pacote anticrime

Davi Depiné, Marcus Edson de Lima e Rodrigo Pacheco: A alma do negócio

Com 'plea bargain', teremos uma máquina azeitada para obter confissões, verdadeiras ou falsas

Entre os 14 capítulos do projeto de reforma da legislação penal e processual apresentados pelo Ministério da Justiça, um deles incorpora uma sensível alteração na forma como se desenvolve o processo criminal no Brasil, adotando um modelo oriundo do direito norte-americano, lá denominado de “plea bargain” – espécie de “acordo de confissão”.

A origem desse instituto, que modula a ação do órgão de acusação, condiz com o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos, em que prevalece, embora não com a mesma frequência de outrora, o julgamento pelo tribunal do júri —e não por um juiz de direito— de boa parte das infrações penais.

Se o júri tem como nuance positiva seu caráter democrático, tem como pontos negativos sua complexidade e demora. Um julgamento pelo júri pode levar dias e até meses (o famoso caso O.J. Simpson durou 372 dias, apenas o julgamento). Diante desse cenário, pergunta-se: como a Justiça americana ainda assim funciona? A resposta está justamente no “plea bargain”. Os acordos correspondem a mais de 90% dos procedimentos criminais, impedindo que todos esses casos prossigam nos tribunais, gerando celeridade e assegurando o início do cumprimento de penas de forma mais ágil.

Perfeito, então. E por que não adotar essa sistemática em “terra brasilis”? E a resposta é: porque teremos uma máquina azeitada para obter confissões, verdadeiras ou falsas.

Atualmente, cerca de 65% das acusações criminais que aportam nos fóruns envolvem três tipos de delito: furto, roubo e tráfico de drogas. Em sua imensa maioria, as denúncias são lastreadas em prisões em flagrante. Um número diminuto de ações penais decorre de investigações policiais, reflexo da aprofundada e duradoura falta de investimento na polícia judiciária. Em casos de entorpecentes, especialmente, as testemunhas de um processo criminal costumam ser apenas os agentes policiais que efetuaram a prisão do suspeito.

E aqui começa a diferença. O depoimento exclusivo de policiais não é aceito como prova pela Justiça dos Estados Unidos. Não porque lá se duvide da credibilidade dos agentes de segurança pública, mas porque a comprovação de culpa deve ser feita através de provas não limitadas ao próprio aparato policial, evitando-se o risco de que o poder público apenas legitime a si próprio. O processo penal, enquanto instrumento de garantia e proteção contra eventual abuso estatal, deve assegurar a possibilidade de um contraditório. E como contradizer o Estado perante o próprio Estado? Daí porque, antes de um “plea bargain”, a acusação deve exibir as provas que possui, que serão usadas no processo penal caso o acordo não seja aceito. No Brasil, ao contrário, a confissão voltará a ser, como chamavam em tempos inquisitoriais, a rainha das provas —e obtê-la passará a ser a principal finalidade do processo.

Um dos agravantes para isso é o fato de que não há negociação real se há desigualdade entre as partes envolvidas ou se proliferam incentivos para que a acusação seja feita com excessos. Ainda hoje, não há Defensorias Públicas instaladas e equipadas suficientemente no país para garantir sempre a defesa técnica de pessoas carentes –aquelas que compõem a imensa maioria da população prisional.

Além disso, o procedimento americano assegura a imparcialidade judicial. O juiz que decide sobre eventual acordo não pode ser o mesmo que julga o caso, pois se entende que estaria influenciado por um convencimento prévio acerca do processo.

Por fim, resta perguntar: por que alguém confessaria algo que não praticou? Conhecendo os caminhos da prática penal brasileira e observando a realidade superlotada de nossos cárceres, não é difícil concluir que a presunção de inocência é coisa para poucos.

*Davi Depiné , Marcus Edson de Lima e Rodrigo Pacheco

Davi Depiné
Mestre em direito processual penal pela USP e defensor público-geral do Estado de São Paulo desde 2016

Marcus Edson de Lima
Presidente do Colégio Nacional de Defensores Gerais e defensor público-geral de Rondônia

Rodrigo Pacheco
Defensor público-geral do Rio de Janeiro


Paulo Sérgio Pinheiro: Licença para matar

Segue-se à risca a via pautada pela fantasia do Estado vingador

O sr. Moro, com esse pacote, se comportou como elefante em loja de louças. Atirou para todos os lados.

Quer alterar nada menos que 14 leis, investe com sofreguidão sobre propostas já consideradas inconstitucionais pelo Supremo, como a vedação do regime de progressão da pena e a impossibilidade de concessão de liberdade provisória. E bota abaixo o princípio constitucional do trânsito em julgado da pena.

Não há surpresas. O pacote segue à risca o método pautado pela manipulação permanente do medo e pela fantasia de um Estado vingador que o sr. Moro tem personificado com maestria nos últimos anos.

O duo Bolsonaro-Moro vai consolidando sua política de segurança modelo bangue-bangue. O mesmo governo que duas semanas atrás, contra todas as evidencias existentes em matéria de violência no planeta, ampliou o acesso a armas de fogo.

Na ocasião, o sr. Moro concedeu, do alto de sua ínclita sabedoria: "Essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido".

Agora, ele cava espaço para as polícias ampliarem as justificativas pelo uso de suas armas.

Para que fundamentar cientificamente? Como perder tempo com diálogos com a sociedade civil, centros de pesquisa ou mesmo corporações? Basta o clássico showzinho de Power Point. Adorei ouvir o sr. Moro dizer que a "ideia principal" ( sic) do novo projeto é melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, que desejam "viver em um país mais seguro".

Pois podem os compatriotas tirar o cavalinho da chuva. Esse pacote não vai trazer melhoria na segurança pública para ninguém, em especial para a população tradicionalmente mais vulnerável à violência: jovens negros nas periferias, indígenas, mulheres, trabalhadores rurais, LGBTs. Enfim, grupos vítimas de formas estruturais de discriminação, compreendidas como "coitadismos que têm que acabar" pelo líder maior do sr. Moro.

Afinal, qual é a evidência apresentada para a alteração do escopo legal para a letalidade das polícias?
Estamos cansados de saber que as polícias intervêm por razões de segurança --em inúmeras situações onde não há nenhuma situação legal-- sem a menor relação com os fins legais.

Assim, numa guerra contra o crime, as polícias militares continuam a se comportar como se estivessem enfrentando um "inimigo interno" a ser abatido.

A história da guerra contra o crime no Brasil é uma crônica de demagogia e fracasso, de resultados imprevistos e muitas vezes na direção oposta daquelas pretendidas. Em 2017 foram 63.880 mortes violentas, 5.144 mortes pelas polícias (14 por dia), 367 policiais mortos (um por dia).

Nesse contexto, as propostas para a atuação das polícias são a exacerbação da impunidade de fato que tradicionalmente beneficia suas execuções extrajudiciais e da consequente insegurança que esse modus operandi constitui para os próprios policiais.

Nos planos do sr. Moro, quando envolvidos em homicídios, policiais podem ter quase como certo responder aos inquéritos em liberdade, carta branca para ameaçar testemunhas e cometer mais mortes.

E, como brinde, terão a redução pela metade da pena , que deixará de ser aplicada se "decorrer de escusável medo( sic), surpresa ou violenta emoção", uma delirante exclusão de criminalidade.

Todas essas chorumelas são para dourar a pílula, no caso a doutrina do governo "policial que não mata não é policial". Missão cumprida, sr. Moro, parabéns.

*Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos (2001-02, gestão FHC), ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade (2013) e presidente da Comissão Independente Internacional de Investigação da ONU sobre a Síria