pandemia
Comissão do Senado sabatina Augusto Aras para recondução à PGR
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado sabatina nesta terça-feira (24) o procurador-geral da República, Augusto Aras, indicado por Jair Bolsonaro para mais dois anos à frente da PGR.
O processo acontece em meio a uma crise institucional provocada por falas golpistas do presidente.
O relator da recondução, Eduardo Braga (MDB-AM), divulgou parecer favorável à permanência do PGR no cargo.
Aras é alvo constante de críticas por seu alinhamento a posições de Bolsonaro.
Assista!
Fonte: Folha de S. Paulo
https://aovivo.folha.uol.com.br/poder/2021/08/24/6049-comissao-do-senado-sabatina-augusto-aras-para-reconducao-a-pgr.shtml
Governadores são fiadores da democracia e das políticas públicas contra Bolsonaro
Fernando Abrucio e Luiz Fernando Nogueira / O Estado de S. Paulo
Após quase quarenta anos da épica campanha das Diretas Já, os governadores se unem novamente para defender a democracia. Enquanto a mobilização de 1984, que uniu políticos de diversas matizes e inúmeros atores sociais, tinha como bandeira o retorno da democracia, o IX Fórum dos Governadores, realizado nesta segunda, visa afiançá-la. O federalismo, tal como o Congresso Nacional e a Suprema Corte, também pode ser visto como uma instituição que pode garantir salvaguardas democráticas.
A criação de freios ao autoritarismo do presidente Bolsonaro tem se tornado cada vez mais importante. Desde o início do mandato, ele demonstrava que seu maior inimigo era a ordem política estabelecida pela Constituição de 1988, seja no campo das políticas públicas, seja por conta de suas estruturas democráticas. Com a eclosão da pandemia, esse ímpeto tornou-se mais forte, e naquela época os governadores de boa parte dos Estados foram fundamentais para evitar que o país mergulhasse numa combinação de negacionismo com ditadura do Governo Federal. Vive-se agora no pior momento do bolsonarismo, com a queda da popularidade presidencial e a instauração de uma crise de múltiplas dimensões – econômica, política e social. Novamente, será necessário ter os líderes do governo estadual como parceiros do STF e, por enquanto, do Senado para segurar a boiada autoritária.
Esta movimentação das lideranças estaduais, que assume um caráter institucional, não significa apenas uma reação às ações autoritárias do presidente Bolsonaro. Ela é também uma reação contra o ataque bolsonarista ao desenho do sistema federativo brasileiro. É uma defesa de um modelo de federalismo cooperativo, previsto e desenhado pela Constituição de 1988 e que foi construído de maneira incremental nos trinta anos seguintes, embora com estruturas e resultados desiguais entre os setores de políticas públicas.
O modelo bolsonarista de federalismo tornou-se inimigo de sistemas de políticas públicas como SUS na Saúde, o SUAS na Assistência Social, o Sisnama no Meio Ambiente e toda a estrutura de cooperação e coordenação federativa que foi criada na Educação. No lugar desses modelos cooperativos e pactuados de relacionamento intergovernamental, o Governo Bolsonaro tem optado por um projeto baseado no conflito com os outros entes federativos, na criação de programas federais que não dialogam com Estados e municípios, na redução do papel da União de reduzir a desigualdade territorial do país e no ataque à própria governança dos governos estaduais, como ocorre no incentivo a motins das Polícias Militares.
Esse projeto federativo ganhou vigor com a pandemia. O resultado foi a falta de cooperação entre os níveis de governo e de coordenação nacional das políticas públicas. O SUS perdeu parte de sua efetividade, a política educacional ficou sem nenhum norte em meio ao fechamento das escolas, os órgãos ambientais foram enfraquecidos e a política de Assistência Social transformou-se numa distribuição sem planejamento e articulação institucional de dinheiro aos mais pobres e aos órfãos da crise. No fundo, ao enfraquecer o federalismo, Bolsonaro gerou um enorme processo de desinstitucionalização de setores e programas governamentais arduamente construídos por vários governos de partidos diferentes.
Neste contexto, prefeitos e governadores optaram por fortalecer as formas de articulação e cooperação intergovernamental, criando estruturas ou consolidando as já existentes. No campo estadual, encaixa-se neste modelo o Consórcio Nordeste, que reuniu esforços conjuntos para uma atuação mais homogênea por parte dos estados da região. Também entra aqui o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), que passou a produzir orientações técnicas para os estados atuarem no enfrentamento da Covid-19. O mesmo poderia ser dito sobre Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed), fundamental para o debate e disseminação de soluções no campo educacional.
Vale notar que os Estados não só fortaleceram a cooperação entre si, como ainda assumiram maior protagonismo nas políticas públicas. Esse fenômeno aparece tanto na execução de políticas públicas, quanto na ampliação de sua capacidade de coordenar os municípios de sua jurisdição. Alguns Estados, como Ceará, Espírito Santo e São Paulo, já dispunham de expertise de coordenação em diversas áreas de políticas públicas – como é o caso da Educação e da própria Saúde –, o que pode ter favorecido sua atuação. Noutros, houve grandes inovações, com excelentes resultados, como na experiência do Maranhão. Mas em muitos lugares o aprendizado foi mais tortuoso. De todo modo, os governos estaduais, por necessidade, tornaram-se mais importantes, sendo que em pelo menos 15 deles há hoje políticas sociais, de transferência de renda e ajuda à população mais pobre, que já competem com programas federais como o Bolsa Família, mesmo que ele seja turbinado. Isso já terá efeitos nas eleições.
A mobilização recente dos governadores, portanto, é uma defesa não só da democracia, como também da qualidade das políticas públicas. O cenário atual preocupa, porém, pois o Governo Bolsonaro procura dividir os governos de Estado, dando apoio mais específico e clientelista a alguns deles, além de buscar destruir a governança democrática estadual, seja incentivando grupos bolsonaristas radicais a jogar contra as governadorias nas Assembleias, seja incitando as Políciais Militares contra as instituições democráticas.
Sair dessa encruzilhada federativa legada por Bolsonaro não será fácil, uma vez que a aposta do presidente é pelo confronto com as instituições democráticas como forma de manter-se no poder, o que pode ocorrer com a realização de uma eleição marcada pelo medo e terror, ou, ainda, por algum tipo de golpe. Os governadores precisam se unir contra isso, porque sem democracia não haverá mais a sua função a zelar, como bem sabem as lideranças regionais do pré-1964. Mais do que isso, se as lideranças dos governos estaduais forem bem-sucedidos em reverter o federalismo bolsonarista, a tarefa de reconstrução das políticas públicas poderá aproveitar tanto as lições positivas do federalismo cooperativo em que União tinha um papel-chave, como, ainda, incorporar as inovações de cooperação intergovernamental e de coordenação estadual que foram criadas para enfrentar um presidente que jogou contra a democracia e a Federação ao mesmo tempo.
Fernando Luiz Abrucio, Doutor em Ciência Política pela USP, Professor da FGV – EAESP e Coordenador da área de Educação do Centro de Estudos de Administração Pública e Governo (Ceapg)
André Luis Nogueira da Silva, Doutor em Administração Pública e Governo pela FGV – EAESP. Servidor público e Pesquisador-colaborador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo (Ceapg) e do Departamento de Políticas Públicas da UFRN
Fonte: Blog Gestão, Política e Sociedade / O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/governadores-sao-fiadores-da-democracia-e-das-politicas-publicas-contra-bolsonaro/
Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro, agora, politiza o fracasso
A maioria dos ministros se queixa do foco errado. O Palácio do Planalto é uma ‘jaula de cristal’, na qual o presidente da República constrói um mundo só dele
Aos 32 meses de mandato, o presidente Jair Bolsonaro se depara com um cenário mórbido e nebuloso: a “gripezinha” matou 575 mil pessoas, o país tem 14 milhões de desempregados e a inflação pode chegar a 9%, se não houver uma mudança de rumo. Deficit fiscal, insegurança jurídica e instabilidade política formam o tripé que afugenta os investidores. A janela de oportunidade da retomada da economia global está sendo perdida.
Os verdadeiros problemas do país são de natureza objetiva e exigem soluções criativas, exequíveis e amparadas por amplo consenso nacional. Em circunstancias normais, diante da gravidade da pandemia e de suas sequelas, principalmente a iniquidade social, o presidente da República, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) convergiriam suas decisões na direção dessas soluções. Mas não é o que acontece. Estamos na antessala de uma grave crise institucional, fabricada por Bolsonaro.
Seu problema não é falta de governabilidade — conta com o apoio do Centrão no Congresso. É a governança, “a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de um país, visando o desenvolvimento, e a capacidade dos governos de planejar, formular e programar políticas e cumprir funções”, segundo o Banco Mundial. São características da boa governança: Estado de direito, transparência, responsabilidade, orientação por consenso, igualdade e inclusividade, efetividade e eficiência e prestação de contas. Essa não é a praia de Bolsonaro.
A agenda do país é discutida em milhares de lives, pelos mais diversos públicos, que buscam saídas para a situação em que nos encontramos de olho no futuro. O presidente ignora tudo isso, empenhado em levar adiante um programa ideológico, que só empolga os setores mais reacionários da sociedade. Mesmo os conservadores, que o apoiaram na eleição e participam do governo, têm uma agenda liberal voltada para os problemas reais, ainda que ignorem as questões sociais. Bolsonaro está governando apenas para seus seguidores fanatizados. A maioria dos ministros já se deu conta disso e se queixa do foco equivocado. O Palácio do Planalto é uma “jaula de cristal”, na qual Bolsonaro constrói um mundo só dele.
As atenções do país estão voltadas para as manifestações convocadas para o dia 7 de setembro, que são apoiadas por Bolsonaro. Não haverá desfiles militares por causa da pandemia, porém estão previstas concentrações de defensores da intervenção militar em muitas cidades. Até a semana passada, pretendiam parar o país, cercar Brasília, invadir e fechar o Supremo Tribunal Federal (STF). Como era de se esperar, os mais ousados, como o presidente do PTB, Roberto Jefferson, e o cantor Sérgio Reis, já sofreram as consequências desse projeto sedicioso. Mas Bolsonaro, em solidariedade a eles, pediu o impeachment do ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news, que investiga a atuação de grupos extremistas, e escalou mais um degrau no seu confronto com o Supremo.
Ontem, 23 governadores e dois vices se reuniram em Brasília para discutir a situação e construir uma barreira de contenção à escalada da radicalização golpista. Querem um encontro com Bolsonaro para discutir a relação republicana entre os entes federados. Coincidentemente, o governador de São Paulo, João Doria, demitiu o coronel da Polícia Militar que comandava a corporação no interior paulista porque atuava nas redes sociais convocando para os atos de 7 de setembro e pedindo o fechamento do Supremo. Os governadores firmaram uma espécie de pacto para impedir motins nas polícias militares. O caldo de cultura para isso existe, foi fomentado pelo presidente.
Ciclo fechado
Enquanto segue o baile da política, a economia se deteriora a olhos vistos. O cenário é de menos crescimento e mais inflação. Os juros de longo prazo superam 10% ao ano, segundo as taxas dos contratos futuros com vencimento em janeiro de 2031. As apostas para o crescimento em 2022 caminham para a casa de 1,5%, uma taxa incapaz de gerar um volume expressivo de empregos. Para 2021, ainda prevalecem estimativas na casa dos 5% ou um pouco mais. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) pode fechar 2021 em 7,5%, muito acima da meta de 3,75% deste ano.
As reformas tributária e administrativa subiram no telhado. O que não passou até agora, provavelmente não mais passará. O Congresso não quer saber de remédios amargos. Bolsonaro também é negacionista na política monetária. O cobertor é curto, a política econômica deriva para o naufrágio. A alternativa que restou foi politizar o fracasso e pôr a culpa nos outros. Como não pode responsabilizar a oposição, culpa as instituições da República, principalmente o Supremo. É a velha cantilena de que a democracia não funciona.
Brasil vive 'mistura de pandemia com pandemônio', diz Gonzalo Vecina
Para o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, classificar como crime o que está acontecendo no Brasil durante os meses de pandemia não é nenhum tabu
André Biernath / BBC News Brasil
Professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e do mestrado profissional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Vecina Neto ainda é presidente do Conselho Consultivo do Instituto Horas da Vida e traz no currículo o fato de ser fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.
Numa entrevista exclusiva à BBC News Brasil, o médico avaliou o ritmo da vacinação contra a Covid-19, a ameaça das novas variantes do coronavírus e as perspectivas para o fim da pandemia.
Confira os principais trechos a seguir.
BBC News Brasil - Como o senhor vê o avanço da campanha de vacinação contra a covid-19 no Brasil? No que poderíamos estar melhor ou pior?
Gonzalo Vecina Neto - Bom, em primeiro lugar, nós temos uma falta de coordenação. O Ministério da Saúde já passou por várias gestões nesses meses e isso gera uma descontinuidade administrativa e um clima ruim.
Nós estamos fazendo uma vacinação sem uma campanha. Isso é impressionante. É a primeira vez que isso acontece na história do Programa Nacional de Imunizações, o PNI.
O PNI foi fundado em 1973 e, desde então, está bem claro o papel do Ministério da Saúde na definição de muitas questões relacionadas à vacinação. Agora, os Estados e os municípios fazem o que podem, mas sem uma coordenação do Governo Federal. Não há campanha alguma, no sentido de existir a comunicação, a convocação dos grupos, dos dias que as pessoas devem ir aos postos ou quando voltar para a segunda dose.
Veja bem, nós estamos em meio às campanhas de vacinação contra a Covid-19 e contra a gripe. Nós temos cerca de 80 milhões de doses de vacina contra a gripe e só usamos 40% desse total. E qual o motivo? As pessoas não foram convocadas para irem tomar a vacina.
No caso da Covid-19, além da ausência de uma campanha, há todo o despreparo da rede de vacinação. Nós temos 38 mil salas de vacinação no Brasil, com uma capacidade de imunizar 70 milhões de pessoas por mês sem estresse, só aproveitando o horário comercial e os dias úteis. No entanto, estamos com dificuldade em vacinar 15 ou 20 milhões de pessoas por mês.
Isso é causado pela descoordenação e pelo fato de não termos doses suficientes. A compra dos lotes foi tardia demais. Somente em março deste ano o [ex-ministro da Saúde e general Eduardo] Pazuello fechou alguns contratos, no que foi seguido pelo [atual ministro Marcelo] Queiroga.
Nós estamos desde o início do ano com uma lentidão na vacinação justamente pela falta de doses e pelo desarranjo estrutural do governo.
BBC News Brasil - Nos últimos dias, diversas cidades brasileiras alcançaram a marca de quase 100% da população acima de 18 anos vacinada com a primeira dose. Como isso deve ser encarado? Há motivo para comemorar e celebrar o feito?
Vecina Neto - A primeira dose ajuda a proteger, mas a proteção de verdade só é obtida após a segunda dose. Eu acho auspicioso qualquer tipo de conquista que tivermos no meio dessa desgraça. Afinal, o Brasil vive a mistura de pandemia com pandemônio.
Mas, infelizmente, os nossos problemas vão muito além disso. Nós ainda temos que vacinar toda a população adulta com as duas doses. Falamos de cerca de 160 milhões de brasileiros. Logo, são 320 milhões de vacinas.
Se o Brasil tivesse vacinado 70 milhões de pessoas por mês a partir de janeiro, pois tínhamos essa capacidade, teríamos terminado essa primeira etapa no mês de maio. Nós estamos em agosto e só agora chegamos a essa marca.
É auspicioso aplicar a primeira dose em toda a população adulta? Claro que é. Mas é pouco pra quem podia fazer muito mais.
BBC News Brasil - Com todos os adultos vacinados com a primeira dose, temos agora três possíveis frentes. Um, garantir a segundo dose a esse monte de gente. Dois, aplicar uma terceira dose em grupos vulneráveis, como idosos e profissionais da saúde. E três, começar a imunizar os adolescentes. Na visão do senhor, a quais dessas frentes precisamos dar prioridade?
Vecina Neto - Bom, a primeira questão que devemos focar é na segunda dose. E necessitamos pensar nos casos específicos, como as gestantes que tomaram a primeira dose da AstraZeneca e agora precisarão tomar a da Pfizer. Outro ponto é avaliar a intercambialidade de vacinas. Alguns países europeus deram a primeira dose da AstraZeneca e a segunda da Pfizer e viram que a mistura traz um aumento da eficácia e uma proteção melhor.
Ainda nessa seara, precisamos definir melhor os intervalos. Na vacina da Pfizer, o tempo entre a primeira e a segunda dose é de 21 dias, e nós no Brasil recomendamos 90 dias, até para conseguirmos vacinar mais gente.
Agora está na hora de voltar atrás dessa política. Já no caso da AstraZeneca, o ideal é manter mesmo essa espera de 90 dias. Em relação à segunda dose, apesar dos pequenos ajustes, o que precisamos é vacinar e pronto.
Já no caso dos menores de 18 anos, penso que vamos vaciná-los assim que todos os grupos de maior risco estiverem protegidos. Mas é óbvio que precisamos proteger também os adolescentes, e a vacina que temos aprovada no Brasil para essa faixa etária, de 12 a 17 anos, é a da Pfizer.
Mas, mesmo nesse grupo, temos que pensar também em priorizar os jovens com comorbidades, porque eles têm um risco maior. Por isso, indivíduos com síndrome de Down, doenças raras, câncer, obesidade e asma deveriam ser vacinados antes.
Já sobre a terceira dose, me parece estar claro para o mundo inteiro que precisaremos disso. É lógico, vamos começar com os grupos de maior risco, como os mais idosos.
Mas eu acredito que essa dose de reforço deveria ser dada só depois de terminarmos a vacinação dos outros grupos. Não adianta deixar tudo pela metade, pelo meio do caminho. Daqui a pouco isso vai ser ruim para nós mesmos.
Temos que terminar a vacinação com a primeira dose, convocar as pessoas para a segunda dose e aí iniciar a revacinação pelos grupos prioritários. Muito provavelmente teremos a terceira e até a quarta dose da vacina contra a Covid-19, inclusive.
O grande problema é que o mundo está produzindo pouco em relação à demanda que temos. Precisaríamos de 14 bilhões de doses de vacina agora. Se pensarmos em terceira dose, são 21 bilhões. No entanto, estamos produzindo entre 3 e 4 bilhões neste ano.
Como sempre diz o Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, se nós não vacinarmos os países pobres da África e do Sudeste Asiático, o vírus vai continuar circulando. E, enquanto o vírus circula, aparecerão mutações que podem ser resistentes às vacinas já disponíveis.
Nós temos que deixar esse egoísmo de lado, essa história do "eu primeiro e depois o resto". A prioridade deveria ser vacinar toda a população mundial. Mas os países mais desenvolvidos, e mesmo aqueles em desenvolvimento, como o Brasil, estão mais preocupados com o próprio umbigo. Como se a pandemia começasse e terminasse em seus próprios territórios.
BBC News Brasil - E o que justificaria a necessidade de uma terceira dose agora? A queda dos anticorpos? A circulação de variantes de preocupação, como a Delta? Ou uma mistura desses fatores?
Vecina Neto - O primeiro ponto é que temos vacinas diferentes, com eficácias variáveis. A CoronaVac tem 50%, a Pfizer chega a 95% e por aí vai. Se eu pudesse priorizar uma vacina, é claro que eu escolheria a de maior eficácia para toda a população. Mas o problema é que a demanda está muito mais alta que a oferta. Com isso, eu tenho que usar todas as opções disponíveis.
Isso não significa que eu não usaria a CoronaVac, até porque ela tem uma grande serventia. Falamos de uma vacina que é menos eficaz, mas que, mesmo assim, derruba o risco de mortalidade por Covid-19 em mais de 90%.
A terceira dose deveria começar pelas pessoas mais idosas. Nas idades mais avançadas, nós sabemos que existe um fenômeno chamado imunossenescência. É o envelhecimento do próprio sistema imunológico, que não funciona como anteriormente.
O segundo ponto que justificaria a terceira dose é a queda na produção de anticorpos com o passar dos meses.
Não temos muitos estudos sobre isso, mas, no caso da vacina da Pfizer, verificou-se uma diminuição após algum tempo. Até quando essa proteção cai? Não sabemos, até porque não tivemos tempo suficiente para aprender isso.
De uma forma ou de outra, o vírus vai continuar circulando pela falta de uma imunidade coletiva, até porque os países estão com taxas de vacinação muito diferentes. E é normal que precisemos de reforços de tempos em tempos.
Veja o caso da febre amarela. Há alguns anos, a recomendação era que se tomasse uma nova dose a cada dez anos. De repente, diante de um surto e de uma escassez, os cientistas estudaram melhor o assunto e descobriram que não havia essa necessidade de reforço. Houve também um fracionamento das doses, o que permitiu levar a proteção a um maior número de pessoas.
Isso também está acontecendo com os imunizantes contra a Covid-19. Uma cidade do Espírito Santo está estudando a aplicação de meia dose da AstraZeneca, para ver se ela confere uma boa proteção. Se isso der certo, nossa capacidade de vacinação duplicaria.
Essa pandemia está nos mostrando que é preciso ter um pouco de humildade e aceitar os aprendizados que aparecem pelo caminho.
BBC News Brasil - Ainda sobre as variantes, já está provado que a Delta circula pelo Brasil e dados da vigilância genômica do Rio de Janeiro mostram que ela representa mais da metade das amostras analisadas no Estado recentemente. Como o senhor vê o avanço dessa linhagem no país? O que poderíamos ter feito para evitar isso e o que deveríamos fazer agora?
Vecina Neto - Primeiro, me parece que a Delta está evoluindo aparentemente mais devagar no Brasil do que ela fez na Europa e na Ásia.
Quando você analisa o que aconteceu nessas duas regiões, é algo muito surpreendente. Essa variante dominou a cena com muita rapidez. Em países com 80% de cobertura vacinal, como Israel, foi necessário fazer lockdown de novo.
Aqui no Brasil, nós tivemos notícias sobre a chegada dela já faz um bom tempo. E, claro, o que nós temos de informação pode ser muito menos do que aquilo que está ocorrendo de fato. Até porque não tivemos controle nenhum.
Parece que nós desaprendemos totalmente a lição milenar de que o isolamento é uma das melhores estratégias para lidar com uma doença infectocontagiosa. Mesmo quando a humanidade não sabia o que provocar a peste bubônica, a varíola e a sífilis, o isolamento sempre fez o número de casos diminuir.
E nós aqui no Brasil não usamos esse conhecimento milenar. Não fizemos nada daquilo que o mundo apontava que era necessário. As pessoas vinham de outros países para cá, estavam com febre, tinham o teste PCR positivo e, mesmo assim, saíam livres, leves e soltas para contaminar todo mundo.
Isso é uma coisa impensável. Nós ignoramos toda a verdade epidemiológica que já conhecíamos.
O que deveríamos fazer com uma pessoa com um PCR positivo? Isolá-la por 14 dias. Por que? Para que ela não espalhe o vírus e produza novos casos. E por que isso é necessário? Para evitarmos as mortes.
O comportamento da vigilância epidemiológica brasileira foi criminoso. Se havia alguma dúvida se podíamos chamar alguém de genocida, isso não existe mais.
Não compramos vacinas. E estamos chegando ao número de 600 mil mortos, com grandes possibilidades de chegarmos aos 800 mil até o final do ano. Isso é criminoso.
Nós permitimos que a variante Delta se espalhasse por aí. E nós temos agora as subvariantes derivadas da Gama, como a Gama Plus, que aparentemente tem mutações semelhantes à Delta e pode ser mais infectante.
Então essa interação das linhagens de coronavírus é algo que precisamos aprender um pouco mais. Será que a Gama e a Gama Plus estão segurando a entrada da Delta?
Essa coisa das mutações é algo muito inteligente. A natureza produz essas modificações que são melhores, ao menos do ponto de vista do vírus. E o uso da palavra melhores aqui não significa que elas são mais mortais, até porque, se o vírus mata o seu hospedeiro muito rápido, ele não consegue se espalhar com tanta rapidez.
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Essa capacidade das variantes do coronavírus de se espalharem com mais facilidade abre até a possibilidade de ele conviver conosco por muito tempo. É provável que ele se transforme num vírus sazonal, como outros que causam gripes e resfriados.
Especificamente sobre a Delta, o que está acontecendo no Rio de Janeiro vai nos mostrar se teremos uma terceira onda e todas as consequências relacionadas a ela.
Até porque estamos agora com uma diminuição do número de casos e óbitos, mas eles ainda estão muito próximos ao que vimos na primeira onda. Ou seja, estamos num platô elevado de 900 mortes por dia.
Na segunda onda, nós chegamos a 4 mil mortes por dia. Depois, tivemos a diminuição em que estamos agora.
Resta saber se as variantes Gama Plus ou Delta levarão a uma nova subida e até que ponto a cobertura vacinal que já temos será capaz de segurar a doença e diminuir os casos graves ou as mortes por covid-19. Sem dúvida, estamos numa situação sanitária perigosa.
BBC News Brasil - De um lado, temos o otimismo pelo avanço da vacinação. Do outro, a apreensão com a variante Delta. No meio, prefeitos e governadores anunciam o relaxamento das medidas, a liberação de público nos estádios de futebol e a realização de festas populares, como o carnaval. Como o senhor vê as políticas públicas em relação ao atual estágio da pandemia no Brasil?
Vecina Neto - O Brasil é muito desigual. Talvez esse seja o principal problema de nosso país. Mas existem outros problemas tão graves quanto. Um deles é a impunidade.
Aqui, as pessoas podem cometer as maiores barbaridades sem sofrer consequências. O presidente [Jair Bolsonaro] fala para as pessoas não usarem máscaras. Daí vem alguém do Ministério Público e diz que as máscaras não estão comprovadas cientificamente, quando temos milhares de trabalhos mostrando a necessidade do uso delas.
O Ministério Público é o guardião das leis. E a lei é um arranjo escrito que permite a conformação da vida em sociedade.
Agora, se o guardião deste código tão importante vem e me diz que as máscaras nem são tão importantes assim, que elas são secundárias, mesmo quando há leis determinando seu uso, isso só reforça o clima de impunidade.
Enquanto isso, os prefeitos e governadores estão prestando atenção nas eleições de 2022. Eles acham que o povo vai esquecer as milhares de mortes, até porque estamos nesse clima de oba-oba da reabertura geral.
Talvez um outro grande problema que nós temos, junto da desigualdade e da impunidade, seja o esquecimento. E muitos apostam que esse clima de otimismo atual fará o povo não lembrar de tudo que aconteceu e não chorar mais as mortes.
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BBC News Brasil - E como essa falta de coordenação entre municípios, Estados e Governo Federal contribuiu para que a pandemia tivesse números tão expressivos em nosso país?
Vecina Neto - Veja os exemplos que temos na Europa. A Alemanha talvez seja o melhor modelo de como um líder faz a diferença.
Na Inglaterra, o primeiro-ministro Boris Johnson começou a crise sanitária da pior maneira possível, no mesmo estilo de Jair Bolsonaro, no Brasil, e Donald Trump, nos Estados Unidos. Mas aí ele teve a doença, foi tratado pelo serviço de saúde pública, o NHS, e pediu desculpas. Em Israel foi a mesma coisa.
Nessas horas, ter um líder é fundamental. É preciso que alguém governe o país. Veja o que aconteceu na Nova Zelândia. Eles tiveram um número de mortes que dá pra contar nos dedos da mão. Por que? Porque tinham um governo com projeto, que fez as intervenções sanitárias.
Temos no Brasil um presidente ensandecido e mal informado, que ainda vê a imunidade de rebanho como a solução.
Ele acredita nisso até hoje. Outro dia fez um discurso reclamando da crise econômica, da inflação, do aumento no preço da gasolina… E botou a culpa nos governadores e prefeitos.
E nós tivemos governadores muito irresponsáveis também, especialmente no Norte.
Os Estados dessa região são aqueles que possuem a maior desigualdade social. A pobreza de uma cidade como Manaus é assustadora. Dentro da exuberância da floresta, com tanta fruta, peixe, água e calor, a pobreza é terrível.
A pandemia foi muito mal administrada por falta de um alinhamento entre os gestores públicos. Eles deveriam estar alinhados com o conhecimento científico e as melhores práticas para diminuir o impacto da pandemia.
A História vai contar tudo o que passamos e colocará no devido lugar todos os patrocinadores do genocídio
BBC News Brasil - Um exemplo recente de briga entre os poderes aconteceu entre o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, por uma discordância no envio de doses das vacinas. Como o senhor vê essa discussão em particular?
Vecina Neto - Doria é candidato à Presidência da República. Então ele está fazendo seu teatro para isso.
Mas, nesse caso em particular, ele até tinha razão, pois o Ministério da Saúde mandou uma quantidade menor de doses de vacina para São Paulo.
Agora, não dá pra saber se esse envio reduzido foi por lapso ou má vontade. Acho que as duas coisas são possíveis.
O Ministério da Saúde errar já é algo absolutamente comum, porque eles são muito incompetentes. Vimos recentemente o próprio ministro, Marcelo Queiroga, falar que as máscaras são apenas um detalhe. E ele é médico!
O fato é que o Ministério da Saúde está acéfalo, assim como o PNI. Não há coordenação do programa de imunizações brasileiro. Um dos últimos coordenadores foi demitido porque se envolveu nessa lambança da compra de vacinas da Índia, com distribuição de dinheiro para corrupção.
BBC News Brasil - Mesmo com a necessidade de manter as medidas restritivas, não podemos ignorar o fato de estarmos há um ano e meio na pandemia e as pessoas estão cansadas. Como manter a população engajada num cenário desses?
Vecina Neto - Essa é uma das questões mais complexas. Realmente as pessoas estão cansadas de usar máscara e manter o distanciamento social. Temos um ano e meio de tensão e todos estamos sofridos. Mas qual o caminho?
Não temos muita saída: precisamos continuar vacinando e exigir o uso de máscaras em ambientes públicos, especialmente nos locais fechados.
O duro é você explicar para as pessoas os detalhes e as particularidades de cada situação. Falamos em aglomeração, mas como definir isso? Três pessoas já formam uma aglomeração? Ou dez?
Diante de todas as dificuldades, eu acho que precisamos continuar a dizer que as máscaras são necessárias em qualquer circunstância. Precisamos tomar muito cuidado com lugares fechados, como cinemas e teatros. É necessário pensar na taxa de ocupação e na circulação do ar nesses ambientes.
E no campo de futebol, pode haver aglomeração? Não pode. Mas e se todo mundo estiver vacinado? Talvez.
Nós estamos nesse momento de tensão. Eu acho que podemos pensar em flexibilizações, mas precisamos deixar claro que, se piorar, vamos fechar tudo de novo. Nossa prioridade é ter um sistema de saúde com capacidade de atender os casos que surgirem. Foi isso que fizemos na primeira onda e acabou sendo um fracasso na segunda.
BBC News Brasil - Para a maioria da população mundial, a atual pandemia é inédita em escala e impacto. Mas como sairemos dela? Como acaba uma pandemia? E o senhor já vê perspectivas de isso acontecer em algum momento?
Vecina Neto - A gente pensava que a pandemia acabava quando não tivéssemos mais pessoas suscetíveis. Mas nós aprendemos que, com a Covid-19, isso nunca vai acontecer, já que as pessoas podem se reinfectar pelas novas variantes.
Se o coronavírus que saiu de Wuhan, na China, fosse o mesmo hoje em dia, com certeza poderíamos pensar em imunidade de rebanho assim que acabassem as pessoas suscetíveis. Mas daí vieram as variantes Alfa, Beta, Gama e Delta e acabaram com isso.
Bom, se não será pela imunidade de rebanho, é difícil pensar que a pandemia acabará pela vacinação. As vacinas não são 100% eficazes e eventualmente o vírus poderá driblar as doses disponíveis hoje.
Me parece, então, que essa pandemia não vai acabar. Ela será substituída por uma doença que vai conviver conosco a partir de um ou dois anos, ou quando tivermos toda a população vacinada, inclusive jovens e crianças, com a garantia de uma proteção contra os casos mais graves e as mortes.
Isso significa que a Covid-19 se tornará uma doença endêmica e continuará conosco. E talvez precisaremos de novas campanhas de vacinação no futuro para manter a letalidade dessa doença bem baixa.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58276775
CPI da Covid ouve Túlio Silveira, advogado da Precisa Medicamentos
Ele é um dos três membros da empresa que teve os sigilos telefônico e telemático quebrados pela comissão em junho
Redação / O Estado de S. Paulo
A Comissão Parlamentar de inquérito (CPI) da Covid ouve nesta quarta-feira, 18, o advogado da Precisa Medicamentos, Túlio Silveira, representante da empresa na negociação da vacina indiana Covaxin, da Bharat Biotech, com o Ministério da Saúde. A transação é uma das principais linhas de investigação da comissão.
Amparado por um habeas corpus concedido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, Túlio Silveira poderá ficar em silêncio e não responder a perguntas que possam incriminá-lo. O advogado chegou a alegar “sigilo profissional” para não ser “compelido a depor sobre a Precisa na CPI, sob pena de cometimento do crime de violação do sigilo funcional". O argumento, no entanto, não foi aceito por Fux.
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A Precisa Medicamentos atuou como intermediária entre a Bharat Biotech e o Ministério da Saúde na negociação pela compra de 20 milhões de doses da vacina. Após as investigações da CPI da Covid, o contrato no valor de R$ 1,6 bilhão foi encerrado no mês passado.
Originalmente, na sessão de hoje estava prevista a acareação entre o ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), e o deputado Luis Miranda (DEM-DF). O confronto de versões foi cancelado na última terça. Na avaliação dos membros da comissão, a acareação não traria nenhum fato novo às investigações.
A oitiva de Túlio Silveira atende a requerimento do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que defende que o depoimento será importante “para que seja possível esclarecer os detalhes de potencial beneficiamento da Bharat Biotech, representada no Brasil pela Precisa Medicamentos, na negociação de compra de vacinas pelo Ministério da Saúde.”
O advogado é um dos três membros da Precisa Medicamentos que teve os sigilos telefônico e telemático quebrados pela CPI em junho. O mesmo ocorreu com a diretora Emanuela Medrades e com o dono da empresa, Francisco Maximiano, que deve depor na quinta-feira, 19, à comissão em uma das oitivas mais aguardadas pelos senadores.
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Luiz Carlos Trabuco Cappi: Constituição, democracia e economia
A porta de saída para mazelas como o desemprego é mais democracia, e não menos
Luiz Carlos Trabuco Cappi, O Estado de S. Paulo
A Constituição de 1988 completará 33 anos no dia 5 de outubro. É a sétima da nossa história. Caminha a passo resiliente e marca uma das fases de maior tranquilidade institucional e relações democráticas em nosso País. Ela é o resultado de um desses momentos de união nacional tão valiosos em nossa história, nos quais os conflitos e as polarizações são superados pelo senso de compromisso com o bem comum. Nenhuma de nossas Constituições anteriores foi tão aberta e tão sensível às preocupações e aos anseios da sociedade, e esta foi uma das razões de a Carta de 1988 ter sido denominada como Constituição Cidadã.
Ao garantir equilíbrio institucional e segurança jurídica, criou a base para saltos formidáveis na economia e nos indicadores de qualidade de vida. Quando seu texto foi promulgado, o PIB per capita brasileiro era de US$ 6,7 mil, ajustados pela paridade do poder de compra. Em 2019, antes da pandemia, estava em US$ 15,4 mil. O comércio exterior saltou de US$ 48 bilhões para US$ 368,9 bilhões (2020). As reservas cambiais, de US$ 9,1 bilhões para US$ 355,6 bilhões, no período.
A Constituição de 1988, viva e orgânica, tem sido um fator de coesão social. Ao ser respeitada, é um fator de pacificação em qualquer tempo.
Embora a democracia seja uma herança da Grécia Antiga, os regimes democráticos ocidentais somente surgiram por caminhos tortuosos, após as revoluções Inglesa (1640-1688), Americana (1775-1786) e Francesa (1789-1999).
Hoje, as leis fundamentais das repúblicas e das monarquias constitucionais correspondem às aspirações nacionais, legitimam a organização social e protegem o cidadão de arbitrariedades – são uma das conquistas humanas mais importantes.
A Carta Magna inglesa, de 1215, com a qual os barões instituíram limites para o poder do rei, inaugurou esse processo. E a Constituição americana, elaborada em 1787, alguns anos depois da independência dos Estados Unidos, é outro paradigma. Sua carta de direitos, que são as dez primeiras emendas à Constituição, impôs restrições ao poder do governo federal.
Ao produzir consensos, essas cartas abriram em definitivo as portas para o desenvolvimento capitalista. Seus povos passaram a buscar o progresso dentro dos mesmos princípios, respeitando-os e sendo por eles respeitados.
O Brasil sofreu influência de todos esses movimentos, ao sair do período da Monarquia para o da República, mas a primeira Constituição democrática somente foi promulgada em 1946.
Com o voto direto, secreto e seguro, somos a terceira maior democracia representativa do mundo e temos o décimo terceiro PIB em termos globais. Nosso Parlamento atende à diversidade da sociedade. O Executivo representa a maioria, mas os processos decisórios são complexos, pois envolvem também a opinião das minorias. Juízes, desembargadores, os ministros dos tribunais superiores, compõem o Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal (STF) zela pelo cumprimento da Constituição. O Ministério Público, por sua vez, atua com autonomia na ordem jurídica do Estado.
E a Constituição é o instrumento que estabelece as regras do jogo para esse processo decisório, no qual os Poderes e entes federados têm autonomia no âmbito de suas competências.
Mais democracia, e não menos, é a porta de saída para mazelas como o desemprego e a baixa atividade.
A Carta de 1988 garante um regime econômico liberal, com atuação normativa e reguladora do Estado. Fundamenta-se na livre iniciativa e na concorrência, com expansão de direitos sociais e disciplina da ordem. Preservá-la é reduzir desigualdades e garantir o crescimento econômico duradouro.
Na semana passada, seu sistema de freios e contrapesos regulou a relação entre os Poderes, que exercem controle um sobre o outro sem perder a independência. Testado em clima de tensão na definição do sistema de votação, prevaleceu a vontade do Legislativo. Sem traumas, rupturas ou transgressões, dentro das regras da Constituição, com clareza, transparência e o respeito de todos.
A democracia brasileira sai fortalecida.
PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,constituicao-democracia-e-economia,70003811905
A Bíblia não é a Constituição
Não se pode ter a pretensão de, como juiz, assumir, ainda que em surdina, a voz de Deus
Celso Lafer / O Estado de S. Paulo
“Notável saber jurídico” e “reputação ilibada” são os critérios de escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelecidos pela Constituição. A sua indicação cabe ao presidente da República, mas a escolha só se efetiva depois de avaliação e aprovação pela maioria absoluta do Senado Federal.
Os parâmetros constitucionais são explícitos. Não cabe abrir espaço para considerações a respeito da fé religiosa de um indicado. Não é critério que se coadune com o Direito brasileiro o ingrediente de ser “terrivelmente evangélico”. É, no entanto, o que o presidente aponta como uma faceta de sua escolha preferencial do nome de André Mendonça para o cargo.
Trata-se de um vício de origem no âmbito de um Estado de Direito, que consagra a objetividade do “governo das leis” e repele o idiossincrático de um “governo de homens”. Requer, assim, pronta refutação, pois o Brasil é um Estado laico desde a proclamação da República. Não é um Estado confessional, no âmbito do qual existam vínculos entre o poder político e uma religião.
Em nosso país, na linha da tradição constitucional americana, que inspirou Rui Barbosa, existe, como dizia Jefferson, um “wall of separation” entre o Estado e as religiões. Esse é o sentido do artigo 19 da Constituição. É por isso que a fé religiosa não é critério de escolha para cargos governamentais, muito especialmente o de ministro do STF, instituição que tem, no topo do Judiciário, a responsabilidade pela guarda da Constituição e de seus dispositivos, incluída a laicidade.
A laicidade relaciona-se com grandes matérias constitucionais. Entre elas, a tutela dos direitos humanos, a asserção do pluralismo e da diversidade da sociedade e a aceitação do outro na prática e nos costumes da convivência da cidadania numa democracia.
Estado laico significa Estado neutro em matéria religiosa, não solidário em relação a qualquer atividade religiosa, pois não se fundamenta numa fé, como, na situação-limite, em Estados teocráticos, nos quais poder religioso e poder político se fundem.
A laicidade obedece à lógica da sabedoria liberal da arte da separação das esferas e da sua autonomia. A separação Igreja-Estado está em consonância com a lição dos Evangelhos: “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.
A laicidade se contrapõe ao dogmatismo e à intolerância. É uma regra de calibração que permite a gestão pública de diferenças religiosas e de opinião. É a base de uma postura aberta em relação ao diverso e ao diferente que caracteriza a pluralidade da condição humana. Tem como método o persuadir, e não o coagir. Parte do pressuposto de que a verdade não é una, mas múltipla, e tem várias faces, dada a complexidade ontológica da realidade.
A laicidade é uma das maneiras de responder aos problemas da intolerância e de um dos seus desdobramentos, a polarização fundamentalista, intransitiva e excludente.
Historicamente, deve-se ao espírito laico a tolerância religiosa, da qual proveio o direito de liberdade de crença e de pensamento, de opinião e da cultura. Dela se originou a revolução científica, o processo incessante de ampliação do saber, que nasce e se desenvolve pela negação do dogmatismo e se baseia na capacidade de revisão contínua dos próprios resultados da pesquisa, à luz da razão e das provas da experiência – e não da fé. É o que fundamenta a liberdade da pesquisa e a autonomia da universidade.
Graças à tolerância deu-se a dinâmica das transformações das relações de convivência por meio da afirmação da democracia, consagrada na Constituição de 1988. É o que cria espaço para a contenção da violência entre grupos e indivíduos, maiorias e minorias, propiciando plataforma comum, na qual todos os cidadãos podem encontrar-se enquanto membros de uma comunidade política, diversificada nas suas crenças e opiniões.
Num Estado laico, o Direito é a sua moldura jurídica. A Bíblia não é a Constituição. Por isso, o juiz deve decidir de acordo com o Direito e os valores nele positivados. O seu método de interpretação deve seguir o espírito laico do exame crítico dos assuntos e dos seus problemas. Nas suas decisões, deve respeitar e buscar no mundo – e não no transcendente – a ética, do viver honesto dos clássicos princípios de não prejudicar ninguém e dar a cada um o que é seu.
Um juiz num Estado laico não pode buscar a fundamentação de suas decisões nas suas crenças religiosas. Não pode ter a pretensão de, como juiz, assumir, ainda que em surdina, a voz de Deus. Num Estado laico e plural, nas decisões do Judiciário vale o que diz Camões: “O que é de Deus, ninguém o entende/ Que a tanto o engenho humano não se estende” e “ocultos os juízos de Deus são”.
Um juiz “terrivelmente evangélico” representa o risco de transpor os seus conselhos de pastor para os seus fiéis, no âmbito próprio da sociedade civil, em inapropriados comandos jurídicos-judiciais do Estado para a sociedade brasileira. É um risco que caberá ao Senado avaliar com a devida profundidade.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-biblia-nao-e-a-constituicao,70003811047
Bolsonaro leva golpismo para turnê internacional
Presidente e aliados plantaram semente da insurreição no Paraguai e nos EUA
Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo
Em sua campanha para melar as próximas eleições, Jair Bolsonaro insinuou que há envolvimento estrangeiro numa conspiração fantasiosa para fraudar as urnas eletrônicas no ano que vem. "Outros países têm interesse em ter gente na Presidência, à frente de governo de estado, à frente de grandes cidades, pessoas mais simpáticas a esse governo de fora", declarou, há cerca de dez dias.
Esses inimigos externos misteriosos são um elemento adicional do discurso batido de que haveria uma trama poderosa para tirar Bolsonaro do cargo. Até agora, no entanto, os únicos personagens que parecem conspirar com atores políticos de outros países são o próprio presidente brasileiro e seus aliados.
Bolsonaro levou o golpismo para uma turnê internacional. No dia 5, uma semana depois de admitir não ter provas de fraude nas urnas eletrônicas, ele sugeriu ter mencionado as falsas suspeitas para o presidente do Paraguai. Para piorar, disse que Mario Abdo Benítez ofereceu "alguns de seus servidores da Justiça Eleitoral, com a urna do Paraguai". Alguém deveria avisar ao brasileiro que nem ele nem governos estrangeiros têm poder para apitar na organização das eleições por aqui.
Naquela mesma data, o presidente citou as falsas suspeitas numa reunião com o assessor de Segurança Nacional americano, Jake Sullivan. O auxiliar de Joe Biden não comprou o besteirol: manifestou preocupação com a tentativa do governo de desacreditar o sistema de votação e disse crer que as eleições de 2022 no Brasil serão justas.
Nos últimos dias, o bolsonarismo lançou a semente da insurreição para personagens marginais da política dos EUA. Num evento organizado pelo estrategista Steve Bannon e pelo empresário Mike Lindell, Eduardo Bolsonaro repetiu a ladainha do pai e foi aplaudido pelos trumpistas.
O presidente e sua turma já começaram a preparar o terreno internacional para contestar uma eventual derrota nas urnas em 2022. A sorte é que nenhum governo sério vai apoiar a aventura golpista de Bolsonaro.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/08/bolsonaro-leva-golpismo-para-turne-internacional.shtml
A voz de Trump vem ao Brasil
Entre ex-presidente americano e Bolsonaro a diferença são os militares
Elio Gaspari / O Globo
A repórter Beatriz Bulla revelou que deve chegar ao Brasil no próximo domingo Jason Miller, ex-porta-voz de Donald Trump. Vem divulgar sua rede social, Gettr, criada para contornar a expulsão de Trump das grandes plataformas americanas. A Gettr tem 250 mil brasileiros listados. Entre eles estão Jair Bolsonaro e dois de seus filhos.
Miller foi uma testemunha privilegiada da ruinosa insurreição de 6 de janeiro, quando Trump tentou melar o resultado da eleição americana. Para quem viu o desfile do pelotão da fumaça em frente ao Palácio do Planalto na semana passada, o golpe de Trump era muito mais delirante.
À tarde, o vice-presidente Mike Pence presidiria a reunião do Senado que sacramentaria a eleição de Joe Biden.
Às oito da manhã, Trump sabia que tinha milhares de seguidores em Washington e falou com Jason Miller. Esperava que Pence aceitasse as objeções dos republicanos e revertesse o resultado: “Faça isso, Mike. Esta é a hora da coragem”, tuitou.
Pouco depois, Trump ligou para Pence, mas o vice disse que não tinha poderes para tanto. Seu papel seria apenas cerimonial. “Você não tem coragem”, respondeu Trump. Ele tinha um plano e foi para um comício perto da Casa Branca.
Por volta de meio-dia e meia, enquanto Trump discursava incitando a multidão, Pence soltou uma nota oficial informando que não reverteria o resultado da eleição. Às 12h58m começava a invasão da área do Capitólio.
Às 14h12m, a multidão estava nos corredores. Alguns gritavam “enforquem Pence”. O vice-presidente e os senadores foram retirados do plenário, e o vice foi levado para um lugar seguro. Trump tuitava: “Mike Pence não teve a coragem de fazer o que devia ser feito.”
Estava enganado. Agentes de segurança queriam levar Pence para uma base aérea, mas ele decidiu ficar no prédio. Às 16h, o vice-presidente telefonou para o secretário de Defesa informando que pretendia retomar os trabalhos e queria que o Capitólio estivesse livre dos invasores: “Mande a tropa, mande logo.”
Entre o instante em que Pence deixou o plenário do Senado e as 20h, quando voltou para sua cadeira, a insurreição estava contida. Passaram-se seis horas, durante as quais as instituições democráticas americanas foram postas à prova.
Donald Trump passou a maior parte do tempo grudado nas televisões. Com o tempo, vai-se saber quem ligou para quem, dizendo o quê.
Às 21h, quando Pence já havia recomeçado a sessão que confirmaria a vitória de Joe Biden, Jason Miller começou a redigir uma nota na qual Donald Trump aceitava que se procedesse a uma “transição ordeira”. Reconhecia a necessidade da transição, o que não significava que reconhecesse o resultado da eleição. Fosse qual fosse o plano que Donald Trump tinha na cabeça, estava acabado.
Trump e Bolsonaro
Durante as seis horas de caos em Washington, Bolsonaro pôs suas fichas no cavalo errado.
Ele disse o seguinte:
“Eu acompanhei tudo hoje. Você sabe que sou ligado ao Trump. Então, você sabe qual a minha resposta aqui. Agora, muita denúncia de fraude, muita denúncia de fraude. Eu falei isso um tempo atrás, e a imprensa falou: ‘Sem provas, presidente Bolsonaro falou que foi fraudada a eleição americana’”
Poucas vezes, houve tamanha afinidade entre um presidente brasileiro e seu colega americano. Quando Bolsonaro disse “sou ligado ao Trump”, apontava para uma conexão que vai além da simpatia.
Trump contestava a eleição de Joe Biden. Bolsonaro contestava não só a eleição americana, como também a brasileira do ano que vem.
Trump acreditou na cloroquina e na imunidade de rebanho. Bolsonaro também.
Trump recusou-se a usar máscaras e duvidou da utilidade do distanciamento social. Bolsonaro também.
Trump disse que o vírus foi uma criação chinesa. Bolsonaro também. (Fazendo-se justiça a Trump, ele só saiu com essa patranha depois que os chineses disseram que o vírus havia sido espalhado pelos americanos.)
Por mais delirante que Trump tenha sido na sua conduta durante a pandemia, não há vestígio de picaretas agindo com relativo sucesso na burocracia da saúde pública americana.
Trump encrencou com seu vice. Bolsonaro também.
Trump quis militarizar o feriado de 4 de julho nos Estados Unidos botando tanques nos jardins da Casa Branca. Bolsonaro desfilou blindados fumacentos diante do Planalto.
Trump e os militares
É no capítulo das relações com os militares que salta aos olhos uma diferença entre o que aconteceu nos Estados Unidos e o que acontece no Brasil.
Lá, como cá, apareceram militares da reserva propondo excentricidades. Um general trumpista da reserva queria colocar o país sob lei marcial. Ficou no palavrório.
O general Mark Miley, chefe do Estado Maior Conjunto dos EUA, sentiu cheiro de queimado na movimentação dos trumpistas antes do 6 de janeiro.
Vendo uma manifestação em Washington no dia 2, ele cravou: “Esse é um momento do Reichstag. O Evangelho do Führer”.
Era uma comparação com os assaltos de Hitler ao regime democrático da Alemanha.
Não há prova de que Trump tenha tentado mover tropas do Exército, Marinha ou Aeronáutica no seu pastelão.
Pelo contrário. Na tarde do dia 6, quem pediu tropas foram os democratas Nancy Pelosi e Charles Schumer.
No dia 8, quando Trump já estava no chão, Pelosi, presidente da Câmara, telefonou para o general Miley, argumentando que o presidente estava fora de si e poderia fazer outras maluquices. Ela especulava a possibilidade de declará-lo incapaz.
Quanto às maluquices (o uso de armas nucleares para criar um caso), Miley tranquilizou-a. Quanto à declaração da incapacidade de Trump, ele cortou:
“Eu não vou caracterizar o presidente. Não é meu papel.”
Serviço
Estão na rede três reconstituições das maluquices de Donald Trump, publicadas nos Estados Unidos.
Diante da pandemia:
“Nightmare Scenario“ (Cenário de Pesadelo), de Yasmeen Abutaleb e Damian Paletta.
Sobre o 6 de janeiro:
“Landslide” (Expressão em inglês para designar uma vitória folgada numa eleição), de Michael Wolff
“I Alone Can Fix It” (Eu Consigo Consertar Isso), de Carol Leonnig e Philip Rucker
Madame Natasha
Madame Natasha acompanha as sessões da CPI da Covid mascando cloroquina e decepcionou-se com a intenção dos senadores de acusar Bolsonaro por “charlatanismo e curandeirismo” durante a pandemia.
Charlatanismo, vá lá, mas falar em curandeirismo é uma ofensa aos muitos pajés do círculo de amizades da senhora.
O charlatão sabe que o óleo de peixe não cura reumatismo. Já o curandeiro acredita nas virtudes de suas poções.
Zé Arigó (1921-1971) foi um homem honesto. João de Deus, antes de ser apanhado em seus delitos sexuais, fez fama atendendo muita gente boa. Isso para não mencionar os milhares de pajés que cuidaram de indígenas. O cacique Takumã Kamayura (1932-2014) é hoje uma lenda para os povos do Xingu.
Natasha acredita que essa confusão é crendice de homem branco.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/a-voz-de-trump-vem-ao-brasil-25155834
Rio de Janeiro, DF
Merval Pereira / O Globo
A volta da capital para o Rio de Janeiro tem sido apontada como solução para a crise política e econômica que por anos vem dominando a cidade que, apesar dos pesares, continua sendo símbolo da nacionalidade, dentro e fora do país, a cidade brasileira mais visitada pelos estrangeiros.
Um trabalho da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) traz uma aprofundada visão sobre nossos problemas, e uma solução criativa: transformar o Rio de Janeiro em um segundo Distrito Federal, coisa que é na prática, a cidade mais “federal” do país.
O livro, organizado por Christian Edward Cyrill Lynch, Igor Abdalla Medina de Souza e Luiz Carlos Ramiro Junior, faz a defesa da federalização, e entende que salvar o Rio já não se trata de uma questão de segurança pública, mas nacional. As organizações criminosas tomaram conta da região metropolitana e espalharam seu domínio inclusive sobre outras partes do estado fluminense, o poder público não consegue exercer domínio sobre parte significativa do território e da população.
O diagnóstico é que, sendo a 2ª maior economia do país, com grandes polos de tecnologia e educação, convive com a estranha sensação de decadência. O Brasil inteiro perde com a crise do Rio de Janeiro, que deixou de ser um lugar de atração, mesmo sendo o ícone do Brasil para si e para fora.
O país desperdiça seu grande ativo, e os autores destacam o seu "uso" como capital simbólica pelo próprio governo federal: sediou a Eco-92, o Pan 2007, a Rio+20, a Olimpíada de 2016, além de servir de sede logística e das partidas finais das Copas das Confederações e do Mundo (2014).
Do ponto de vista da cultura e da história, a capital brasileira continua sendo o Rio: Paço Imperial, Biblioteca Nacional, Centro Cultural da Justiça Federal, Museu Nacional de Belas Artes, Museu Histórico Nacional, Museu da República, Museu Nacional etc. As sedes da Academia Brasileira de Letras (ABL) e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) são no Rio.
Também continua a exercer na prática o papel de um Distrito Federal oficioso. Segundo dados da Secretaria do Patrimônio, a União é proprietária de cerca de 1200 imóveis federais, parte substantiva deles subaproveitados. Triste exemplo é o prédio icônico do Ministério da Educação ( Palácio Gustavo Capanema) no centro da cidade, colocado agora num balaio de privatizações de prédios públicos. Um patrimônio histórico tombado por sua importância na arquitetura brasileira e mundial, que não tem preço.
Segundo dados do Ministério do Planejamento de 2016, o Rio sedia 1/3 dos órgãos da administração federal: Brasília é sede de 115 órgãos; o Rio, 67. O Rio de Janeiro também possui mais servidores federais civis do que o DF: são cerca de 250 mil contra de 175 mil do DF.
O Rio é a capital militar do Brasil. Segundo dados das Forças Armadas, o Estado do Rio reúne 22,4 % dos militares do Exército (o RS vem em segundo com 15,8 %); 35% da Aeronáutica (SP vem em segundo com 15,2 %); e 67,8 % dos militares da Marinha.
Dezenas de países têm duas capitais, como o Chile, a Bolívia, a Holanda, a Malásia, a Coreia do Sul. A África do Sul tem 3 capitais. Na prática, outros países têm também: Rússia (São Petersburgo, antiga capital, é uma cidade federal e sede do Tribunal Constitucional); Alemanha (Bonn sedia 1/3 dos ministérios e é também uma "cidade federal"). Na China, Xangai tem o mesmo estatuto jurídico "nacional" que Pequim. No Egito e na Indonésia estão construindo uma segunda capital.
O Rio é uma verdadeira metrópole, possuindo alta densidade demográfica, com um centro ativo de milhares de escritórios, sedes de bancos, sindicatos, universidades e associações, que lhe conferem massa crítica e o conteúdo democrático. Providências como o retorno de parte dos ministérios e, sobretudo, do Congresso Nacional, bem como a obrigação constitucional do presidente da República de aqui residir e despachar parte do ano, ajudaria a recuperar a credibilidade do Congresso Nacional e corrigir o déficit democrático de Brasília, criando condições de accountability indispensáveis à melhoria do padrão governativo e administrativo do país.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/rio-de-janeiro-df.html
A sobrevivência venceu
Reeleição é a forma de sobrevivência política em democracias e, por ela, alguns pagam qualquer custo
Carlos Pereira / O Estado de S. Paulo
A sociedade brasileira ficou chocada com os acontecimentos políticos ocorridos ao longo da semana, produzidos tanto pelo Executivo como pelo Legislativo.
O presidente Jair Bolsonaro radicalizou com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em sua defesa do voto impresso, inclusive com ofensas pessoais e ameaça de impeachment contra dois de seus ministros, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Mesmo tendo sido amplamente derrotado na Comissão Especial, forçou a votação no plenário da Câmara dos Deputados da proposta de reforma constitucional que tornaria o voto impresso obrigatório. Mobilizou inclusive um desfile de tanques das forças armadas, que mais se assemelhou a um “fumacê”.
Embora a PEC do voto impresso tenha sido derrotada no plenário da Câmara, vários parlamentares de oposição, que não fazem parte da base de apoio do presidente, votaram, surpreendentemente, a favor do voto impresso. Para completar, deputados aprovaram em primeiro turno a reforma do sistema eleitoral que referendou o retorno das coligações partidárias nas eleições proporcionais, que tem estimulado a proliferação de partidos.
O que explica esses acontecimentos até certo ponto inusitados?
Bolsonaro, por mais que almeje, sabe que não tem condições políticas de implementar qualquer retrocesso institucional na democracia brasileira. A sociedade, o Congresso e as organizações de controle têm dado demonstrações de força e de capacidade de impor restrições e derrotas sucessivas ao presidente. Diante dos fortíssimos desgastes com a gerência da pandemia da covid-19, inclusive entre parcela significativa de seus eleitores de 2018, tem ficado cada vez mais claro que Bolsonaro perdeu competitividade eleitoral. Os institutos de pesquisa indicam que a sua reeleição em 2022 está cada vez mais improvável.
Bolsonaro anda no “fio da navalha”. Se moderar demasiadamente seu discurso e atitude, sinalizando que se rendeu ao presidencialismo de coalizão, diminui as chances de ter seu mandato abreviado, mas corre sérios riscos de ver sua base eleitoral perder coesão e desagregar. Por outro lado, se passar do ponto na sua radicalização com as outras instituições, pode se isolar ainda mais perdendo competitividade eleitoral e viabilidade política de terminar seu mandato. Portanto, embora tenha de calibrar, não pode prescindir de seu discurso belicoso e autoritário para sobreviver.
Com relação aos deputados de oposição que votaram a favor do voto impresso, é importante não esquecer que 2021 é ano pré-eleitoral. Os deputados sabiam que o voto impresso não iria passar. Por que se desgastar com um Executivo que tem discricionariedade para executar um orçamento bilionário de emendas de relator?
Mesmo que a posição favorável ao voto impresso venha a lhes gerar desgastes eleitorais, esses parlamentares garantiram recursos orçamentários às suas bases eleitorais via execução de emendas de relator, capitais para a sua reeleição. Só quem fazia oposição sistemática a Bolsonaro e, portanto, não tinha esperança de ter acesso a tais recursos, é que se sentiu motivado a votar contra o voto impresso.
Também pode ser atribuído à sobrevivência eleitoral a decisão da grande maioria dos deputados dos mais variados partidos de aprovar o retorno das coligações proporcionais. Quase 95% dos deputados federais da atual legislatura não atingiram sozinhos o quociente eleitoral. Ou seja, necessitaram das sobras de outros partidos coligados para se eleger. A taxa de reeleição de deputados, que costumava ser de 68%, caiu para 53% nas eleições de 2018.
Diante desta evidente falta de estabilidade da carreira parlamentar, a racionalidade individual dos deputados levou-os a priorizar a sua sobrevivência, mesmo diante dos custos de perpetuação da hiperfragmentação partidária e em detrimento da qualidade de representação e da governabilidade.
Mais uma vez, a sobrevivência eleitoral falou mais alto.
*Professor Titular FGV/EBAPE, Rio de Janeiro
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-sobrevivencia-venceu,70003811539
Míriam Leitão: A construção e o desmonte da democracia brasileira
Míriam Leitão / O Globo
A democracia brasileira foi construída no solo. Foi o resultado de uma vasta resistência nacional travada, incansável e dolorosamente, em planos diversos. Temos mortos como testemunhas. Não foi o resultado automático do fim da Guerra Fria, nem mesmo a concessão de generais da “abertura”. Foi conquista nossa. Países de instituições definidas como “maduras” também sofrem nestes tempos de governantes que chegam ao poder pelo voto e conspiram contra o edifício democrático. O 6 de janeiro em Washington serve para nos lembrar que não há nação a salvo de um presidente deletério.
Cada semana tem trazido uma coleção de horrores perpetrados por Bolsonaro e seus apoiadores. Mas a última foi excessiva. O ridículo desfile militar na Esplanada exigido pelo presidente foi revelador da falta de espinha dorsal dos comandantes militares. Eles fazem qualquer papel imposto a eles, aceitam todas as humilhações e, depois, vão entregar a alguns ouvidos garantias de que não respaldarão um golpe. Ora, já o estão respaldando.
A prisão de Roberto Jefferson não surpreende e ele deve ter até gostado, porque fez tudo o que podia para chamar atenção em postagens radicais e grotescas. Mas é o tal negócio, as instituições não podem se dar ao luxo de fingir que não estão vendo o doido. Se ele pratica crime à luz do dia, precisa responder por isso, e o ministro Alexandre de Moraes agiu bem. Mas foi esse sujeito caricato, figurinha repetida de todos os escândalos, que esteve dias atrás no Palácio do Planalto para um encontro com o presidente e o sempre servil general Eduardo Ramos.
Na economia, também foi lenta e difícil a construção de instituições que garantiram a estabilidade da moeda. E elas estão sob ameaça. Para atingir o objetivo de fortalecer as chances de Jair Bolsonaro permanecer no poder estão sendo desrespeitadas as balizas fiscais do país. As dívidas judiciais serão parceladas e passarão a constar de uma contabilidade paralela, despesas foram excluídas do teto de gastos, a regra de ouro foi revogada na prática, uma reforma do Imposto de Renda pode ser votada na correria para financiar um aumento demagógico do gasto social, a execução do Orçamento perdeu transparência.
Alguns economistas que estão no governo podem não ter essa noção, mas o panorama é inegável. O Ministério da Economia está a serviço do projeto de poder autoritário de Bolsonaro. É impossível não ver o desmonte fiscal promovido pelos muitos “jeitinhos” dados a cada vez que o ministro Paulo Guedes cede ao presidente. Que economista sério acha que faz sentido, a esta altura, aprovar uma renúncia fiscal em favor do consumo do diesel ou incentivar um programa para o uso do carvão? Isso é absurdo fiscal, energético, econômico e ambiental.
A política social também foi resultado de construção minuciosa. Na democracia, especialistas em transferência de renda construíram as bases para as novas políticas, distantes do velho assistencialismo, e que foram do Bolsa Escola ao Bolsa Família, ao Brasil sem Miséria. Não se improvisa nisso. É preciso ter conhecimento, sensibilidade, capacidade de formulação. O ministro Paulo Guedes está fazendo o que prometeu naquela reunião ministerial de 22 de abril de 2020. “Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente.” Com o objetivo de usar os pobres está sendo feito o projeto mal desenhado do Auxílio Brasil. Um governo realmente preocupado com a promoção social iria, por exemplo, cumprir a lei que manda fornecer internet para alunos e professores nas escolas públicas. O governo Bolsonaro vetou a lei, o veto foi derrubado, e Bolsonaro então baixou MP para não cumprir seu dever.
O fim da ditadura foi o começo de várias conquistas. A estabilização da economia, a política social eficiente, regras de responsabilidade fiscal, independência do Ministério Público, respeito aos órgãos como Polícia Federal, Coaf, Receita Federal, Ibama, ICMBio, Inpe, IBGE. O governo Bolsonaro tem atacado cada parte do edifício democrático. Não é um golpe. São vários golpes. Contudo, como nos anos 1970, a resistência está em ação através de inúmeras pessoas. Entender a natureza do processo que nos garantiu a democracia é parte da resistência à sua demolição.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/construcao-e-o-desmonte.html