandemia, que foi um alerta. Mostrou que precisamos nos preparar para eventos semelhantes, ou uma eventual segunda onda da doença.

Nesse aspecto, o “velho normal”, ou seja, a vida como a conhecemos até agora, deve predominar. O instinto gregário é próprio do homem e constitui o alicerce da sociedade.

A humanidade já passou por outros desafios graves; porém, o tecido social não se enfraqueceu. Ao contrário, a sociedade se aprimorou. Isso também é válido para os países. É possível que tenhamos, de início, uma elevação no grau do protecionismo, do nacionalismo e mais restrições nas fronteiras, mas as economias nacionais estão de tal forma conectadas e dependentes entre si que esses obstáculos para as interações internacionais tendem a cair com o tempo.

Mas a pandemia, é certo, trouxe mudanças de hábitos que permanecerão – porque são boas. Por exemplo, a maior preocupação com a higiene. O avanço do e-commerce garantiu a sobrevivência de milhares de empresas. O home office é uma realidade. Adotado como forma de preservar a saúde dos funcionários e evitar a disseminação do vírus, o trabalho em casa mostrou-se tão produtivo e eficiente quanto no escritório.

A experiência dos bancos é muito interessante. Praticamente todas as operações são feitas por canais digitais, sem comparecimento a agências. Aulas, consultas médicas, conferências - exemplos ocorrem em todas as áreas.

O que essas modificações têm em comum? Trouxeram comodidade, conforto, agilidade e economia de tempo para as pessoas. Para muitas empresas, abriram novas perspectivas. E ocorreram a partir de ferramentas tecnológicas já existentes. Ou seja, iriam mesmo acontecer. Nesse ponto, o que chamamos de “novo normal” já estava endereçado há bastante tempo.

É verdade, a crise da covid-19 trouxe perdas econômicas em escala global. Não será pouco trabalho, mas teremos êxito se tivermos foco. O primeiro item dessa agenda é o mercado de trabalho. A pandemia destruiu muitos empregos e mutilou chances de ingresso das novas gerações ao mercado. O resgate dessas perdas demanda reformas econômicas, que irão estruturar as bases de um ambiente renovado para o desenvolvimento.

A crise mostrou que é possível mudar em pouco tempo, a rapidez foi a ferramenta de adaptação a circunstâncias inesperadas. O senso de urgência é o tempo que vale, a partir de agora.

*Presidente do Conselho de Administração do Bradesco


Merval Pereira: Os inocentes

“Os inocentes do Leblon”, poesia de Carlos Drummond de Andrade de 1940, poderia ter sido escrita ontem, quando os bares do bairro carioca encheram-se de “inocentes” sem medo do amanhã. Aglomerados, sem máscara, “os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram/mas a areia é quente, e há um óleo suave/ que eles passam nas costas, e esquecem”.

Excitados pela liberação açodada e irresponsável dos bares e restaurantes por governantes fracos e oportunistas, os inocentes saíram às ruas para comemorar o quê? Quase 70 mil mortes? Mais de um milhão e meio de contaminados pela Covid-19?

Em vários lugares do mundo, e não apenas no Leblon, multidões saíram às ruas depois de pelo menos três meses de quarentena, e muitos locais já estão tendo que retroceder, com certas áreas na Espanha, e o toque de recolher imposto em Miami.

Em Paris, um festival de música que atraiu milhares de jovens pode ter provocado um aumento da contaminação. Estados Unidos, México e Brasil são responsáveis por mais da metade das mortes mundiais por Covid-19, não por acaso governados por dirigentes negacionistas.

Em plena ascensão da praga, o presidente Bolsonaro dá-se ao desplante de vetar a obrigatoriedade de máscaras no comércio e nas igrejas, e governadores populistas mudam de posição pensando na eleição de novembro.

Como será “o mundo pós-pandemia”? O advogado e escritor José Roberto Castro Neves reuniu um grupo de especialistas para imaginarem o que acontecerá em seus respectivos campos de atuação, e o resultado, editado pela Nova Fronteira, já está nas livrarias.

São prognósticos otimistas, outros nem tanto, em áreas como Medicina, Economia, Humor, Educação, Meio-Ambiente, Cinema, Saúde, e assim por diante. Coube-me escrever sobre política, não a partidária, mas a que rege nossa vida em sociedade.

Fui otimista, mas diante dos roubos de respiradores, de obras superfaturadas em hospitais de campanha, dos primeiros comportamentos no pós-pandemia antecipado, temo ter sido ingênuo. Aí vão alguns trechos:

“A natureza produziu uma cruel metáfora ao nos enviar um vírus mortal que sufoca ao mesmo tempo que provoca uma limpeza no meio-ambiente pela necessidade de ficarmos em casa para tentar salvar-nos.

(…) A peste escancarou também a extrema pobreza e, sobretudo, a desigualdade com que convivemos cotidianamente como se fossem coisas da vida. Milhões de “invisíveis” surgiram do nada para assombrar os governantes, que não os detectavam nem mesmo nos programas sociais.

(…) Se a palavra “política”, do grego “politéia”, que trata das relações sociais na “polis” (Cidade-Estado), define a atuação das diversas camadas de uma sociedade nessa perspectiva, é plausível imaginar que uma sociedade que tenha passado pelo choque que a nossa está passando reveja suas prioridades e torne-se mais interessada em temas que têm sido relegados, como saneamento básico, saúde pública, educação.

(…) Não ser contaminado pela Covid-19 depende de uma decisão individual, mas também do entendimento de que, se protegendo, protegem-se também as demais pessoas que nos circundam.

(…) Entre nós, temas incontornáveis passam a ser o sistema de saúde pública como o SUS, um avanço democrático que mostrou ser essencial no combate à Covid-19, mesmo com suas deficiências e limitações, que devem ser corrigidas a partir do financiamento público reforçado.

(…) A inevitabilidade da morte não significa que ela não deva ser retardada o mais possível, através de uma vida saudável e dos meios de atendimento à população mais carente. A valorização da ciência e da tecnologia é inevitável como política pública de um mundo pós-pandemia.

(…) não haverá espaço para políticas retrógradas e fisiológicas se quisermos participar de um mundo que ganhará uma ressignificação depois do sofrimento provocado por um vírus que nos mostrou nossa pequeneza diante do universo, ao mesmo tempo em que a grandeza do ser humano emergiu da solidariedade planetária.


Bruno Boghossian: Atalho de Guedes para retomada do emprego pode oficializar trabalho precário

Plano para estimular contratações aumenta risco de desigualdade e de desmanche de redes de proteção

Assim que o governo anunciou a prorrogação do auxílio emergencial do coronavírus, Paulo Guedes voltou a fazer propaganda do programa Verde e Amarelo. O ministro aproveita a pressão econômica da pandemia para driblar leis trabalhistas e permitir a contratação de empregados com menos proteções.

“O Verde e Amarelo são esses 30 milhões de brasileiros que estão por aí e que só querem o direito de trabalhar sem ser impedidos pelo governo”, disse o economista, na terça (30).

No dia seguinte, entregadores de aplicativos tomaram a avenida Paulista na contramão do ministro. Na paralisação, que já estava programada, eles cobraram das empresas melhores condições de trabalho, taxas mais justas e itens de proteção.

O governo Jair Bolsonaro não entendeu o recado. A equipe econômica continua em busca de um choque liberal nas relações entre empregadores e empregados. No caso dos trabalhadores informais, as medidas sugeridas podem fazer com que eles continuem desprotegidos.

A ideia é reduzir encargos sobre os empregadores. O programa Verde e Amarelo deve isentar empresários de cobranças do FGTS e do INSS. O projeto prevê ainda o pagamento por hora trabalhada.

Ao Valor Econômico um auxiliar de Guedes tentou pintar a precarização com tintas coloridas: “A pessoa trabalha duas horas num lugar, marca-se o valor. Depois, três horas em outro lugar, apresenta a carteira e marca. Ele pode ser empregado de oito pessoas ao mesmo tempo”.

Embora o custo de contratação no país seja considerado alto, o atalho apenas oficializa a informalidade, aumenta os riscos de desigualdade e desmancha uma rede de proteção que existe justamente para amortecer os efeitos de crises econômicas.

Ao defender o plano, Guedes disse que as leis trabalhistas são “o céu para alguns, mas com muito desemprego”, e descreveu a informalidade como “esse inferno do anonimato”. Após a crise, muitos trabalhadores não terão alternativa. O governo só se compromete a rezar a missa.


Dorrit Harazim: Desmascarados

A sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva

O índice de estupidez de quem abarrotou bares e ruas do Leblon na noite de quinta-feira merece atenção para além de um simplório filtro por classe social. Nas franjas das periferias e comunidades, bailes funk também rolam adoidado ao arrepio de qualquer quarentena. Esses bolsões de incivilidade tampouco são coisa só nossa. Nos Estados Unidos, matriz brasileira de gestão irresponsável do coronavírus, exemplos de insensatez social ostensiva pipocam emNova York e Houston, lotam Miami Beach e assustam Los Angeles. A novidade é desafiar o amanhã embarcando em “Covid parties” sem proteção, propósito ou culpa.

À primeira vista, essa sofreguidão irreprimida pode evocar “A noite dos desesperados”, filme ambientado na Grande Depressão de 1929 com Jane Fonda em papel memorável. Mas só à primeira vista. Na obra do diretor Sydney Pollack, o grupo à deriva que desce aos infernos para vencer uma maratona de dança e conquistar um prêmio em dinheiro é arrastado pela necessidade. No filme, incentivados por um promotor sem escrúpulos e oportunista, eles arriscam tudo para sobreviver, inclusive a autodestruição. Já os festeiros afoitos de hoje jogam sobretudo com a vida alheia. E de graça, sem ganhar nada. São paspalhos.

Mas há um elo em comum entre a trama ficcional e o momento coronavírus atual: a figura do promotor oportunista. Em sua versão 2020 ele é tanto o prefeito que reabre sem ter fechado quanto o governador que rouba respirador ou o presidente que achincalha o uso da máscara. Impulsionados por estreiteza de visão, aposta negacionista ou pura irresponsabilidade, esses agentes do devaneio estão levando o país à neurastenia. E a sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva.

Virou notícia a iniciativa de um shopping da cidade de Botucatu, no interior paulista, que liberou a circulação de automóveis pelos corredores, no interior do prédio. O cliente precisa estar de máscara, não pode sair do veículo, mas retira suas encomendas diretamente na porta das lojas. Tudo seguindo as normas sanitárias vigentes na cidade, que foi rebaixada para a chamada fase 1 (vermelha) do Plano São Paulo, portanto de quarentena mais restritiva — apenas serviços essenciais podem permanecer abertos. Motos e carros movidos a diesel têm acesso vetado ao local, mas havia limite de velocidade para a circulação dos muitos SUVs que se enfileiraram no primeiro dia. Um sucesso. As imagens do chamado “drive-thru in door” são estupefacientes.

Se para uns consumir é pretender que nada mudou, para quem foi condenado a confundir cidadania com consumo voltar a comprar é necessidade. Em shoppings populares já abertos legalmente, o afluxo é quase desesperado.

O ativista ambiental britânico George Monbiot descreve assim o sistema falido em que vivemos, que depende de crescimento contínuo e exige que percamos nossa capacidade de tomar decisões ponderadas: primeiro satisfazemos nossas necessidades reais, depois nossos desejos intensos e vontades de ocasião. Por fim, somos induzidos a continuar a adquirindo bens e serviços de que não precisamos nem queremos. É quando abandonamos nossas faculdades discriminatórias e sucumbimos ao mero impulso, tragados por um ciclo de compulsão ao consumo. Monbiot cita como exemplos a existência de uma torradeira capaz de imprimir a imagem do dono no pão, de um porta-papel higiênico que envia mensagem a seu celular informando que o rolo está acabando e de uma escova de cabelo (para adultos) que informa se você sabe escovar corretamente o cabelo. O autor alerta para o fato de o meio ambiente não responder a sinais da Bolsa e do mercado.

Pandemias também não.

Dias atrás coube ao atual diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), dr. Robert Redfield, apresentar-se perante uma inquieta Comissão Parlamentar de Comércio e Energia. Indicado por Donald Trump, Redfield surpreendeu a todos na franqueza. Informou aos deputados que o governo americano “provavelmente vai gastar US$ 7 trilhões com esse viruzinho”. E acrescentou: “A realidade é que [a pandemia] botou esta nação de joelhos.” A última vez que se ouviu falar da nação de joelhos foi após o ataque terrorista às Torres Gêmeas de 2001.

No Brasil as contas ainda estão muito longe de fechadas — nem o custo em vidas, nem o financeiro. Mas o país já está firmemente alinhado à matriz como nação pária no combate civilizado à pandemia. Na Europa que se entreabre, brasileiro não entra por enquanto. Por pertinente, copia-se aqui trecho de entrevista do historiador John M. Barry, autor do aclamado “A Grande Gripe”, concedida esta semana a Ana Lucia Azevedo, no GLOBO:

— Como o senhor vê o posicionamento de líderes que negam a Ciência, como os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro?

— Serei diplomático. Eles são idiotas perigosos.


Vinicius Torres Freire: Mercado supõe que 2021 terá vida que segue e Bolsonaro quieto

Mercado supõe que gasto e política econômica voltem ao que eram no pré-pandemia

O país estará mais pobre e o governo estará mais endividado, mas depois da calamidade do vírus o plano de política econômica não deve mudar: não se admite nem é provável que mude. É o que parece implícito nas projeções de economistas do setor privado, do “mercado”, e explícito na conversa do governo. Não deixa de ser uma espécie de otimismo, um “vida que segue”, apesar do desastre.

Na média, as estimativas econômicas parecem pressupor que o gasto extra do governo federal neste ano (“Orçamento de guerra”) será quase eliminado no ano que vem: auxílios emergenciais e de salário, adiamentos de impostos, ajuda a estados e municípios, despesas com saúde. É um talho da ordem de R$ 450 bilhões. É algo equivalente à despesa anual com salários de servidores, benefícios para idosos e deficientes (BPC), Bolsa Família e investimento.

Está previsto que a economia crescerá uns 3,5% e implícito ainda que o teto de gastos será mantido e que a receita do governo federal praticamente volta ao nível de 2019. É o que se depreende das estimativas da praça para o déficit federal, dando-se de barato que “o mercado” não prevê aumento de impostos, bidu.

Para que se respeite o teto, não será possível nenhum programa de renda básica que eleve despesas. Se sair um “Renda Brasil”, esse novo pacote teria de ser pago com cortes de gastos em outras áreas, o que demanda alterações em leis ainda neste ano.

Manter o teto reduziria ainda mais o investimento público “em obras”; deixaria os gastos com saúde e educação no piso. A fim de compensar o aumento inevitável de certas despesas obrigatórias, seria preciso limitar outro gasto, provavelmente salário de servidores.

Parece pressuposto que o fim do auxílio emergencial e complementos de salário será compensado por aumento da soma dos rendimentos do trabalho (“massa”) a partir do terceiro trimestre. Imagina-se que estados e municípios conseguirão pagar salários e fornecedores em 2021.

Plausível? Um corte de quase meio trilhão de reais no gasto público seria compensado por aumento de despesa privada? Isto é, pelo gasto derivado do aumento do total de salários e do crédito, além daquele que sobreviria por causa do consumo represado, pois a poupança de parte das famílias aumentou (não perderam renda e gastaram menos).

A dívida pública teria crescido para um nível horrível, mas ficaria estável pelos próximos anos, dadas as previsões de crescimento, manutenção do teto e taxa básica de juros baixa —ficaria baixa porque o programa fiscal seria o mesmo e haveria “reformas”.

Na saída da recessão de 2014-16, o nível de emprego (pessoas ocupadas) levou três anos para ir do fundo do poço ao pico anterior. O emprego formal jamais se recuperou, assim como a receita do governo (como proporção do PIB, descontado o maná do leilão de petróleo de 2019). Setores que mais ajudaram na recuperação do emprego depois da recessão são ainda os mais afetados pela epidemia (serviços).

É muito incerto se auxílio emergencial ainda fará efeito na economia depois de acabar, em setembro (quando houve o caraminguá do FGTS, ajudou, mas passou rápido).

A baixa do investimento público vai arruinar ainda mais nossa infraestrutura (deve limitar algum investimento privado também). A longa e mortífera epidemia deve limitar a confiança de trabalhar e consumir.

Enfim, parece pressuposto que Jair Bolsonaro continuará quieto, que haverá acordão político-judicial para deixá-lo no cargo e que o povo aceitará mais pobreza em paz.


José Márcio Camargo: O pós-pandemia – ‘os anos loucos’

Só o tempo dirá se os fatores que dominaram o mundo após a gripe espanhola se repetirão

Pandemias são eventos raros. A última grande pandemia foi a gripe espanhola dos anos 1918/1919. Matou 50 milhões de pessoas, 3% da população mundial. Se o mesmo se repetir hoje, o que parece pouco provável, teremos cerca de 300 milhões de mortes.

A pandemia começou no início de 1918, desapareceu em novembro do mesmo ano, sem vacinas ou remédios, e teve uma segunda onda no início de 1919. Coincidiu com o fim da 1.ª Guerra Mundial.
A gripe espanhola atingiu fortemente o Brasil, inclusive vitimando o presidente eleito, Rodrigues Alves. Imagens e relatos de caixões se acumulando nas portas das casas e falta de vagas em hospitais e cemitérios foram uma constante nos jornais da época.

Prever como a sociedade vai se comportar quando a pandemia acaba é muito difícil. Vários fatores afetam o comportamento das pessoas diante de tragédias desta magnitude e, a priori, é impossível saber que fator será dominante.

O sentimento que tem prevalecido entre analistas hoje é de que, como agentes que tinham mais reservas quando a pandemia começou têm maior capacidade de superar a tragédia que agentes com menos reservas, o fator dominante será mais cautela e precaução. Medo do futuro. Do ponto de vista econômico, mais poupança e menos consumo, o que significa uma retomada lenta da economia.

Além disso, como, para evitar a disseminação da doença, foi necessário diminuir o contato entre as pessoas, as relações de trabalho e comerciais foram quebradas, capital físico e humano foi destruído. O resultado é que a retomada pode se tornar lenta e difícil.

Entretanto, o que ocorreu após a pandemia da gripe espanhola sugere exatamente o oposto. A década de 20 do século passado foi bastante positiva tanto em termos econômicos quanto culturais, no Brasil e no mundo. A economia mundial cresceu a taxas elevadas, a economia americana se tornou economicamente hegemônica e a economia brasileira cresceu a taxas relativamente altas.

Foi, também, uma década caracterizada por movimentos importantes nas artes (surrealismo, dadaísmo), na música (jazz, Charleston, blues), na literatura e no teatro (Scott Fitzgerald, Sinclair Lewis, Eugene O’Neill) e no cinema (cinema falado, Charlie Chaplin, Luís Buñuel). No Brasil, foi uma década fértil nas músicas popular e erudita (Noel Rosa, Heitor Villa-Lobos) e na literatura (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira). A Semana de Arte Moderna revolucionou a literatura e a arte brasileiras (Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti). E houve muita liberdade na pauta de costumes. Diante de tamanha efervescência, entrou para a História como “os anos loucos”.

Por outro lado, provavelmente como reação ao liberalismo, preparou o terreno para um forte retrocesso nas liberdades individuais na década seguinte. No Brasil, várias tentativas de golpe de Estado, presidentes governaram em estado de sítio, culminando com a ditadura Vargas em 1937. No mundo, a ascensão do nazismo e do fascismo, que resultou na 2.ª Guerra Mundial.

Que fatores poderiam explicar este comportamento? Do ponto de vista econômico, em episódios como estes, em geral, são os mais eficientes e produtivos que sobrevivem, o que aumenta a produtividade da economia após a pandemia.

Pandemias são cisnes negros, cuja probabilidade de existir, antes que surjam, é percebida como sendo zero. Quando um cisne negro aparece, fica claro que ele existe, o que aumenta a probabilidade de que poderá reaparecer no futuro. No caso da pandemia, isso significa uma redução da expectativa esperada de sobrevida das pessoas. A consequência é uma diminuição da poupança e aumento do consumo desejados.

Após meses de confinamento, as pessoas estão ávidas para retomar o convívio social, frequentar eventos culturais e artísticos. Estes parecem ter sido os fatores dominantes após a gripe espanhola. Que fatores vão dominar a retomada desta vez, só o tempo dirá.

*Professor do departamento de economia da PUC/Rio, é economista-chefe da Genial Investimentos


Julianna Sofia: Ibaneis se aproxima de Bolsonaro no genocídio

Governador do DF determinou reabertura total

Na largada da pandemia, Ibaneis Rocha (Distrito Federal) ousou ser o primeiro governador do país a fechar escolas e impor medidas restritivas de circulação de pessoas para conter o vírus. O DF registrava apenas um caso da doença, e a prontidão da medida suscitou críticas sobre sua precocidade.

Contrastava com o negacionismo do Palácio do Planalto. Por vezes, Ibaneis censurou Jair Bolsonaro pela participação em manifestações na Esplanada. "Atrapalha. Traz uma informação de cenário político dividido e, para a população, sinaliza de forma errada."

Tanta cautela e ainda assim o DF era considerado em fase de aceleração descontrolada do vírus. Com o surto aparentemente contido após semanas e com a baixa ocupação de leitos para Covid-19 (25%), o Palácio do Buriti voltou a ousar. Foi uma das primeiras unidades da federação a flexibilizar as regras de isolamento. Simultaneamente lançou um amplo programa de testagem.

Mas os frutos da impertinência brotaram. O relaxamento fez o quadro se deteriorar e, mesmo com o aumento da oferta de leitos, a ocupação de unidades exclusivas se aproxima do limite. Na rede privada, o índice supera 90%, e na pública, 64%; as UTIs registram 75%.

Com alta taxa de transmissão, a capital federal se torna um dos eixos do novo epicentro da pandemia —Sul e Centro-Oeste. Relatos médicos viralizam, alertando para iminente colapso do sistema, ao passo que surgem investigações sobre fraudes nas compras públicas de testes.

Um tresloucado Ibaneis declarou, na segunda (29), estado de calamidade (por mais verbas federais?). Na quinta (2), porém, editou decreto para reabertura total, inclusive das escolas, em um abreviado cronograma até agosto. Em espasmos doidivanas, agora declara que restrições à circulação "não servem mais para nada" e que é preciso tratar a doença "como uma gripe".

Emula Bolsonaro, de quem se aproxima cada vez mais politicamente, para empilhar mortos.