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José Eduardo Faria: Artigo 142, as Forças Armadas e o "Poder Moderador"
O presidente Jair Bolsonaro voltou a invocar o artigo 142 da Constituição, que trata da defesa do Estado e das instituições democráticas, afirmando que ele confere aos militares um “poder moderador” para repor a lei e a ordem quando houver conflito entre os Poderes. “Nas mãos das Forças Armadas, a certeza da nossa liberdade e do apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação. Obrigado por existirem. Nós sabemos o que é bom e o que é justo para o nosso povo”, disse ele no dia 12 de agosto, numa solenidade de promoção de generais.
DEFILE MILITAR NA ESPLANADA
Bolsonaro defendeu reiteradamente essa tese no ano passado, principalmente depois de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional um de seus atos normativos. Na ocasião, o presidente da corte, Luiz Fux, o rebateu de pronto, esclarecendo que a leitura do artigo 142 feita pelo presidente da República é equivocada, em termos técnico-jurídicos. Por causa disso, Bolsonaro ampliou suas afrontas à corte, estimulando seus seguidores a fazerem o mesmo.
Agindo nessa linha, um grupo de 52 membros da Aeronáutica, 16 da Marinha e 10 do Exército – todos da reserva – publicou um manifesto acusando os ministros do STF de fazerem “uso de um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade”. E um deputado, Marcio Labre (PSL-RJ), chegou a afirmar pelo YouTube que, “se as Forças Armadas decidirem que os senhores (ministros do STF) estão destituídos, os senhores estarão, porque o fuzil atira e a caneta não atira. A vida funciona assim, sempre funcionou. Quem manda no jogo é o dono do fuzil, não é a caneta do senhor Fux, nem do senhor Toffoli, nem do senhor Lewandowski, nem do senhor Gilmar Mendes. Um único movimento de tanque na sala dos senhores e os senhores saem algemados, destituídos, podem perder num instante o status que têm hoje”.
Deixando de lado a adulação de Bolsonaro aos novos generais, o palavrório dos oficiais de pijama e o golpismo desse parlamentar, a ideia de que o artigo 142 permite às Forças Armadas agirem como poder moderador de conflitos entre os poderes não procede, juridicamente. Segundo esse artigo, “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Apesar de não ser um texto preciso, como tantos outros produzidos pela Constituinte, o artigo 142 não diz, em momento algum, que as Forças Armadas têm a prerrogativa de um juízo singular que lhes permita avaliar eventuais tensões e conflitos entre os três Poderes e de intervir por conta própria, sob a justificativa de garantir a Constituição e preservar a lei e a ordem. Também não afirma que as Forças Armadas são a garantia da Constituição – esta, pelo artigo 103, deixa claro que o guardião da Carta é o STF.
Na verdade, o poder de chefia das Forças Armadas é limitado juridicamente e não há qualquer margem para interpretações que permitam sua utilização para conter “indevidas intromissões” no funcionamento dos outros Poderes, como afirmou o presidente da República em 2020. Ao contrário do que tenta induzir, o artigo 142 é o que define as funções das Forças Armadas – não são elas que definem o papel da Constituição. Por mais que esse artigo 142 estabeleça que o papel institucional dos militares é defender a Pátria, garantir os poderes constitucionais e assegurar a lei e a ordem, ele não acolhe a ideia de um poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
O que aqueles que criticam os ministros do STF de se expressar por meio de “bolodórios de um doutor de faculdade” não sabem é que, no âmbito do direito positivo, não existe uma interpretação literal da Constituição e das leis – como se houvesse uma interpretação única e verdadeira. Qualquer calouro dos cursos jurídicos aprende, já no primeiro ano, que a interpretação literal é rejeitada desde os tempos do pensamento helênico. Entre os parlamentares bolsonaristas, como aquele que pede “um único movimento de tanque na sala dos ministros do STF”, certamente também haverá quem defenda uma técnica interpretativa dirigida à revelação da vontade do legislador, vinculada a critérios metodológicos consagrados pela jurisprudência e pela doutrina. E, entre os que conhecem um pouquinho de direito e fornecem pareceres de ocasião a generais, almirantes e brigadeiros, alguns poderão até falar em interpretações gramatical, lógica e sistemática.
Embora essas concepções hermenêuticas sejam antigas, elas já não mais se adequam às sociedades complexas. Nelas, os juízes já não são vistos como agentes presos a um sistema lógico-formal de regras, mas encarados como profissionais cujas decisões resultam da ponderação entre suas visões jurídicas, morais e políticas e os aspectos factuais dos casos sob sua responsabilidade. Nessas sociedades, o sentido de uma norma jurídica não é algo objetivo que se encontra no texto da lei. É, isto sim, o resultado de um processo de leitura dessa norma condicionado pela experiência pessoal, profissional e cultural do intérprete.
Desse modo, quando o STF examina um texto legal, não há sentido único a ser extraído dele – o que há são sentidos contextualizados pelas circunstâncias que balizam a escrita e a comunicação dos legisladores e juízes. Se as normas não são linguisticamente unívocas, ao julgarem ações de inconstitucionalidade contra o uso abusivo de MPs e outras iniciativas do governo, os ministros do STF elegem, entre vários sentidos possíveis, o que melhor pode realizar a função estabilizadora do direito. Os ministros levam em conta os marcos normativos da Constituição como moldura solene, o que neutralizaria o arbítrio.
Nessa perspectiva, a linguagem das leis não é apenas um instrumento para descrever a realidade por elas regulada – ela também é edificadora da própria realidade. E, à medida que essa realidade vai se tornando mais intrincada, para regular os casos difíceis o legislador tende a optar por conceitos principiológicos – ou seja, abertos e indeterminados. Conceitos como moralidade pública, defesa da pátria e da Bandeira e garantia dos poderes constitucionais nada mais são do que técnicas de catalização de expectativas dos diferentes setores da sociedade.
Conceitos como esses são, também, fatores de estabilização da ordem legal e preservação de sua identidade sistêmica. São, ainda, instrumentos usados pelo legislador para assegurar alto grau de respeitabilidade dessa ordem junto à população. E, como não são autoexecutáveis, os conceitos abertos pressupõem a transferência da responsabilidade por seu fechamento e implementação aos tribunais. Por isso, quando recorrem a princípios como esses para fundamentar uma decisão, os juízes – da primeira à última instância – legislam no caso concreto.
O caráter polissêmico desses conceitos é um fator revelador de que não há interpretação mecânica ou neutra das leis – fato esse que os acusadores do STF e de seu decano parecem não compreender. Se por um lado a interpretação das normas é condicionada pela experiência pessoal e intelectual do intérprete, por outro, quanto mais principiológico é um texto legal, maior é a discricionariedade dos juízes. Mesmo que as decisões estejam escritas na linguagem da lógica jurídica, elas encerram juízos de valor que podem conflitar entre si. Como dizia o justice Oliver Wendell Holmes Jr., antigo presidente da Suprema Corte americana e docente de Harvard, processos são “campos de batalha” nos quais a sentença é preferência de um determinado juiz de um determinado lugar num determinado momento histórico.
No limite, textos legais com conceitos mais abertos – como defesa da Pátria e da Bandeira e garantia dos Poderes constitucionais – encerram dois riscos. Por um lado, o excesso de princípios pode inviabilizar o direito positivo como técnica. Por outro, confere aos responsáveis por sua aplicação um amplo poder político e institucional. Decorre daí a porosidade da fronteira entre a criação do direito, de competência do legislador, e sua aplicação, de competência do juiz. Também decorre daí a crescente judicialização da vida política e a subsequente politização da Justiça. Decorrem daí, ainda, a jurisprudência criativa dos tribunais, a multiplicação de decisões com fundamentos extrajurídicos e o intervencionismo em políticas públicas.
Com seus rompantes, confundindo “autoridade suprema” com poder absoluto, como é o caso de Bolsonaro e seu entorno militar e político, os bolsonaristas críticos do STF – a começar pelo próprio presidente – agiriam melhor se ficassem calados, pois assim não revelariam o grau de sua ignorância jurídica. Como abriram a boca, mostraram não ter competência para discutir problemas atuais mais importantes em matéria de aplicação e de interpretação do direito.
Como mudar um cenário em que as decisões judiciais tendem a ser mais uma criação dos juízes do que o resultado da aplicação dedutiva de normas jurídicas? Há limites à recriação da ordem legal por meio de interpretações judiciais? É possível evitar que o controle da constitucionalidade das leis se converta numa atividade inovadora de sentido, mesmo sob a justificativa de atualizar um pacto constitucional que, por princípio, é fruto de um processo de decisão coletiva destinado a garantir ao máximo sua universalidade e consenso? Se muitos textos legais contemporâneos são amoldáveis para a atribuição de qualquer sentido por um juiz, como fica a segurança do direito?
Em suma, ao redigir o artigo 142, os constituintes talvez tenham cedido demais, no plano simbólico, para as Forças Armadas. E o fato é que agora, 33 anos depois, uma parte dela – ignara, anacrônica e de vocação autocrática – parece almejar mais do que a tutela simbólica. Ou seja: o poder efetivo. Nesse sentido, ao insistir que esse artigo confere às Forças Armadas um poder moderador, perante um grupo de generais, dois dias após o patético desfile de tanques sucateados pela esplanada dos ministérios, em Brasília, Bolsonaro nada mais faz do que amplificar o desapreço pelas liberdades públicas.
Com isso, negou a Constituição que jurou cumprir. E agora, ao acusar os ministros do STF de “extrapolarem de suas prerrogativas”, quando na prática eles estão apenas exigindo respeito à ordem constitucional, ainda deu mais um triste passo, cujas consequências são imprevisíveis, que tende a tornar o País menor perante o mundo civilizado e as nações com democracia consolidada.
(Publicado simultaneamente em Estado da Arte em 15 de agosto de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-poder-moderador-ffaa-142/)
Fonte: Blog Horizontes Democráticos / O Estado de S. Paulo
https://horizontesdemocraticos.com.br/o-artigo-142-da-constituicao-as-forcas-armadas-e-o-poder-moderador/
https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-poder-moderador-ffaa-142/
Luiz Carlos Azedo: Agosto em marcha
Bolsonaro escala a crise como STF e aposta na deterioração das relações entre os Poderes. Ameaça dar um golpe de Estado
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense / Estado de Minas
Riobaldo, o jagunço de Grande Sertão Veredas, a odisseia cabocla de Guimarães Rosa, dizia que “viver é muito perigoso”. Em agosto, na política, mais ainda. Para os políticos, com certa razão, trata-se de um mês aziago, porque crises e tragédias ocorreram nesta época do ano. “Comandante supremo das Forças Armadas”, como agora gosta de se apresentar, o presidente Jair Bolsonaro escala a crise com o Supremo Tribunal Federal (STF) e aposta na deterioração das relações entre os Poderes, com o claro propósito de impedir a realização das eleições, nas quais pode ser derrotado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ameaça dar um golpe de Estado.
Tudo pode acontecer em agosto. Em 1954, após voltar ao poder pelo voto, Getúlio Vargas sofria com pressões do Congresso. A oposição mais radical era da UDN, liderada por Carlos Lacerda, que sofreu um atentado na Rua dos Toneleiros, no Rio de Janeiro, no qual faleceu o major da Aeronáutica Rubens Vaz; Lacerda foi ferido na perna. As investigações apontaram Gregório Fortunato, chefe da guarda presidencial, como autor do crime. A situação se tornou insustentável. Getúlio acabou cometendo suicídio, com um tiro no peito, na madrugada de 24 de agosto.
DESFILE MILITAR NA ESPLANADA
Jânio Quadros presidia o Brasil desde janeiro de 1961. Surpreendentemente, aproximou-se da antiga União Soviética e da China. Em plena guerra fria, condecorou Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana, com a Ordem do Cruzeiro do Sul. Carlos Lacerda, líder da UDN, passou à oposição. Sete meses depois de assumir, em 25 de agosto de 1961, Jânio renunciou. Imaginava voltar nos braços do povo; quem assumiu foi seu vice, João Goulart.
Em 1969, o general Costa e Silva teve uma trombose cerebral, no final de agosto. O vice-presidente, Pedro Aleixo, um civil, foi impedido de assumir a Presidência por uma Junta Militar, que governou o país até 30 de outubro, quando assumiu o general Emílio Médici. Costa e Silva faleceu em dezembro.
O ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu em um acidente de carro em 22 de agosto de 1976; seu motorista, Geraldo Ribeiro, também. O veículo colidiu com um caminhão, na rodovia Rio-São Paulo. A Comissão Nacional da Verdade concluiu que sua morte foi um acidente ocasional.
Depois da entrevista de seu irmão Pedro Collor à revista Veja, denunciando um esquema de lavagem de dinheiro no exterior co- mandado por PC Farias, o Congresso Nacional criou uma CPI para investigar as denúncias contra o presidente Fernando Collor de Mello. Foram descobertos empréstimos fraudulentos e contas suspeitas. O famoso Fiat Elba foi comprado com esse dinheiro. Collor convocou uma manifestação verde-amarela para 16 de agosto. A população foi às ruas vestida de preto. A CPI confirmou a transferência irregular de US$ 6,5 milhões para financiar gastos do presidente. Collor derreteu: em setembro, foi afastado; em dezembro, renunciou ao cargo.
Ruptura institucional
Candidato à Presidência da República em 2014, o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos decolava nas pesquisas de opinião. Em 13 de agosto daquele ano, morreu após a queda do jato particular em que viajava. O avião havia decolado do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, com destino ao aeroporto do Guarujá (SP). Sete pessoas faleceram.
Por causa das chamadas “pedaladas fiscais” e decretos de abertura de crédito sem a autorização do Congresso, o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff foi aberto pela Câmara dos Deputados em abril de 2016, decisão confirmada pelos senadores em maio. Em 29 de agosto, Dilma Rousseff compareceu ao Congresso para se defender. Dois dias depois, os senadores aprovaram seu impeachment por 61 votos favoráveis e 20 contrários.
Ontem, Bolsonaro participou de uma cerimônia na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Rezende (RJ). Escreveu no Twitter: “Todos sabem das consequências, internas e externas, de uma ruptura institucional, a qual não provocamos ou desejamos. De há muito, os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, extrapolam com atos os limites constitucionais. Na próxima semana, levarei ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, um pedido para que instaure um processo sobre ambos, de acordo com o art. 52 da Constituição Federal”. Agosto está só começando; a crise está em marcha.
Paulo Fábio Dantas Neto: As chances da 3ª via diante da reciclagem da primeira
Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo
Tornou-se lugar comum em análises políticas prospectivas voltadas às eleições de 2022 vaticinar que o chamado centro democrático até aqui não emplacou e que não emplacará. Temos aí uma constatação irrefutável e uma previsão afoita. Um uso de flash fotográfico para tratar de processo que requer filmadora.
Os raciocínios decorrentes dessa ilusória percepção do processo político como algo linear, no qual o presente é criado e explicado pelo antecedente e, ao mesmo tempo, cria e explica o sucedente são: primeiro, que Bolsonaro seria resultado direto e lógico da rejeição ao PT, logo, a rejeição foi o erro do qual resulta a tragédia social e política que o Brasil vive hoje; segundo, que a situação atual, indicada em pesquisas, de inconteste liderança de Lula comprova que esse é o caminho para derrotar o mal. A remissão de um suposto pecado, supostamente original, seria condição para que o país volte a ter futuro.
Acontece que a banda não tocou, não toca, nem tocará assim. Comecemos por relembrar: a eleição de Bolsonaro não foi desfecho natural e obrigatório da rejeição ao PT. Assim como a pedalada fiscal foi o argumento jurídico, a rejeição do eleitorado, sentindo-se logrado pelo marketing da campanha de 2014, foi o lastro social do impedimento de Dilma Rousseff, que passara a ser objetivo político de várias forças que a apoiaram naquela eleição, com destaque ao MDB e ao Centrão. Mas o que ocorreu depois (o esgarçamento e não a unidade eleitoral das forças que sustentaram o impeachment e a instalação de um governo de transição) não estava escrito nas estrelas. A Lava-Jato foi um solvente externo, cuja ação foi potencializada pela incapacidade política da nova coalizão governante de ir além do salve-se-quem-puder. Em vez de continuidade entre transição e nova situação (como entre Itamar e FHC, em 1993/94), deu Bolsonaro.
Hoje não há só duas bandas tocando, a do governo Bolsonaro e a da oposição de esquerda. Assim querem e fazem pensar as análises que vaticinam o caráter irremovível dessa polarização. Família e milícias de Bolsonaro, seu entorno militar e áreas do chamado centrão constituem três camadas de um bolo solado. Desse arranjo pode sair (e tem saído) muita coisa em comum, desde tentativas de saques devastadores aos cofres da União, até tolerância para com ameaças à democracia e às eleições, passando por devastação ambiental, educacional, cultural e informacional, por metódica desconstrução institucional do Estado, seu aparelhamento e a sabotagem, pontual e difusa, de direitos constitucionais, inclusive supressão do direito à vida de centenas de milhares de brasileiros. Em suma, pode sair tudo, menos uma coalizão capaz de vencer eleições normais, em dois turnos. Políticos profissionais sabem disso e não ficam à espera do abraço de afogado do capitão.
Isso quer dizer que as bases ainda ligadas ao governo, ou não rompidas com ele, rumarão para a oposição? Seria mais provável dois e dois somarem cinco. Abrir mão da máquina eleitoral federal quando se pode contar com ela é algo que contraria o beabá eleitoral de candidatos ao Parlamento e a governos estaduais, exceto aqueles que estejam previamente excluídos do acesso a ela, pela sua condição de oposição aberta. A recusa ao abraço de afogado quer dizer é que a direita e a centro-direita buscam outro candidato para derrotar Lula. Atuam e tendem a cada vez mais atuar num registro que rejeita o discurso e os métodos autocráticos do presidente. O eixo estruturante, criador dessa possível candidatura, seria o próprio governo e não uma aliança mais ao centro, de oposição. O centro iria, supostamente, por gravidade, parte dele logo, outra parte, no segundo turno. O nome? Não sabemos (é possível que nem mesmo os artífices dessa solução já saibam) mas entre Rodrigo Pacheco e Hamilton Mourão não se deve descartar nada.
A solução que surja desse eixo pode ter maior ou menor teor democrático. É bom não nivelar o juízo sobre cada uma dessas possibilidades, porque não é desprezível a distinção entre gravata e farda num momento tão delicado como esse pelo qual passa a nossa democracia. Seja como for, não é sensato apostar que o establishment ficará inerte, paralisado pela pluralidade de visões, valores e interesses que abriga. Se essas forças da direita não-bolsonarista (governistas e independentes) se entenderem sobre o nome e se conseguirem se acertar com Artur Lira – um ator com poder de veto - vão tirar Bolsonaro do caminho, por bem ou por mal. Isso se o Judiciário não consumar o fato antes, ou se o próprio Bolsonaro não entornar o caldo preferindo, em vez do script de eleitoralmente derrotado (ainda que inconformado), cumprir o de insurreto, ou o de vítima batendo em retirada. Penso ser assim que se deva ver, por exemplo, a operação de remontagem do DEM no Rio de Janeiro. Além de deslocar Rodrigo Maia no plano estadual, retaliando sua transição barulhenta e agressiva em busca de lugar na oposição frontal ao governo federal, ganhar aliados de Bolsonaro para a via governista sem ele, desbolsonarização do governo.
Visto que as bandas não tocaram antes, assim como não tocam hoje, do jeito simples insinuado por análises que usam flashes no lugar de filmadoras, resta argumentar como é possível que toquem em 2022 de modo menos óbvio do que aquele que coros equivocados e/ou interessados anunciam. Se, de fato, o chamado centro democrático for politicamente anulado em 2022, conforme os sinais mais visíveis apontam, não será pela imperiosidade da polarização entre Lula e Bolsonaro, mas pela perda da chance de ocupar a posição de eixo articulador de uma suposta terceira via, A primeira via (governista) adianta-se a esse centro como eixo articulador de uma alternativa liberal-conservadora ao bolsonarismo.
O sinal mais evidente dessa ultrapassagem é o posicionamento crescente do DEM na direção dessa primeira via sem Bolsonaro. Embora menos evidente, a conduta do MDB tende a ser parecida, ou ainda mais problemática, pelas inclinações lulistas que ali existem. Sem o DEM e o MDB, o centro democrático não poderá ser centro, no sentido de eixo. Estará condenado a ser coadjuvante, por mais que o PSDB seja um partido relevante. E as últimas votações no Congresso não devem iludir. Também no terreno tucano a força do governismo se mostra. Do mesmo modo que não se pode confundir isso com bolsonarismo, também não se pode negar a propensão de parte do partido a desistir da hipótese da terceira via.
É uma situação irreversível? Penso que não, enquanto existirem, simultaneamente, em mais de um terço do eleitorado (noves fora adesões e rejeições a Bolsonaro e a Lula), percepções de que o governo que aí está não presta e de que a volta do PT seria um desastre, ambas as percepções orientadas pela aversão à corrupção, à ineficácia econômica e/ou à instabilidade política. Se a direita conseguir, afastando ou eclipsando Bolsonaro, convencer que o governo passou a ser outro; ou se Lula conseguir convencer esse mais de um terço de que um novo governo seu será algo diferente do que foi, o centro democrático tende a ter um papel apenas coadjuvante, mesmo que importante para moderar e qualificar o debate. Se a direita e a esquerda lograrem, ambas, esses tentos, aí sim, o centro, por inutilidade, virará poeira.
Mas é muito cedo para vaticínios. A direita patina pela ausência de nome. Nela, esse limite é maior do que no chamado centro. Pode acenar com estabilidade, mas tendo o centrão como seu eixo, como contornar os receios do eleitorado com a corrupção e a incompetência do governo? Para estimular esses receios estão aí as ativas e experimentadas redes petistas. Por seu turno, Lula até aqui faz exatamente o oposto do que buscar a reversão da aversão àquele modo petista de governar. Tem prometido um retorno ao passado, que vê como um ativo político para apostar e não como algo a problematizar. Parece convencido de sua capacidade de convencer as pessoas de que, administrativa e politicamente, ele e Dilma são como trigo e joio. A direita não dispensará uma bola assim na marca do pênalti. Além de lembrar, com ênfase simétrica, da corrupção e da incompetência alheia, ainda acenará com riscos de golpe, se o PT retornar. Mantidas tais circunstâncias problemáticas, por que o projeto de uma candidatura mais ao centro deveria ser suicidado de véspera?
O maior problema do chamado centro democrático tem sido, desde 2015, ele mesmo. Pagou um alto preço eleitoral pela sua pusilanimidade durante o governo Temer. E arrisca-se a pagar outro em 2022 se não conseguir criar uma identidade e uma rota de navegação distinta não apenas da oposição de esquerda, mas também do governismo maquiado. Esses cacoetes permanecem nos partidos, mas é visível o esforço interessado que alguns pré-candidatos têm feito para superá-los. Enfrentam obstáculos para se tornarem agregadores em seus partidos, seja pela divisão (casos de João Dória e Eduardo Leite, no PSDB), seja pela força interna de um governismo difuso (caso de Luís Mandetta, no DEM). Quando, a princípio, não tem esse problema (caso de Ciro Gomes, no PDT), há problemas de afinidade política e de perspectiva econômica com os possíveis parceiros. Apesar de todos esses fatores reais, a coisa tem andado no sentido do amadurecimento de uma convivência cooperativa, simultaneamente a uma explicitação e discussão de diferenças entre eles. Se chegarão a tempo não se sabe, mas não há nada de melhor a fazer. Bom exemplo foi o segundo debate público entre três deles (Ciro, Mandetta e Leite) , ocorrido na última quinta-feira, dia 12/08. Apesar do formato engessado, foi possível aprofundar certos assuntos e ir lapidando um discurso comum, que pode se tornar amplo.
O critério para avaliar amplitude, no caso desse campo do centro, é distinto do que precisa ser adotado para avaliar a amplitude da conduta de Lula. Não se pode dizer que a postura pouco aberta a revisões que ele tem adotado é, necessariamente, sinal de que se preocupa só com seu “cercadinho” e que está fechado a uma inflexão futura. Se for fustigado pela emergência de uma candidatura agregadora do centro pode mudar essa postura. A atual tem sua racionalidade, pois Lula joga para apressar a consumação de um quadro em que ele seja a única opção de oposição ao "que aí está". Esse é um jogo compreensível. Quem quer coisa diferente tem de apresentar. Ainda há tempo, mas está passando rápido. Tudo indica que Lula e o PT não vão conseguir que a eleição se resuma a um plebiscito contra Bolsonaro, o cardápio dos seus sonhos. Provável que comam mais poeira enfrentando outro candidato, um sujeito oculto que mais dia, menos dia, vai aparecer. Arma-se no país um cenário de polarização entre Lula e outra candidatura governista.
Uma alternativa democrática a esse tipo de polarização seria uma candidatura de oposição ou independente que, mesmo vindo da centro-direita, pudesse agregar o centro e até morder áreas da esquerda, programática e eleitoralmente. É para esse tipo de solução que o tempo está ficando cada dia mais escasso. Ao contrário da hipótese de uma candidatura governista alternativa a Bolsonaro, que tem a seu favor o desespero generalizado para se livrar de Bolsonaro, que com o tempo condicionará mais o establishment. A ponto de não fazer diferença, para quem precisa dessa arca, se o comandante usará farda ou paletó.
*Cientista político e professor da UFBa.
Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/08/paulo-fabio-dantas-neto-as-chances-de.html
Luiz Sérgio Henriques: Esquerda positiva, a hora e a vez?
É necessária uma aguda reflexão sobre a ‘questão democrática’ e o centro político
Luiz Sérgio Henriques / O Estado de S. Paulo
Num momento em que nosso passado de golpes e atropelos parece obstinar-se em não querer passar, oprimindo como um pesadelo, segundo a frase famosa, o cérebro dos vivos, podemos também, paradoxalmente, nele buscar sinais que nos orientem ou permitam discernir rotas menos tortuosas. É que tivemos tempo suficiente de aprendizado na luta contra o autoritarismo e nos educamos coletivamente por meio de experiências que não se deixam apagar e, seja como for, estão disponíveis para quem veio depois e não as viveu em primeira pessoa.
Exercícios contrafactuais são sempre arbitrários, mas não de todo inúteis. Não era inevitável, por exemplo, que a modernização brasileira se revestisse do caráter autocrático assumido a partir de 1964. Tal caráter não estava escrito nas estrelas ou latente na “natureza do processo”, mas decorreu também de más escolhas políticas. No seu conjunto, os atores do campo “progressista” tinham da democracia uma concepção limitada, como se ela fosse uma variável subordinada às “reformas de base”. Defender a Constituição de 1946 e apostar nas eleições de 1965 teria sido um caminho menos aventuroso, cuja viabilidade dependia da existência mais vigorosa de uma “esquerda positiva”, à moda de San Tiago Dantas, que desgraçadamente não tínhamos.
A seguir, a luta contra o regime autoritário conheceria uma esquerda dividida e muitas vezes impotente, a travar o seu “combate nas trevas”. Parte dela negava as transformações em curso e se apegava aos fortes mitos revolucionários da época, como o da China ou o de Cuba. Outra parte, no entanto, que por sinal abrigava a maioria dos egressos do putsch de 1935, seguia rumo diametralmente oposto ao do passado, avalizando – mesmo na clandestinidade – o partido dito de “oposição consentida”, o MDB de Ulysses e Tancredo. Sem dúvida, um sinal de esquerda positiva, preocupada com os humores e as posições do centro político, sem o qual não seria possível derrotar o arbítrio.
O País que surgiu dos anos de chumbo carregava promessas radiosas. Antes de mais nada, uma sociedade civil plural, pujante e diversificada. Entre tal sociedade e o seu Estado se consolidava uma relação mais equilibrada, de tal forma que parecia banida a hipótese que sempre estimula as aventuras autoritárias, a saber, a tentação de impor mudanças “pelo alto”, depois de controladas as alavancas do poder estatal. O que os atores políticos prometiam generalizadamente, desde os dissidentes da velha Arena até os representantes da esquerda velha e nova, era o rompimento definitivo com toda e qualquer ideia de golpe. O golpismo, em suma, passaria a ser palavra censurada naquele Brasil reinaugurado em 1988.
É possível, antes, é certo que havia alguma ingenuidade sobre a fase que se abria. Reformas sociais, mesmo de grande alcance, seriam possíveis, e de fato algumas o foram, como atestado pelo magnífico exemplo da construção (ainda em progresso) do SUS. A crença, afinal, era de que a democracia política não discrimina interesses nem valores e, por conseguinte, promove e requer a recomposição de todos os conflitos com base no consenso. Reformas assim obtidas, rigorosamente legais e nunca “na marra”, pavimentariam a via mestra de uma contínua democratização social. Para coroar, eleições competitivas, travadas com a regularidade “monótona” típica das sociedades ocidentais a que agora nos juntávamos, garantiriam a obtenção de patamares cada vez mais altos de igualdade e liberdade.
Dispensamo-nos aqui de descrever o impacto que os processos de mundialização tiveram sobre a estrutura de classes, a ordem social e os variados sistemas políticos nacionais. Em boa parte os benefícios da “globalização chinesa” possibilitaram avanços sociais generalizados na primeira década do novo século, e não só no Brasil, mas é duvidoso que entre nós se tenha afirmado com intensidade a “alma democrática” que dá vida interior às instituições, para lançar mão de uma imagem de Fernando Henrique Cardoso. Nas brechas e fissuras aí surgidas se insinuaria paulatinamente, com uma audácia que poucos poderiam supor, uma nova direita autocrática, fortemente crítica dos mecanismos da democracia clássica, a começar pelo que preside a alternância regular de poder.
A esquerda certamente é um fator indispensável para a saída do abismo em que nos metemos. Indispensável, mas muito longe de ser o único. O aprendizado coletivo a que nos referimos sugere que, uma vez mais, é necessária uma aguda reflexão sobre a “questão democrática” e, em consequência, o centro político. Recorrendo à conhecida metáfora, esse é o único elo a partir do qual se consegue dominar toda a corrente. Por isso mesmo, não se trata de prometer, com as mãos contritas, eventual “aliança com a burguesia” para “acalmar os mercados” e, menos ainda, de reincidir em esquemas de cooptação e loteamento. Trata-se, bem ao contrário, de redefinir a própria posição diante dos mais delicados temas da democracia e da República, sem o que não será possível a obra de reconstrução nacional que nos desafiará.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,esquerda-positiva-a-hora-e-a-vez,70003811050
Comandante do Exército diz que ‘não há interferência política’ na Força
Equilibrando-se entre as tentativas de Bolsonaro de influenciar instituição e a expectativa de parte da cúpula militar, o general Paulo Sérgio Nogueira afirma ao GLOBO que 'o Alto Comando está com o comandante'
Jussara Soares / O Globo
BRASÍLIA — Desde quando assumiu o comando do Exército, em abril, o general Paulo Sérgio Nogueira se equilibra em uma linha tênue de expectativas. De um lado, o presidente Jair Bolsonaro almeja demonstrações de apoio irrestrito e influência na Força que lhe deu a patente de capitão. Do outro, integrantes do Alto Comando esperam que Nogueira blinde a caserna da política e evite um agravamento da crise de imagem da instituição. Diante disso, Nogueira negou ao GLOBO o desgaste e deixou claro:
— Não há interferência política no Exército — disse o general por telefone ao GLOBO após participar ao lado de Bolsonaro de uma cerimônia na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) neste sábado — O Alto Comando está com o comandante — garantiu.
Mensagens: Ex-mulher de Bolsonaro atuou por cargo na Saúde
A declaração ocorre após mais uma semana de tensão. Na terça-feira, o general foi convocado para uma reunião ministerial no Palácio do Planalto. Ao fim, o primeiro escalão do governo se perfilou no alto da rampa, junto a Bolsonaro, para acompanhar um desfile de blidandos em frente à Praça dos Três Poderes. Entre eles, estava Nogueira. Militares quatro estrelas ficaram desconfortáveis em vê-lo no evento. Nem o próprio comandante parecia à vontade na cena.
Bolsonaro e o General Paulo Sérgio Nogueira
Não foi a primeira situação em que Nogueira ficou no meio de interesses difusos de fardados e de Bolsonaro. Em maio, a cúpula do Exército defendia a punição do general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, que participou de uma manifestação no Rio ao lado do presidente, o que é proibido a militares em atividade. Bolsonaro, por sua vez, agiu para blindar o ex-ministro, que acabou ganhando um cargo Palácio do Planalto. O recado foi entendido, e Pazuello se livrou da punição. O comando do Exército ainda impôs um sigilo de cem anos sobre o processo administrativo de Pazuello.
Nogueira enfrentou outra saia justa. Em julho, o ministro da Defesa, Braga Netto, preparou uma nota oficial, assinada também pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, para rebater críticas feitas pelo presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM). O texto oficial diz que as Forças Armadas não aceitariam “ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo.” Na ocasião, Nogueira estava em viagem ao Rio Grande do Sul. O texto, apresentado a à distância, estava pronto para ser assinado.
Infográfico: Como funciona a urna eletrônica e por que é segura
Esses e outros episódios já foram debatidos nas reuniões de integrantes do Alto Comando, que têm se mostrado preocupados com ataques de Bolsonaro às instituições. Ao final, generais estrelados, diante do momento de tensão, reafirmaram apoio irrestrito ao comandante do Exército. O argumento é que Nogueira não pode se opor ao presidente sob risco de conflagrar uma crise no país.
Nogueira chegou ao topo do Exército quando seu antecessor, o general Edson Leal Pujol, foi demitido junto com o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e os comandantes da Marinha e da Aeronáutica. O argumento principal é que Bolsonaro queria uma relação mais próxima com os chefes das tropas.
Descrito como afável, extrovertido e sociável, Nogueira adotou a discrição como regra. Em aparições públicas, calcula o tom das falas para não gerar conflito com o presidente e tampouco parecer que referenda eventuais posições políticas. Na estratégia de fugir de polêmicas, Nogueira deixou de usar o Twitter, um dos canais prediletos dos apoiadores de Bolsonaro. A sua última publicação ocorreu no dia 2 de abril, dois dias após ser anunciado no posto mais alto do Exército. Essa postura o diferencia dos comandantes da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, e da Marinha, Almir Garnier dos Santos, que utilizam as redes sociais.
Nos bastidores, porém, o comandante do Exército faz questão de sinalizar que está aberto a conversar com todas as autoridades. Já recebeu o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, e esteve com os governadores Ratinho Jr (PSD), do Paraná; Paulo Câmara (PSB), de Pernambuco; e Eduardo Leite (PSDB), do Rio Grande do Sul. Os dois últimos são adversários políticos de Bolsonaro. Nogueira também já se encontrou com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Nessas conversas, segundo o relato de interlocutores, evitou comentários sobre o presidente ou qualquer crise no país.PUBLICIDADE
A reserva do general à exposição política do Exército já era percebida por interlocutores do militar desde que ele estava à frente o Comando Militar do Norte (CMN), em Belém. A divergência se acentuou no 7 de agosto de 2020, um dia antes de o Brasil superar a marca de 100 mil mortos pela Covid-19, quando Nogueira assumiu o Departamento-Geral de Pessoal do Exército, a maior autoridade de saúde na Força. Na gestão, adotou as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), incluindo uso de máscara nos quarteis e distanciamento social. A adoção dessas medidas era contrária ao posicionamento de Bolsonaro.
Em função disso, o general não cogitava ser promovido ao comando do Exército. Até mesmo porque à frente dele estavam os generais José Luiz Freitas e Marco Antonio Amaro, atual chefe do Estado Maior, que havia sido chefe da segurança da ex-presidente Dilma Rousseff. Segundo integrantes do Planalto, Amaro foi preterido pelo passado de serviços à petista, e Freitas por não ter proximidade com Braga Netto.
Quem conhece o general mais intimamente diz que o ar reservado nas cerimônias ao lado do presidente contrasta com o perfil extrovertido que o marca desde os tempos da Aman, onde se formou em 1980. Natural de Iguatu (CE), PS, como gosta de ser chamado, é filho de um funcionário do Banco do Brasil e de uma dona de casa. Católico praticante, tem três filhos: dois majores do Exército e um engenheiro. Na academia, o jovem de 1,82m e bom preparo físico praticou atletismo e futebol. É torcedor do Ceará.
Na trajetória militar, o general foi três vezes instrutor na Aman, e em uma delas como comandante do Curso de Infantaria. Ao menos dez turmas de cadetes passaram por ele, o que faz com que Nogueira tenha relacionamento com oficiais espalhados por todo o Brasil. Na prática, é o comandante que tem as tropas nas mãos.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/comandante-do-exercito-diz-que-nao-ha-interferencia-politica-na-forca-25155942
Cristovam Buarque: Nudez da desigualdade e do atraso
Cristovam Buarque / Correio Braziliense
A covid-19 não provocou a tragédia da educação brasileira. Ela apenas desnudou a realidade do atraso e da desigualdade na educação. Desde sempre, as avaliações colocam o Brasil entre os países com uma das piores e com a mais desigual educação de base no mundo, conforme a renda da criança.
Apesar disso, a população brasileira, eleitores e eleitos, não parecia perceber a dimensão da tragédia, nem estava atenta às terríveis consequências disso para o futuro das crianças e do país. A baixa qualidade impede o aumento da produtividade para gerar renda nacional e a desigualdade na educação é a principal causa da pobreza social e da concentração de renda e suas consequências. A epidemia da covid não criou essa situação, apenas denudou a realidade e explicitou os desafios que já existiam.
A sociedade brasileira sempre tratou com descaso o fato de termos a oitava maior população de analfabetos entre todos os países do mundo, e termos apenas metade dos brasileiros terminando o ensino médio e no máximo metade deles em condições de alfabetização para o mundo contemporâneo: conhecer bem a língua portuguesa e falar pelo menos mais um idioma, saber matemática, as bases das ciências, história, geografia, problemas do mundo e dispor de um ofício para conseguir emprego e renda. A pandemia permitiu descobrirmos a realidade: o Brasil tem escolas e fake escolas. As primeiras, embora ainda deficientes, foram capazes de se ajustar e mantiveram um mínimo de qualidade, as outras praticamente abandonaram as crianças por falta dos equipamentos necessários, de professores preparados e motivados e de governantes que dessem importância à educação.
Além disso, a imensa maioria das famílias brasileiras não dispunha em casa dos equipamentos básicos para receber aulas transmitidas, no caso da escola que estivesse em condições de transmiti-las remotamente.
A covid-19 desnudou nosso despreparo para o uso das modernas técnicas de teleinformática aplicadas à educação. Há pelo menos duas décadas, o avanço técnico já tinha criado as condições para a execução das aulas remotas. O ensino à distância é uma realidade que o ensino superior vem praticando, mas que a educação de base nem ao menos considerava. Além de desnudar a desigualdade, a pandemia desnudou o atraso no equipamento de nossas escolas.
Ao desnudar o atraso e a desigualdade, ela nos trouxe dois desafios: como equipar as escolas para aproveitar todas as vantagens da modernidade da teleinformática, dos bancos de dados e imagens, e como oferecer essas vantagens a todos, independentemente da renda e do endereço de cada criança.
A pandemia mostrou que a pedagogia está atravessando, 100 anos depois, o desafio que a arte dramática enfrentou na passagem do teatro para o cinema, devendo adaptar as aulas teatrais – professor, aluno, quadro negro – para as aulas cinematográficas – onde o professor usa o seu conhecimento, os equipamentos e linguagens novas para ensinar presencial ou remotamente. O desafio está em formar professores e oferecer a eles o apoio técnico e os equipamentos necessários para o novo tipo de magistério que vai caracterizar os próximos anos.
Será uma estupidez nacional não aproveitar as novas técnicas, será uma indecência se esta nova pedagogia continuar como privilégio de poucos. O desafio trazido pela covid, ao desnudar a realidade do atraso e da desigualdade, vai exigir que o Brasil desperte para o atraso e a desigualdade: crie um Sistema Único Nacional de Educação de Base, capaz de oferecer em condições iguais o potencial das novas técnicas, aliadas às concepções humanistas da pedagogia.
A pedagogia precisa dar o salto que o cinema deu para universalizar a arte dramática, permitindo a qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, assistir os melhores diretores e atores, que eram privilégio dos ricos em cidades grandes. As novas técnicas digitais e de teleinformática vão permitir atividade pedagógica de qualidade: mais agradável ao aluno, mais eficiente para o aprendizado e mais democrática ao se espalhar para todos. No caso da passagem do teatro ao cinema, não houve necessidade de vítimas, nem mortos. No caso da educação, tanto demoramos para abrir os olhos que foi preciso a maldição da covid-19 para mostrar a nudez do atraso e da desigualdade. Pior será se percebermos a nudez, mas não enfrentarmos os desafios de modernizar e dar equidade à educação de base oferecida às crianças brasileiras.
*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da educação
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/08/4942638-artigo-nudez-da-desigualdade-e-do-atraso.html
CPI da Covid decide propor indiciamento de Bolsonaro por charlatanismo
Medida deve fazer parte do relatório final da comissão que será encaminhado ao MPF; para senadores, presidente foi ‘garoto-propaganda’ de medicamentos e disseminou informações falsas durante a pandemia
Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid decidiu encaminhar o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro por charlatanismo após o chefe do Planalto incentivar o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus. A medida foi discutida por senadores nesta quarta-feira, 11, e deve fazer parte do relatório final da CPI, a ser apresentado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL).
A CPI ouve nesta quarta o diretor executivo da Vitamedic, Jailton Batista, um dos fabricantes da ivermectina no Brasil. A empresa aumentou os ganhos com a venda do medicamento durante a pandemia e patrocinou publicações incentivando o chamado medicamento precoce, contrariando evidências científicas.
Para os senadores, Bolsonaro foi o principal “garoto-propaganda” de medicamentos como a ivermectina e a hidroxicloroquina durante a pandemia, disseminando informações falsas para a população e levando pessoas à morte. O relatório de Renan, para se tornar uma conclusão final da CPI, precisa ser aprovado na comissão. A maioria dos integrantes do colegiado é aliada ao senador.
“E o custo foi pago em vidas. Está aqui a tragédia. E, com certeza, a Vitamedic colaborou para que isso acontecesse ao continuar produzindo e comercializando, para tratamento da covid, um medicamento inútil, ineficaz, tido como tal pela ciência, por todos de responsabilidade no Brasil e no mundo”, disse Renan Calheiros durante o depoimento, exibindo uma placa com o número de mortos pela doença no País, que chegou a 564.890 na terça-feira, 10.
De acordo com senadores, Renan Calheiros vai propor o indiciamento de Bolsonaro com base nos artigos 283 e 284 do Código Penal, que punem os crimes de charlatanismo e curandeirismo. As penas para as duas condutas variam de três meses a dois anos de prisão e multa. O relatório da CPI deve ser encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF), responsável por encaminhar uma denúncia contra o presidente por crime comum.
“O senhor Jair Bolsonaro atuou como se fosse um curandeiro, anunciando cura infalível para uma doença em que isso efetivamente não existe”, disse o senador Humberto Costa (PT-CE). “É um constrangimento ver o presidente da República se prestar a um papel desses, ou seja, de charlatão, ao prescrever sem autorização para tal", afirmou o senador Rogério Carvalho (PT-SE).
Com prazo final marcado para 5 de novembro, os senadores da CPI já discutem um rol de crimes pelos quais Bolsonaro será acusado no relatório final. Outra conduta apontada é o crime de prevaricação no caso da vacina indiana Covaxin. Nesta quinta-feira, 12, a CPI ouvirá o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), acusado de atuar em um suposto esquema de corrupção na compra do imunizante. O deputado nega qualquer influência ou atuação irregular.
Além do indiciamento por charlatanismo, Renan Calheiros anunciou que vai sugerir uma onda de ações de indenização nos Estados para que as famílias de vítimas da covid-19 processem a União e as empresas que lucraram com medicamentos sem eficácia comprovada. A iniciativa dependerá das próprias famílias, mas Renan sugeriu que as Advocacias dos Estados e da União auxiliem nos processos.
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https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,cpi-da-covid-decide-propor-indiciamento-de-bolsonaro-por-charlatanismo,70003807803
O que esperar da segunda metade do ano
Brasil também sofreu com a mesma surpresa que atingiu outros bancos centrais e hoje vive um choque inflacionário bastante sério
Luiz Carlos Mendonça de Barros / Valor Econômico
Entramos no 2º semestre de 2021 com muitas incertezas dominando as previsões dos analistas de mercado sobre a economia brasileira. Para que possa mostrar com clareza minha posição preciso separar - como fui treinado a fazer ao longo do meu aprendizado profissional - o futuro em dois momentos distintos: o ciclo econômico que vivemos após a crise recessiva de 2020 e uma visão de mais longo prazo olhando os próximos anos. Hoje trato dos próximos dois anos.
Esta separação sempre esteve presente no exercício de previsões de uma economia de mercado. Mas no contexto do mundo globalizado de hoje ela ganha contornos mais complexos com a integração digital e logística dos últimos anos. Os acontecimentos imprevisíveis - Blacks Swans - em algum dos maiores países no primeiro mundo acabam tendo - por conta desta integração - efeitos sistêmicos em quase todas as nações. Foi assim com a crise do mercado imobiliário norte americano em 2008 e repetiu-se agora com a pandemia da covid-19.
Ao longo dos anos seguimos uma contínua evolução no protocolo de políticas fiscais e monetárias para enfrentar as consequências dos desequilíbrios graves criados pelos Black Swans. Ele estabelece que fica para um segundo momento, quando o pior da crise tiver passado, as medidas complementares para estabilizar o ciclo econômico e o funcionamento normal dos mercados financeiros. Mas no caso da crise gerada pela pandemia da covid, ainda que o protocolo de ações no auge da crise seja conhecido, a terapia posterior para administrar a volta à normalidade ainda é uma incógnita, como estamos vendo na maioria das economias de porte, inclusive no Brasil.
Agora, em meados de 2020, no enfrentamento da recessão criada pelo vírus e o afastamento social que se seguiu, a utilização da política de juros zero e déficits de fiscais superiores a 10% do PIB foi rápida e exitosa. O bate cabeça mundial desta vez ficou por conta da demora do enfrentamento da pandemia, o que acabou projetando no tempo os efeitos das políticas expansionistas colocadas em vigor por vários governos. Como resultado a recuperação das economias no terceiro trimestre de 2020 foi incrível, com a recuperação quase total das perdas do trimestre anterior.
Mas este bate e volta na economia real e, principalmente, a segunda onda do vírus na virada de 2021, acabaram por mascarar a recuperação da demanda em vários mercados no momento em que a maioria das empresas iniciava uma redução agressiva da oferta de alguns bens e serviços em escala mundial. A mudança rápida de consumidores e empresas para o protocolo digital da Internet certamente explica boa parte desta recuperação inesperada nos mercados. Mas de longe, a maior causa para que isto tenha ocorrido veio da China, que teve apenas um soluço em sua atividade econômica e voltou a operar acima do teto de 6% de seu ciclo econômico histórico, sustentando a demanda mundial por matérias primas.
Posteriormente, em meados de 2021, o sucesso da vacinação nas maiores economias do mundo consolidou a rápida volta do ciclo econômico acelerando a inflação de modo não esperado pela maioria dos Bancos Centrais e agentes do mercado. Com isto, vivemos o conflito das autoridades monetárias mais importantes surpreendidas por uma inflação de demanda muito forte no momento em que seguiam uma política monetária de combate a uma recessão que não mais existia.
O caso norte americano é Paramount pela intensidade da recuperação do emprego e de seu déficit comercial com o exterior e que levou a um aumento de mais de 100% no preço do frete marítimo. Ao nível mundial existem também desajustes de demanda em vários mercados de matéria prima e componentes industriais, mas a expectativa do Fed e do BCE é que estes desequilíbrios são passageiros e que devem se acomodar com o tempo. Esta tese tem sido comprada pelos investidores internacionais como mostram os níveis recordes dos principais índices ações nos mercados mais importantes.
O Brasil também sofreu com a mesma surpresa que atingiu outros bancos centrais e hoje vive um choque inflacionário bastante sério. A inflação no Brasil sofreu também a influência de uma recuperação parcial mais rápida da economia como mostram alguns indicadores recentes:
A evolução do emprego formal que chegou a mais de três milhões de novos postos de trabalho nos 12 meses terminados em junho.
O índice antecedente do emprego, medido pela FGV/Ibre, que antecipa os rumos do mercado de trabalho no Brasil, com alta de 1,6 ponto em julho, a 89,2 pontos, máxima desde fevereiro de 2020 (92,0).
A arrecadação de tributos federais que tem surpreendido os analistas
A demanda por automóveis com os estoques das indústrias produtoras em níveis mais baixos nos últimos 20 anos conforme informou o Valor.
Na mesma linha, a imprensa informou que o preço dos automóveis usados subiu mais de 40% no mercado nas últimas semanas por falta dos produtos novos mais vendidos.
Mas a crise de confiança com a nossa moeda e que levou a uma desvalorização cambial adicionou um componente inflacionário mais potente via mercado de alimentos e combustíveis, tornando o controle da inflação pelo Bacen ainda mais complexo. Isto vai obrigar o BC a implementar uma política de juros agressiva em um momento em que a recuperação cíclica da economia ainda não está consolidada e que certamente vai pesar no final de 2021 e, com maior certeza em 2022.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-que-esperar-da-segunda-metade-do-ano.ghtml
Medidas para elevar popularidade de Bolsonaro já custam R$ 67 bi
Para economistas, medidas são populistas e um risco para o equilíbrio fiscal; equipe econômica se prepara para Orçamento mais difícil em uma década
Fábio Pupo / Folha de S. Paulo
Medidas sinalizadas para impulsionar a popularidade do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já demandam R$ 67 bilhões dos cofres públicos em 2022. O impacto fiscal deve ser ainda maior nos anos seguintes.
O presidente mobiliza ministros a aumentar gastos no ano em que tentará a reeleição ao Palácio do Planalto. Somam-se ao movimento também pressões do Congresso por mais recursos públicos.
A escalada pressiona o time do ministro Paulo Guedes (Economia) contra as regras fiscais e leva interlocutores a constatarem que o Orçamento para 2022 é o mais desafiador dos últimos dez anos.
Fazem parte da conta itens como a isenção para o diesel no próximo ano (R$ 26 bilhões, segundo Bolsonaro), a expansão no Bolsa Família (de ao menos R$ 25 bilhões, segundo Guedes), a reforma tributária (que subtrai R$ 7,7 bilhões de estados e municípios) e o aumento no funcionalismo (que a equipe econômica tenta limitar a R$ 5 bilhões).
Acomodar todos os números nas contas de 2022 é uma tarefa que tem gerado incertezas entre os analistas, assim como percepção de risco sobre o real cumprimento de regras fiscais.
Pessoas próximas ao ministro já admitem que se preocupar neste momento "faz sentido". Os receios se acentuaram nos últimos dias.
Após o governo começar a discutir uma proposta para parcelar os precatórios —dívidas de sentenças judiciais contra a União–, driblando o teto de gastos ao jogar a despesa de 2022 para anos seguintes e já provocando questionamentos de especialistas, aliados do governo no Congresso foram além.
Eles começaram a debater não só o parcelamento dos precatórios, como a retirada dessas obrigações do teto de gastos, para dar espaço a outras despesas. O teto limita o aumento das despesas à inflação do ano anterior.
O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), afirmou em entrevista ao jornal Valor Econômico que R$ 19 bilhões poderão ser liberados com a iniciativa.
Étore Sanchez, economista-chefe da Ativa Investimentos, disse considerar exaustiva a necessidade de sucessivos alertas a clientes sobre esses movimentos.
"Todo tipo de contorno ao teto de gastos, ainda mais nesse momento, é um retrocesso no arcabouço fiscal brasileiro, que gerou tantos benefícios em passado recente", afirmou.
"A dicotomia entre determinadas alíneas do Orçamento e os precatórios é inexistente, trata-se apenas de uma estratégia populista para melhorar a aceitação dessa proposta que não tem o menor cabimento econômico", disse.
A percepção de risco do mercado é alimentada pela aceleração das promessas de Bolsonaro sem a devida explicação de como as medidas atenderão as regras, em um ambiente institucional já tumultuado pelo próprio presidente –que fala até em não cumprir a Constituição –, e também pela ausência de um discurso público e firme da equipe econômica para acalmar as preocupações sobre a política fiscal.
Guedes tem dado sinalizações no sentido contrário. Recentemente, defendeu "arriscar" uma perda anual permanente de R$ 30 bilhões da arrecadação dos cofres públicos no projeto de Imposto de Renda.
O texto passou por sucessivas transformações em busca de apoio para ser aprovado ainda neste ano e dar respaldo jurídico à turbinada do Bolsa Família e acabou sendo chamado por Marcos Cintra, ex-secretário da Receita de Guedes, de "confuso, burocrático, inconsistente e inoportuno".
Depois disso, o ministro ainda reembalou a ideia criticada pelo mercado em 2021 para alterar regras de pagamentos de precatórios e abrir espaço no teto de gastos para outras despesas, reavivando discussões sobre calote e pedala.
Caio Megale, economista-chefe da XP, afirmou há pouco mais de uma semana que as eleições demandam cautela ao serem observadas melhoras recentes em indicadores como a arrecadação e a dívida pública.
"Discussões sobre o aumento dos gastos para o ano eleitoral, especialmente se isso incluir mudanças ao atual quadro fiscal, podem erodir rapidamente esses ganhos de curto prazo", afirmou em relatório.
Enquanto a equipe econômica reafirma que todas as despesas recorrentes ficarão sob o teto de gastos, as dúvidas continuam e a conta cresce.
Na quarta-feira 4), após meses de trabalho da equipe econômica para elevar o valor médio do Bolsa Família de R$ 190 para algo próximo de R$ 300, Bolsonaro defendeu publicamente que o ideal é o programa pagar um valor médio de R$ 400.
Tanto o presidente como aliados continuam pressionando por mais, ignorando que o valor de R$ 300 caberia no teto de gastos já ocupando praticamente todo seu espaço de R$ 30 bilhões em 2022.
Na sexta-feira (6), Bolsonaro também disse que planeja desonerar o óleo diesel em 2022.
"Gostaria de zerar o imposto federal do diesel a partir do ano que vem. Vou me empenhar sobre isso. Não posso garantir, não é uma promessa, é um estudo", afirmou a apoiadores na frente do Palácio da Alvorada.
De olho no apoio dos caminhoneiros, Bolsonaro já lançou repetidas iniciativas para diminuir o preço dos combustíveis e, em janeiro, havia falado que a desoneração do diesel custaria R$ 26 bilhões em 2022.
Há pouco mais de uma semana, Bolsonaro ainda sinalizou a criação de um vale-gás e apontou o dedo para a Petrobras, dizendo que ela tem R$ 3 bilhões disponíveis para isso.
As ações da estatal caíram na Bolsa no dia útil seguinte, mesmo após a empresa explicar que os valores mencionados seriam uma parte dos dividendos a serem pagos à União —que por sua vez poderia usar os recursos em medidas.
Nesse caso, Bolsonaro tenta endereçar outro problema para sua popularidade —o preço do gás.
O valor médio do botijão atingiu o maior patamar neste ano desde que a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis) começou a compilar os dados, em 2004, o que tem multiplicado relatos de famílias cozinhando a lenha.
Diante da maior percepção de risco, Guedes procurou ressaltar nos últimos dias a interlocutores que não dá respaldo à flexibilização do teto e à retirada dos precatórios da limitação. Segundo ele, sua proposta de parcelamento tem como objetivo evitar essa medida extrema.
Segundo ele, todas as despesas regulares de 2022 serão abrigadas sob o teto. Isso inclui a expansão do Bolsa Família e um eventual reajuste para o funcionalismo.
Para cumprir as normas, o Ministério da Economia tenta limitar as despesas. Parte desse objetivo está na busca por barrar um grande aumento para servidores no próximo ano.
A pasta planeja, por exemplo, conter a expansão da folha de pagamento a R$ 5 bilhões ou até menos. Esse número é defendido como "mais razoável" agora do que os R$ 15 bilhões ventilados anteriormente, correspondentes a 5% de reajuste, embora seja ressaltado que nada está decidido.
Além de todas as demandas diretas do presidente, deve ser motivo especial de problema para as contas de 2022 as chamadas emendas de relator, instrumentos usados para destinar valores extras a medidas de interesse de deputados —em geral, da base aliada do governo.
Os recursos foram de aproximadamente R$ 20 bilhões em 2020, o que levou a uma disputa de números com o Executivo. Ainda não se sabe qual será o tamanho da conta em 2022, mas a equipe econômica admite se preocupar com ela.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/08/medidas-para-elevar-popularidade-de-bolsonaro-ja-custam-r-67-bi.shtml
'Não há genocídio que não tenha sido precedido por discursos de ódio'
Em entrevista exclusiva ao portal Pública, Alice Wairimu Nderitu, do Escritório para a Prevenção do Genocídio da ONU explica por que o Brasil está no radar da instituição
IHU Online / Agência Pública
Garimpeiros ilegais atacando indígenas Yanomami, na região de Palimiu (RR), e Munduruku, em Jacareacanga (PA). A tentativa de regularizar a mineração nas terras indígenas (TIs), sem consulta prévia aos afetados. A total paralisação dos processos de demarcação de TIs pelo Ministério da Justiça e pela Funai – que vem sistematicamente atuando contra a proteção jurídica dos territórios. A falta de ação do governo federal para proteger as populações indígenas durante a pandemia de Covid-19.
A forma como a gestão de Jair Bolsonaro lida com as populações indígenas vem chamando atenção da comunidade internacional e provocando reações de organismos de proteção aos direitos humanos. Uma denúncia contra Bolsonaro por incitar o genocídio e promover ataques sistemáticos contra os povos indígenas do Brasil está sob inédita análise preliminar do Tribunal Penal Internacional (TPI), e outras representações contra o mandatário foram apresentadas ao órgão. Paralelamente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu uma série de medidas cautelares, solicitando que o Brasil aja para proteger diversos povos indígenas, incluindo os Yanomami e Ye’kwana, os Munduruku, além dos Guajajara e dos Awá.
Em junho, o Brasil sob Bolsonaro alcançou mais um feito inédito: pela primeira vez, o país foi citado no âmbito do Escritório para a Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger da Organização das Nações Unidas (ONU). A menção foi feita pela conselheira especial para a Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, em seu discurso na última Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Um mês antes, outros oito relatores especiais das Nações Unidas já haviam cobrado explicações do Itamaraty sobre ataques contra povos indígenas no país.
Em sua fala perante o Conselho, a queniana destacou estar “particularmente preocupada com os povos indígenas” na região das Américas. “No Brasil, Equador e outros países, eu peço aos governos para proteger comunidades em risco e garantir justiça para crimes cometidos”, disse.
À Pública, a conselheira especial da ONU afirmou que sua equipe mantém interlocução com movimentos sociais no Brasil e que pretende visitar o país. Segundo ela, a inclusão do Brasil se deve a “processos que não asseguram o Consentimento Livre, Prévio e Informado [de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais], preocupações com a situação das terras indígenas e da demarcação, além de problemas ligados a instituições nacionais de proteção, especialmente a FUNAI”.
Em entrevista exclusiva, Wairimu Nderitu destacou a tese do “Marco Temporal” e os projetos visando à regularização da mineração em TIs como preocupações especiais, já que podem levar ao “despejo” das populações indígenas. A conselheira apontou também preocupação com o aumento do discurso de ódio contra populações vulneráveis no país e cobrou que o Brasil cumpra a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê o Consentimento Livre, Prévio e Informado.
Alice Wairimu Nderitu (Foto: ONU | Reprodução)
A entrevista é de Bárbara D'Osualdo e Rafael Oliveira, publicada por Pública, 03-08-2021.
Eis a entrevista.
Em sua fala na 47ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, o Brasil foi citado pela primeira vez por um membro do Escritório para a Prevenção de Genocídio da ONU. O que motivou a inclusão do Brasil em sua fala? Você recebeu alguma informação recente que a motivou?
A minha equipe já havia realizado uma visita ao Brasil em dezembro de 2018, com o objetivo de avaliar a situação no país da perspectiva do meu mandato, que é a Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger. A visita foi conduzida com base nos fatores de risco e indicadores que nosso escritório utiliza como parâmetro para a análise de crimes de atrocidade. Essa missão de avaliação foi motivada por relatórios iniciais que recebemos por meio de interações periódicas com representantes de comunidades vulneráveis, especialmente grupos indígenas e de afrodescendentes, além de organizações da sociedade civil e equipes da ONU no Brasil.
Meu mandato busca, antes de tudo, a identificação de comunidades vulneráveis, dos riscos aos quais elas estão expostas e a identificação de opções de como resolver essas questões. Então, em minha fala no Conselho de Direitos Humanos, eu mencionei minha preocupação com relação às populações indígenas no Brasil e em outros países da América do Sul, com base no trabalho que eu acabei de mencionar, conduzido pelo meu predecessor, além de preocupações recentes e relatos que temos recebido sobre supostos déficits no sistema de proteção dessas populações. Especificamente no caso do Brasil, essas reclamações se referem a processos que não asseguram o Consentimento Livre, Prévio e Informado [de povos indígenas e comunidades tradicionais], à situação das terras indígenas e de sua demarcação, além de problemas ligados a instituições nacionais de proteção, especialmente a Funai.
Assim como em outros países da região, meu escritório acredita que é extremamente importante que o Brasil enfrente déficits duradouros na implementação de obrigações legais nacionais e internacionais. E, mesmo que a consulta prévia [às comunidades indígenas] seja um requerimento legal em virtude de obrigações internacionais, como a Convenção 169 da OIT, eu recebi alertas de que, no Brasil, isso tem sido limitado a um pequeno número de processos.
Ao longo dos anos, meu escritório recebeu também alertas sobre o processo de demarcação de terras indígenas e sobre a aplicação da tese do Marco Temporal a todos os processos de demarcação. Eu entendo que, sob essa tese, o direito à terra é atribuído àqueles que a ocupavam no momento da adoção da Constituição Federal de 1988, não àqueles com direitos ancestrais sobre ela. Isso pode levar à expropriação legal de um número significativo de terras ancestrais de seus donos originais. Eu recebi também alertas sobre o impacto de regulamentações da extração de recursos naturais, contribuindo ainda mais para o despejo dos povos indígenas de suas terras.
Alguns desses problemas são específicos do Brasil, mas seguem padrões gerais observados na região [América do Sul]. Por exemplo, eu recebi denúncias sobre falhas nos processos de Consentimento Livre, Prévio e Informado planejados ou implementados em diversos países. Isso não é apenas contra obrigações internacionais sob a Convenção 169 da OIT, mas também contra o texto das constituições de diversos países da região, que protegem os direitos das populações indígenas.
No contexto da Covid-19, ao redor do mundo a pandemia contribuiu para tornar a situação de populações vulneráveis ainda mais vulnerável. E, em muitos lugares, comunidades minoritárias têm sido acusadas erroneamente de espalhar o vírus ou usadas como bodes expiatórios em lugares onde a resposta do governo nacional à pandemia é limitada. Isso também aumenta o discurso de ódio contra elas. Eu recebi também denúncias de que isso está acontecendo com comunidades indígenas em toda a região. Por isso, eu senti uma grande necessidade de falar sobre o Brasil no Conselho de Direitos Humanos. E eu acho que é importante que nós multipliquemos os esforços para enfrentar essas dinâmicas.
Nos últimos meses, a Suprema Corte brasileira determinou que o governo federal tomasse uma série de medidas para proteger as populações indígenas durante a pandemia de Covid-19. O governo não cumpriu boa parte delas, no entanto. Essa resistência do governo brasileiro em proteger as populações indígenas, mesmo após decisões judiciais, é também um motivo de preocupação para vocês?
Sim. Como eu mencionei na resposta anterior, minha preocupação se baseia em denúncias que o meu escritório tem recebido com muita frequência. Eu não recebi nenhum detalhe sobre as ações que têm sido tomadas em resposta às preocupações com a proteção [das populações indígenas]. Mas eu sei que propostas de lei que estão em avaliação no Congresso podem contribuir com o agravamento da situação das comunidades indígenas.
Por isso, eu gostaria de pedir ao governo e a todos no Congresso, às pessoas em posições de responsabilidade, que considerem as obrigações do Estado sob a Convenção 169 da OIT, além das obrigações internacionais de prevenção que emanam da Convenção de 1949 para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Todos os países, incluindo o Brasil, se comprometeram a proteger suas populações do genocídio, dos crimes de guerra, da limpeza étnica e de crimes contra a humanidade com a adoção do princípio da Responsabilidade de Proteger no documento final da Cúpula Mundial de 2005.
Durante alguns anos, o próprio Brasil conduziu os esforços para solucionar as falhas na implementação desse princípio na Líbia, na chamada iniciativa “Responsibility while Protecting” (“Responsabilidade ao Proteger”). É esse tipo de papel de liderança que eu encorajo as autoridades brasileiras a ocupar quando se trata de proteger a própria população. E eu estarei e me manterei à disposição para dar apoio a esses esforços como for necessário.
Meu escritório trabalhou muito bem no passado com o Ministério Público [Federal], que, pelo que eu sei, é um grande defensor dos direitos das populações indígenas. E eu vejo que meus predecessores também estiveram em contato com diversas organizações comunitárias de base, trabalhando continuamente para defender os direitos dos povos indígenas e pela sua proteção. Então é extremamente importante que aqueles no alto escalão não apenas repliquem os esforços que estão sendo feitos no nível local, mas também conduzam esses esforços o máximo possível.
O Brasil está oficialmente sob observação pelo seu escritório?
Eu diria que nós observamos o mundo todo. Inclusive, temos uma reunião daqui a duas horas para analisar o mundo todo com base no nosso sistema para a prevenção de atrocidades, que utiliza fatores de risco para analisar a situação dos países. Esses fatores de risco são fatores que existem em um país, região ou espaço onde um genocídio ocorreu no passado. Então nós vemos que há certos fatores recorrentes como pouca governança, lideranças autocráticas, presença de milícias armadas, planos visando populações étnicas, religiosas ou raciais específicas – esse tipo de coisa.
Então nós analisamos esses países e, com base nessas análises, decidimos em que situação esse país se encontra. E é com base nessa análise que nós decidimos que tipo de ação tomar com cada país. Então, sim… quando fazemos nossa análise, o Brasil é realmente um dos países sobre os quais temos que discutir em relação às populações indígenas e às populações vulneráveis em geral.
Você já mencionou isso rapidamente antes, mas gostaríamos de desenvolver um pouco mais a questão: há uma série de projetos de lei considerados “anti-indígenas” por especialistas tramitando no Congresso brasileiro. Eles incluem a exploração de terras indígenas, a legalização do garimpo e o enfraquecimento da demarcação de terras. Por que razão isso é um motivo de preocupação para o seu escritório?
É um motivo de preocupação porque populações indígenas no mundo todo correm risco de extinção. E parte do motivo tem a ver com leis como as que você descreveu. Leis que funcionam para separar os povos indígenas de suas terras ancestrais. Leis que se utilizam do fato de que terras ancestrais geralmente não têm documentos de posse ou qualquer tipo de papel que você consiga obter para dizer que a terra é sua, a não ser o fato de que seus ancestrais estão enterrados ali e que é onde você tem vivido.
[Além disso,] populações indígenas muitas vezes não têm o tipo de representação de que precisam para que suas vozes sejam ouvidas nos espaços que tomam decisões sobre elas. Isso significa que decisões são tomadas por elas, sobre elas, sem elas. Então é extremamente importante que nós façamos algo quanto a isso.
Em seu discurso, você enfatiza a importância de atuar preventivamente para evitar genocídios. Você pode falar um pouco sobre isso?
Muito do trabalho que eu faço, que é feito pelo meu escritório, é focado na prevenção. Nós apagamos muitos incêndios, não esperamos que as situações se tornem genocídios. Nós trabalhamos duro para garantir que isso não aconteça. Meu maior pesadelo seria que um genocídio acontecesse sob a minha supervisão. Quando se trata de riscos, a prevenção é a melhor resposta.
Meu papel é identificar riscos com base em um conjunto de fatores e indicadores que, como eu descrevi antes, são usados na nossa análise sobre crimes de atrocidade. Esse documento específico aborda não só genocídio, mas também crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade.
A partir dessa análise, meu escritório procura dar suporte aos Estados para promover medidas de proteção. No caso do Brasil, nós faríamos o que já fizemos com vários outros países. Isso começa, logicamente, com avisos iniciais, advocacy, quando e onde há preocupação. Na minha fala no Conselho de Direitos Humanos, eu mencionei diversas situações com as quais nos preocupamos. Isso é parte do trabalho de advocacy. Como parte do meu mandato, eu faço o máximo possível para engajar Estados membros, para encorajá-los a não medir esforços para proteger aqueles que consideramos correr mais risco.
Mas advocacy é apenas o primeiro passo, e normalmente não é o suficiente. É importante que as autoridades nacionais ajam em resposta aos alertas de maneira e no tempo apropriados. Porque, afinal de contas, isso é um compromisso que todos os Estados membros, incluindo o Brasil, assinaram em 2005, quando adotaram [o princípio da] Responsabilidade de Proteger.
Eu não estou em posição de aconselhar diretamente sobre as ações específicas que podem ser tomadas no caso do Brasil, pois eu ainda não tive a oportunidade de discutir essas questões com autoridades nacionais ou de visitar o país – espero visitar o país e vou fazer esse requerimento. Mas existem linhas gerais de conselhos que são conhecidas por todos os Estados membros. Em termos de assegurar a implementação de convenções internacionais, como a 169 da OIT; em termos de fortalecer as instituições nacionais de proteção, assim como garantir que todas as comunidades vulneráveis possam opinar em assuntos que as afetam; e em termos de garantir que não haja impunidade para crimes cometidos contra elas. E, claro, todas essas [questões] são críticas, nenhuma é mais importante que a outra.
Uma questão com a qual meu escritório pode ajudar diretamente hoje é o enfrentamento dos discursos de ódio. Isso é uma preocupação no Brasil assim como em diversos outros países e que se deteriorou muito no contexto da pandemia de Covid-19. Meu escritório é um ponto focal no sistema das Nações Unidas para o enfrentamento de discursos de ódio. Não há um único genocídio – o Holocausto, qualquer crime de guerra, crime contra a humanidade – que não tenha sido precedido de discursos de ódio.
Por isso, nós trabalhamos para auxiliar na implementação da Estratégia e do Plano de Ação das Nações Unidas contra o Discurso de Ódio, que foram lançados pelo secretário-geral em 2019. Nós temos ajudado as equipes da ONU nos países a desenvolver seus próprios planos de ação para essa questão. Isso é algo que também podemos fazer no Brasil. Nós temos ajudado a sociedade civil e também agências governamentais a elaborar seus próprios planos de ação contra o discurso de ódio. É algo que podemos fazer imediatamente.
Outra coisa que podemos fazer imediatamente é trabalhar com a equipe da ONU no país para desenvolver um sistema próprio ao Brasil de análise para a prevenção de atrocidades, mapear os fatores de risco que existem no Brasil a partir de uma perspectiva brasileira.
Quais lições aprendidas ao longo de sua trajetória como pacificadora e mediadora de conflitos no Quênia e em outros países africanos podem se aplicar ao caso brasileiro?
Eu aprendi que não há muito que possa ser alcançado pela força, com proeza militar. Que usar armas não resolve um problema, que ele continua lá e não avança. É extremamente importante que os governos ouçam e que o façam com o objetivo de agir sobre o que ouviram. E sei, da perspectiva do meu mandato, da prevenção de crimes de atrocidade, que a inclusão e a promoção de vozes plurais também são fundamentais.
Em termos de sustentabilidade de qualquer ideia a ser discutida, [é preciso] incluir todos os segmentos da população – mulheres, comunidades indígenas, LGBTs, todo mundo que geralmente é excluído. Quando você os inclui na tomada de decisão, você garante a sustentabilidade das decisões que toma, porque mais pessoas a validarão. Isso é extremamente importante.
Já em termos de avaliação de situações [de risco] e análise, é importante ouvir o maior número possível de interlocutores – em diferentes ramos do governo, na capital, nas províncias, pessoas da sociedade civil, de organizações comunitárias. Todo mundo tem algo a dizer.
Da mesma forma, do ponto de vista da resposta, a prevenção constitui uma responsabilidade coletiva. E, geralmente, quanto mais amplo for o “kit de ferramentas”, maior será o número de atores em posição de agir. O que precisamos é de boa sinergia e de coordenação. Assim, o todo pode se tornar maior do que a soma de suas partes.
Outra coisa que aprendi é que a imprensa livre é extremamente crucial para o sucesso na prevenção do genocídio e de crimes de atrocidade. Como diz Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, é difícil encontrar um lugar onde haja uma imprensa livre e onde também haja fome coletiva. Se ela é de fato livre, ela é capaz de se articular, e essas preocupações são suficientes para que uma ação seja tomada. É a mesma coisa com conflitos: se você tiver uma imprensa livre, que seja livre para expressar que há algo acontecendo no país e que é extremamente importante agir, então se torna muito mais fácil resolver esses problemas.
Outra coisa que aprendi é que muitos conflitos são localizados. Na minha experiência, e em pesquisas também, se você olhar para 90% dos conflitos violentos que acontecem, eles ocorrem entre comunidades no nível local. Portanto, no cumprimento do meu mandato, pretendo colocar muita ênfase no envolvimento das comunidades de base em ações preventivas. E isso inclui apoiar grupos que representam os interesses das mulheres e promovem seus direitos para [que possamos] avançar, inclusive na prevenção de atrocidades.
Eu gostaria de concluir apenas dizendo que as lições aprendidas cresceram com a inspiração de muitas pessoas, pessoas em comunidades que fazem tudo o que podem e muitas vezes têm sucesso em causar mudanças nos lugares em que vivem. Eles realmente são os verdadeiros defensores da paz. Eu vi esse compromisso inspirador, a força de vontade de tantos jovens em todo o mundo que pensam que um mundo melhor é possível e que desejam ser agentes ativos de mudança
Eu acabei de voltar da Bósnia e Herzegovina, e o que acabei de descrever, as lições que eu aprendi, eu também vi por lá na prática. Vi comunidades que, na ausência de lideranças que se unam para reconciliar o país, se reúnem e decidem o que vão fazer dali para a frente. Então, eu realmente gostaria de encorajar as pessoas no Brasil a continuar se manifestando, a continuar nos escrevendo. Elas têm escrito muito para o nosso escritório através do e-mail disponível em nosso site, e eu as encorajo a continuar.
Há uma denúncia apresentada ao Tribunal Penal Internacional contra o presidente brasileiro por genocídio contra a população indígena em análise preliminar, e outras denúncias foram apresentadas na corte. Além disso, órgãos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos também já demonstraram preocupação com o cenário para os indígenas do Brasil. Essa é uma preocupação generalizada da comunidade internacional?
Em relação ao Tribunal Penal Internacional, é uma jurisdição completamente separada de nós. E normalmente nosso escritório não determina se situações específicas, em curso ou do passado, realmente se qualificam legalmente, seja como crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou crimes que podem ir para o TPI. Já existem mecanismos legais para isso, que fazem essa determinação. Portanto, o que fazemos é avaliar se existe o risco de algum desses crimes ocorrer em uma situação específica, e trabalhamos para prevenir ou parar esses crimes – caso haja suspeita de que já estejam ocorrendo. E então, é claro, por causa do nosso advocacy, outras instituições como o TPI podem pegar o caso. No entanto, devo dizer, só sei o que está acontecendo em nosso escritório. Não sei o que outras organizações estão dizendo sobre o Brasil, porque estou falando de preocupações muito específicas que foram levantadas pela avaliação que já foi realizada pelo nosso escritório.
Você mencionou que o Brasil é signatário de uma convenção sobre o genocídio. O que pode ser feito caso o governo não cumpra as obrigações que assumiu?
Depois de reunirmos informações sobre situações que despertam preocupação, a fim de avaliar o risco de crimes de atrocidade, nós realizamos missões de campo para consolidar nossa análise. Nós precisamos consolidar nossa análise para compreender situações específicas em questão, mas sem realizar investigações criminais sobre incidentes específicos. Não temos nenhum mandato para instruir, por exemplo, as pessoas sobre o que fazer.
O TPI, por exemplo, é um órgão judicial independente que não faz parte da ONU. E temos um acordo entre a ONU e o TPI, que estabelece o quadro jurídico de cooperação entre as nossas duas instituições. Mas, a partir daí, acho que seria prematuro da minha parte apontar o que poderíamos fazer. Acho que, no momento, o que precisamos fazer é obter o máximo de informações possível e, em seguida, mantê-los informados, porque posso garantir que estarei sempre disponível para falar com vocês. E para mantê-los informados sobre tudo o que nosso escritório está fazendo.
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Fonte: IHU Online / Agência Pública
http://www.ihu.unisinos.br/611707-nao-ha-um-unico-genocidio-que-nao-tenha-sido-precedido-por-discursos-de-odio
A esperança que habita nos cantos do Brasil desolado pela pandemia
Além de um estado de luto constante, a pandemia trouxe fome para milhões de brasileiros. A desigualdade é desoladora, e parece não haver saída. Mas basta olhar para os cantos para ver a possibilidade de outros Brasis
Ynaê Lopes dos Santos / DW Brasil
Temos motivos de sobra para estarmos cansados, desgostosos, exaustos e profundamente tristes.
Ainda atravessamos uma pandemia que transformou a vida de todos/as, nos obrigando a enfrentar a morte e o medo dela o dia todo, todos os dias. Num estado de luto constante, mesmo quando não conhecemos nenhum dos mais de mil mortos do dia. E se não bastasse termos que andar de mãos dadas com a morte, para muitos de nós a vida de antes não existe mais.
São as horas em frente às telas, na tentativa de reinventar as conexões. São sorrisos que agora vislumbramos pelo canto ou pelo brilho dos olhos, quando muito. São os abraços engasgados, como nós na garganta, que transformaram os cotovelos em objetos de afeto e afeição. Entrar num transporte público com inúmeros receios. Perder o emprego, o chão. É olhar para uma aglomeração e achar estranho, saber ser errado, mesmo com tanta saudade. É não saber direito onde estamos, nem para onde iremos. E mesmo assim, continuar caminhando.
É também a volta da fome. Muitos de nós estamos vivendo uma enorme fome de diversão e arte – aspectos que sempre fizeram parte das "coisas boas da vida". Mas essa é uma fome que tem CEP certo, e que, infelizmente, não é a pior de todas.
O Brasil vive o agravamento da fome por sobrevivência. Nos últimos dias têm aparecido no noticiário pessoas formando fila para pegar ossos de boi, tendo em vista os preços exorbitantes da carne. O nosso arroz com feijão (combinação que garante a base alimentar de milhões de brasileiros) está tão caro, que agora temos uma versão "mais pobrinha", composta por fragmentos de arroz e bandinhas de feijão. Grãos fracionados que, embora liberados para o consumo humano, demonstram bem a situação que estamos vivendo: a falta de inteireza. E também falta leite, pão, dinheiro para o gás de cozinha.
Dentre os 210 milhões de brasileiros, aproximadamente 19 milhões estão passando fome. Um dos países que mais produz carne e grãos em todo o mundo permite que quase 10% de sua população esteja faminta. Uma constatação que, de tão perversa, chega a ser irônica.
De fato, estamos dentro de um quadro desolador, no qual a desigualdade é nosso denominador comum, e nem sei bem o quanto isso nos indigna. Parece não haver saída. No entanto, a sobrevivência de uma grande parcela da população brasileira é a constatação da perversidade do sistema em que vivemos, mas também a possibilidade de pensarmos a vida e construirmos um mundo a partir de outras possibilidades.
Se olharmos com atenção para os cantos, como bem nos lembra o belo samba de Dona Ivone Lara, teremos uma nova perspectiva. Que não anula a violência que nos cerca, nem a fome que nos assola, mas que nos dá um sopro de esperança, nos lembrando que também somos feitos de (em)canto.
Esta semana começou com o dia 25 de julho, o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. O dia de mulheres que, historicamente, estiveram fadadas a sobreviver… Mulheres que só puderam ver a esperança nos cantos, e não no centro de suas vidas. A escolha por trás da comemoração deste 25 de julho tem uma história toda especial. A história de Tereza de Benguela, uma mulher escravizada (não sabemos ao certo se nascida no Brasil ou em alguma sociedade africana), que em meados do século 18 se tornou a liderança máxima do Quilombo de Quariterê, no que hoje é o estado do Mato Grosso.
Ao longo de quase 20 anos, a rainha Tereza de Benguela chefiou uma comunidade que se colocava abertamente contrária à sociedade escravista e colonial da época. O quilombo era formado por homens, mulheres, negros e indígenas que produziam alimentos para subsistência, além de criarem animais de pequeno porte e plantarem algodão. Em Quariterê não havia escravidão, e ninguém passava fome. E se isso não bastasse, o quilombo era governando por meio de um sistema parlamentar, que reconhecia em Tereza de Benguela a autoridade máxima.
O que se viu naquele "canto do Brasil" foi uma outra forma de viver. Sob o comando de uma mulher negra houve esperança, e também outra experiência de vida marcada pela liberdade e pela inteireza. Foi possível experimentar o que Beatriz Nascimento chamou de paz quilombola.
E mesmo que o fim da rainha de Quariterê tenha sido trágico, sua história é um lembrete de que outros mundos são possíveis. E Tereza de Benguela não foi exceção. Nos cantos do Brasil, temos as histórias de inúmeras mulheres (e de muitos homens) cujo norte não era o medo de se tornarem menos ricos. Histórias de sobrevivência, mas também de reinvenção, de resistência. Outros Brasis que foram imaginados e sonhados.
Essas outras possibilidades de Brasil atravessaram toda nossa história e chegaram aos dias de hoje. Estão na memória de Marielle Franco, no "Baile de Favela" de Rebeca Andrade (prata nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020), nas pesquisas científicas de Jaqueline Goes de Jesus, nos bordados de Rosana Paulino, na voz rouca e certeira de Elza Soares, e nas lutas diárias de tantas outras mulheres rememoradas neste 25 de julho.
Ainda há esperança. Que nossos cantos possam inundar o Brasil inteiro.
Ynaê Lopes dos Santos é mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/a-esperan%C3%A7a-que-habita-nos-cantos-do-brasil/a-58686142
Bolsonaro aposta em pacote econômico como última trincheira para se reeleger
Governo prepara medidas como reajuste do Bolsa Família e programas de qualificação profissional para tentar frear queda de popularidade e chegar mais competitivo às eleições do próximo ano
Adriana Fernandes / O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - A economia é hoje a principal trincheira e última linha de defesa do presidente Jair Bolsonaro para tentar garantir sua reeleição em 2022. Com apoio do Centrão, o presidente vem montando um cardápio de medidas econômicas para evitar maior perda de popularidade, na esteira das revelações feitas pela CPI da covid-19, e chegar competitivo ao pleito do próximo ano.
Especialistas ouvidos pelo Estadão apontam que a incógnita é saber se o presidente e os políticos aliados do Centrão conseguirão arremeter a tempo o “avião da economia” para que os efeitos da retomada atual, até agora muito desiguais, cheguem até a maior parte da população.
No cardápio de “bondades”, estão a elevação para R$ 300 (ou mesmo um valor acima) do benefício médio do Bolsa Família (que hoje é de R$ 190); o pacotão do emprego com um bônus de R$ 550 para a qualificação de jovens e informais; aumento da faixa de isenção e correção da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e desoneração forte do imposto pago pelas empresas; novas medidas de desoneração do diesel; reajuste dos salários dos servidores; e ainda um novo programa de refinanciamento de dívidas tributárias.
Todas essas medidas estarão combinadas com um Orçamento irrigado de emendas parlamentares para aliados, fundo eleitoral mais gordo, folga maior no teto de gastos (regra da Constituição que fixa um limite anual para os gastos) e medidas que vão colocar dinheiro extra no caixa no ano que vem, como leilões de concessões já programados.
Um ponto de inflexão será a divulgação do relatório da CPI da Covid, prorrogada por mais 90 dias e que pode dar combustível a um quadro mais turbulento. “É justamente o momento em que o governo estará negociando a votação do Orçamento e o Bolsa Família”, chama a atenção Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria. Na sua avaliação, a economia deve, ao menos, ajudar a fazer o movimento de estancar a perda de popularidade – “que já é muito relevante”. Para Cortez, olhando para o quadro eleitoral, o governo Bolsonaro ainda é muito competitivo e, em parte, isso tem como explicação a economia.
Os economistas apontam que o ganho do cenário econômico, por si só, ainda não é capaz de reverter o processo de aumento de rejeição e nem o reforço do Bolsa Família seria uma “bala de prata” capaz de levar o presidente ao segundo turno com chances de vitória. Estudos sobre impacto de programas de transferência de renda na eleição mostram que não é trivial limitar a faixa de quem ganha e de quem perde. Além disso, o auxílio emergencial inicial de R$ 600 colocou o sarrafo lá em cima. Com a diminuição do valor para R$ 250, em média, o benefício perdeu o poder de proteção da popularidade que tinha em 2020.
Se a chave do cofre e o comando da agenda do Congresso pelo Centrão favorecem a estratégia econômica pró-eleição, a aceleração da inflação, o desemprego e o risco de racionamento de energia em 2022 jogam contra ela. Não por acaso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, está tentando implementar um programa de emprego robusto, com recursos de fora do Orçamento, vindos do Sistema S, e vem abandonado os pilares da sua política liberal para atender os pedidos de Bolsonaro e do Centrão.
“Uma das variáveis mais importantes para a popularidade é o emprego, e esse ainda vai reagir. Parece que ainda tem muita água para rolar embaixo da ponte, principalmente quando a economia reabrir mesmo e o emprego começar a andar”, avalia Caio Megale, economista-chefe da XP. Segundo ele, o foco no programa de qualificação da mão de obra é fundamental para o governo.
Responsável pelas pesquisas de avaliação de popularidade na XP, Victor Scalet diz que o modelo de aprovação presidencial usado pela companhia, que contém dados desde 1996, indica que a avaliação do presidente deveria subir para cerca de 40 a 45 pontos de aprovação no período eleitoral de 2022. Mas houve uma quebra da correlação que existia antes entre a melhora da pandemia e a avaliação do presidente. “A correlação, que vinha muito forte desde o começo da pandemia, quebrou porque a avaliação negativa dele continua subindo.” A CPI da pandemia acabou “fazendo preço”, no jargão do mercado.
Na corrida eleitoral, outro fator que pode jogar contra ou a favor é que as eleições estão sendo decididas, cada vez mais, perto do dia do pleito. “Vamos percorrer uma eternidade até iniciar a disputa eleitoral de 2022. Um tempo longo como esse dificulta qualquer tipo de previsão a priori”, diz o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung. Segundo ele, na saída de uma crise da envergadura da pandemia, o quadro é muito mais complexo. “A dita polarização atual pode derreter o processo e melhorias econômicas, se não chegaram à população, não têm impacto na decisão eleitoral.”
5 Perguntas para Silvia Matos, coordenadora técnica do Boletim Macro do Ibre/FGV
1. Qual será o papel da economia nas eleições?
A economia é importante para a eleição. Mas o espaço de manobra para aumentar a satisfação das pessoas e reduzir o desconforto delas é pequeno. O governo vai tentar atuar nessa direção, mas a gente sabe que existem muitas restrições para fazer isso. O primeiro aspecto é que uma recuperação econômica mais forte é muito inflacionária. Aí, o tiro sai pela culatra. Se tivesse um espaço para crescer sem acelerar a inflação, seria mais tranquilo para qualquer política.
2. Por que esse espaço é muito pequeno?
À medida que a economia abre depois da pandemia, como temos visto em outros países, há uma volta da inflação de serviços, o que é o natural mesmo. Se fosse só simplesmente uma aceleração de serviços, com acomodação de outros preços, poderíamos de alguma forma conviver com uma inflação um pouco mais alta temporariamente. Mas o problema todo é que, no Brasil, temos visto há algum tempo vários fatores que podem colocar a inflação acima de 7% neste ano. Temos a questão da energia, por exemplo, que pode ser um problema para o ano que vem na eleição.
3. Qual seria o maior risco no caso da energia?
Se não chover realmente no período que deveria chover, no final do ano, o risco de racionamento se intensifica ainda mais. Os reservatórios estão em níveis muito baixos. Colocar tarifa lá em cima não é suficiente. O racionamento talvez não seja um risco neste momento, porque se está aumentando tarifas, mas, à medida que a economia volte, é natural que tenha alguma necessidade de aumento (de consumo). Isso virou um gargalo. Imagina se estivéssemos crescendo 9%, que energia teríamos? É um sinal que a economia tem restrições para uma aceleração muito forte do crescimento.
4. Quais outros fatores que podem complicar o cenário econômico para 2022?
Estamos vendo uma volta da inflação de alimentos. Estávamos colhendo uma desaceleração da inflação de alimentos e a crise hídrica está afetando muito o Centro-Sul, que é produtor de alimentos: arroz, feijão, leite... Do ponto de vista da inflação, tem mais pressão por todos os lados, como gás de cozinha, o petróleo continua subindo. É um momento muito inflacionário, e aquele alívio que esperávamos no segundo semestre não virá.
5. Mas a virada econômica vai ajudar o governo?
A inflação vai ser um grande gargalo e, se a gente quiser acelerar demais, vai virar mais inflação.
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Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-aposta-em-cardapio-na-economia-para-se-cacifar-a-reeleicao,70003797217