pandemia de covid-19
Vacina contra covid chega à rede privada; entenda como vai funcionar
Giulia Granchi, BCC news Brasil*
Se no começo de 2021 ansiávamos pelo dia em que alguma vacina contra a covid-19 chegaria ao Brasil, passados 18 meses, a quantidade dos imunizantes em território nacional é suficiente para atender a toda a população - e com folga, o que abriu espaço para que doses chegassem ao sistema privado.
O encerramento da "Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional pela Covid-19" pelo Ministério da Saúde impactou leis e normas estabelecidas para o enfrentamento da pandemia, permitindo que as vacinas licenciadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) pudessem ser oferecidas pelos serviços privados de vacinação.
Quem pode tomar a vacina na rede privada?
A liberação, no entanto, não significa que uma nova dose deva ser tomada por qualquer um que deseje reforçar a imunidade.
"Devemos respeitar as indicações do MS [Ministério da Saúde] sobre os grupos que precisam receber novas doses, porque a indicação deve ser sempre pautada em dados. Esses dados são embasados em necessidade epidemiológica, levando em consideração quem está em risco e o custo-benefício da vacinação", diz Flávia Bravo, diretora da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).
Atualmente, as recomendações são de dose de reforço para adolescentes 12 a 17 anos, preferencialmente com a vacina da Pfizer, até a terceira dose para pessoas com mais de 18 anos e quarta dose para imunossuprimidos e idosos acima de 60 anos - com a previsão de ampliação da faixa etária para 50 anos ou mais em breve, de acordo com declarações recentes de Marcelo Queiroga, ministro da Saúde.
A legislação brasileira prevê que a aplicação de qualquer vacina que não esteja contemplada no PNI (Programa Nacional de Imunização) ou PNO (Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19) - ou seja, que não sigam o indicado acima - requer prescrição médica.
"Não podemos inventar indicações que não são pautadas no MS e nem em licenciamento de bula. Se a clínica privada ainda assim resolver aceitar uma receita médica de uma pessoa que não tem o perfil indicado, o responsável técnico do lugar é corresponsável por algo que possa vir a acontecer com aquele indivíduo. O papel da clínica não é só aplicar, mas sim participar da farmacovigilância, registrar e acompanhar efeitos adversos, assim como saber como conduzir o paciente", aponta Bravo.
Qual é a vacina disponível em clínicas privadas?
A primeira a ser disponibilizada para a rede privada é a vacina de vetor viral fabricada pela AstraZeneca, importada dos Estados Unidos, cujo nome comercial é Vaxzrevia®.
Ela está licenciada globalmente para uso a partir de 18 anos e tem mesma plataforma e formulação da vacina produzida pela Fiocruz: utiliza como vetor adenovírus de chimpanzé que carreiam genes que codificam a proteína S (Spike) do vírus Sars-CoV-2.
A tendência, de acordo com a diretora da SBIm, é que outras fabricantes cheguem ao mercado privado com o passar do tempo.
Há vantagens no oferecimento de vacinas pela rede privada?
Na opinião de Flávia Bravo, sim, por ser mais uma possibilidade para a população.
"É uma opção para quem não quer ir a uma unidade pública, ou para alguém, por exemplo, que tenha um problema de mobilidade e prefira ser atendido em casa. De qualquer forma, contribui para o aumento da cobertura vacinal, que se encontra estagnado."
Qual será o preço da vacina?
De acordo com a ABCVAC (Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas), o preço de venda do imunizante na fábrica é de R$ 151, valor definido pela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos).
Cada clínica compõe então o seu preço pelo serviço da aplicação, que pode variar por região.
"Estimamos que custe entre R$ 300 e 350 reais para o consumidor final, devido a custos com logística, armazenamento, seguro e aplicação", diz a nota destinada à imprensa.
Em quais locais privados a vacina é oferecida?
Ainda não há um levantamento que mostre quais clínicas têm ou pretender oferecer a vacina contra a covid-19.
O acordo é feito diretamente entre o fabricante e o responsável pelo estabelecimento, e por isso, não há dados públicos que indiquem locais específicos. Para quem tem indicação de nova dose, o melhor é entrar em contato com a clínica.
Algumas clínicas estão fazendo levantamento de pessoas interessadas nas doses antes de oferecer, já que um lote com 10 doses tem validade de 48 horas, e não forem aplicadas, precisam ser jogadas fora.
"Seja no sistema público ou privado, desperdício de um produto tão valioso é um pecado", comenta Bravo.
Clínicas terão que registrar dados no sistema nacional
Assim como os postos públicos, as clínicas privadas têm o dever de registrar doses aplicadas no sistema integrado nacional, para contabilização de doses por grupo populacional, Estados e municípios, visando a avaliação de cobertura e análise de campanha e também a consulta do cidadão através do ConecteSUS.
É correto oferecer vacinas em clínicas privadas enquanto há países sem doses?
De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), 21 países do mundo não haviam vacinado nem 10% de suas populações contra a covid-19 até o meio de abril.
Ao todo, 68 países também não haviam atingido a meta de 40% de cobertura vacinal, que foi estabelecida pela entidade para o final do ano passado.
No entanto, na avaliação da diretora da SBim, a missão de tornar a distribuição mais igualitária não cabe a um país específico, mas sim a entidades e organizações globais em acordo com fabricantes.
"Nenhum país tem obrigação para comprar e dar. O que o Brasil tem uma produção que supre o nosso mercado no sistema público - se oferecêssemos de forma privada antes disso, aí sim, poderia ser considerado imoral. Essa visão cabe às organizações, e infelizmente o Covax [iniciativa cojunta da OMS, Aliança Gavi e CEPI, Coalition for Epidemic Preparedness Innovations que tem como objetivo distribuir vacinas a países que não têm], não fez tudo aquilo que esperávamos."
*Texto publicado originalmente no BBC news Brasil
A esperança que habita nos cantos do Brasil desolado pela pandemia
Além de um estado de luto constante, a pandemia trouxe fome para milhões de brasileiros. A desigualdade é desoladora, e parece não haver saída. Mas basta olhar para os cantos para ver a possibilidade de outros Brasis
Ynaê Lopes dos Santos / DW Brasil
Temos motivos de sobra para estarmos cansados, desgostosos, exaustos e profundamente tristes.
Ainda atravessamos uma pandemia que transformou a vida de todos/as, nos obrigando a enfrentar a morte e o medo dela o dia todo, todos os dias. Num estado de luto constante, mesmo quando não conhecemos nenhum dos mais de mil mortos do dia. E se não bastasse termos que andar de mãos dadas com a morte, para muitos de nós a vida de antes não existe mais.
São as horas em frente às telas, na tentativa de reinventar as conexões. São sorrisos que agora vislumbramos pelo canto ou pelo brilho dos olhos, quando muito. São os abraços engasgados, como nós na garganta, que transformaram os cotovelos em objetos de afeto e afeição. Entrar num transporte público com inúmeros receios. Perder o emprego, o chão. É olhar para uma aglomeração e achar estranho, saber ser errado, mesmo com tanta saudade. É não saber direito onde estamos, nem para onde iremos. E mesmo assim, continuar caminhando.
É também a volta da fome. Muitos de nós estamos vivendo uma enorme fome de diversão e arte – aspectos que sempre fizeram parte das "coisas boas da vida". Mas essa é uma fome que tem CEP certo, e que, infelizmente, não é a pior de todas.
O Brasil vive o agravamento da fome por sobrevivência. Nos últimos dias têm aparecido no noticiário pessoas formando fila para pegar ossos de boi, tendo em vista os preços exorbitantes da carne. O nosso arroz com feijão (combinação que garante a base alimentar de milhões de brasileiros) está tão caro, que agora temos uma versão "mais pobrinha", composta por fragmentos de arroz e bandinhas de feijão. Grãos fracionados que, embora liberados para o consumo humano, demonstram bem a situação que estamos vivendo: a falta de inteireza. E também falta leite, pão, dinheiro para o gás de cozinha.
Dentre os 210 milhões de brasileiros, aproximadamente 19 milhões estão passando fome. Um dos países que mais produz carne e grãos em todo o mundo permite que quase 10% de sua população esteja faminta. Uma constatação que, de tão perversa, chega a ser irônica.
De fato, estamos dentro de um quadro desolador, no qual a desigualdade é nosso denominador comum, e nem sei bem o quanto isso nos indigna. Parece não haver saída. No entanto, a sobrevivência de uma grande parcela da população brasileira é a constatação da perversidade do sistema em que vivemos, mas também a possibilidade de pensarmos a vida e construirmos um mundo a partir de outras possibilidades.
Se olharmos com atenção para os cantos, como bem nos lembra o belo samba de Dona Ivone Lara, teremos uma nova perspectiva. Que não anula a violência que nos cerca, nem a fome que nos assola, mas que nos dá um sopro de esperança, nos lembrando que também somos feitos de (em)canto.
Esta semana começou com o dia 25 de julho, o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. O dia de mulheres que, historicamente, estiveram fadadas a sobreviver… Mulheres que só puderam ver a esperança nos cantos, e não no centro de suas vidas. A escolha por trás da comemoração deste 25 de julho tem uma história toda especial. A história de Tereza de Benguela, uma mulher escravizada (não sabemos ao certo se nascida no Brasil ou em alguma sociedade africana), que em meados do século 18 se tornou a liderança máxima do Quilombo de Quariterê, no que hoje é o estado do Mato Grosso.
Ao longo de quase 20 anos, a rainha Tereza de Benguela chefiou uma comunidade que se colocava abertamente contrária à sociedade escravista e colonial da época. O quilombo era formado por homens, mulheres, negros e indígenas que produziam alimentos para subsistência, além de criarem animais de pequeno porte e plantarem algodão. Em Quariterê não havia escravidão, e ninguém passava fome. E se isso não bastasse, o quilombo era governando por meio de um sistema parlamentar, que reconhecia em Tereza de Benguela a autoridade máxima.
O que se viu naquele "canto do Brasil" foi uma outra forma de viver. Sob o comando de uma mulher negra houve esperança, e também outra experiência de vida marcada pela liberdade e pela inteireza. Foi possível experimentar o que Beatriz Nascimento chamou de paz quilombola.
E mesmo que o fim da rainha de Quariterê tenha sido trágico, sua história é um lembrete de que outros mundos são possíveis. E Tereza de Benguela não foi exceção. Nos cantos do Brasil, temos as histórias de inúmeras mulheres (e de muitos homens) cujo norte não era o medo de se tornarem menos ricos. Histórias de sobrevivência, mas também de reinvenção, de resistência. Outros Brasis que foram imaginados e sonhados.
Essas outras possibilidades de Brasil atravessaram toda nossa história e chegaram aos dias de hoje. Estão na memória de Marielle Franco, no "Baile de Favela" de Rebeca Andrade (prata nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020), nas pesquisas científicas de Jaqueline Goes de Jesus, nos bordados de Rosana Paulino, na voz rouca e certeira de Elza Soares, e nas lutas diárias de tantas outras mulheres rememoradas neste 25 de julho.
Ainda há esperança. Que nossos cantos possam inundar o Brasil inteiro.
Ynaê Lopes dos Santos é mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/a-esperan%C3%A7a-que-habita-nos-cantos-do-brasil/a-58686142