pandemia

William Waack: Mais impostos vêm aí

A lei do mínimo esforço indica aumento de impostos e não uma ampla reforma tributária

Renúncia é a palavra decisiva no amplo debate sobre reforma tributária. É mesmo um formidável debate social e político, além da alta complexidade técnica e econômica. Pois os números consolidados indicam uma assombrosa adesão de praticamente todos os setores da economia e sociedade brasileiras a algum tipo de favor fiscal.

Agricultura, indústria, serviços, profissionais liberais, pequenas empresas, entidades não lucrativas, zonas francas, deduções para pessoas físicas são contemplados de alguma forma, e nenhum se manifesta disposto a renunciar à renúncia fiscal. Ao contrário: nos últimos 15 anos o fenômeno dobrou de tamanho (para quem aprecia números: as renúncias fiscais passaram de aproximadamente 2% para 4% em relação ao PIB).

Economistas se dividem quase em guerra religiosa quanto à eficiência dessas medidas fiscais que, na conta geral, diminuem a base de arrecadação de impostos, aumentando a carga para quem está pagando tributos. Talvez sociólogos – ou, melhor, antropólogos – entendam o problema.

As renúncias espelham um arraigado hábito político, que é o de espetar a conta nos cofres públicos e empurrar uma solução definitiva para um futuro não definido. É um tipo de “individualismo” muito característico de nosso “caráter nacional”. Todos os setores participantes nas renúncias confiam na sua capacidade de fazer valer seus interesses (que são legítimos), e a preocupação com o bem-estar geral é um problema moral reconhecido, porém secundário.

O País permaneceu num equilíbrio de interesses que foi se tornando cada vez mais precário – até o estouro de duas brutais crises, a fiscal e a de saúde (que se alimentam mutuamente). O que está escancarado agora é o clássico problema da ação e coordenação coletivas, que dependem de… lideranças.

A questão é imensamente maior do que a já complicada tarefa de arregimentar votos no Legislativo pela proposta A ou B de reforma tributária. Demanda uma imensa capacidade política de procurar algum tipo de convergência, de impor algum tipo de medida numa situação na qual ninguém renuncia a nada. Todos estão envolvidos: entes da Federação (Estados e municípios), variados segmentos econômicos, bases eleitorais (indivíduos que pagam Imposto de Renda).

No meio desse turbilhão o governo fala em quadratura do círculo, que é gastar mais num quadro fiscal delicado sem aumentar a já insuportável carga tributária. Apostando que o instinto dos congressistas, sendo o de gastar mais, os fará aceitar mais impostos. Uma aliança tácita com os “desenvolvimentistas” saudosos de Geisel no Planalto, e descontentes com o teto de gastos.

As contas dos economistas não fecham: não dá para suportar o necessário crescimento dos vultosos gastos públicos sem aumentar impostos, e apostam nisso. Sociólogos e antropólogos também apostariam. É só olhar para nosso apego à lei do mínimo esforço. É bem menos complicado do ponto de vista político aumentar impostos do que se engajar na esfalfante tarefa de coordenar esforços, praticar maldades (vistas pelo lado “individual”), convencer, articular, coagir, votar. Com as elites divididas.

Para que tudo isso, dirão os cínicos, se no fim de tanto esforço impopular (e seus efeitos eleitorais nos mais diversos níveis) o resultado será de qualquer jeito aumento de impostos? Resolver parte do problema via privatizações? No momento menos de 20 das centenas de estatais estão na lista de privatizações. Conter gastos e despesas? Segurar os gastos com funcionalismo depende de uma reforma administrativa, a que enfrentaria os bem articulados interesses corporativistas dentro do Estado brasileiro. Ela ainda é só uma intenção.

Resta a esperança de que a retomada da economia pós-pandemia traga retorno de investimentos, a produtividade aumente, emprego e renda cresçam e arrecadações encham cofres públicos que novamente seriam usados como sempre foram – para acomodar diversos interesses setoriais e privados, pois os da coletividade se resolverão sozinhos.


Hélio Schwartsman: O futuro das universidades

Será que chegou a vez da educação superior?

A primeira vítima foi a indústria fonográfica. Depois vieram setores como o hoteleiro, o de mídia, transporte de passageiros, entretenimento etc. A conjunção de novas tecnologias com um espírito mais faça-você-mesmo por parte dos consumidores causou um terremoto nessas áreas. Será que chegou a vez da educação superior?

A pandemia paralisou as atividades presenciais na maioria dos cursos e causa um empobrecimento geral da sociedade. Isso está levando muitos alunos, especialmente os das caras universidades de elite dos EUA, a repensar o valor de seu investimento. Muitas instituições se preparam para o pior, e algumas já até começaram a demitir professores.

É claro que a educação é importante. Você não forma um médico sem ensinar-lhe uma série de conteúdos específicos. Ainda assim, o que as universidades vendem são pacotes que não oferecem apenas o acesso a um corpo de conhecimentos. Fazem parte do conjunto a experiência universitária, que inclui a oportunidade de travar relacionamentos com os futuros líderes do país, e, mais importante, o prestígio (e a empregabilidade) que um diploma de Harvard, por exemplo, confere a seu portador.

O problema é que, por ora, a experiência universitária está suspensa e o acesso a conteúdos é de certa forma um bem fungível, podendo ser adquirido em livros ou escolas mais baratas. Aliás, no que constitui uma daquelas ironias do destino, muitas das mais conceituadas instituições já disponibilizavam na internet, gratuitamente e para todos, algumas de suas melhores aulas.

Resta, é claro, a questão do diploma. Suas bases, porém, não são das mais sólidas. Por que um canudo de Harvard vale mais do que o de um community college? Isso ocorre porque empregadores utilizam o diploma das universidades mais concorridas como uma espécie de teste de QI. O ponto é que existem formas muito mais baratas de aferir a inteligência de alguém.


Fernando Gabeira: Bibliotecas em chamas

Índios mais velhos são depositários do conhecimento, numa cultura oral

Escrever sobre índio é nadar contra a corrente porque os editores do passado achavam o tema um tédio, os políticos pensam que dá azar e, no cotidiano, costumamos chamar de programa de índio a algo desinteressante, sem graça.

O velho líder caiapó Raoni esteve internado em estado grave e teve alta. Não é Covid, mas a dor universal de perder a mulher com quem viveu muitos anos está derrubando o guerreiro.

Conheci Raoni em Altamira. Documentei sua amizade com o cantor Sting e com Anita Roddick, dona da Body Shop. Era uma segunda descoberta europeia dos índios brasileiros, reunidos ali para protestar contra a usina de Belo Monte. Agora os viam também como defensores da floresta.

Os viajantes do século XIX, meu tema de estudo, eram fascinados pela curiosidade de conhecê-los. O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e o grande pintor Rugendas, por exemplo, estiveram no Brasil, mas os procuravam em qualquer ponto do mundo novo. Max, desculpe tratá-lo com essa intimidade, navegou longamente pelos rios norte-americanos, contraiu escorbuto, mas não perdia a chance de conviver com os índios.

Rugendas sofreu um acidente na Argentina, um raio o atingiu. Desfigurado e com dores crônicas, sentiu a proximidade de índios, cobriu o rosto disforme com um manto negro, tomou uma dose de morfina e cavalgou alguns quilômetros para pintá-los. E que lindas cores reproduzia em seus desenhos.

O governo brasileiro acha que os índios devem ser integrados. Um pouco como o Weintraub, mas não tão agressivo como ele, que dizia odiar a expressão “povos indígenas”.

Na verdade, esse é um sonho de liquidação cultural. No momento em que a Covid-19 avança pelas aldeias, é também uma destruição física. Já morreram 500 e, de um modo geral, os mais velhos. São os depositários do conhecimento, numa cultura oral. O jornal “El País” descreveu precisamente essas mortes: é como se fossem inúmeras bibliotecas pegando fogo.

O governo não quer dar nem água potável para eles. Os ianomâmis e os ye’kwanas, lá na fronteira com a Venezuela, estão acossados por garimpeiros. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, já advertiu o governo brasileiro duas vezes. Na primeira, foi respondida apenas de uma forma muito geral, insatisfatória.

O fotógrafo Sebastião Salgado fez uma campanha para que os índios fossem protegidos na pandemia e pela expulsão dos invasores de suas terras.

Não repercutiu aqui como merecia. Apesar do que pensa o governo, a Constituição, em dois artigos, reconhece seus direitos não só culturais, como também territoriais.

O STF, através do ministro Luís Roberto Barroso, tenta fazer valer o texto da lei, e não os delírios destrutivos do governo. Creio que é necessário advertir para o que se passa lá fora e seus desdobramentos. A imagem do Brasil está desgastada pela política ambiental. E também pela política sanitária, considerada um desastre até pelo presidente das Filipinas, um exemplo asiático do modelo Bolsonaro.

Esses dois desgastes convergem na questão indígena, onde os temas sanitários e de defesa da Amazônia se associam.

Bolsonaro foi questionado no Tribunal Internacional pelo PDT pela sua omissão na pandemia. Como é de se esperar em nossa cultura, o partido esqueceu os índios em sua denúncia.

A única juíza brasileira que atuou no Tribunal Internacional, Sylvia Steiner, ao mostrar que o esforço do PDT não teria êxito, lembrou que a situação dos índios brasileiros era algo que poderia levar Bolsonaro ao banco dos réus em Haia.

De fato, o artigo que define genocídio prevê a destruição parcial ou total de uma etnia. Foi por causa disso que o Tribunal aceitou a acusação contra o presidente sudanês Omar al -Bashir.

É preciso um esforço nacional para evitar que a pandemia devaste as populações indígenas. Nossa transmissão de vírus e micróbios, algo que os aniquila desde os tempos coloniais, precisa ser controlada. Se isso acabar em Haia, sinto que nossa cultura também será julgada, por não termos conseguido deter o processo.

E quanto aos nossos animados militantes de direita, lembro que não adiantará insultar o Tribunal pela internet nem fazer grandes bonecos representando seus juízes. E os nervosos generais que ameaçam com golpe certamente não devem fazer planos para invadir a Holanda. Um oceano líquido e mental nos separa.


Fernando Gabeira: Os caminhos na tempestade

As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se com a visão de mundo de Bolsonaro

O foco de nossas discussões hoje no Brasil tem sido o governo: atacar ou defender o que está aí, arranjos para derrubar ou manter Bolsonaro de pé.

No entanto, há uma crise de grandes proporções no horizonte. Não importa quem estiver em Brasília, enfrentará um enorme desafio para simultaneamente amparar os mais vulneráveis e fazer o País andar.

Para o economista Armínio Fraga, é profundo o tamanho do buraco. Ele calcula que será necessário, em recursos, o equivalente a oito pontos do PIB para sairmos dessa.

Nesse ponto é que uma reflexão política pode ajudar. O governo segue dois caminhos perigosos. Ambos tornam a tarefa mais difícil.

A visão atrasada da política ambiental pode ser um obstáculo decisivo, pois consegue, ao mesmo tempo, afugentar investidores internacionais e desvalorizar os produtos brasileiros lá fora. Ou, no limite, até tornar alguns inviáveis.

A política sanitária negacionista completa esse quadro. O desempenho brasileiro no combate ao coronavírus também não ficará barato para a Nação. Pontualmente, o mercado da carne foi atingido. Mas o turismo dificilmente se recupera rápido. O fato de sermos uma região onde o vírus não é controlado significa inúmeros transtornos, que repercutem até na dificuldade do Flamengo de contratar um técnico de futebol no exterior.

A existência de um governo com essas características torna a tarefa de recuperação, com a demanda de recursos que implica, gigantesca, quase impossível.

O ponto central no momento é a reforma tributária. O pulo do gato é um imposto sobre transações eletrônicas, bastante aceleradas sobretudo depois que a pandemia se instalou no País. É uma CPMF adaptada às condições da nova situação criada pelo coronavírus e que, de certa maneira, já se verificava como consequência da revolução digital.

Aí reside outro nó político. Como convencer a sociedade, devastada pela crise sanitária, a pagar um novo imposto, ela que já o recusou em outras circunstâncias?

A única possibilidade de atenuar a resistência será um esforço visível do governo para reduzir os custos da máquina. Nos cálculos de Armínio Fraga, isso poderia representar três pontos do PIB, sem perda de eficácia da máquina.

A própria ordem dos fatores dificulta essa saída. O governo, primeiro, pensa em introduzir um novo imposto. Só depois, possivelmente, falará em reforma administrativa. Mesmo assim, não se conhece em detalhes o que ele pensa sobre isso. Haveria mesmo uma racionalização convincente da máquina, uma certeza cristalina de custos menores pela prestação dos serviços públicos?

A previsão é de que, mesmo sem orçamento de guerra em 2021, o governo seja pressionado a gastar. A dívida no longo prazo torna-se problemática e a tendência será buscar dinheiro com prazos cada vez mais curtos.

Tudo isso é um grande problema no médio prazo. Uma razão a mais para pedir uma verdadeira política ambiental, uma guinada no negacionismo sanitário, uma ampla reforma da máquina administrativa.

Mas que sucesso teriam essas demandas num governo que cultiva o isolacionismo e a negação?

Breve teremos eleições nos Estados Unidos. Existe uma possibilidade concreta de vitória de Joe Biden. Bolsonaro embarcou cegamente na canoa de Donald Trump.

Esse deslumbramento provinciano é inadequado para um presidente do Brasil. Mas agora já aconteceu. Existem quadros na diplomacia brasileira que poderiam atenuar o impacto negativo dessa política. Mas o atual ministro é o símbolo dessa política que vê em Trump a salvação dos valores ocidentais – embora quase todos saibamos que, se dependessem de Trump, os valores ocidentais já estavam destruídos.

Quando articulo todos esses elementos de análise, concluo que dificilmente este governo tem condições de superar a crise no horizonte.

Derrubá-lo num movimento traumático abalaria em muitos dos seus eleitores a confiança na democracia. Daí não vejo outro caminho senão abordar a crise com propostas positivas e, simultaneamente, mostrar aos eleitores bem-intencionados que não há solução com Bolsonaro. As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se diretamente com sua visão de mundo.

Quanto mais rápido se completar esse movimento, mais tempo teremos para abordar a crise de forma criativa, aplicando no futuro não só as lições do passado, mas, acima de tudo, aquelas que se tornaram evidentes durante a pandemia.

As diferenças sociais no Brasil não podem apenas ser combatidas com a ideia de que é preciso aumentar o consumo de eletrodomésticos e carros. Existe um consumo de qualidade que pode surgir de um eficaz serviço público: saneamento, educação, sistema de saúde universal e bem equipado.

A enorme potencialidade do Brasil, popular, intelectual, científica, enfim, todos esse fatores que o governo despreza precisam estar juntos de novo não apenas para derrubá-lo, mas para enfrentar seu legado negativo no processo de reconstrução. São dois momentos diferentes, reconheço. Mas deveriam estar, dentro do possível, entrelaçados, pois nunca atravessamos uma tempestade tão perfeita.


Bernardo Mello Franco - Charlatanismo contagioso

Um estudo promovido por 55 hospitais brasileiros testou o desempenho da cloroquina no tratamento da Covid-19. Os médicos acompanharam 667 pacientes em estágio leve ou moderado da doença. A conclusão foi a mesma de pesquisas já feitas no exterior: a droga é ineficaz no combate ao coronavírus. E ainda pode provocar efeitos adversos, como arritmia cardíaca.

O relatório da Coalizão Covid-19 Brasil foi divulgado nesta quinta, com ampla repercussão na imprensa. Poucas horas depois, Jair Bolsonaro fez uma transmissão ao vivo no Palácio da Alvorada. Diante de milhares de seguidores, o presidente voltou a exibir uma caixinha do remédio. “Enquanto não tem um medicamento claro para atacar o problema, é válido esse aqui”, afirmou.

O capitão não foi o primeiro líder populista a fazer propaganda da cloroquina. Donald Trump lançou a moda no início da pandemia. O americano chegou a anunciar que estava tomando a droga, mesmo sem ter se infectado. Aos poucos, foi deixando a encenação para seus imitadores.

Numa prova definitiva de que desistiu da farsa, o republicano anunciou a doação de dois milhões de doses ao Brasil. Bolsonaro agradeceu, sensibilizado com a generosidade. E mandou distribuir o carregamento para os estados, que não sabem o que fazer com a substância reprovada pelos cientistas.

O Capitão Corona transformou a cloroquina numa espécie de Santo Graal para seus seguidores fanáticos. No último domingo, ele caminhou até a portaria do Alvorada e ergueu uma caixa do remédio como se fosse um troféu. O gesto provocou palpitações na pequena plateia, que se aglomerava à espera de um perdigoto do grande líder.

No ar seco de Brasília, o charlatanismo se tornou contagioso. Em vídeo divulgado na quarta-feira, o comandante do Exército, Edson Pujol, exaltou a produção da substância em laboratórios militares. “Com orgulho, informo que essa pronta resposta já recuperou milhares de integrantes da nossa família verde-oliva”, discursou. E o general já foi visto como uma reserva de racionalidade nos quartéis.


Leandro Colon: Desembargador infrator de Santos é retrato de uma classe de intocáveis

Eduardo Siqueira é tão servidor público quanto o guarda municipal que cumpriu sua missão ao multá-lo

O desembargador Eduardo Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, não foi o primeiro nem será o último magistrado que se sente diferenciado, com permissão para ignorar regras impostas aos cidadãos.

Siqueira deu carteirada e humilhou um guarda municipal de Santos, que o multou por estar infringindo o decreto local sobre o uso obrigatório de máscaras para combater o coronavírus.

O juiz é só mais um entre 360 (!) desembargadores do TJ-SP. É tão servidor público quanto o guarda que cumpriu sua missão ao multá-lo.

O episódio de Santos reforça a imagem de que o Judiciário brasileiro atua como uma classe de intocáveis.

É um Poder que não vê, por exemplo, problema algum no fato de filhos enriquecerem advogando no mesmo tribunal onde o pai ou a mãe julga, como ocorre no STJ e em outros tribunais superiores.

Enquanto o país paga um preço salgado pela pandemia, com cortes de jornadas e salários, o Judiciário nega-se a dar da própria carne. O STF pressiona o Congresso a preservar sua remuneração e evitar redução de vencimentos dos funcionários.

A farra é grande. O Judiciário pagou uma remuneração mensal acima de R$ 100 mil a 8.226 juízes ao menos uma vez entre 2017 e abril deste ano - num país em que o teto do serviço público é de R$ 39,3 mil. No período, foram feitos 565 pagamentos acima de R$ 200 mil a 507 juízes. A magistratura é brasileira, só parece viver na Escandinávia.

Como mostrou a Folha recentemente, o TJ-SP tem usado, de forma oculta, verba reservada a situações urgentes para manter a regalia de seus desembargadores, entre eles o infrator municipal Eduardo Siqueira.

Há despesas com queijo maasdam holandês, salame da mais alta qualidade e várias outras extravagâncias gastronômicas em pleno período de contigenciamento em meio a pandemia.

No caso do chilique do desembargador Siqueira, abriu-se uma apuração no CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Mas é tudo um teatro, pouco se espera dali. Punir juiz que desonra a toga nunca foi uma virtude do colegiado.


Dorrit Harazim: Fresta aberta

Saber, curiosidade e humanidade podem emergir após pandemia

Da cidade de Wuhan, onde nasceu, cresceu e escapou o novo coronavírus, os relatos que conseguem driblar a censura do regime chinês ainda são esparsos e picados. Talvez sejam necessárias mais algumas gerações até que se consiga historiar como a Covid-19 transformou aquela cidade em laboratório humano. Mas de Bergamo e comunas vizinhas na Lombardia, berço e epicentro da mortandade na Europa, os relatos de terra arrasada transbordam à medida em que a vida, ali, retoma seu curso. Ou o que dela restou. O repórter Eric Jozsef, do diário francês “Libération”, fez um dos apanhados mais impactantes do que foi aquele manto da morte sobre Bergamo. Diante da escalada pandêmica cada vez mais abstrata, por incompreensível e incerta — 14 milhões de infectados globais, Estados Unidos apontando para 150 mil mortos, Brasil ultrapassando 2 milhões de contaminados —, vale retornar ao horror concreto de menos de 5 meses atrás.

Na próspera Bergamo de 120 mil habitantes, os fornos crematórios não davam conta do fluxo de mortos. Três semanas após o registro do primeiro infectado no país, um comboio de caminhões militares atravessou as ruas desertas da cidade transportando dezenas de caixões para serem incinerados em outros burgos. Foi apenas o primeiro de 45 comboios noturnos semelhantes. Ao longo de 40 dias houve um enterro a cada 30 minutos. Ao todo foram 6 mil, muitos deles sacrificados em função da idade ou do estado de saúde. A jornalista local testemunha: “Houve dias em que parecia haver um atirador de metralhadora disparando a esmo”. A enfermeira não esquece: “Os olhos dos moribundos pareciam lhes saltar da órbita, como se o vírus estivesse ali. Era o olhar da morte”. O pároco relembra: “Tivemos de interromper o tocar de sinos por um mês, tantos eram os mortos”. O septuagenário que perdeu 3 irmãos em duas semanas sentencia: “Eram tantos avisos de óbito que eles passaram a ocupar os painéis publicitários. Uma geração inteira desapareceu”.

Hoje toma-se um spritz ou amaro em praças de Bergamo. Reaprende-se a viver com cautela. E diante da nova realidade, o medo cede à cobrança, à indignação. Onde estiveram as autoridades? Por que demoraram a decretar o confinamento? Qual o peso do lobby dos industriais para não interromper a atividade econômica na província responsável por 22% do PIB italiano? Um comitê de defesa das vítimas constituiu-se espontaneamente em busca de repostas e aponta para o que deve ocorrer em outros países. Mundo afora houve delongas iniciais por desinformação sobre o comportamento da nova peste. Em casos mais gritantes como os do Brasil e dos Estados Unidos, a ausência do poder público foi deliberada, mas por negacionismo.

Todos nós — indivíduos, entidades, lideranças, especialistas em saúde, a mídia, unanimidades nacionais como os doutores Anthony Fauci e Drauzio Varella — tivemos nosso momento delay de percepção do inimigo invisível. Seguimos à risca a recomendação inicial de não usar máscaras por dois motivos básicos: as de uso hospitalar (as únicas que existiam) poderiam vir a faltar para quem trabalha na linha de frente; ademais, seriam inócuas para a defesa de quem não estava infectado. Pensava-se que elas serviriam apenas para diminuir o potencial de transmissão dos já doentes. Um artigo postado em fins de fevereiro pela revista “Forbes”, acessado 4,5 milhões de vezes, teve por título “Não, você NÃO precisa de máscaras contra o coronavírus — Elas podem aumentar seu risco de infecção”. O artigo foi posteriormente atualizado para refletir a farta evidência científica de que máscaras são cruciais para todos nós.

Hoje está entendido que a Europa e a Organização Mundial da Saúde deveriam ter reagido mais rápido às notícias vindas da China, que os Estados Unidos de Donald Trump jogaram fora o tempo de preparo para o inevitável desembarque da peste em suas terras, e que o Brasil conseguiu superar com folga o patamar de desgoverno do colosso americano. O despreparo e a empedernida irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro continuam a estarrecer o mundo. Caso histórico de homem errado no cargo errado para a hora errada.

Não por acaso, Trump e Bolsonaro procuram se esquivar do fracasso. O primeiro, por ter a reeleição ameaçada. Como observou o professor Todd Belt, da Universidade George Washington, até 2016 o movimento anti-Trump era baseado no que poderia acontecer com o país caso ele fosse eleito; agora, é baseado no que já aconteceu em seus três anos e meio na Casa Branca, com o conjunto da obra desaguando no descontrole da pandemia. Bolsonaro, por sua vez, vivencia a sua tempestade perfeita. Não só na Saúde, como no Meio Ambiente, na Educação e na Economia, como na esfera pessoal/familiar. Nada mais parece estar dando certo.

Pois é desse desmonte de políticas públicas que frestas de racionalidade se entreabrem e conquistam espaço. Pode-se até vislumbrar um futuro escancarar de janelas para a realidade. Em entrevistas para o lançamento nacional do seu mamute mais recente (1.053 páginas), “Capital e ideologia”, o economista francês Piketty soa menos pessimista, fala em ponto de bifurcação possível no mundo sacudido pela pandemia e pela desigualdade.

Razão, ciência, saber, curiosidade e humanidade podem emergir com força da pandemia. “Por vezes é a intricada e mal compreendida dinâmica das moléculas, das células, organismos e ecossistemas que falam à nossa imaginação e deslumbramento”, escreveu Elizabeth Blackburn, codetentora do Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2009, solicitada a definir o belo. “Pode haver beleza na simples ideia de a Ciência procurar a verdade, ou no mero processo de investigação científica através do qual a criatividade e habilidade humanas revelam algo que parecia caótico e incompreensível”.

Cuidemos, pois, da frágil beleza do nosso único lar, a Terra, de todas as suas espécies e conhecimento.


Mark Lilla: 'Há uma psicologia de intimidação e medo, uma covardia para a qual fomos arrastados'

Promotor da polêmica carta, assinada por 150 intelectuais, que denuncia a “intolerância” de certo ativismo progressista, o analista político e ensaísta norte-americano responde à onda de críticas

Andrea Aguir, El País

O analista político e ensaísta Mark Lilla (Detroit, 64 anos), professor de História das Ideias na Universidade de Columbia, em Nova York, e autor, entre outros livros, de The Once and Future Liberal: After Identity Politics (“o liberal de outrora e do futuro: depois da política de identidade”) e A Mente Imprudente: os Intelectuais na Atividade Política, não tem conta no Twitter, mas não está alheio à polêmica nas redes sociais. O artigo de opinião que ele publicou no The New York Times após a vitória de Donald Trump em 2016, no qual pedia que a esquerda nos EUA abandonasse a “era do liberalismo identitário” e buscasse a unidade diante da especificidade das minorias, foi seu batismo no mundo agitado das brigas nas redes. Nesta semana, voltou ao que chama de “esgoto” decido à já célebre carta aberta publicada na Harper’s.

Lilla foi um dos promotores desse texto, que denuncia a “intolerância” de um certo ativismo progressista que tem provocado a demissão de editores e o cancelamento da publicação de livros. Os 150 intelectuais que assinaram a carta, entre eles Noam Chomsky, Gloria Steinem, Martin Amis e Margaret Atwood, reivindicam o direito de discordar sem que isso ponha em perigo o emprego de ninguém, e rejeitam a autocensura que sentem prevalecer. No calor da batalha em defesa da carta, Lilla concorda em responder a algumas perguntas por videoconferência e se mostra um pouco agitado.

Pergunta. Qual foi a origem da carta?

Resposta. Após a demissão de James Bennet, editor de opinião do The New York Times, há algumas semanas [depois de publicar um artigo do senador republicano Tom Cotton que pedia a mobilização do Exército contra os manifestantes após a morte de George Floyd], começamos a escrever uns aos outros, e esse intercâmbio de ideias finalmente deu frutos.

P. Muitos críticos apontaram que os signatários gozam de amplo reconhecimento e espaço para expor suas opiniões.

R. Desde que existe o Twitter, ninguém está silenciado, todo mundo pode entrar em qualquer discussão, e esse diferencial de poder não é exato. Reduzem tudo a uma luta pelo poder e não falam sobre o que a carta expõe. Além disso, consideram que as pessoas de uma mesma raça ou gênero tenham os mesmos interesses e opiniões, e isto foi assinado por pessoas diversas.PUBLICIDADE

P. Por que não mencionaram o caso que inspirou essa iniciativa?

R. Tratava-se de denunciar o clima geral, não um caso específico. O de Bennet tem a ver com brigas no The New York Times sobre os artigos, mas também com o fato de que ele não fez seu trabalho [não leu o texto antes que fosse publicado]. O que tentamos captar é o clima, o que é complicado, porque você pode sentir a pressão atmosférica, mas isso nem sempre significa que possa apontar o que está acontecendo. As pessoas pertencentes a minorias entendem isso muito bem quando denunciam que trabalham em um lugar em que há um ambiente hostil contra elas, é muito difícil falar de coisas concretas. Acredito que hoje há uma psicologia de intimidação e medo, uma covardia para a qual fomos arrastados.

P. Como sente que a política de identidade evoluiu desde que publicou seu artigo e seu livro?

R. Como Andrew Sullivan apontou, todos nós passamos a viver em um campus universitário. Nossos filhos são educados com uma consciência racial e dentro de uma narrativa específica sobre a história dos EUA. E isso tem aspectos positivos. O assassinato de George Floyd demonstrou que o país estava preparado para abordar a questão racial. Isso é muito bom. Mas também parece ter nos levado a um tipo de política histérica e de espetáculo.

P. Como ocorreu isso?

R. Nos EUA, o que está acontecendo não é algo tão novo. No final do século XX, o país, em vez de avançar para o século XXI, retornou, na verdade, ao século XIX. E aquele século foi de fervor religioso, denúncias, censura, indiferença às artes, ignorantes. Estamos em um novo século XIX.

P. Vocês quiseram aumentar o volume e gerar debate e polêmica com a carta?

R. Vimos que ninguém estava levantando a voz contra as campanhas de perseguição. Agora temos mais 100 pessoas que querem aderir. Também achávamos que a carta seria ignorada. E, por último, estimamos que poderia provocar uma terrível tempestade, e foi o que aconteceu.

P. Quais são suas primeiras conclusões sobre essa tempestade?

R. É muito cedo, estou no meio dela, apagando incêndios a cada meia hora. É deprimente ver o nível de discussão e rancor que existe na sociedade norte-americana. Este é um momento incrivelmente importante, com a covid-19, os protestos, Trump, as eleições. É isso que preocupa as pessoas progressista, não o resto. Não sou otimista.

P. Muitos apontam que a carta faz o jogo de Trump e dá munição à direita radical. O que responde a isso?

R. O mesmo que Orwell quando falou das pessoas que querem silenciar o intelecto e o debate. Sempre dirão que, ao falar e dizer a verdade, você está beneficiando o outro lado. Mas a verdade nunca é inimiga da causa.

P. Vocês tinham consciência de que incluir J. K. Rowling seria ainda mais polêmico do que a própria carta?

R. Fizemos, no começo, uma lista para ver com quem entraríamos em contato. Alguns queriam dizer a ela, porque sofreu parte do que a carta denuncia. Não previ que isso seria uma desculpa para que algumas pessoas dissessem que o texto é transfóbico. É uma loucura, porque não há nenhuma palavra sobre esse assunto, e há algumas pessoas trans que também assinaram e foram muito atacadas. Isso mostra o tipo de fanatismo e solipsismo que existe. Malcolm Gladwell escreveu que assinou precisamente porque havia outros signatários cujos pontos de vista sobre outros assuntos ele detesta. É isso que faz com que uma sociedade seja liberal.

P. Essa discussão revigorou a classe intelectual norte-americana?

R. Na verdade, revelou como as coisas estão ruins. Alguém escreveu que talvez a carta em si não se sustente muito bem a priori, mas a reação contra ela realmente demonstrou quanta razão ela tem.

A RESPOSTA DAS “VOZES SILENCIADAS”

Dois dias depois da publicação da carta na Harper’s, veio a réplica em theobjective.substack.com. Ela questiona diretamente um dos promotores, o escritor negro Thomas Chatterton Williams, e assinala que na carta original não há nenhuma menção “às vozes que foram silenciadas durante gerações no jornalismo e no mundo acadêmico”. Embora reconheça que alguns dos casos são reais e preocupantes, nega que seja uma tendência. “A carta não aborda o problema do poder, quem tem e quem não tem”, assinala.

Também procura analisar caso a caso e abordar a história de alguns dos signatários. Por último, uma nota de esclarecimento precede a lista de novos signatários, principalmente jornalistas, deixando claro que muitos não quiseram revelar seu nome e preferiram simplesmente mencionar o veículo de comunicação para o qual trabalham. Quem fez questão de se identificar e atacou aqueles que denunciam “a cultura do cancelamento” foi a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez: “As pessoas que são realmente canceladas não publicam suas ideias na grande mídia”.


El País: 716.000 empresas fecharam as portas desde o início da pandemia, diz IBGE

Cifra representa mais da metade dos negócios que estavam com atividades suspensas em função do novo coronavírus. Praticamente todas são de pequeno porte, segmento que teve pouca ajuda do Governo

Desde que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, 716.000 empresas fecharam as portas, de acordo com a Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e publicada na quinta-feira (16/07). A cifra corresponde a mais da metade de 1,3 milhão de empresas que estavam com atividades suspensas ou encerradas definitivamente na primeira quinzena de junho, devido à crise sanitária. Do total de negócios fechados temporária ou definitivamente, quatro em cada 10 (um total de 522.000 firmas) afirmaram ao IBGE que a situação deveu-se à pandemia.

O levantamento mostra que o novo coronavírus teve um impacto negativo em todos os setores econômicos, mas afetou especialmente o comércio (39,4%) e serviços (37%), principalmente no caso das pequenas empresas. 99,8% dos negócios que não voltarão a abrir as portas depois da crise da covid-19 são de pequeno porte. De acordo com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), a média de empresas que fecham a cada da ano é de 10%, o que corresponde a cerca de 600.000 negócios —número menor do que as mais de 700.000 empresas que fecharam até a metade de junho—.

“Os dados sinalizam que a covid-19 impactou mais fortemente segmentos que, para a realização de suas atividades, não podem prescindir do contato pessoal, tem baixa produtividade e são intensivos em trabalho, como os serviços prestados às famílias, onde se incluem atividades como as de bares e restaurantes, e hospedagem; além do setor de construção”, explicou Alessandro Pinheiro, Coordenador de Pesquisas Estruturais e Especiais em Empresas do IBGE.

As 2,7 milhões de empresas que continuaram abertas também sentem as consequências da crise econômica agravada pela pandemia: 70% delas relataram diminuição de vendas ou serviços desde que a covid-19 chegou ao país, e 948.800 firmas tiveram que demitir trabalhadores durante esse período. Além disso, apenas 12,7% das empresas tiveram acesso ao crédito emergencial do Governo destinado ao pagamento de salários. Somente 13,6% dos negócios relataram que a pandemia trouxe oportunidades e que teve um efeito positivo sobre a empresa.

Desemprego

desemprego também segue em alta durante a pandemia no Brasil. Dados divulgados pela PNAD Covid-19 (versão da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua realizada com apoio do Ministério da Saúde) mostram que a taxa de desocupação chegou a 13,1% na última semana de junho, afetando 12,4 milhões de pessoas. Essa é a maior taxa de desemprego registrada desde maio, informa o IBGE, e resulta da queda de 84 milhões para 82,5 milhões (-1,5 milhão) de pessoas ocupadas no intervalo de uma semana.

“Em relação à primeira semana de maio, o movimento também é de queda na população ocupada, aumento da desocupada e consequentemente aumento da taxa de desocupação. A população desocupada e em busca de ocupação aumentou 26%, em relação à primeira semana de maio”, disse a coordenadora da pesquisa, Maria Lúcia Vieira.

No início de maio, eram 16,6 milhões as pessoas ocupadas que estavam temporariamente afastadas do trabalho. No final de junho, esse contingente era de 10,3 milhões. Já a taxa de trabalhadores na informalidade (empregados do setor privado sem carteira, trabalhadores domésticos sem carteira e os trabalhadores por conta própria que não contribuem para o INSS) passou de 34,5% em junho, atingindo 28,5 milhões de pessoas. No início de maio, eram 29,9 milhões, o que pode indicar o retorno ao trabalho de um grupo de pessoas com a flexibilidade da quarentena.


Luiz Sérgio Henriques: Os vivos e os mortos

Não é mais incomum ver EUA e Brasil associados sob o rótulo de ‘párias’ ambientais e sanitários

Que os mortos possam julgar os vivos não é um absurdo. O que nos educa para cenas desse tipo, naturalmente, é a arte, uma forma extraordinária de conhecimento. E aqui ressurge a lembrança do “incidente” imaginado por Érico Veríssimo na sua fictícia Antares. Uma greve de coveiros faz com que se acumulem os insepultos. E são esses mortos sem sepultura que retornam, exigindo providências para poderem enfim descansar. Revisitam parentes e amigos, testemunham discussões e conflitos embaraçosos, até ocuparem a praça da cidadezinha, onde encenam um duro juízo sobre a mediocridade e a vileza que desgraçadamente puderam constatar entre aqueles que assombraram com sua volta fantástica.

Deixamos para trás a ditadura, em cuja atmosfera, na arrojada ficção de Veríssimo, se quis cancelar da memória o “incidente”, e já há três décadas vivemos o mais longo período democrático da História republicana. Nesta pandemia, contudo, os mortos ao redor parecem reatualizar a incômoda alegoria. É que eles são em número muito maior do que se poderia esperar de um país cuidadoso com seus cidadãos, mesmo que esta seja uma catástrofe sanitária sem paralelo desde 1918 e, nascida na globalização, se tenha espalhado feito rastilho de pólvora, cobrando pesadíssimo tributo, em especial das populações do Brasil e dos Estados Unidos, os líderes mundiais na contagem de corpos.

Não são poucas as dessemelhanças entre os dois países-contintente. A riqueza e o poderio americano, de alcance global, contrastam com o tamanho menor da nossa economia e sua projeção externa obviamente mais contida. Paradigma do capitalismo liberal – que às vezes, para o bem e para o mal, tentamos reproduzir, rasgando nossa certidão “ibérica” de nascimento –, os Estados Unidos conseguem mobilizar mais recursos científicos, apesar de se contarem entre os heróis brasileiros sanitaristas da altura de um Oswaldo Cruz ou de um Vital Brasil, que nos legaram uma tradição valorosa de pesquisadores e instituições. Sobretudo, apesar da nossa abissal desigualdade, temos o SUS, que, como se diz com precisão, é a barreira que nos separa da barbárie e nos diferencia da medicina privada dos americanos.

A semelhança conjuntural entre as duas Repúblicas consiste na ação de dois mandatários singularmente afins em estilo, métodos e propósitos. Uma afinidade buscada conscientemente pela figura menor – pelo “Trump latino-americano” – até o ponto da caricatura. Figuras da cisão e da cizânia, desmentem a noção de que o governante, uma vez eleito, representa todos os governados, compondo e mediando os mais diversos interesses, ainda que, legitimamente, busque dar um rumo de acordo com a vontade majoritária que expressa. Externamente, ostentam particularismo nacional similar. Como se vê quase todo dia, os Estados Unidos retiram-se barulhentamente do mundo que eles próprios contribuíram para construir durante “o século norte-americano”; já o Brasil demite-se da liderança regional, afasta-se por motivos rasos dos seus vizinhos e amigos naturais, fazendo tudo para apagar os traços mais atraentes do soft power delineado por gerações de políticos, diplomatas e artistas. Dois desastres cuja proporção ainda nos deixa atônitos.

Natural que, nestes termos, ambos os governantes sejam, rigorosamente, os responsáveis pelo rotundo fracasso da resposta dos respectivos países à pandemia. Não importa que o vírus tenha vindo de Wuhan e que, a princípio, a autocracia chinesa, como é inerente às autocracias, tenha também querido cancelar a má novidade. O fato é que o vírus, de índole “globalista”, constitui ameaça generalizada, sem mencionar que outros mais hão de vir, até como efeito provável do desmatamento – e aí já estamos falando de corda em casa de enforcado. Uma situação-limite que exigiria dos Estados Unidos a liderança do capitalismo democrático; do Brasil, o reforço da Federação, da coesão social e a articulação de um discurso público orientado para a solidariedade, particularmente com os mais frágeis.

Trump e Bolsonaro, ao contrário, esmeram-se no “economicismo”, exatamente à maneira do marxismo vulgar que apregoam detestar. Opõem a preservação de vidas e a de empregos, sabotam a ciência e as informações, mesmo provisórias, que ela tem gerado no calor da hora. Conseguiram inserir o uso de máscaras e a distância social no repertório das tais guerras de cultura, que dividem, enfraquecem e esgotam seus desatinados combatentes. E assim terminaram por se colocar, e aos seus países, sob suspeição geral: não é mais incomum ver Estados Unidos e Brasil associados sob o rótulo de “párias” ambientais e sanitários.

Na ficção de Veríssimo, uma certa “operação borracha” é montada para apagar o abalo causado pelos mortos sobre os vivos, subvertendo a rotina destes à luz do evento inesperado. Mas Antares, literariamente poderosa, era pequena e os mortos no coreto da praça eram poucos. Agora os corpos se empilham e, mais até do que no tempo do grande romancista, não será possível contar nenhuma história ingênua sobre eles.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Julianna Sofia: Funcionalismo mantém teletrabalho enquanto 5,5 milhões de brasileiros voltam às atividades

Um exército de 112 mil servidores federais encontra-se afastado do local de trabalho devido aos impactos da pandemia

Um exército de 112 mil servidores federais encontra-se afastado do local de trabalho devido aos impactos da pandemia. Dentre eles, o mais alto integrante da administração pública, o próprio presidente Jair Bolsonaro. Infectado, isolou-se desde o último dia 7 no Palácio da Alvorada, apesar da retórica trevosa e negacionista sobre os efeitos da doença e em prol do relaxamento das regras de quarentena.

Levantamento feito por esta Folha aponta que, se considerados os quase 280 mil funcionários das universidades e institutos enclausurados em casa em razão da suspensão das aulas presenciais, quase 70% da mão de obra federal mantém-se ausente do front.

Cumpre destacar que o isolamento social é medida fundamental para o controle do contágio –enquanto não há tratamento comprovado para a cura da doença ou vacina disponível. São várias as experiências auspiciosas de países que adotaram restrições rígidas à circulação de pessoas para achatar as curvas de infecção.

Inevitável comparar os números de afastamento dos servidores federais com a realidade laboral do restante do país. Dados do IBGE mostram que apenas 12,5% da população ocupada no Brasil (o equivalente a 10,3 milhões de trabalhadores) continua em casa por causa do distanciamento. Em relação ao início de maio –quando a medição Pnad Covid-19 teve início–, 5,5 milhões de brasileiros voltaram às suas atividades, embora haja transmissão acelerada do vírus em 60% das grandes cidades.

Para a maioria dos servidores federais não há prazo para o retorno às repartições, e entidades representativas das categorias atuam para garantir na Justiça extensão do trabalho remoto pelo tempo que durar a pandemia.

Em que pese o anacronismo de um Estado corporativista perpetuador de mordomias indefensáveis ao funcionalismo, não há aqui que se falar em privilégio. Trata-se de direito, a que todos deveriam fazer jus.


Míriam Leitão: Difícil caminho fiscal do Brasil

Reforma tributária seria simples se o governo colocasse a sua proposta na mesa e parasse de dizer que debate está sendo interditado

O Brasil tem que aproveitar a janela de oportunidade dada pelos juros baixos, o único item de despesa que diminuiu. Todas aumentaram, inclusive a previdência, que terá uma alta do déficit de mais de 1% do PIB neste primeiro ano da reforma. A janela pode ficar aberta por alguns anos, mas esse tempo pode se encurtar e ser apenas de alguns meses se o país cometer erros. Aproveitá-la é usar o tempo para conduzir um diálogo político e construir consensos. Isso é muito difícil com um governo espinhoso como este.

O Brasil entrou num período de déficit primário em 2014 e não tem chance de sair dele durante todo este mandato. A dívida terminará este ano em 98%, e o déficit primário, em 12% do PIB, um rombo gigante de R$ 800 bilhões. A ideia dentro do próprio governo é que, se não recuperar parte da arrecadação que vai perder, o país só verá a volta do superávit primário no fim do próximo governo, do presidente que ainda não foi eleito, e isso mesmo cumprindo o teto de gastos.

Na imagem que o ministro Paulo Guedes criou, ele é um conquistador de torres. Costuma repetir a história de que ele “derrubou a primeira torre, dos juros altos, e depois derrubou a segunda torre, da previdência”. A vida real é diferente das metáforas de Paulo Guedes.

Os juros foram derrubados no governo Temer. De 14,25% para 6,5%. Isso tornou a dívida bem mais barata. Essa queda continuou com Bolsonaro e agora despencou por causa da crise. Mas se o governo não mostrar capacidade de enfrentar os problemas fiscais brasileiros os juros subirão.

Quanto à segunda torre. Apesar da reforma, o gasto previdenciário subirá este ano como proporção do PIB. No RGPS, a despesa deve pular de 8,6% para 9,6% do PIB. No RPPS, deve ir de quase 5%, quando se junta o federal com estados e municípios, para 5,5%. Isso porque a despesa não caiu e o PIB encolheu. E é essa relação entre gasto e PIB que entra na conta. Tem mais um problema: a base de tributação caiu, porque empresas fecharam, empregos estão sendo perdidos.

O governo diz que a reforma administrativa não foi feita porque veio a pandemia. Não foi assim também. A reforma foi preparada, mas o presidente não quis enviá-la, apesar de muita insistência do ministro da Economia. A reforma tributária está sendo formulada desde o começo do governo mas ainda não foi para o Congresso, onde tramitam apenas duas formas de reorganizar o pagamento dos impostos sobre o consumo. O impasse tem a ver com a insistência do ministro, que gostaria de recriar um imposto sobre transações, sobre pagamentos, alguma coisa qualquer que funcione como a CPMF.

O que os especialistas em contas públicas dizem é que qualquer que seja o caminho do ajuste ele exige necessariamente muito diálogo entre executivo e legislativo, entre governo e sociedade. Tem que ir para o debate político disposto a ouvir, a trabalhar para construir o diagnóstico. Tem que ter calma e dialogar muito nos próximos meses. E este governo não sabe dialogar. O ministro da Economia não dá uma entrevista sem espalhar espetadas. E vai deixando mágoas.

Não é verdade a versão de que a reforma da Previdência foi aprovada porque este governo foi melhor do que os anteriores. O fato é que o debate foi amadurecendo, principalmente no período Temer. E o Congresso se esforçou apesar de o presidente Bolsonaro só ter se mobilizado para defender os grupos de interesse que sempre representou como deputado: policiais e militares.

O país vai reequilibrar as contas por onde? Vai criar imposto? Se for isso, terá que ficar claro. Vai reduzir os subsídios? Durante a campanha, Paulo Guedes falava que acabaria com os gastos tributários que são mais de R$ 300 bilhões. Essa agenda não andou. Na conta de redução de subsídios, de novo, o governo Temer, quando criou a TLP, deu um passo relevante.

Durante a campanha eleitoral, cada vez que um economista de qualquer campanha falava em reduzir as isenções e vantagens tributárias, eu pedia exemplos. Ninguém respondia assertivamente. Isso porque o maior gasto tributário é o Simples, outro enorme é o da Zona Franca de Manaus.

Existem também as isenções no Imposto de Renda Pessoa Física. Mexer em qualquer ponto desse exige um governo que saiba construir consensos. Este governo não sabe, muito menos depois de ter se comportado tão mal durante a pandemia.