pandemia
Ascânio Seleme: Só terremoto salva
Mesmo com cenário ruim, 38% dos brasileiros querem reeleger Bolsonaro
Fernando Henrique Cardoso pode até não admitir, mas no fundo deve estar arrependido por haver se empenhado tanto pela aprovação do princípio da reeleição em 1997. Com o falso objetivo de consolidar o Plano Real, criou um monstrengo que atrapalha governos e confunde eleitores. Por sua causa, governantes em primeiro mandato trabalham principalmente para ganhar o segundo, e os eleitores acabam sendo enganados ao julgar os mandatários com base em suas “bondades”. Todos os presidentes foram reeleitos desde a aprovação da emenda, mesmo os enrolados.
A primeira prova de que o princípio torna nebulosa a gestão do postulante a um segundo mandato foi dada pelo próprio FH, que em 1998 segurou artificialmente o câmbio para não atrapalhar sua reeleição e, quando teve de soltá-lo em janeiro do ano seguinte, causou um tsunami na economia. O governante usa sem escrúpulos a máquina administrativa para se reeleger, mesmo que disso resultem quebradeira de empresas e escalada do desemprego. E ainda há um outro elemento que torna praticamente imbatível um presidente candidato, a admiração incondicional do brasileiro médio por homens poderosos.
A reeleição de Lula é um caso já estudado e explica essas premissas. O ex-presidente se valeu tanto da imagem de pai generoso quanto da de gestor poderoso, que distribui dinheiro entre os mais necessitados. Dinheiro público, claro. Lula estava envolvido até o pescoço no escândalo do mensalão, embora tenha dito que “não sabia” das movimentações criminosas do deputado cassado José Dirceu. O PT pagava a partidos e parlamentares pelo apoio que eles davam ao governo. Mais uma vez, era dinheiro público que remunerava os aliados. Um escândalo desse tamanho não foi o suficiente para impedir seu segundo mandato.
Dilma foi reeleita mesmo tendo feito um primeiro governo antipolítica. A ex-presidente passou quatro anos torpedeando partidos, especialmente o MDB do seu vice Michel Temer. Foi tão omissa que acabou permitindo a eleição de seu algoz Eduardo Cunha para presidente da Câmara, no início do segundo mandato. Na economia, expandiu gastos desordenadamente e reduziu juros na marra, resultando no aumento da inflação e do desemprego. Em janeiro de 2013, para combater o monstro que havia criado, pediu aos prefeitos de Rio e São Paulo que não dessem aumento de ônibus. O preço represado da passagem foi majorado em junho, e o que se viu em seguida virou história. Mesmo assim, Dilma foi reeleita.
E então chegamos a Bolsonaro. O presidente colecionou erros grosseiros nos seus primeiros 18 meses de governo. Os mais óbvios foram menosprezar o Congresso, ultrajar o Supremo e incentivar manifestações antidemocráticas. O país assistiu abismado àquela famosa reunião ministerial em que Abraham Weintraub disse que, se dependesse dele, “prendia estes vagabundos”, apontando para a Praça dos Três Poderes, “a começar pelo Supremo”. Além disso, os filhos do presidente, sua mulher e suas ex-mulheres estão envolvidos numa rede de gastos com dinheiro vivo de origem mal explicada, muito provavelmente das rachadinhas praticadas por toda a família.
O presidente ainda ignorou agressões ao meio ambiente e alertas globais. Mais adiante, fez pouco caso da epidemia de coronavírus, debochou das mortes por ela causadas e gerenciou mal o combate. O grande momento da sua presidência, e ainda assim dependendo do ângulo que se olhe, foi a aprovação da reforma da Previdência. Mas, como ele não se mobilizou a seu favor, a reforma deve ser atribuída ao Congresso. Seu único e verdadeiro mérito foi ter se mantido calado nas últimas cinco semanas. Não poderia haver um cenário pior para um presidente. E, mesmo assim, pesquisa revela que 38% dos brasileiros querem reelegê-lo.
Para agravar o quadro, não há no horizonte sinal de entendimento entre os diversos matizes da oposição. Lula caminha solitário à esquerda. Moro bate cabeça à direita. O centro não tem vigor nem empatia. Você pode dizer que é cedo, tudo bem. Mas, se não houver mudança radical nesse cenário já, somente um terremoto poderá evitar a reeleição de Bolsonaro.
Ligia Bahia: Nós e os outros
A comoção perante os mesmos fenômenos de injustiças na saúde não dá início a ações semelhantes
Mudou o modo de pensar sobre o SUS. Antes da pandemia, Rodrigo Maia pretendia expandir os planos privados de saúde, “ampliar a base de brasileiros segurados de 40 milhões para 60 ou 70 milhões”, e agora passou a considerar que “tinha uma visão muito pró-mercado privado de saúde, mas a gente vê que o SUS é importante”. O uso do plural (a gente, nós) subentende os que leem e interpretam de modo similar as estatísticas e se preocupam com o atendimento aos doentes.
Nós somos pessoas orientadas pela Ciência, concordamos com as medidas de isolamento social, com o uso correto de máscaras e com a relevância do SUS. Vemos os mesmos fenômenos e os interpretamos de modo similar, mas nem sempre compartilhamos sentimentos iguais perante a indignidade e a insanidade. O consenso em torno do que seria do Brasil sem o SUS é insuficiente para igualar as expectativas sobre o futuro. Setores empresariais, instados pela declaração do presidente da Câmara sobre o SUS, querem saber: “Como você pensa que podemos melhorar o SUS, mas sem ser radical, né?”. Querem respostas sobre um SUS que não se torne um estorvo, que alavanque os negócios setoriais.
A concordância sobre a omissão e a indignidade subjacentes às mortes causadas pela Covid-19 não iguala expectativas sobre o futuro. No lugar da pergunta — como nós faremos para ter um SUS importante? —, volta-se ao “nós contra vocês”. Erudição embolada com interesse privado resulta na crença: planos privados desoneram o SUS. Um ponto de vista respeitável, mas sem nenhum fundamento científico.
O alegado alívio de demanda para a rede pública jamais ocorreu. No período 2013-2015 (quando houve o maior aumento do número de planos), a assistência suplementar realizou entre 18,5% e 19% do total dos partos. Cresceram os partos realizados pelo SUS e pela assistência suplementar. Incremento nos planos privados não é garantia de retração da procura pelo SUS. Segundo a Pnad-Covid-19, realizada pelo IBGE em maio e junho de 2020, 78,2% e 82,3% dos que buscaram serviços em função de mais de um sintoma de coronavírus a cada mês foram ao SUS (a resposta poderia indicar mais de um local, ou seja, a rede pública e a privada).
Essas informações não significam que o setor privado é inexpressivo, pode desaparecer, apenas questionam a existência de compartimentos separados num sistema de saúde complexo. Como todos sabem, mas nem sempre é conveniente admitir, uma parcela de quem tem plano usa o SUS, outra paga, além da mensalidade das operadoras, consultas médicas e dentistas particulares. Contratos com efetiva proteção financeira e qualidade assistencial são para poucos. Os transplantes, mesmo para os ricos, dependem do SUS. A comprovação de que planos privados não solucionam problemas do SUS não altera uma vírgula na história, mas talvez contribua para que a explicitação de interesses seja critério obrigatório de credenciamento ao debate.
Reagimos com as mesmas palavras para exprimir a repulsa às injustiças na saúde, dizemos que é preciso pôr fim a tanta abominação. Mas a comoção perante os mesmos fenômenos não desencadeia ações semelhantes. Parte dos indignados sente muito, mas não se interessa pelas causas das diferenças na probabilidade de morrer entre indígenas, negros, pobres e os segmentos sociais com maior renda. Tampouco divulgam a situação de saúde precária dos clientes de planos privados. A pesquisa Vigitel 2018 registrou uma proporção de excesso de peso um pouco mais elevada para clientes de planos de saúde em Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo do que na população em geral.
Todos nos indignamos, mas, quando chega a vez de definir como evitar essas atrocidades, as afinidades evanescem. O projeto de planos de saúde com coberturas ainda mais reduzidas e menor preço teve até agora duas versões: a oficial, debatida em comissão no Congresso Nacional, cujo relator foi o deputado Rogério Marinho, e o documento apócrifo noticiado pelo jornalista Elio Gaspari. Ambas foram engavetadas, tinham em comum um “nós” que pretensamente falaria por todos. Um “nós” minúsculo, reunido em torno de argumentos frágeis, indefensáveis. Caso a pergunta sobre o que fazer com a saúde fosse endereçada a um “nós” ampliado, aos familiares dos mais de cem mil mortos, qual seria a resposta?
Carlos Andreazza: Breve retrospectiva da infâmia
Não há dúvida de que Bolsonaro tenha responsabilidade sobre as mortes
O bolsonarismo é uma máquina para a ruptura. Um fenômeno reacionário que fareja oportunidades por meio das quais se enraizar e corroer. Uma pandemia, por exemplo. O que ofereceria melhores condições para a aceleração do rompimento de nosso tecido social do que o estado de calamidade decorrente da mobilização por enfrentar uma peste agressiva e desconhecida?
A história do bolsonarismo nesses meses, desde março, é a história da guerra cultural batalhada sobre corpos; em que, afinal, o fato foi desacreditado, desinformação em desinformação, até a inexistência, ali desde onde tudo será versão.
Nesse período até que chegássemos aos 100 mil mortos, a indústria bolsonarista avançou sua forja de teorias da conspiração. Ou teremos esquecido, vírus já entre nós, de o presidente acusando fraudes — teria até provas — no processo eleitoral de 2018?
Foi nesses cerca de cinco meses que Bolsonaro conseguiu implantar o estado da arte para a desconfiança entre nós; quando, contaminada a fé pública, não acreditamos que ele estivesse infectado pela Covid-19; quando supusemos que o sujeito mentisse — manipulando a própria saúde — para colher benefícios políticos ainda ocultos.
Um presidente que aproveitou o clima de exceção para não apenas aviar sua troca de pele, deixando as carcaças eleitorais lavajatista e guedista no caminho, mas também para afiar seu cerco autocrático às instituições. Ou não estará aí — implantado enquanto discutíamos uma possível polícia política a partir do aparelhamento bolsonarista da PF — um Ministério da Justiça que produz dossiês contra críticos do governo?
Ou já teremos apagado da memória que foi nesse intervalo que o golpismo bolsonarista encontrou picada para testar as instituições sobre uma perversão do artigo 142 da Constituição, de súbito apregoado para estabelecer as Forças Armadas como poder moderador a serviço do Executivo?
Quem se lembra de o presidente discursando diante do QG do Exército para aglomerados em cujas manifestações se lia “Intervenção militar com Bolsonaro no Planalto”? Quem não se recordou dessa passagem ao ser informado, segundo a revista “Piauí”, de que houve, em maio de 2020, o dia em que o presidente declarou que interviria no Supremo?
A ação de Bolsonaro nesse período foi consciente. Não há dúvida de que tenha responsabilidade sobre as mortes. Um vírus traiçoeiro, de letalidade antecipada noutros continentes — e o sujeito não apenas buscando o corpo a corpo como também estimulando, em palavras, que desprotegidos o fizessem. Haviam morrido 5 mil brasileiros. E assim ele — como um sociopata — reagiu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.
Leitor, atenção: o presidente, em abril, questionou por que as escolas estavam fechadas. Repito: em abril; não agora quando, ainda paralisadas as aulas, discute-se alguma retomada. No mesmo abril, Bolsonaro afirmou que, segundo parecia, o vírus começava a ir embora. Nessa época, vendendo a ilusão da imunidade para a juventude, recorreu a seu passado de atleta para desdenhar da gripezinha. E, comerciando ignorância no mercado da miséria brasileira, multiplicou heróis da resistência entre os muitos entre nós que, mergulhados no esgoto por obra de um país do século XIX, teriam anticorpos contra a peste porque habituados ao cocô. Tudo seria resolvido se enfrentássemos o problema como homens — declarou o mito.
O presidente: um agente para o conflito que conseguiu levar o seu nós contra eles total para o terreno imoral de uma oposição entre saúde pública (afetada preocupação elitista) e saúde econômica. Do que derivou haver Bolsonaro difundido um vídeo falso sobre desabastecimento de comida. Ele era a voz em defesa da economia popular, mas foi com os barões do capitalismo de estado que armou aquela blitz, dentro no STF, em nome da tese de que “o remédio não pode ser pior que a doença”.
Um curandeiro, o presidente, que oferece placebo ideológico — o remédio da direita — como se fosse o corpo de Cristo contra o vírus chinês. Ele é o ministro da Saúde. Fazendo o Exército de mula. Baixando num general da ativa, como se seu cavalo fosse, para o exercício de suas crendices populistas; para ver se colava um pacote de sonegação e maquiagem de dados oficiais sobre vítimas da doença.
Bolsonaro não faz milagre. Tampouco é coveiro. Investiu, porém, em seu futuro apostando em cavar o buraco em que nosso cansaço descansaria — apostando mesmo, diante do mantra das mil mortes diárias, em nossa anestesia. Apostou em que nos resignaríamos como as emas do Alvorada ante a “vida que segue”.
Para efeito de curto prazo, com vistas a 2022, não é improvável que esteja certo. Vê nova base social a explorar, e já botou o pé na estrada para cortejá-la. Vai gastar. Guedes que se vire. É bem possível que chegue à eleição com força. Certo é que seu verbete já está inscrito na história universal da infâmia.
Wilson Gomes: Precisamos falar sobre o “lugar de fala”
Ferramentas conceituais na luta política
Em política, cada lado se dota das ferramentas conceituais que consegue imaginar, desde que funcionem com eficiência. “Funcionar”, no caso, significa servir a propósitos que favoreçam quem o emprega: aglutinar os seus, reforçar laços identitários, constranger oponentes, oferecer justificativa moral para as pretensões do grupo, atrair simpatia ou compreensão geral, mobilizar para a ação política, dentre outros.
Em política, cada lado tentará convencer todos de que as suas ferramentas conceituais preferidas são teses objetivas sobre o funcionamento do mundo, são evidências incontornáveis sobre fatos e não instrumentos para os propósitos da tribo. É o que a direita fez com “politicamente correto”, ferramenta usada para desqualificar comportamentos que os liberais simplesmente chamaríamos de “respeito e consideração pelos outros”, principalmente por minorias socialmente estigmatizadas. E é o que a extrema-direita agora faz com ferramentas-conceitos como “ideologia de gênero”, “comunismo”, “doutrinação ideológica” e “gayzismo”. Para os partidários, não são o resultado de interpretações discutíveis de fatos, não são hipóteses arriscadas e não testadas, orientadas por preferências e conveniências. Não, são fatos objetivos e incontestáveis, a dura realidade que o outro lado não aceita e não pode aceitar apenas porque iria desmascarar o que ele realmente é.
A esquerda também tem as suas ferramentas conceituais de cunho ideológico, forjadas para os propósitos da luta política. Dentre estas, destaca-se por sua rápida assimilação e extrema adesão, principalmente por parte da assim chamada esquerda identitária, a ideia de “lugar de fala”. A este ponto, importam pouco as intenções originárias do conceito, como crítica às pretensões universalistas dos discursos sociais, como revelação de que todo discurso é situado e traz consigo as marcações, de toda natureza, que configuram a posição social de quem fala. Há pilhas de intuições conceituais dessa natureza abandonadas ou pouco frequentadas por quem estuda ou pensa a sociedade. O conceito foi retirado do uso contido e quase obscuro das pessoas que só frequentam livros e ideias, e se tornou um sucesso de público apenas quando foi transformado em ferramenta da luta política. O que realmente importa, portanto, é o seu emprego como parte dos recursos ideológicos de um dos lados da disputa política.
Nesse sentido, falar de deturpação ou distorção do conceito por aqueles que o empregam faz pouco sentido, vez que dificilmente se pode separar significado de uso. Filosoficamente, não faz sentido opor conceito e uso. No máximo, podemos dizer que o conceito original de “lugar de falar” foi em sua maior parte reconfigurado como um novo conceito, este, sim, de amplo uso e enorme gama de aplicação na luta política.
E “lugar de fala” tem sido uma ferramenta largamente usada nos últimos tempos, tanto para reforçar os vínculos identitários de certos estratos da esquerda quanto para mobilizar e engajar para a luta política, tanto para orientar a ação política dos mobilizados e engajados como para oferecer justificativas de superioridade moral para ação praticada. Nestes ambientes, “lugar de fala” é tanto um discurso sobre direitos de autorrepresentação por parte de minorias (“nós podemos falar em nosso nome e de nossas coisas”), quanto uma reivindicação de reconhecimento da autoridade de uma determinada minoria para falar sobre determinados temas e “protagonizar” determinadas ações. Mas, da reivindicação de falar por si mesmos, de não ser reduzidos perenemente à condição de objeto ou assunto, chegou-se rapidamente à reivindicação de superioridade absoluta da autorrepresentação, à interdição da fala que não se situa na minoria e à inspeção constante para verificar se essas duas premissas são integralmente cumpridas em todas as formas de expressão artísticas, científicas e políticas. Como tão bem formulou o professor Luis Felipe Miguel esta semana em seu perfil no Facebook, “nos combates políticos, ‘lugar de fala’ surge casado com a percepção extrema de um privilégio epistêmico dos dominados. (…) O acesso à verdade depende da posição social e de nada mais”.
Como ferramenta ideológica, motiva e justifica, por exemplo, inspeções nas listas de bibliografias para verificar a proporção de autores por seu “lugar de fala”, independentemente de quaisquer outros critérios. Assim como se conhecem fiscalizações desta natureza – com o consequente lavramento de autos de infração e punições instantaneamente aplicadas por meio agressões, bloqueios e impedimentos – em peças de teatro e em debates políticos públicos. A militância do “lugar de fala” tornou-se, crescentemente, bruta, intolerante e agressiva.
Contra o lugar de fala
Nesse contexto, considero que faça sentido os oito argumentos abaixo, contra a ferramenta ideológica do “lugar de fala”:
1-“Lugar de fala” é o novo fundamentalismo político. Refúgio de dogmáticos e intolerantes, que, da forma mais autoindulgente possível, concedem-se prerrogativas de superioridade moral.
2-“Lugar de fala” é um espaço privilegiado de exigência de que os outros calem a boca. É o lugar do “cale-se” aplicado a todos que não são como eu. Lugar de falar é ao mesmo tempo um lugar de calar – eu falo, você cala.
3-“Lugar de fala” é o álibi perfeito para reivindicações de monopólio de fala. Só eu e os meus temos a fala autorizada e os direitos de explorá-la.
4-Como em todo sistema monopolista, o “lugar de fala” provê ao falante certificado um modelo de negócios. Como somos poucos os que têm direito de exploração desse produto, a raridade agrega enorme valor aos biscoitos finos que eu forneço e a, mim, naturalmente, seu fabricante autorizado. Encontrado um bom nicho, pode-se ganhar dinheiro, prestígio ou celebridade com o monopólio da fala autorizada. E há muitos faturando com isso.
5-A artimanha principal das reivindicações do “lugar de fala” consiste em punir ou recompensar indivíduos singulares em virtude da classe de indivíduos em que eles se situam. O seu direito de falar é transferido para mim, porque o coletivo onde você se situa deve historicamente ao coletivo onde me situo. A sua classe oprime a minha, mas quem deve pagar é você, independentemente do que você fale ou seja. A reivindicação de que você deve calar a boca, porque as pessoas da sua espécie já falaram demais, e me deixar falar sozinho, porque as pessoas da minha espécie não tiveram chances históricas de falar, é um truque para disfarçar o meu autoritarismo e a minha intolerância.
6-O argumento em defesa do pluralismo e da consideração pelas diferenças de identidades e pontos de vista não precisa do conceito de “lugar de fala” para ser defendido. Ao contrário, a reivindicação de “lugar de fala” serve hoje principalmente para que os patrulheiros da identidade verifiquem se o seu monopólio está sendo respeitado. Os “fiscais de atendimento às normas sobre monopólio do lugar de fala” são a nova moda na universidade, nos debates públicos e nas artes. A ideologia do “lugar de fala” virou adversária do pluralismo, das diferenças e da tolerância.
7-Alimenta os direitos de reivindicação de “lugar de fala” a ideia de que expressar ideias, fazer pesquisa ou discutir problemas sociais são atividades direta e inextrincavelmente ligadas à “representação” de uma espécie ou de um coletivo. Propriedades individuais relacionadas a conhecimento, competência, domínio do assunto, inteligência ou boa-fé são secundárias em face do que realmente importa, que é a que gênero ou espécie identitária você pertence e cujo direito de representar você pode reivindicar. Então, não se trata apenas de representação, mas de autorrepresentação. Só está habilitado a falar quem está autorizado a representar, ficando cancelado todas as outras formas tradicionais de competência.
8-A esquerda criou e alimentou as teses fundamentais do “lugar de fala” e ainda cerca os reivindicadores do monopólio do falar e do mandar calar com extrema complacência. Paradoxalmente, o “lugar de fala” é usado de forma eficiente apenas contra a esquerda. A extrema-direita, que agora a sitia política e socialmente, é imune aos constrangimentos das reivindicações do lugar de falar e, antes, usam tais reivindicações para as ridicularizar e para reforçar o próprio ponto de vista. O “lugar de fala” se transformou em mais uma das formas com que a esquerda se autodevora.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
Ivan Alves Filho: Breve comentário sobre o quadro político
A sagacidade de Jair Bolsonaro nem sempre é reconhecida pela oposição. Um equívoco grave, a meu juízo. O homem é um animal político, ainda que truculento.
Pois o Capitão sabe se reinventar, a partir de uma leitura aguçada da conjuntura. A notícia dada pelo site O Antagonista de que ele estaria trabalhando com a possibilidade de a atual Ministra da Agricultura, Tereza Cristina, compor uma chapa com ele em 2022 é mais um elemento que comprova isso.
Mulher, representante do agronegócio - o setor hoje mais dinâmico da economia brasileira -, originária do Mato Grosso do Sul e filiada ao DEM. As credenciais se encaixam como uma luva nos projetos do Capitão: Tereza Cristina vai disputar no terreno de Luiz Henrique Mandetta, ele próprio membro do DEM e ex-deputado federal com votação em Campo Grande.
De outra parte, há um evidente movimento de bastidores que pode desembocar na absolvição de Lula. O alvo aqui seria duplo: atingiria Sergio Moro e, de quebra, recolocaria Lula da Silva como adversário de Bolsonaro dentro de dois anos. Ou seja, escolheria seu oponente.
Jogada extremamente sagaz, sem dúvida. Como se contrapor a tudo isso? A única saída que antevejo seria unir o Campo Democrático, equidistante tanto do populismo de direita quanto do populismo dito de esquerda. Um primeiro passo poderia ser uma união semelhante àquela que se verificou em torno de Eduardo Campos, em 2014. Mesmo assim, será preciso avançar um pouco mais e negociar - desde o primeiro turno, de preferência - com os setores mais conservadores do Campo Democrático. Entre os partidos progressistas, teríamos o PSB, o Cidadania 23, a Rede, o PV. Eu não descartaria partes do PDT, do PSDB e do PCdoB tampouco. Personalidades? Vamos lá: Flávio Dino, Luciano Huck, Denise Frossard, Joaquim Barbosa, Marina Silva. Pelo lado mais conservador do Campo Democrático, teríamos figuras como Rodrigo Maia e Luiz Henrique Mandetta. Novos nomes seriam sempre bem-vindos.
A ideia é montar uma Frente Ampla que não se limite a atuar quando o fascismo ronda.
Uma Frente Ampla para governar de fato, com um programa econômico e social que possa abrigar as mais diferentes sensibilidades políticas do Campo Democrático, dos conservadores aos progressistas. Hoje o embate se dá entre a Civilização e a Barbárie. Quem encarnou isso em um passado recente entre nós foi o Presidente Itamar Franco.
*Ivan Alves Filho, historiador, autor de mais de uma dezena de obras, das quais a última é A saída pela Democracia
Vladimir Safatle: não falar
Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho
A ideia inicial era escrever outro artigo. Depois de meses envolto em questões sobre pandemia e escalada autoritária, a ideia era falar de algo outro., qualquer coisa de outro. Mas é possível que em situações parecidas o dito de Adorno “Não é possível fazer poesia após Auschwitz” ganhe certa atualidade e se imponha em sua força. Um dito arquiconhecido, é verdade, mas que talvez queira dizer algo muito preciso e por vezes esquecido. Claro que não significava que a poesia era agora coisa do passado. A poesia não tem passado, nem presente e muito menos futuro. Só que Adorno procurava dizer que, para escrevê-la a partir de então, haveria de se sentir o impossível de uma língua que não quer mais voltar ao normal, que não quer voltar às formas de lírica depois que descobrimos não exatamente a morte industrial, mas a indiferença à morte industrial como funcionamento social normal.
Cada palavra, para ter algum conteúdo de verdade, deveria saber como ressoar esse “não é possível”, deveria deixar claro sua vontade de explodir uma gramática que parecia profundamente cúmplice da violência do que não se pode tolerar. Sorrir, dizer “cuide de si”, tocar um acorde perfeito, falar “eu te amo” era apenas outra forma de puxar o gatilho mais uma vez. Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho.
Por isto, o dito de Adorno talvez devesse ser lido conjuntamente com outra frase, esta vinda de Vladimir Maiakovsky: “Dai-nos uma arte revolucionário que livre a república dessa escória”. Essa escória que a República se tornou, essa mistura de ritmo de matadouro com lives sobre os desafios da paternidade e ensinamentos sobre “como viver sozinho e permanecer feliz”, que ela se arruíne para sempre. Mas ela só começará a ruir quando nos confrontarmos a uma língua que não queira mais falar como até agora se falou, que se recuse a pactos em todos seus níveis. Que não terá mais o tom dos conselhos psicológicos que damos a deprimidos ou a pessoas que esperam de terceiros alguma descrição sobre o caminho da felicidade, que não confundirá mercadorias da indústria cultural e suas linguagem reificadas como a forma máxima da emancipação racial. Como essa linguagem, com essas falas, com essa naturalização da degradação da língua, não há política alguma.
Diante da catástrofe (e o que temos diante de nós é a descrição mais clara de catástrofe ―não apenas a catástrofe do número impensável de mortos por negligência do estado, mas a catástrofe da “vida normal” que parece voltar em uma letargia muda), seria o caso de dizer que este é um país não-viável, sentir até o mais profundo de nossos ossos sua inviabilidade para que esse sentimento queime todo e qualquer desejo de retorno em direção ao que quer que seja.
Ao menos, esse desejo de não-retorno nos pouparia do último de nossos “desejos responsáveis” que só serviram para cavar mais fundo o impasse, a saber, os chamados para grandes “frentes amplas” contra o fascismo (e se me permitirem, vai aqui uma autocrítica pois até eu assinei um desses chamados, o que definitivamente não faria novamente). Pois esse é o país das frente amplas inúteis, dos bons sentimentos de responsabilidade civil que produzem monstros. Esse é o país dessa linguagem do “diálogo” entre “diferentes”. Do eterno diálogo de cúmplices. O mesmo argumento estava lá a selar o aperto de mão entre Luis Carlos Prestes e Getúlio Vargas no final da Segunda Guerra. Uma frente ampla com comunistas, trabalhistas e os bons e velhos representantes das oligarquias locais. O resultado não foi brilhante. Ele voltou mais outra vez como certidão de nascimento da Nova República quando uma outra frente ampla subiu aos palanques para dizer um “eu quero votar para presidente” que apenas serviu para dar alguma forma de legitimidade ao pacto de paralisia que nos marcará durante os trinta anos por vir, pacto selado entre oposicionistas moderados e governistas sagazes. Se as palavras de ordem fossem para valer, a primeira coisa que Tancredo Neves-José Sarney teriam feito seria renunciar para a convocação de eleições gerais imediatas. Mas, não. Era o mesmo discurso “contra o ódio” (que, na época, atendia por outro nome. Seu alcunha era “revanchismo”).
Agora, foi necessário apenas duas semanas para entender qual era a real função da “frente ampla”. O Brasil conhece atualmente forte tensão entre uma extrema-direita popular de claros traços fascistas, que controla o executivo, e uma direta tradicional e oligárquica, que controla o judiciário e o legislativo. Novos atores fora do horizonte tradicional da política, vindos do lumpem-proletariado, e a casta política tradicional. Os dois lados do embate representam os mesmo interesses econômicos, comungam do mesmo projeto, mas não obedecem a mesma cadeia de comando. Era necessário um certo equilíbrio temporário que não dizia em nada a respeito de políticas de proteção da população contra a pandemia, mas apenas a uma geometria mais “estável” de partilha do poder. Geometria esta conquistada através da pressão da chamada “frente ampla”.
Esta era apenas uma forma de pressão que em momento algum levou efetivamente em conta a possibilidade de lutar para afastar o Governo. Assim, o país pode continuar a assassinar sua população vulnerável enquanto preserva a ilusão própria a esta “democracia geograficamente sitiada” que construímos. Democracia que funciona em um espaço geográfico definido nas regiões centrais das grandes cidades enquanto inexiste em suas periferias e nas relações no campo. Foi para preservar essa democracia geograficamente sitiada que ameaçava ruir que tais “frentes amplas” foram convocadas.
Ou seja, na hora de tomar ciência do intolerável, de mobilizar o entusiasmo para a tarefa dura e necessária de parar de falar como sempre falamos e começar a falar de outra forma, um falar de outra forma que produz necessariamente um agir de outra forma (já que vale aqui o dito de Austin, “dizer é fazer”), eis que reencarnam os mesmo enunciados, com seus mesmos tons e exortações, com suas mesmas falas de duplo sentido, que devem ser sempre lidas nas entrelinhas.
Esse país deveria aprender a recusar as falas que lhe são impostas, recusar a crença de que nossa emancipação se dará com as formas produzidas pelos setores mais fetichizados da indústria cultural, recusar os que nos aconselham o que fazer com nossos conflitos insolúveis, sejam eles individuais ou sociais. Parecem tipos de problemas diferentes colocados, de forma indevida, em um mesmo nível. Mas quando a imaginação social de um país se paralisa, todos os níveis da vida parecem girar em torno da mesma cantilena. Melhor seria lembrar, como dizia Wittgenstein, que: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Essa deveria ser a primeira lição para todos os que querem realmente entender política: explodir os limites da linguagem para que o mundo vá junto.
Míriam Leitão: No centro da crise que devasta o país
A incapacidade de sentir a dor do outro e de viver o elo que liga uma pessoa ao seu próximo. Essa é a característica mais marcante da personalidade do homem que governa o Brasil. Foram muitos os erros que ele cometeu nestes meses do nosso desterro. Vivemos um exílio diferente, porque estamos apartados das virtudes que admiramos no país. Jamais saberemos quantas vidas teriam sido poupadas entre as 100 mil que perdemos se fosse outra a liderança. Carregaremos as dúvidas. Milhares de dúvidas. Dessa falta de sentimento humanitário, surgiram as frases ofensivas como o “e daí?” e o “eu não sou coveiro”.
Os coveiros trabalham duramente, em condições difíceis, em turnos dobrados, sob risco de contaminação em enterros sem choro e sem flores. O luto não tem cerimônia. Fica cravado no peito de cada um. Os que perderam as pessoas que amavam não puderam ser consolados. Não há mais abraços no mundo. Os coveiros viram. A esses profissionais, todo o respeito. Sim, o presidente não é coveiro. Ele não teria a grandeza de ajudar alguém em momento terminal.
Toda vez em que concedeu a frase “lamento as mortes” soou falso, porque era falso. Era seguida de adversativas e da platitude de que todos morreremos. Os médicos e os enfermeiros lutam diariamente para manter a vida, mesmo sabendo do destino final de cada um. Essa é a grandeza de quem trabalha com a sáude humana. Eles, elas podem se olhar no espelho e dizer: hoje venci várias vezes a luta desigual contra a morte. Às vezes, o preço é a própria vida, como a do jovem neurocirurgião Lucas Augusto Pires.
Foram muitas as demonstrações de falta de empatia e de compaixão nestes dolorosos meses. Não há mais o que esperar. Nem em sentimentos, nem em capacidade de liderar o país no meio de uma tragédia. Ele falhou completamente.
A falha cotidiana foi passar a mensagem perigosa de que não era necessário se proteger. A transferência de recursos aos estados e municípios não foi favor, o dinheiro é dos pagadores de impostos. O governo federal adiou o que pôde, com manobras regimentais, com deliberados atrasos burocráticos. Isso custou vidas humanas.
A ajuda às pessoas não foi concessão dele. A proposta saiu do executivo depois de muita pressão dos formadores de opinião, e no Congresso o valor foi elevado. A execução foi desastrosa, com as filas de pessoas lutando por seus direitos e a multiplicação dos casos de fraudes. Montou-se um sistema que negava o auxílio a um bebê porque não tinha CPF, mas entregava o dinheiro a uma pessoa rica sem averiguar sua renda. As linhas para sustentar as empresas em colapso foram tão tardias que falharam.
O governante inúmeras vezes usou a imagem da presidência para vender a ilusão da pílula mágica, produzida aos milhões nos laboratórios do Exército. Criou um tumulto administrativo no Ministério que coordena as ações da saúde. Convocou seus seguidores a invadir hospitais para perseguir a delirante versão de que era mentira a ocupação dos leitos. Quis suprimir os números das mortes. São muitos os crimes. Sim, a palavra é esta: crime.
Ele ofendeu e ameaçou governadores e prefeitos que se preocuparam em proteger a população, criou uma confusão na mensagem para as famílias, manipulou sentimentos conflitantes em um tempo difícil para alimentar a mentira de que não era o responsável. Numa federação e no presidencialismo não há quem substitua o presidente no trabalho de coordenação no enfrentamento de um flagelo coletivo. Isso custou muitas vidas.
Sua atenção esteve em uma pauta estrangeira à vida. Quer armar a população, aumentar o acesso a instrumentos de morte, tirou exclusividades das Forças Armadas em determinados armamentos mais poderosos. Eliminou legislação que permitia o rastreamento. Armas, armas à mão cheia. Esse é o lema do homem que governa o Brasil.
O presidente conspirou contra a democracia. Nos gabinetes fechados e à luz do dia. Estimulou aglomerações de manifestantes contra os poderes da República e alimentou milícias virtuais com ataques às instituições. Gritou ofensas e ameaças. Tudo isso enquanto os brasileiros tentavam se proteger de um inimigo mortal. Conseguiu duplicar as ameaças que pairavam sobre nós. Por semanas seguidas, o país teve que lutar pela vida e pela democracia. O nome disso também é crime. Crime de responsabilidade. Deveria ser punido com seu afastamento da Presidência. Ele não merece a cadeira que ocupa.
Cacá Diegues: Gente é para brilhar
Caetano é uma hipótese de Brasil que gostaríamos que fosse a verdadeira
Para muitos brasileiros, o sol se levanta no fim da tarde. Mas não por preguiça ou enfado da vida, mas porque é essa a hora em que ferve a panela de uma cabeça privilegiada que só pensa em nós. Não por caridade, mas por saber que a solidariedade é a única forma de amor que não implica em propriedade do outro. E assim amamos e somos livres. Tudo o que ele faz, escreve, diz e canta está sempre assinalado por essa ideia, à qual ele parece dedicar vida e obra. Caetano Veloso é uma hipótese de Brasil que todos nós gostaríamos que fosse a verdadeira.
Caetano é um homem de muitos amigos, sem nenhum confidente especial. Não por falta de confiança, mas porque seus segredos estão por aí, a boca larga e pequena, nas letras de suas canções, no que ele diz e escreve. A poesia de Caetano não é nunca molenga, elegias ao que não importa. Ela é sempre o resultado de uma mente em chamas, amorosa e combativa, que não se deixa iludir pelo lugar-comum, mesmo que unanimemente vitorioso. Ele quer sempre saber se o contrário não é melhor. Ou não.
Às vezes, quando penso em Caetano, penso em conversas que já tive com Renata Magalhães (uma das produtoras de seu filme), Antonio Cicero (grande poeta, amigo do peito) ou Susana de Moraes (ela faria 80 anos, no último dia 5, vizinha leonina de Caetano), seus amigos e eventuais colaboradores. Os três adoram a hipótese de que o Brasil seja um ser cultural de caminhos contraditórios e radicais.
Quando é moderno, o Brasil pode ser a vanguarda experimental do mundo. Como foi com Tiradentes, um herói barroco do iluminismo que acordava a humanidade; ou Santos Dumont, que se recusou a registrar a invenção do avião, pois devia pertencer a todo mundo; ou Oscar Niemeyer, para quem Brasília era a concretização em concreto de um modo de viver, em que todos somos iguais. Mas, quando fica para trás, o Brasil é capaz de recuar à mais selvagem Idade da Pedra, produzindo os mais nefastos e bárbaros costumes, além de líderes equivalentes. Caetano foi sempre um dos primeiros, sem nunca resistir a tentar convencer os segundos, já que tudo pode mudar um dia.
Com todo o respeito aos outros admiráveis artistas e intelectuais do movimento, Caetano é seu líder ilustrado, o generoso criador maior do Tropicalismo, praticando-o radicalmente e promovendo-o em que missão estiver. Foi sua obra que o tornou o último estágio do nosso Modernismo, a conclusão de uma operação nacional de criação tão bem-sucedida, a melhor em nossa história, indo de Castro Alves a Roberto Carlos, dos Andrades de 22 aos irmãos Campos do concretismo, de Sousândrade a Leminski, de Villa a Tom.
Tudo isso com extrema consciência (e, às vezes, um certo pesar), como fica claro nesse trecho de seu livro de memórias “Verdade tropical”, de 1997, sobre a canção “Tropicália”, batizada pelo produtor do Cinema Novo, Luiz Carlos Barreto: “Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo”.
Conheci Caetano Veloso no início de 1966, às vésperas do carnaval, no Mercado Modelo de Salvador. Éramos um grupo de cinema que estava na Bahia para participar de um festival, numa época em que os festivais ainda eram raros.
Lá para as tantas, já de madrugada, chegou ao restaurante um menino com um violão embaixo do braço, parecendo muito mais moço do que sua verdadeira idade. Alguém na mesa o conhecia, ele acabou sentando conosco. Mas só se manifestou quando a conversa girou em torno da eterna disputa, então na moda, sobre raízes culturais. Alguns dos nossos nacionalistas do cinema arrasavam com a Jovem Guarda, quando Caetano pegou seu violão e cantou “Quero que vá tudo pro inferno”, num andamento mais lento, mais rebuscado, cheio de descobertas inesperadas. O silêncio se impôs na mesa e ele repetiu a canção muitas vezes. Quando terminou, eu estava aos prantos.
Caetano Veloso nunca mais saiu de minha vida, mesmo quando parecia não estarmos de acordo. Sexta-feira passada, ele fez 78 anos de idade e espero que, para nosso bem, ainda viva o dobro disso. Que nos lembre sempre de que gente é pra brilhar e não pra morrer de fome.
Carlos Pereira: Quem está falhando? Governo ou instituições?
Com um governo melhor, o Brasil enfrentaria também melhor o desastre sanitário
Nesse final de semana o noticiário dá conta de que o Brasil ultrapassou a trágica marca de cem mil mortes pelo novo coronavírus. O maior impacto dessa tragédia humanitária tem sido os mais vulneráveis, tanto do ponto de vista das condições de saúde, como socioeconômicas. São pessoas idosas, de classes sociais mais baixas, negros e pardos e portadoras de doenças pré-existentes. A covid-19 expôs de forma cristalina e seletiva a enorme desigualdade social e de renda do país.
Para muitos essa hecatombe sanitária seria evidência de que as instituições brasileiras não apenas não estariam funcionando, mas também de que estariam completamente falidas. Esse diagnóstico, entretanto, peca por atribuir às instituições o que seria consequência das políticas governamentais escolhidas.
Daren Acemoglu e James Robinson argumentam em seu último livro Narrow Corridor: State, Societies, and the Fate of Liberty que desenvolvimento com preservação de liberdades requer equilíbrio entre Estado e a sociedade. O Estado precisa ser forte e poderoso para proteger as pessoas, garantir direitos e proporcionar serviços para seus cidadãos. Mas a sociedade também precisa ser forte, vigilante e atuante, para impedir que o Estado faça mal uso de seus poderes. Para os autores, o “corredor estreito”, gerado pelo equilíbrio dinâmico entre sociedade e Estado, proporcionaria as condições para a emergência virtuosa de uma espécie de “Leviatã algemado”.
O desenho institucional brasileiro que emergiu na Constituição de 1988 criou um Estado forte, dotado de um executivo poderoso, com uma burocracia profissionalizada e meritocrática e organizações de controle (i.e., judiciário, ministério público etc.) independentes. Ao mesmo tempo, preservou um sistema político inclusivo e representativo, capaz de acomodar praticamente todos os interesses da sociedade. Ninguém fica de fora do jogo político no Brasil. Ainda por cima, estimulou o desenvolvimento de uma sociedade livre, complexa e, acima de tudo, vigilante para conter potenciais desvios ou arroubos iliberais de governos de plantão.
O resultante dessa combinação tem sido o desenvolvimento de instituições nitidamente inclusivas, mas não necessariamente eficientes. No livro Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change eu e meus coautores argumentamos que o perfil de inclusão, na realidade, tem sido dissipativo, em que a estabilidade democrática seguida de redistribuição e inclusão social são efetivamente alcançadas, mas também esse processo é acompanhado por distorções e ineficiências. É importante lembrar que esse perfil é o comum em países em desenvolvimento, e não apenas no Brasil.
Mas a existência de dissipação não cancela a natureza transformadora das mudanças que o Brasil tem vivido com o desenho institucional atual. Ou seja, dissipação não significa necessariamente ausência de funcionalidade institucional. Como esse processo ainda está em curso, é muito difícil identificar a parcela que é inclusão efetiva daquela que é dissipação. Depende, essencialmente, do viés da lente do observador. Se favorável ao governo de plantão, enfatizará aspectos que confirmem a inclusão. Já observadores de oposição tenderão a encontrar mais dissipação.
O arcabouço institucional não é uma “camisa de força” que aprisiona os atores políticos. Mas dá os limites. Existe espaço para escolhas de como governar e das políticas que serão implementadas. As dissipações podem ser minoradas ou maximizadas a partir dessas escolhas.
Dizer que as instituições não funcionam é tão ingênuo quanto o seu oposto, ou seja, que as instituições funcionam perfeitamente. As mazelas que o Brasil tem vivido são decorrências de falhas de governo, mas não necessariamente evidenciam uma falha institucional.
Sergio Lamucci: O teto e as armadilhas das contas públicas
Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, mas uma atitude rígida demais pode paralisar serviços públicos, sem enfrentar a expansão dos gastos obrigatórios
O cenário para as contas públicas em 2021 está marcado por incertezas. Há pressão para mudanças no teto de gastos, o mecanismo que limita o crescimento de despesas não financeiras da União. O movimento vem tanto de fora quanto de dentro do governo, como lembra Ricardo Ribeiro, analista político da MCM Consultores. Para ele, “a flexibilização do teto não é certa, embora a probabilidade seja crescente”.
O desejo de políticos e ministros fora da equipe econômica de destinar mais recursos para obras públicas e para programas sociais alimenta a pressão. Além disso, há também os problemas causados pelo desenho do teto e por uma correção muito baixa do limite de despesas para 2021.
A situação fiscal é delicada. Com o aumento de despesas para combater os efeitos da pandemia e a perda de receitas devido ao tombo da atividade, a dívida bruta subirá neste ano para a casa de 95% do PIB, tendo partido de 75,8% do PIB em 2019, um nível que já era muito mais elevado do que o da média dos emergentes.
Para grande parte dos especialistas em contas públicas, é preciso começar um processo de ajuste fiscal mais forte já em 2021. Sem isso, argumentam, os juros baixos não vão se sustentar. O risco país pode subir, o câmbio pode se desvalorizar muito e os juros futuros podem aumentar, tornando inviável manter baixa a Selic. Cumprir o teto seria decisivo para reforçar o compromisso fiscal.
No meio político, porém, crescem as pressões pela flexibilização. Em entrevista para “O Globo”, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, defendeu mais investimentos em infraestrutura básica, principalmente no Norte e no Nordeste. Para Ribeiro, da MCM, “levar água, saneamento e moradia ao Nordeste e engordar o Bolsa Família, transformando-o no Renda Brasil, são argumentos poderosos a favor dos apelos” destinados ao ministro da Economia, Paulo Guedes, por Marinho e pelo senador Flavio Bolsonaro - em entrevista a “O Globo”, o filho do presidente disse “Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações [obras paradas] que têm impacto social e na infraestrutura
Para Ribeiro, “a pressão pelo ‘dinheirinho’ adicional é crescente e tende a ficar mais volumosa quando, ao fim de agosto, o projeto de lei orçamentária da União for enviado ao Congresso”. O envio da proposta “provocará, muito provavelmente, uma chiadeira generalizada no Congresso e dentro do governo, pois o aperto orçamentário de 2021 ficará escancarado”, diz ele. “Há evidente apoio político à ideia, dentro e fora do governo. E se Jair Bolsonaro fosse totalmente avesso à ideia já teria enquadrado Rogério Marinho”, escreve Ribeiro, observando, porém, que “Paulo Guedes, Rodrigo Maia [o presidente da Câmara dos Deputados] e o receio da reação negativa do mercado ainda são barreiras poderosas à flexibilização”.
A pressão, como se vê, não é pequena. Além disso, problemas do teto colaboram para o questionamento do mecanismo. A regra tem méritos, tendo sido fundamental para melhorar as expectativas quanto à trajetória das contas públicas de longo prazo. Ele permitiu um ajuste gradual, sem que fosse necessário uma consolidação fiscal abrupta. Mas o teto também tem defeitos. O principal problema fiscal do país é a rigidez do Orçamento, marcado pelo crescimento contínuo de despesas obrigatórias, como aposentadorias e gastos de pessoal. O governo tem liberdade para manejar menos de 10% dos gastos. A reforma da Previdência reduz o ritmo de expansão dos gastos com aposentadorias, mas não o interrompe. Também é crucial enfrentar a elevação das despesas de pessoal.
Na emenda do teto, estão previstos gatilhos a serem acionados em caso de descumprimento do mecanismo, com medidas que impedem reajuste dos salários dos servidores e restringem a criação de cargos, por exemplo. A questão é que, por um erro de redação, não se consegue acioná-los. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) não pode conter despesas que ultrapassem os limites do teto, como lembra Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI). Os gatilhos não podem entrar em vigor pelo envio de um projeto que preveja o estouro do teto, ainda que isso leve à elaboração de um orçamento irrealista, com um corte muito expressivo de despesas discricionárias (como custeio da máquina e investimentos).
Para 2021, o teto aumentará apenas 2,13%, porque essa foi a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) nos 12 meses até junho de 2020. Para cumpri-lo, será necessário espremer mais os gastos discricionários. O problema é que essas despesas poderão ficar abaixo do limite que compromete o funcionamento da máquina pública, estimado em R$ 89,9 bilhões pela IFI. Com isso, pode haver uma paralisação de atividades do setor público, além de um corte ainda mais drástico dos investimentos, sem a adoção de medidas verdadeiramente necessárias para controlar a expansão de despesas obrigatórias, como os gastos com pessoal.
Para Salto, é preciso encontrar uma saída para descumprir o teto e fazer com que os gatilhos sejam acionados, preservando a regra. Há dois anos, o governo Michel Temer, em conversas com o Tribunal de Contas da União (TCU), chegou a uma saída para o descumprimento da “regra de ouro”, que impede a emissão de dívida para pagar despesas correntes. “Esse precedente permite imaginar uma saída similar para o teto que possibilite não jogar no lixo os gatilhos ali previstos”, diz ele. Salto estima que acionar os gatilhos previstos na emenda do teto garantiria um ajuste de algo como 0,5 ponto percentual do PIB em dois anos, “dando tempo e fôlego para o Executivo e o Congresso encontrarem uma solução definitiva”. Para ele, “o essencial é ter claro que o problema do crescimento da despesa continua posto e precisará ser sanado”.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial do governo contempla o disparo dos gatilhos no caso de descumprimento da “regra de ouro”, mas a aprovação demandaria tempo e capital político, num momento em que as discussões tendem a se concentrar na reforma tributária.
Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, colocando em xeque os juros baixos. Uma atitude rígida demais, porém, pode paralisar serviços públicos essenciais e jogar o investimento para níveis ainda mais baixos, sem que o crescimento das despesas obrigatórias seja de fato enfrentado. Escapar dessas armadilhas será crucial para garantir a sustentabilidade fiscal e permitir a recuperação da atividade, num país que registra desde 2014 um desempenho econômico horroroso.
Marcus André Melo: O Estado brasileiro é fascista?
A redução da expressão fascismo a autoritarismo é pobre analiticamente
“Is Brazil a fascist state?” Este é o título do último capítulo de “Brazil Under Vargas” (1942), de Karl Loewenstein. A pergunta não poderia vir de alguém mais qualificado: o ex-pupilo de Max Weber havia publicado “Hitler’s Germany” (1939) e trabalhos pioneiros sobre movimentos autoritários na década de 30. O autor não falava apenas de cátedra: ele próprio fugira de Hitler para tornar-se acadêmico nos EUA e influenciou ativamente a elaboração da Constituição alemã de 1949.
Loewenstein concluiu que os rótulos comuns para o regime de Vargas não eram apropriados: “o regime não é nem democrático nem ‘democracia disciplinada’; nem totalitário nem fascista; é uma ditadura autoritária para o que os franceses cunharam um termo adequado: ‘régime personnel’, mas que exerce poderes teoricamente ilimitados com moderação dado o habitat liberal-democrático brasileiro”.
O Brasil não era totalitário, e a mobilização política oficial era cosmética: “não há a mística de Estado como na Alemanha nem nos primeiros anos do fascismo na Itália”. Mas importante é sua conclusão que, enquanto esses dois países são casos de Estados de partido único, o Brasil representava uma situação peculiar de Estado sem partido: os partidos políticos não existiam nem no papel nem na prática.
Com base em ampla base empírica, Loewenstein analisou o funcionamento das instituições brasileiras (sistema de justiça, mídia etc.) —em comparação com a Alemanha nazista e outros países—, concluindo que no Brasil o arbítrio aplicava-se de forma muito mais restrita. Especulava que “a persistência da regra da lei no Brasil de hoje, mesmo sob pressão de um regime autoritário, o qual em termos constitucionais é materialmente ilimitado, pode ser creditada à tradição enraizada e forjada no marco da monarquia constitucional no Império”.
Revisitar Loewenstein é urgente porque o Estado Novo na nossa experiência histórica foi o regime político que mais se pareceu com o fascismo. E ele próprio é a um só tempo testemunha e pesquisador pioneiro do assunto. Sua análise deixa claro que a redução da expressão fascismo a autoritarismo é pobre analiticamente.
No debate público americano atual, Jason Stanley e Timothy Snyder têm insistido que sob Trump os EUA teria se tornado fascista. Samuel Moyn retruca, como escrevi neste espaço, que é irônico que a maior oportunidade para implementar o fascismo (a pandemia) produziu inação, e não um ditador.
E adverte que mostrar o que situações tem em comum é banal; há similaridades em quaisquer fenômenos: “a comparação sem o reconhecimento de diferenças é puro partidarismo”. Como amplamente demonstrado por Loewenstein!
*Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Fernando Gabeira: Fúnebre marcha dos 100 mil
Resposta à pandemia nos convida a repensar o país
Desde o início da quarentena escrevo um diário. Nele, apesar da pressa, incorreções e algumas bobagens, analiso os fatos desses meses de coronavírus.
Não sinto tanta necessidade de escrever sobre isto, mais do que faço diariamente. Mas, no momento em que alcançamos a marca de 100 mil mortos, é importante dizer algo fora dos limites. O número redondo lembra-me dos anos 60, quando marchávamos orgulhosamente contra o governo militar.
Os 100 mil de hoje representam também um protesto, só que desta vez contra o descaso e retumbante fracasso de nossa política nacional contra a Covid-19.
O ideal seria sairmos às ruas, os sobreviventes, para protestar por eles. A natureza da pandemia nos obrigou a uma quarentena. Escrevi no diário algumas vezes como isso não apenas entorpeceu nossos músculos, mas mudou a maneira como nos vemos.
O país se transformou num imenso centro espírita, e nós baixamos nos computadores para sessões de conversa que chamamos de lives, mas poderiam também ser chamadas de deads.
Parece que muitos de nós vivem numa parte mal iluminada da eternidade, aparecemos para a conversa, desligamos o aparelho e evaporamos. Não se acaba mais em pizza como antigamente, quer dizer, num descontraído jantar após a reunião, o debate ou conferência.
Leio no livro de Churchill que os piores momentos de nossa vida são aqueles que não aconteceram, aqueles que nos mantiveram preocupados, levaram nosso sono e nunca se apresentaram de fato em nossas vidas.
Isso corresponde ao que diz um personagem de Borges diante da morte: é menos duro enfrentar um perigo do que imaginá-lo e aguardá-lo durante muito tempo.
A Covid-19, nesse sentido, é a pior doença que nunca tive. Certamente há outras mais graves e devastadoras, mas nunca perdi um minuto preocupado com elas.
Os índios no Amapá a consideram uma espécie de doença espiritual, por causa da invisibilidade do vírus. Mas nem por isso deixam de temê-la.
Desde o princípio, luta-se contra a negação do governo. Era apenas uma gripezinha e afirmávamos que, ao contrário, era uma perigosa pandemia. Surgiram os mortos, e o governo achou que seu número estava superdimensionado, diante de todas as evidências de que havia subnotificacão.
Um dos luminares do governo calculou que morreram apenas 800 pessoas e continuou duvidando dos fatos, mesmo quando os mortos já eram 80 mil.
Duvidaram dos caixões, que para eles estavam vazios ou cheios de pedras. Duvidaram do número de covas, vetaram uma dezena de artigos na lei de proteção aos povos indígenas.
Seguimos fazendo lives como ectoplasmas que reaparecem no território virtual para puxar a perna dos vivos que, sem máscara, montados a cavalo, celebravam seu escandaloso idílio com a morte. E daí?
Os tribunais de dentro e de fora do Brasil terão material por muito tempo. A suposição de que essas coisas acontecem e são esquecidas é falsa. Uma política de negação que produziu milhares de mortos, índios, grávidas, é algo que ficará na história e acabará desabando sobre seus autores, por mais velhos e combalidos que estejam no momento em que forem alcançados.
Vivemos num país de curandeiros. Bolsonaro passa seus dias mostrando a cloroquina para todos os seres humanos e animais que encontra pela frente. O ministro da Ciência e Tecnologia gasta 8 milhões para pesquisar um vermífugo chamado Annita, e até audiências foram anunciadas para discutir o poder do alho cru.
E se você perde a paciência, elegância, e pergunta: e naquele lugar, não vai nada? Eles responderão com tranquilidade:
— Algumas doses de ozônio e um cateter bem fino.
Aos poucos vamos saindo da toca, meio ressabiados, contentes em ver quem sobreviveu. Mas a maneira como tratamos a pandemia, as condições de desigualdade em que a vivemos, uns com água e esgoto, outros não, uns com casa confortável, outros espremidos nos barracos, tudo isso coloca em questão o próprio sentido da sobrevivência.
Apesar da solidariedade, do desprendimento dos trabalhadores em saúde, a resposta brasileira à pandemia nos convida a repensar o país.
E responder em conjunto a essa fúnebre marcha dos 100 mil.