pais do futuro
Bernardo Mello Franco: Um país na escuridão
O governo alegou falta de verbas e cancelou o Censo de 2021. A pesquisa estava programada para 2020, mas foi adiada por causa da pandemia. Agora arrisca não acontecer nem em 2022, devido a cortes sucessivos no orçamento do IBGE.
A decisão condena o Brasil a um apagão estatístico. Não chega a ser uma surpresa. Os burocratas do bolsonarismo sempre desprezaram fatos e dados confiáveis. Preferem acreditar nas suas próprias versões.
No segundo mês de governo, o ministro Paulo Guedes reclamou que o questionário do Censo seria muito longo. “Se perguntar demais, você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber”, declarou. A frase espantou técnicos que o ouviam pela primeira vez. Era só um sinal do que estava por vir.
A pretexto de economizar, Guedes ordenou a redução do levantamento previsto para o ano seguinte. Ao justificar o corte, disse que o Censo fazia 360 perguntas. Na verdade, a última pesquisa básica fez 49. O ministro insistiu na tese. “Custa muito caro e tem muita coisa que não é tão importante”, decretou.
A ordem para mutilar o questionário abriu uma crise no IBGE. Técnicos avisaram que a medida comprometeria a qualidade do Censo. A presidente Susana Cordeiro Guerra não quis saber. Acatou a ordem do chefe e demitiu dois diretores que contestavam o corte.
No mês passado, foi a vez de Susana pedir o boné. Estava contrariada com a aprovação do Orçamento sem as verbas necessárias para organizar o Censo. Ela sabia que a pesquisa seria cancelada, mas não quis reconhecer o fiasco. Preferiu atribuir a saída a “motivos pessoais”.
Os ataques ao IBGE começaram logo após a eleição de Jair Bolsonaro. Em novembro de 2018, o capitão afirmou que os dados sobre o desemprego eram “uma farsa”. Cinco meses depois, disse que o índice só servia para “enganar a população”.
O negacionismo também atingiu outros órgãos federais. Quando o desmatamento da Amazônia começou a disparar, o presidente acusou o Inpe de divulgar “números mentirosos”. Seu diretor, o cientista Ricardo Galvão, foi demitido e chamado de “mau brasileiro”.
Na pandemia, o Ministério da Saúde comandou uma operação para maquiar os dados de mortos pela Covid. Os veículos de comunicação tiveram que montar um consórcio para apurar a real dimensão da tragédia.
Como alertaram oito ex-presidentes do IBGE, o cancelamento do Censo põe o Brasil num pequeno clube de países há mais de 11 anos sem uma pesquisa nacional. Nos casos de Líbia, Afeganistão e Haiti, o problema é consequência de guerras e terremotos. No Brasil, a causa é o desgoverno.
O apagão estatístico vai comprometer a formulação e a execução de políticas públicas. Causará prejuízos à saúde, à educação, ao transporte e à moradia. Deixará o país sem informações essenciais para planejar sua reconstrução pós-pandemia.
Para Bolsonaro, o cancelamento da pesquisa pode ter uma utilidade. Os dados jogariam luz sobre o tamanho da destruição promovida nos últimos anos. Sem conhecê-los, o eleitor terá que ir às urnas na escuridão.
Merval Pereira: O futuro adiado
Ao ler que o prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa declarou apoio a Keiko Fujimori na disputa presidencial do Peru, alegando ser ela “o mal menor” diante o candidato de esquerda Pedro Castillo, fui tomado por uma sensação desalentadora de futuro adiado que experimento há anos, em relação ao Brasil e à nossa região.
Nós também no Brasil votamos no “mal menor”, raras vezes em um projeto de governo. Em busca permanente do “salvador da pátria”, acabamos escolhendo o “erro novo”. Jair Bolsonaro em 2018, Collor em 1989. Agora, possivelmente ficaremos em 2022 diante de dois “erros antigos”.
Lula, liberado pela Justiça para concorrer à eleição, deixa de ser “ficha suja”, sem ser “ficha limpa”, num paradoxo tão brasileiro que faz com que um ministro do Supremo, o “novato” Nunes Marques, vote a favor e contra a mesma ideia.
Ele considerou, na Segunda Turma, que o ex-juiz Sérgio Moro não é suspeito, mas aceitou, por questões regimentais controvertidas, que prevalecesse no plenário com seu voto a tese da falta de isenção de Moro no julgamento do triplex do Guarujá. A ministra Carmem Lucia mudou também de voto, de insuspeito para suspeito, em meio ao julgamento. Assim como ministro Gilmar Mendes votou a favor e contra a prisão em segunda instância, em julgamentos distintos, e ajudou a salvar Lula, assim como ajudara a prendê-lo. Lula foi vítima e beneficiário desses “passos trôpegos”, da balbúrdia jurídica oferecida pelo Supremo.
Apenas dois presidentes depois da redemocratização foram eleitos por projetos políticos: Fernando Henrique em 1994, com o Plano Real, e Lula em 2003, como alternativa ao que chamava de projeto neoliberal. Os dois foram reeleitos em 1988 e 2006, esgotando as últimas reservas dos projetos vitoriosos.
Lula chegou ao poder em 2003, depois de perder quatro eleições, porque se reinventou criando o personagem Lulinha Paz e Amor. E lançou a Carta aos Brasileiros. Mas também porque o segundo governo de Fernando Henrique, que teve méritos evidentes como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Rede de Proteção Social, origem do Bolsa-Família, dos genéricos e do combate à Aids, ficou marcado pela desvalorização do Real logo nos primeiros dias, o apagão de energia e a economia em situação difícil.
Paradoxalmente, para acalmar o mercado financeiro, Lula teve que escrever a Carta aos Brasileiros onde se comprometia a manter o tripé da política econômica: câmbio flutuante, meta de inflação e equilíbrio fiscal. Foi isso que garantiu o bom desempenho econômico no primeiro governo Lula, e o tripé é a base da política econômica até hoje. Ou era, pois o Centrão está aos poucos minando esse tripé, com o auxílio de Bolsonaro que, candidato à reeleição, escolhe aumentar os gastos.
O julgamento do STF que decidiu pela suspeição do juiz Sérgio Moro foi uma grande vitória política do ex-presidente Lula, e uma grande derrota do combate à corrupção do Brasil, que não cansa de regredir. Um país que teve avanço brutal no combate à corrupção volta à estaca zero, supostamente na defesa do estado de direito, de um justo julgamento. Um ministro como Ricardo Lewandowski, que admite que os diálogos roubados por um hacker são provas ilícitas “mas, enfim, foram amplamente divulgadas”, não deveria poder falar sobre suspeição.
Nem diante de todo o escândalo revelado, as forças políticas que continuam no poder, e a manter controle da situação, sempre encontram jeito de prevalecer, mesmo depois de cinco, seis anos. Tanto o combate à corrupção quanto o equilíbrio fiscal foram conquistas da sociedade brasileira, mas estão colocadas em perigo por um governo que se elegeu justamente para defendê-las.
O país do futuro de Stefan Zweig vai sendo eternamente adiado para ficar do tamanho de sua elite política e empresarial. E seguimos elegendo o populista da vez, revezando entre esquerda e direita, sem entendermos que o mundo lá fora, pelo menos o mundo que funciona, já está em outro patamar, discutindo o futuro.