pacto civilizatório

Congresso Nacional com filtro escurecido | Foto: rafastockbr/Shutterstock

Nas entrelinhas: PEC da eleição é um retrocesso civilizatório

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Para o historiador Niall Ferguson, autor de Civilização, Ocidente versus Oriente (Editora Crítica), a chave do sucesso do modelo anglo-americano de sociedade está sintetizada num discurso de Winston Churchill, de 1938, no qual ele disse que a diferença entre Ocidente e Oriente estava baseada na opinião dos civis. “Significa que a violência, o governo de guerreiros e líderes despóticos, as situações de campo de   concentração e guerra, de baderna e tirania, dão lugar a parlamentos, onde são criadas as leis, e a cortes de Justiça independente, onde essas leis são mantidas por longos períodos.”

“Isso é Civilização — e em seu solo crescem continuamente a liberdade, o conforto e a cultura”, complementou, para arrematar: “Quando a civilização reina em um país, uma vida mais ampla e menos penosa é concedida às massas. As tradições do passado são valorizadas e a herança deixada a nós por homens sábios e valentes se torna um estado rico a ser desfrutado e usado por todos. O princípio central da Civilização é a subordinação da classe dominante aos costumes do povo e à sua vontade, tal como expresso na Constituição (…)”.

São considerações de ordem conservadora e inspiradas no esplendor do Império Britânico, de parte de um político aristocrático que já assistira ao colapso do colonialismo, a partir da I Guerra Mundial, e estava diante do ameaçador domínio continental da Alemanha nazista. Ferguson cita o primeiro-ministro britânico que confrontou Hitler no capítulo de seu livro que trata da questão da propriedade. O historiador busca uma explicação para o fato de que a visão de Churchill não criou as mesmas raízes ao sul do Rio Grande, ou seja, na América Ibérica, uma história que começa com dois navios: um em 1532, com 200 guerreiros que desembarcaram ao norte do Equador para conquistar o Império Inca; e outro, 138 anos depois, numa ilha da Carolina do Sul, desembarcando servos por contratos em busca de um mundo melhor a partir do próprio trabalho.

Hoje, a civilização anglo-americana, hegemônica no Ocidente, está sendo reafirmada na Guerra da Ucrânia, na qual os Estados Unidos e a Inglaterra, aliados ao primeiro ministro Volodymir Zelensky, por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mesmo estando fora da União Europeia, dão as cartas no Velho Continente. Desbancam a Alemanha e a França, encurralam a Rússia contra os Urais e constroem novos obstáculos à Nova Rota da Seda da China. No seu livro, otimista, para Ferguson, o Brasil seria o país da América Latina que mais estaria reduzindo sua distância em relação aos padrões anglo-americanos. Será?

Enquanto o Chile acaba de concluir uma nova Constituição, que vai substituir aquela que o país herdou do ditador Augusto Pinochet, mas ainda precisa ser referenciada por um plebiscito, o Congresso brasileiro escala uma bagunça institucional. Uma emenda à Constituição já aprovada pelo Senado, o nosso templo da conciliação, com um único voto contrário, do senador José Serra (PSDB-SP), agora engorda os seus jabutis na Câmara, que serão embarcados na legislação tributária, no pacto federativo, na política de preços da Petrobras, e implodirão o equilíbrio fiscal, a estabilidade da moeda e a paridade de armas da legislação eleitoral.

PEC da eleição

O relator na Câmara da Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que concede uma série de benefícios sociais em ano eleitoral, deputado Danilo Fortes (União-CE), manterá o texto aprovado no Senado, com o propósito de agilizar sua aprovação. A três meses das eleições, a PEC tem por objetivo garantir a recondução do presidente Jair Bolsonaro, com medidas de caráter populista, que não poderiam ser aprovadas a menos de 100 dias das eleições. Para isso, porém, deve recorrer à legislação do estado de emergência, a pretextos da guerra da Ucrânia, a nova desculpa para os fracassos governamentais.

Sim, talvez a eleição presidencial esteja sendo decidida nesta semana, com as seguintes medidas: ampliação do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 mensais, com inclusão de mais 1,6 milhão de novas famílias no programa (R$ 26 bilhões); a criação de um voucher de R$ 1 mil para caminhoneiros (R$ 5,4 bilhões); ampliação do vale-gás de R$ 53 para R$ 112,60 (R$ 1,05 bilhão); compensação aos estados para transporte público de idosos (R$ 2,5 bilhões); benefícios para taxistas (R$ 2 bilhões); repasse de R$ 500 milhões ao programa Alimenta Brasil, para compra de alimentos produzidos por agricultores familiares e distribuição a famílias em insegurança alimentar; e repasse de até R$ 3,8 bilhões, por meio de créditos tributários, para a manutenção da competitividade dos produtores do etanol sobre a gasolina.

Há um estranho e perverso pacto entre Bolsonaro, o Centrão e a oposição. O Congresso contrapõe aos arroubos autoritários do presidente da República um regime de partidocracia, institucionalmente macabro, que obstrui a renovação política. No curto prazo, será grande estelionato eleitoral: as medidas vigorarão até 31 de dezembro. Depois, quem for o eleito, decidirá como pôr a economia de volta aos trilhos da responsabilidade fiscal e do crescimento sustentável.

Para o Palácio do Planalto e seus aliados governistas, a reeleição de Bolsonaro depende do sucesso dessas medidas. Favorito nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aposta no seu fracasso, mas as apoia. Teme repetir o erro do Plano Real, contra o qual se opôs no governo Itamar Franco, em 1994, enquanto Fernando Henrique Cardoso pavimentava seu acesso ao Palácio do Planalto com a nova moeda. No longo prazo, o retrocesso da nossa ordem econômica será uma tragédia anunciada. A estabilidade institucional das economias é uma das chaves do desenvolvimento e do processo civilizatório no mundo globalizado.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pec-da-eleicao-e-um-retrocesso-civilizatorio/

Putin reescreve a história. Apontamentos de São Petersburgo

Nicolò Sorio, Formiche*

A expectativa era alta, alimentada também pelo porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, que apresentara o discurso do presidente russo como “extremamente importante”. Apesar do atraso de cerca de uma hora, devido a um ataque hacker, Vladimir Putin não traiu as expectativas: “A época do mundo unipolar terminou, isto é iniludível, apesar das tentativas de conservá-la. Trata-se de uma mudança natural da História que irá de encontro aos estereótipos impostos por um só centro decisório, com uma só potência que controla os Estados a ela vizinhos e faz tudo no seu interesse exclusivo. Depois de vencer a Guerra Fria, os Estados Unidos sentem-se os mensageiros de Deus. Seus governantes são pessoas que não têm nenhuma responsabilidade, mas só cultivam os próprios interesses, criando uma rota que torna o mundo instável”.

O discurso, e em particular este trecho, sufraga o que foi a mudança de percurso operada pela Federação Russa no último decênio e permite fazer uma reflexão de mais amplo fôlego sobre a posição de Moscou em relação ao ambiente internacional. Os últimos anos podem ser lidos através da passagem fundamental da Federação Russa de potência insatisfeita a potência revisionista. Todas as matrizes de insatisfação que a Rússia amadurecera no pós-Guerra Fria (e não só) são postas a serviço de um projeto explicitamente voltado para subverter a ordem internacional liberal, a ordem internacional sob a direção estadunidense (ou pelo menos para orientá-la no sentido de uma estrutura mais compatível com os interesses e as expectativas da Rússia).

O conflito ucraniano enquadra-se perfeitamente neste sentido e pode ser lido, através da lente interpretativa de Moscou, como possível solução para os dois problemas/objetivos fundamentais do revisionismo russo. O primeiro é um objetivo distributivo: a Rússia reivindica uma zona, o espaço pós-soviético, de influência privilegiada, quando não exclusiva, considerada tradicionalmente em termos de “civilização”. O segundo é um problema reputacional: o reconhecimento do status de grande potência. A Rússia, neste sentido, ambiciona voltar ao centro do sistema de segurança europeu, e não só.

Durante seu discurso, Putin se disse pronto para enfrentar qualquer desafio: “Somos pessoas fortes e podemos enfrentar qualquer desafio. Como nossos antepassados, resolveremos qualquer problema, é o que fala toda a história milenar do nosso País”, reconectando-se a outra diretriz fundamental que constitui a política exterior russa: a autopercepção russa. O último decênio foi caracterizado pela construção de uma precisa narrativa inerente à civilização russa ("rossiiskaya"), uma concepção paraétnica da comunidade russa e russófona, baseada nas suas especificidades e no seu papel na era internacional. Os elementos-chave desta narrativa dizem respeito à convicção de que a Rússia desfruta de um direito natural, corroborado pela própria geografia, à imposição das regras do jogo político internacional e à formação de um patriotismo organicista, antitético àquele etnicista de molde ocidental.

O Fórum de São Petersburgo é, antes de tudo, um fórum econômico, e amplo espaço no discurso de sexta-feira foi dedicado ao tema das sanções ocidentais. Sobre este tema Putin reiterou a inutilidade do mecanismo europeu de sanções e o inevitável efeito bumerangue que terá sobre a economia ocidental: “Queriam quebrar nossas cadeias produtivas. Não conseguiram. Tudo o que se diz sobre o estado da nossa economia é só propaganda. Eles estão se autopunindo, porque sua crise econômica, que certamente não foi causada pela nossa Operação Militar Especial, fará nascer dentro dos seus países elementos radicais e de degradação que, em futuro próximo, levarão a uma substituição de elites. A União Europeia está arruinando sua própria população, ignorando os próprios interesses. Nossas ações no Donbass nada têm a ver com isso, a inflação e a escassez de matérias-primas são o resultado dos seus erros de sistema. Mas eles usam o Donbass como uma desculpa que lhes permite atribuir a nós todos os erros feitos nestes anos”.

No curso da intervenção relevantes foram as considerações sobre as relações entre Moscou e a Europa: “A União Europeia perdeu completamente sua soberania política”. A acusação é a de ter-se prostrado sob a égide estadunidense, negligenciando os próprios interesses nacionais. Este trecho deve ser interpretado levando em consideração a particular percepção que a Federação Russa tem do Velho Continente. A representação coletiva russa da Europa é bifronte. Por uma parte, é percebida como um modelo a ser observado em termos de progresso: à Europa se reconhece um papel histórico na construção da identidade russa (Moscou como terceira Roma) e no desenvolvimento econômico industrial. Por outra, é vista como um covil de vícios, emblema da decadência ocidental, à qual se deve necessariamente contrapor a ortodoxia russa.

Ao fim desta intervenção, que durou cerca de uma hora, foi reservado um espaço para algumas perguntas da plateia. Em particular, surpreende a pergunta relativa ao suposto estado de saúde do presidente da Federação Russa, à qual o próprio Putin responde, parafraseando a conhecida frase de Mark Twain: “Os boatos sobre minha morte são muito exagerados”.

* Analista geopolítico, em Geopolítica.info. Texto originalmente em Formiche


O que está em jogo no Brasil é ruptura do pacto civilizatório de 1988

Constante deslegitimação das instituições democráticas colocam em xeque a possibilidade de um país menos desigual

Ricardo Machado / IHU Online

O clima de sucessão presidencial no Brasil está posto. Mas a tensão comum desses períodos, apesar de o debate estar bastante adiantado, com mais de um ano de antecedência em relação ao pleito, mostra que a escalada da violência política subiu mais alguns degraus. “Não há dúvida nenhuma de que temos uma combinação bastante perigosa, com uma militância extremista radicalizada e uma liderança disposta a tumultuar e melar o processo. Se não forem, desde já, tomadas medidas a fim de conter a campanha de Bolsonaro e seus principais aliados contra as eleições, nós corremos o sério risco de termos uma escalada de violência política, pior ainda do que aquela ocorrida durante a campanha das eleições de 2018”, pontua o professor e pesquisador Luis Felipe Miguel, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Embora em várias pesquisas Lula apareça como líder das intenções de voto, as condições de um possível retorno e de governo do ex-presidente são bastante diferentes de 20 anos atrás. “Lula chegou à presidência nas eleições de 2002 com o compromisso de se manter em um programa de extrema moderação para não assustar a burguesia e a promessa de pacificar o país, por meio da inclusão social, sem afetar os privilégios dos grupos minoritários”, explica.

No entanto, explica o professor, a margem de manobra para que um hipotético governo Lula promova políticas compensatórias de combate à pobreza é bastante adversa. “O estado brasileiro foi severamente atingido pelas medidas de redução da sua capacidade de ação tomadas a partir do governo Michel Temer e porque existiu nesse período um processo de retirada brutal de direitos”. A instabilidade democrática não somente coloca em risco o futuro do Brasil, como compromete o pacto firmado com a Constituição de 1988, que, segundo o entrevistado, “apontava na direção de um Estado social, capaz de reduzir o padrão aberrante de desigualdade que impera no Brasil”.

Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília - UnB e graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Leciona no Instituto de Ciência Política da UnB, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Publicou, entre outros, os livros Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Consenso e conflito na democracia contemporânea (Editora Unesp, 2017) e Dominação e resistência (Boitempo, 2018).

Confira a entrevista.

IHU – Como o senhor avalia o atual cenário político brasileiro, com ameaças de golpe, tentativas de deslegitimação das urnas eletrônicas e um processo constante de questionamento e tensionamento entre as instituições?

Luis Felipe Miguel – Bolsonaro é um político de baixa competência, que não sabe negociar, que não tem capacidade de agregar e não sabe trabalhar coletivamente, como prova, aliás, sua incapacidade de formar um partido. Toda sua estratégia consiste em manter elevado o nível da tensão política. Graças a isso sua base fica mobilizada agressivamente e mantém os adversários na defensiva. No momento em que as chances eleitorais dele estão claramente se reduzindo para 2022, ele está optando por aumentar ainda mais o nível desta tensão que já foi mantida alta durante todo o mandato. Claramente está apostando em uma virada de mesa, ou seja, um novo golpe, a contestação do resultado das eleições de 2022 ou mesmo a tentativa de impedir a realização das próximas eleições. Ou está apostando em garantir que após a sua provável derrota nas urnas ele terá uma base militante minoritária, mas muito aguerrida, capaz de garantir que ele e seus familiares não sejam atingidos pelas medidas punitivas às quais certamente fazem jus, dadas todas as evidências recolhidas até aqui.

Se não forem, desde já, tomadas medidas a fim de conter a campanha de Bolsonaro e seus principais aliados contra as eleições, nós corremos o sério risco de termos uma escalada de violência política – Luis Felipe Miguel Tweet

IHU – Estando a mais de um ano das eleições, o que é possível projetar sobre o próximo pleito, senão do resultado, ao menos de suas condições de realização?

Luis Felipe Miguel – Sobre as eleições do próximo ano, creio que a única coisa que se pode dizer com algum grau de certeza é que, infelizmente, serão realizadas em um contexto de muita tensão. O bolsonarismo tem trabalhado para que não tenhamos uma campanha eleitoral com o mínimo de civilidade, de discussão sobre as alternativas para o país, sobre o significado das candidaturas. O que ele está fazendo é, deliberadamente, produzir suspeitas infundadas sobre o processo eleitoral, ao mesmo tempo que insufla sua base – composta por uma parte importante de homens armados – contra as candidaturas alternativas à dele, em particular aquela que é favorita neste momento, a do ex-presidente Lula.

Não há dúvida nenhuma de que temos uma combinação bastante perigosa, com uma militância extremista radicalizada e uma liderança disposta a tumultuar e melar o processo. Se não forem, desde já, tomadas medidas a fim de conter a campanha de Bolsonaro e seus principais aliados contra as eleições, nós corremos o sério risco de termos uma escalada de violência política, pior ainda do que aquela ocorrida durante a campanha das eleições de 2018.

Sobre as eleições do próximo ano, creio que a única coisa que se pode dizer com algum grau de certeza é que, infelizmente, serão realizadas em um contexto de muita tensão – Luis Felipe Miguel. Tweet

IHU – A pesquisa da XP/Ipespe divulgada no dia 17/8 indica que, no primeiro turno, Lula tem vantagem sobre todos candidatos e que, no segundo turno, tanto Lula quanto Ciro são capazes de vencer Bolsonaro. O que essa pesquisa sugere sobre o atual contexto político?

Luis Felipe Miguel – Este cenário tem reaparecido em todas as pesquisas mais recentes. Não há dúvidas de que há hoje um claro favoritismo do ex-presidente Lula, não apenas pontuando com larga vantagem sobre os adversários, particularmente sobre Bolsonaro no primeiro turno, ganhando com larga vantagem no segundo turno, como também existe uma tendência de queda da rejeição ao nome do ex-presidente Lula. Parece que o fantasma do antipetismo, que foi muito importante para garantir a vitória da extrema direita em 2018, e que ainda é apresentado por alguns candidatos que tentam se viabilizar como sendo um fator determinante na eleição, começa a ser superado.

Creio que vários fatores contribuíram para isso e gostaria de citar três em particular.

1) O primeiro, claro, é o desastre absoluto do governo resultante da campanha antipetista, que é o governo Bolsonaro. Um governo que trouxe ao país um rastro de destruição e demolição do Estado brasileiro, das instituições democráticas, além, é claro, da nossa contagem de centenas de milhares de mortos, em grande medida resultado da condução absolutamente irresponsável da pandemia.

2) O outro fator é a desmoralização da Operação Lava Jato. Desde sempre pesavam suspeitas mais do que sérias sobre a condução da Lava Jato por Sergio Moro e Deltan Dallagnol, além de outros participantes da força-tarefa. A partir sobretudo das revelações feitas pelo The Intercept Brasil, ficou mais do que evidente que a operação foi uma conspiração contra a democracia brasileira, e o ex-presidente Lula foi o principal alvo desta conspiração. Isso claramente pode reverter uma parte da antipatia construída contra ele.

3) O terceiro motivo se liga a quando Lula é finalmente solto de sua prisão política e arbitrária e, depois de recuperar os seus direitos políticos, consegue, rapidamente, se colocar diante do país como sendo a grande esperança de superação da situação em que nos encontramos. Naquele momento o Brasil testemunhava o pior momento da pandemia, e isso em uma situação em que as outras lideranças da oposição, particularmente as de direita, que o governador (JoãoDoria buscou encarnar em primeiro lugar, mostraram-se pouco capazes de conter o desastre que o bolsonarismo representava. Naquele momento Lula se tornou capaz de ser, tal como havia sido nas eleições de 2002, uma esperança de salvação para o país. Isso está se refletindo nas pesquisas de opinião.

Claramente é impossível fazer previsões faltando mais de um ano para o pleito de 2022, mas Lula entra na campanha eleitoral com essa bagagem de simpatia, novamente portador da esperança popular e isso, sem dúvida nenhuma, faz com que o favoritismo dele tenha um certo grau de solidez.

Acredito ser improvável que um terceiro nome alce voo, exceto na hipótese, infelizmente remota, do impedimento de Bolsonaro
Luis Felipe Miguel 

IHU – Aliás, como o senhor avalia a possibilidade de uma terceira via? Quais são as condições hoje e quais as possibilidades de mudança até as eleições?

Luis Felipe Miguel – Acredito ser improvável que um terceiro nome alce voo, exceto na hipótese, infelizmente remota, do impedimento de Bolsonaro. Ou seja, de que ele não possa apresentar sua candidatura, quando, aí sim, há a possibilidade de um outro nome à direita se colocar. Mas, mantida a candidatura de Bolsonaro, parece pouco provável que a direita tradicional consiga colocar outro nome forte na disputa. Existem nomes que têm estrutura, que estão há muito tempo presentes e têm ativos a seu favor, como é o caso do governador Doria, que dirige o estado mais rico do Brasil, se projetou como o pai da vacina brasileira e tem a simpatia da mídia corporativa e de parte do empresariado, mas, apesar disso, continua patinando em torno dos 5% das intenções de voto. É muito improvável que um candidato como Doria aumente sua aceitação, pois mesmo com todos esses recursos não consegue ultrapassar a linha em que está.

Por outro lado, a tentativa de lançar um outsider como foi tentado com Luciano Huck, que acabou retirando sua candidatura da disputa – e, às vezes, aparecem nomes de outros apresentadores de televisão –, é um caminho muito mais difícil quando o país vive a ressaca da antipolítica. Quando os candidatos que procuravam representar um rechaço à classe política foram testados, deu no que deu. Desse ponto de vista, a possibilidade de que surja um nome surpresa me parece bem pouco auspiciosa.

Sobra o caso do candidato Ciro Gomes, que tenta se colocar como o nome da terceira via, inclusive se colocando de uma maneira bastante agressiva e buscando se distanciar da esquerda representada pelo PT e por Lula. A questão é que Ciro, além das dificuldades já conhecidas por quem acompanhou todas suas outras tentativas de chegar à presidência da República, enfrenta hoje o fato de que se descredenciou da esquerda, exatamente por não ter se engajado no segundo turno contra Jair Bolsonaro, como todos nós sabemos, e preferiu ir a Paris. Ao mesmo tempo a direita mantém uma desconfiança de que ele, embora tenha tido sua origem política na Arena, há muito tempo buscou se colocar como um político com perfil à esquerda. As pesquisas não indicam somente um movimento momentâneo, mas algo que está se cristalizando no cenário político eleitoral. Isso tudo nos leva a crer que a tendência é Ciro ficar abaixo do seu teto histórico que é de 12% dos votos, o que é insuficiente, portanto, para ele chegar ao segundo turno.

A questão é que Ciro, além das dificuldades já conhecidas por quem acompanhou todas suas outras tentativas de chegar à presidência da República, enfrenta hoje o fato de que se descredenciou da esquerda
Luis Felipe Miguel

IHU – Quais são as diferenças entre as atuais condições político-eleitorais de Lula para o pleito de 2022 em comparação com 2002? Em suma, qual o clima político que vivemos em relação a Lula?

Luis Felipe Miguel – Lula chegou à presidência nas eleições de 2002 com o compromisso de se manter em um programa de extrema moderação para não assustar a burguesia e a promessa de pacificar o país, por meio da inclusão social, sem afetar os privilégios dos grupos minoritários. Foi o que ele tentou fazer. Foi esse o grande programa do lulismo no poder. No entanto, apesar de toda essa prudência, com reformas tímidas, controladas, autolimitadas, que Lula e depois a Dilma introduziram, acabaram se desencadeando processos na sociedade brasileira que incomodaram os grupos dominantes.

redução da vulnerabilidade dos mais pobres, dos trabalhadores, necessariamente aumenta a sua capacidade de barganha diante dos grupos sociais dominantes. Foi contra isso que foi desferido o golpe de 2016, que teve o claro sentido de devolver o país às condições ainda mais gritantes de desigualdade social que vigoravam antes dos governos petistas. No momento o presidente Lula recupera a interlocução com vários dos grupos que foram responsáveis pelo golpe que retirou o PT do poder. Ele parece querer reconstruir as condições de governabilidade que lhe permitiram exercer o mandato após a vitória em 2002.

A redução da vulnerabilidade dos mais pobres, dos trabalhadores, necessariamente aumenta a sua capacidade de barganha diante dos grupos sociais dominantes. Foi contra isso que foi desferido o golpe de 2016 – Luis Felipe Miguel Tweet

No entanto, a margem de manobra para que ele promova políticas compensatórias de combate à pobreza extrema está muito diminuída. O estado brasileiro foi severamente atingido pelas medidas de redução da sua capacidade de ação tomadas a partir do governo Michel Temer e também porque existiu nesse período um processo de retirada brutal de direitos. Em suma, o pacto que Lula fez em 2002, caso seja refeito agora, precisará ser feito em condições muito mais precárias. A estratégia de nenhum enfrentamento que o PT adotou nos governos Lula e Dilma parece, neste momento, estar fadada ao fracasso. As classes dominantes brasileiras mostraram que estão dispostas a aproveitar a correlação de forças favorável a elas e romper com os acordos que foram feitos com os representantes das classes dominadas. Tendo a acreditar que se um novo governo de centro-esquerda no Brasil não investir mais na mobilização de suas bases para garantir melhor correlação de forças para o progresso social, nós teremos uma reedição muito aviltada do lulismo que imperou a partir da vitória nas eleições de 2002.

IHU - Em seu texto publicado na FSP – Favorito em 2022, Lula pode normalizar desmonte do país se ceder demais – o senhor afirma que “Lula é a melhor promessa de pacificação do país”. Por quê?

Luis Felipe Miguel – Creio que são dois os motivos. Primeiro, por causa do perfil de Lula, que é um político voltado à negociação, à produção de consensos, um político que faz questão de manter abertas as portas do diálogo com todas as forças. Essa é uma característica que Lula traz desde o sindicalismo e que faz dele a pessoa, certamente, com as maiores condições e com a maior habilidade para conduzir o país a um cenário de disputa política mais civilizado. Mas, também, pelo fato de que Lula, como líder do PT e líder popular, que foi e é, foi o principal alvo dos retrocessos que o Brasil sofreu nos últimos tempos. Quer dizer, se quisermos simbolizar em uma pessoa a destruição da ordem regida pela Constituição de 88, essa pessoa é o Lula: foi ele quem se tornou um preso político por mais de um ano; ele foi o principal alvo da conspiração contra a democracia, representada pela Lava Jato; ele que foi impedido de disputar as eleições de 2018. Então, simbolicamente, Lula representa uma tentativa de retomada do caminho de construção democrática que foi interrompido com o golpe de 2016.

O pacto que permitiu os governos do PT, o pacto que Lula firmou ao longo de 2002, era um pacto de buscar um caminho de enfrentamento das premências dos mais pobres, mas que evitasse tocar nas vantagens dos privilegiados
Luis Felipe Miguel

IHU - Em contrapartida, o senhor adverte sobre os perigos de a esquerda ceder em nome da “governabilidade”. Quais são os riscos principais?

Luis Felipe Miguel – Creio que este é o risco principal embutido num eventual retorno de Lula à presidência. O pacto que permitiu os governos do PT, o pacto que Lula firmou ao longo de 2002, cujo maior emblema, certamente, é a Carta ao Povo Brasileiro, era um pacto de buscar um caminho de enfrentamento das premências dos mais pobres, mas que, ao mesmo tempo, evitasse tocar nas vantagens dos grupos privilegiados na sociedade. Nós vimos que, mesmo com toda essa prudência, esses mesmos grupos privilegiados se viram atingidos por mudanças que a melhoria das condições dos mais pobres gerou na dinâmica social, a tal ponto que optaram por romper com a ordem democrática, que ocorreu com o golpe de 2016, e esse rompimento foi aprofundado com as sucessivas manobras de exceção e apoio ao bolsonarismo.

No entanto, o pacto que foi feito no início do século não tem como ser recuperado agora; as condições mudaram. O espaço de manobra para um governo democrático, com manifestação popular, está muito reduzido porque o Estado brasileiro tem sido demolido. Todos os nossos instrumentos de intervenção no social, a fim de minorar as desigualdades, foram agredidos pelo subfinanciamento e pela campanha agressiva contra essas políticas, porque a Constituição está funcionando de uma maneira muito precária e porque muitos dos direitos conquistados pelo povo brasileiro foram retirados. Então, nessas circunstâncias, a possibilidade de um governo, por mais bem-intencionado que venha a ser, produzir políticas compensatórias se torna muito menor.

Se não for adotado algum tipo de estratégia que permita o enfrentamento das negociações políticas no Brasil, ou seja, que trabalhe para mudar a correlação de forças e permita que o campo popular se robusteça para os enfrentamentos que serão necessários, o caminho da retomada da democracia no Brasil será um caminho de acomodação a situações ainda piores de desigualdade social. A governabilidade pensada na maneira tradicional se limita à aceitação das barganhas impostas seja pela burguesia, seja pela elite política tradicional. É necessário buscar uma nova forma de ação que combine a busca da negociação nos espaços institucionais com a mobilização das forças sociais que estão interessadas na produção de um país menos desigual, menos injusto e menos violento.

O espaço de manobra para um governo democrático, com manifestação popular, está muito reduzido porque o Estado brasileiro tem sido demolido
Luis Felipe Miguel

IHU - Qual tipo de pacto civilizatório é possível fazer com as elites brasileiras que, sem cerimônias, romperam com o horizonte normativo estabelecido pela Constituição de 1988?

Luis Felipe Miguel – Qualquer pacto com as elites brasileiras tem que estar respaldado na capacidade de mobilização do campo popular. Se não houver capacidade de pressão, se não houver forças organizadas em defesa da igualdade, da democracia, qualquer avanço sempre será frágil e revogável a qualquer momento. É bom lembrar que a democracia não é simplesmente um sistema de regras que resume o sistema político a determinados espaços; é próprio da democracia que as diferentes forças sociais se mobilizem em defesa de seus projetos. A classe dominante nunca deixou de se mobilizar e utilizar recursos extrainstitucionais para fazer valer seus interesses. Ela usa o financiamento privado de campanha, a sua capacidade de definir o investimento. Acontece que o tipo de barganha que foi feito para permitir os governos de centro-esquerda a partir de 2003 contava com o silenciamento da pressão do campo popular. Ficou claro que não é possível aceitar esse silenciamento, porque os grupos dominantes no Brasil não têm nenhum tipo de compromisso com a ordem democrática, não têm nenhum tipo de projeto nacional de desenvolvimento, não têm nenhum tipo de solidariedade com as classes populares. Então, é um pacto que tem de ser baseado numa correlação de forças que seja, desta vez, ao menos, um pouco mais favorável ao campo popular.

Qualquer pacto com as elites brasileiras tem que estar respaldado na capacidade de mobilização do campo popular – Luis Felipe Miguel Tweet

IHU - Aliás, uma eventual vitória de Lula poderia levar o país a um estado de convulsão social? O que é possível vislumbrar sobre uma possível reação dos setores armados da sociedade (polícias, forças armadas e sociedade civil)?

Luis Felipe Miguel – Até o momento, creio que os grupos armados operam muito mais no caminho da ameaça do que, de fato, na busca de um enfrentamento. As Forças Armadas, sobretudo, não têm liderança, não têm unidade para desferir o golpe que vem sendo anunciado ou insinuado há tanto tempo. São Forças Armadas que, por erros na condução da questão militar ao longo de todo o processo de democratização, continuam profundamente antidemocráticas e antipovo, mas elas não têm essa capacidade de ação coordenada, inclusive porque estão divididas em muitos grupos internos e também porque hoje são, em grande medida, motivadas pela vontade de ocupar espaços do Estado brasileiro e se apropriar de vantagens e benesses que a presença nesses cargos proporciona.

Não acredito, no momento, que uma eventual vitória eleitoral de Lula vá levar a esse tipo de reação. Isso é muito mais um fantasma que é utilizado com o objetivo de obter concessões, moderação e uma autocensura das forças populares na elaboração de seu programa, do que propriamente um risco efetivo. O que não quer dizer que as condições para essa ação golpista aberta não possam ser construídas. Então, é necessário, neste momento, muita inteligência por parte dos operadores políticos do campo popular, dos partidos políticos da esquerda e da centro-esquerda, porque é necessário não aceitar as chantagens que essas ameaças colocam e, ao mesmo tempo, não dar gás para que elas, de fato, se tornem uma operação golpista efetiva. A resposta está em organizar na sociedade mobilização suficiente e eficiente para que uma intentona golpista tenha custos elevados para aqueles que tentem deflagrá-la.

As Forças Armadas, sobretudo, não têm liderança, não têm unidade para desferir o golpe que vem sendo anunciado ou insinuado há tanto tempo
Luis Felipe Miguel

IHU - Por fim, de que ordem é o desafio de reverter os desmontes social e de políticas públicas – incluindo o teto de gastos – empreendidos nos últimos anos, desde o governo Temer, no Brasil?

Luis Felipe Miguel – Medidas como o teto de gastos foram uma tentativa dos golpistas vitoriosos de inibir qualquer ação de um eventual novo governo democrático no país. É absolutamente impossível que um governo no Brasil cumpra seus compromissos com a população se ele tem sua ação tão severamente contida por medidas arbitrárias como a Emenda Constitucional que liquidou a possibilidade do investimento público e que, na verdade, reduziu a quase zero a margem para a implementação de políticas sociais. Da mesma maneira, a destruição da estrutura do Estado brasileiro e a privatização irresponsável de muitos órgãos absolutamente estratégicos apresentam o mesmo resultado. Quer dizer, se inviabiliza a possibilidade de que um novo governo aja em favor de prioridades diferentes daquelas do golpismo triunfante que foram, como sabemos, a garantia dos ganhos dos especuladores financeiros em primeiro lugar. A chamada autonomia do Banco Central, a autonomia em relação à vontade popular, com uma submissão explícita ao sistema financeiro, é outra medida. E, por fim, a retirada dos direitos trabalhistas, que torna muito mais difícil para o Estado regular as relações capital-trabalho de uma maneira que proteja, minimamente, a classe trabalhadora. Então, é absolutamente imperativo desfazer esse conjunto de medidas a fim de retomar o caminho de construção de um Brasil mais democrático e menos injusto. Quando eu falo em retomada do pacto constitucional de 88, isso tudo está incluído, porque o pacto apontava na direção de um Estado social, capaz de reduzir o padrão aberrante de desigualdade que impera no Brasil.

Quando eu falo em retomada do pacto constitucional de 88, isso tudo está incluído, porque o pacto apontava na direção de um Estado social, capaz de reduzir o padrão aberrante de desigualdade que impera no Brasil – Luis Felipe Miguel Tweet

Agora, vemos, claramente, uma tentativa de blindar essas políticas, de retirar do debate público a necessidade de desfazê-las; elas são apresentadas sistematicamente como artigos da lei, quer dizer, algo que é um pecado até mesmo questionar. Vemos isso claramente em muitos formadores de opinião, nos editoriais e colunistas da imprensa burguesa: tudo bem ser oposição ao governo Bolsonaro, porque é difícil não ser oposição quando se tem o mínimo de racionalidade, mas essa oposição não pode ir ao ponto de questionar o desmonte do Estado, das políticas sociais, dos direitos. Então, a primeira coisa que tem de ser feita é recolocar no debate público essa questão e mostrar que existe uma relação necessária entre os ataques à democracia e os ataques aos direitos, que existe uma linha de continuidade entre impedir a expressão da vontade popular e impedir que os interesses populares sejam levados em conta no processo de tomada de decisão. É claro que não é uma tarefa fácil, mas um governo que chegue ao poder legitimado pela necessidade de superar o desastre do bolsonarismo, legitimado por uma vitória eleitoral, tem força para colocar isso na pauta, para exigir que esses malfeitos sejam revertidos.

É por isso que eu digo: neste momento, a centro-esquerda e, particularmente, o ex-presidente Lula, têm condições de negociar numa posição que é também uma posição de força, porque eles são necessários a fim de pacificar o país, retomar uma convivência minimamente civilizada no Brasil. No caminho que estamos indo, estamos vendo o colapso do Brasil como nação. É para isso que o projeto de Bolsonaro e Guedes aponta. Então, todos aqueles que não apostam no colapso, incluindo setores das classes dominantes e da elite política tradicional, têm interesse numa recomposição. Essa recomposição passa, necessariamente, pelo PT e por Lula. O que o PT e Lula podem exigir? O compromisso com a revogação da agenda de desmonte do Estado social que foi colocada em prática nos últimos cinco anos.

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Fonte: IHU Online
http://www.ihu.unisinos.br/612450-o-que-esta-em-jogo-no-brasil-nao-e-somente-a-destruicao-do-futuro-mas-a-ruptura-completa-do-pacto-civilizatorio-de-1988-entrevista-especial-com-luis-felipe-miguel