Pablo Ortellado
Pablo Ortellado: Política do avesso
Política ambiental de Bolsonaro faz sempre o oposto do que indicam a ciência e o bom senso
Os incêndios que podem ter destruído 15% do Pantanal tiveram origem em queimadas para fazer pasto —pelo menos é o que apontam as investigações da Polícia Federal.
Não são apenas a irresponsabilidade dos fazendeiros e a maior seca na região em 60 anos as causas dos incêndios. A atroz política ambiental do governo Bolsonaro é componente central do colapso ambiental, tanto na Amazônia como no Pantanal —não importa o que o presidente diga hoje na Assembleia-Geral da ONU.
Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro não abraçou uma postura pró-mercado, pragmática, descuidada com a pauta ambiental —adotou uma postura abertamente antiambiental. Nessa matéria, como noutras, a ardorosa adesão às guerras culturais o tornou surdo às críticas e cego às consequências das ações.
Quando o desastre no Pantanal já não podia mais ser minimizado, Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, atribuíram os incêndios não às queimadas criminosas dos pecuaristas, que a PF agora investiga, mas a uma suposta redução da atividade pecuária na região.
A tese, conhecida como a do "boi-bombeiro", é a de que os bois consumiriam a vegetação seca acumulada, reduzindo o risco dos incêndios. O presidente e o ministro insistem na tese contra as evidências de que o aumento dos incêndios é acompanhado do aumento da pecuária —não da sua redução.
Salles também alega que os incêndios se devem não às queimadas, como as investigadas pela polícia, mas à excessiva regulamentação das queimadas, que impediria os fazendeiros de fazer o controle do excesso de vegetação seca, o chamado "fogo frio".
Em resumo, enquanto cientistas e especialistas orientam a reduzir a atividade pecuária e a controlar as queimadas na região, a política ambiental do presidente quer ampliar a atividade pecuária e desregulamentar ainda mais as queimadas.
Tudo com o nosso presidente está de trás para a frente, de pernas para o ar, é do avesso.
Como todas as ações do governo são orientadas pelas paranoias delirantes das guerras culturais, ele acredita que orientações de cientistas e de ONGs ambientalistas são informadas por planos secretos de conquista da Amazônia e que hiperpolitizados são os críticos. Ele, claro, é um capitão sensato --e um patriota.
Como não há esperança de fazer o presidente e seus ministros olharem para as evidências empíricas, tudo o que nos resta é torcer para que a péssima imagem ambiental do país atrapalhe as exportações e crie constrangimentos econômicos que ponham limite às maluquices ideologizadas da turma verde-oliva.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: Stalin em Ipanema
Caetano Veloso trai biografia ao flertar com neostalinismo
Caetano Veloso esteve no centro de uma nova controvérsia, semana passada, quando, em entrevista ao programa do Bial, reviu sua posição crítica aos regimes socialistas registrada no belíssimo documentário “Narcísio em Férias”.
A força estética da obra de Caetano e do tropicalismo sempre esteve alicerçada na articulação de opostos, um procedimento que herdou do modernismo paulista.
Por meio da citação, da paródia e da colagem, sua obra combinou o arcaico e o moderno, o tradicional e a vanguarda, o nacional e o estrangeiro, o artístico e o comercial.
O resultado dessas combinações não foi apenas uma síntese, mas uma espécie de promoção, na qual o Brasil moderno, “fora do lugar”, se reencontrou, se reconciliou com o Brasil profundo e arcaico, levando-o adiante.
O mesmo se deu com a música comercial ou brega que quando mobilizadas por procedimentos que dialogavam com a arte erudita eram alçadas e erigidas.
Esses opostos mobilizados não eram, porém, as oposições superficiais da conjuntura —a oposição entre o nacional-popular da canção de protesto e a futilidade cheia de estrangeirismos da música comercial, supostamente alienada—, mas as contradições estruturais da vida social brasileira.
Na política, também, Caetano não se deixou capturar pela oposição dicotômica entre o autoritarismo da ditadura militar e aquele das diferentes experiências socialistas, adotando uma posição contracultural de inclinação liberal.
É justamente essa posição que Caetano revê na entrevista.
Bial mostra um trecho do filme em que Caetano diz que, ao contrário do que alegavam seus perseguidores na ditadura, nunca havia defendido as experiências socialistas. Nesse momento, ressalta que, passados dois anos da gravação, não pensa mais assim, porque havia sido persuadido pela obra de Domenico Losurdo.
Losurdo é um dos principais responsáveis pela atual onda revisionista sobre o legado de Stalin. Sua obra reconhece as violências do stalinismo, mas as justifica e as contemporiza, comparando-as com violências que teriam sido maiores na modernização capitalista.
Na entrevista, Caetano diz que sua nova posição não é reação polarizada à ascensão da direita, mas a obra de Losurdo consiste justamente na redenção dos campos de concentração, dos assassinatos políticos e da perseguição aos dissidentes por meio da comparação com o regime adversário.
Depois de denunciar com firmeza o autoritarismo da ditadura militar num depoimento oportuno, Caetano se rendeu à irresponsabilidade narcísica, incensando o stalinismo.
Alguém esconda o espelho.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: Defund Bolsonaro
Será que ação de desinvestimento de empresas pode mesmo conter ou reduzir o desmatamento?
Uma campanha iniciada por ativistas brasileiros, mas orientada para o público internacional, pede o desfinanciamento de quem se beneficia das políticas ambientais de Bolsonaro.
A principal peça de propaganda da campanha é um vídeo em inglês mostrando cidades e produtos europeus com focos de incêndio, evidenciando que as queimadas amazônicas estão diretamente implicadas no consumo.
A expressão "defund", que aparece ao final do vídeo, remete à demanda de ativistas do Black Lives Matter, nos Estados Unidos, que pedem o desfinanciamento da polícia depois dos sucessivos casos de abuso contra cidadãos negros.
A campanha brasileira, porém, não pede o boicote de produtos e serviços brasileiros —estratégia utilizada com sucesso para derrubar o apartheid na África do Sul e com menos êxito na campanha BDS, que combate a ocupação da Palestina por Israel.
A campanha também não pede o boicote de produtos específicos, como o que esteve na origem da "moratória da soja" em 2006 e que levou os maiores traders a criarem a rastreabilidade da cadeia produtiva do setor para se desimplicarem no desmatamento.
Se a expressão "defund" pede desinvestimento, a orientação na figura de Bolsonaro aponta para uma ampla política ambiental complacente com o crime que beneficia parte do agronegócio, da pecuária, do extrativismo de madeira e da mineração na região amazônica.
Mas será que uma ação de desinvestimento de empresas pode mesmo conter ou reduzir o desmatamento?
Para que o consumo de produtos se desimplique no desmatamento é preciso que se estabeleça a rastreabilidade das cadeias produtivas, para que as empresas consigam diferenciar os fornecedores que estão envolvidos no desmatamento, daqueles que não estão.
Uma iniciativa recente dos três maiores bancos do país, Itaú Unibanco, Bradesco e Santander, está se comprometendo a criar a rastreabilidade da cadeia produtiva e impedir o financiamento de agentes econômicos que promovem o desmatamento, começando pela agropecuária.
É preciso aguardar para ver se o compromisso ambiental do setor financeiro é duradouro e busca mais do que apenas projetar uma boa imagem.
Mas o caminho para asfixiar financeiramente o desmatamento parece ser mesmo o de estabelecer a rastreabilidade das cadeias produtivas e pressionar as empresas a comprarem apenas de fornecedores certificados.
O Estado brasileiro poderia jogar um papel decisivo no financiamento e na implementação da rastreabilidade, mas ele parece decididamente comprometido com o desmatamento.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: O dilema da cobertura sobre fenômenos pequenos e perigosos
Cobertura exagerada da imprensa americana pode ter ajudado a difundir teoria da conspiração pró-Trump
Há boas evidências de que o QAnon, uma teoria da conspiração pró-Trump, razoavelmente antiga e com pouca aderência, não desempenhava até pouco tempo um papel muito relevante na política norte-americana.
Em agosto, porém, quando o Facebook derrubou páginas ligadas à conspiração e os principais jornais e sites da imprensa americana fizeram coberturas extensas, a teoria foi colocada no centro do debate sobre o processo eleitoral nos Estados Unidos. O mesmo pode ocorrer no Brasil.
A imprensa enfrenta um desafio: a partir de que momento deve dar atenção e destaque a um fenômeno marginal potencialmente perigoso? Como saber quando não está mais apenas amplificando um fenômeno pequeno, mas alertando a sociedade de algo grave que pode advir?
A difusão e a crença no QAnon foi investigada por uma série de pesquisas: em agosto de 2019, o Emerson College investigou a crença na conspiração; em março de 2020, o Centro de Pesquisas Pew publicou pesquisa sobre a familiaridade da população com a conspiração; em junho de 2020, uma equipe da Universidade de Miami, liderada por Joseph Uscinski, tentou caracterizar quem acreditava na teoria.
Em agosto de 2019, 5% dos americanos acreditavam no QAnon, com o mesmo percentual entre democratas e republicanos (6%). Em março de 2020, 76% dos americanos nem sequer tinham ouvido falar do QAnon, mas a distribuição era surpreendente: enquanto 39% dos democratas liberais tinham lido ou ouvido falar da teoria, apenas 20% dos conservadores o tinham.
O resultado era contraintuitivo, porque o QAnon era uma teoria que beneficiava Donald Trump e estava sendo explorada politicamente por ativistas pró-Trump. O fato de liberais terem tido o dobro de exposição à teoria sugere que seu medo estava colaborando para disseminá-la.
E o medo nem sequer era fundado, já que a crença na conspiração não tinha coloração partidária.
Confirmando a pesquisa do Emerson College, a investigação da equipe de Uscinski descobriu que, numa escala de sentimento, na qual 0 é desfavorável e 100 é favorável, o movimento QAnon pontuava apenas 23 pontos, bem atrás de políticos controversos e com uma distribuição equilibrada entre democratas (25) e republicanos (26).
Após o amplo debate sobre o QAnon nos Estados Unidos, o conhecimento da conspiração pelo público deve ser agora bem maior —resta saber se também a crença. Na última semana, reportagens na Folha, no Globo e no Estado investigaram e destacaram a força do fenômeno no Brasil. Será que podemos aprender algo com a experiência americana?
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: A hora de Paulo Guedes
Se o bolsonarismo sobreviveu a uma ruptura com o lavajatismo, tudo indica que pode sobreviver a um rompimento com o liberalismo de Paulo Guedes
O bolsonarismo foi um movimento político concebido em 2018 a partir da articulação do conservadorismo moral, sobretudo aquele de orientação religiosa, com o lavajatismo e o liberalismo econômico.
Os dois primeiros tinham uma base social mobilizada sobre a qual se construiu a campanha eleitoral. Apesar de afinidades internas, a aliança se desfez com a saída do governo do ex-ministro Sergio Moro. Será que a aliança com o liberalismo, que é de conveniência, consegue resistir às pressões sobre Paulo Guedes?
A força de mobilização do lavajatismo vinha da grande popularidade da Operação Lava Jato e da vitoriosa campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff. A força do conservadorismo moral, por sua vez, vinha do punitivismo penal, que é muito popular, e da campanha das igrejas cristãs contra a ideologia de gênero.
Já o terceiro componente, o liberalismo, não tinha base social significativa. Mas era fundamental porque conferia a um projeto político insurgente legitimidade junto às elites econômicas.
A aliança do conservadorismo com o liberalismo de Guedes não está ancorada em afinidades doutrinárias —como as que existiam com o lavajatismo com quem compartilhava uma inclinação punitivista. Além disso, não dispõe dos laços históricos de compromisso que conservadorismo e liberalismo econômico desenvolveram nos Estados Unidos.
À medida que Bolsonaro compreende que sua popularidade depende da expansão dos programas sociais, Guedes está cada vez mais em perigo. Moro parecia mais indemissível e partiu sem fazer grande estrago.
O radicalismo doutrinário de Guedes tem feito com que reiteradamente busque financiar programa social com cortes em outros programas sociais e que busque compensação fiscal com a introdução de um imposto regressivo parecido com a CPMF.
Quando uma abordagem de senso comum recomendaria financiar uma expansão do sistema de proteção social com um pequeno aumento da carga tributária sobre os ricos ou com um corte nas renúncias fiscais, Guedes tirou do seguro desemprego para financiar o primeiro emprego; agora está querendo tirar do abono salarial para dar ao Renda Brasil e não desiste da obsessão de criar um imposto como a CPMF. Se política social traz popularidade, não faz sentido tirar de uma para dar para outra.
Cedo ou tarde, Bolsonaro vai perceber que não precisa de um ultraliberal na pasta da economia —e que, como Lula demonstrou, é perfeitamente possível combinar uma política econômica razoavelmente responsável, do ponto de vista fiscal, com políticas sociais de impacto.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: Mais amor por favor?
Estudo argumenta que empatia não apenas não diminui como promove a intolerância política
Em artigo recente publicado na American Political Science Review, pesquisadores da Universidade de Houston e da Universidade da Virginia apresentaram evidências bastante contraintuitivas de que a empatia promove, ao invés de combater, a polarização política.
Estudos anteriores, de natureza experimental, tinham sugerido que a empatia por membros de um grupo estigmatizado (portadores de HIV, por exemplo) reduzia o preconceito e que a empatia por grupos étnicos e raciais gerava maior apoio a direitos civis de imigrantes ilegais e acusados de terrorismo.
Havia por isso a suposição de que a polarização política pudesse estar ligada a uma espécie de déficit de empatia (como sugeriu, por exemplo, o ex-presidente americano Barack Obama quando ainda era senador).
Os pesquisadores mediram o grau de consideração empática por meio do Índice de Reatividade Interpessoal, uma medida consagrada e bem validada na psicologia, e o correlacionaram com medidas também amplamente utilizadas na ciência política para medir polarização afetiva (a hostilidade contra grupos políticos adversários).
A análise mostrou que quanto mais uma pessoa apresentava uma disposição empática, mais hostilidade demonstrava contra o campo político adversário. Assim, se era democrata, quanto mais empático, mais hostilidade demonstrava contra republicanos —e vice-versa.
A explicação para o fenômeno parece ser o fato bastante conhecido de que a empatia é mais prontamente experimentada em relação a membros do próprio grupo do que em relação a membros de outros grupos. Como a polarização afetiva geralmente está associada à convicção de que a ação do grupo adversário ameaça nosso próprio grupo e a sociedade em geral, a empatia com o próprio grupo anula e reverte eventual empatia em relação ao adversário político.
Em outras palavras, como pessoas de esquerda acreditam que as pessoas de direita ameaçam o bem-estar de pobres, negros e mulheres, a precedência da empatia para pessoas desses grupos subalternos não apenas impede qualquer empatia com as pessoas de direita como intensifica a hostilidade contra elas. O mesmo, claro, acontece com as pessoas de direita em relação às pessoas de esquerda.
Se é isso mesmo o que está acontecendo, não estamos vivendo um déficit de empatia. A natureza do nosso problema parece ser uma hipertrofia das identidades políticas, que intensificam nosso sentimento de pertencimento a um grupo construído em oposição a um outro, intolerável, e que vai se tornando efetivamente mais intolerável à medida que é hostilizado.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: Politização da vacina pode comprometer imunização
Pesquisas têm mostrado correlação entre posicionamento político e disposição a tomar vacina contra Covid
Se tudo der certo, entre dezembro e janeiro, o Brasil poderá começar a imunizar a população, seja com a vacina de Oxford e da AstraZeneca, em parceria com a Fiocruz, seja com a vacina da Sinovac, em parceria com o Instituto Butantã.
Para que as vacinas nos tirem da crise, porém, não será necessário apenas que elas se mostrem eficazes na terceira fase dos testes clínicos, será necessário também que uma população politicamente polarizada se disponha a ser vacinada.
Depois de meses de uma extenuante política de distanciamento social, seria de se esperar uma população ansiosa para se vacinar e retomar a normalidade. Mas não é isso o que mostram estudos em diferentes países.
Uma pesquisa coordenada pela Universidade de Hamburgo mostrou que a disposição a se vacinar contra a Covid na Alemanha caiu de 70% em abril para 61% em junho (com um preocupante índice de 52% na região da Bavária). Nos Estados Unidos, pesquisa do YouGov realizada em julho mostrou que 25% dos americanos não tomariam a vacina e 28% não tinham certeza se tomariam.
Um elemento particularmente preocupante das pesquisas é como a disposição a se vacinar contra a Covid correlaciona com posições políticas. Na pesquisa do YouGov, eleitores democratas são mais propensos a se vacinar (61%) do que republicanos (45%). O índice baixa para 34% entre os que pretendem votar em Donald Trump.
A contaminação política funciona também no sentido oposto: pesquisa da Reuters/ Ipsos de maio mostrou que 36% dos americanos tenderiam a não se vacinar se a vacina fosse recomendada pelo presidente Trump.
Não temos ainda pesquisas no Brasil medindo a disposição a se vacinar contra a Covid e correlacionando essa disposição com posicionamento político e crença em boatos —mas está na hora de investigar o problema, já que há risco concreto de uma baixa adesão à vacina comprometer uma saída segura da quarentena.
Nas mídias sociais e no WhatsApp, há algumas semanas circula desinformação sobre as vacinas para a Covid com forte teor político. Boa parte desses boatos e rumores mentirosos se apoia na postura antichinesa que o bolsonarismo tem adotado.
Se a vacina desenvolvida pela Sinovac vingar, poderemos ver uma intensificação das campanhas de desinformação promovidas pelo bolsonarismo que antagoniza tanto com a China, como com o governador João Doria, responsável pelo Instituto Butantã.
Em termos muito concretos: pode ser que não cheguemos à imunidade de rebanho com uma campanha de vacinação que tenha vacina com eficácia de 75% e adesão de apenas 60% da população.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: Receio de regular mídias sociais favorece o status quo
Celeridade da lei das fake news não permite pactuar as regras, mas regulação da moderação de conteúdo segue necessária
As regras que orientam o funcionamento das mídias sociais estão outra vez no coração do debate político. A regulamentação do seu funcionamento é um dos maiores desafios das políticas públicas e é efetivamente cheia de riscos —mas a inação, com a manutenção do status quo, é pior.
Há duas questões que são o cerne do problema. A primeira é que a liberdade de expressão, basilar para o funcionamento de uma democracia, às vezes entra em choque com outros direitos, como o direito das minorias, o direito à honra ou o direito à saúde. E esses direitos precisam ser equilibrados.
A segunda questão é que, na ausência de uma regulação pública, prevalece o autorregramento do setor privado, o que o jurista americano Lawrence Lessig imortalizou no slogan "code is law", ou seja, quem escreve o código do serviço regula o seu funcionamento.
Esse imbroglio está no centro do debate, tanto sobre as ações de moderação e fechamento de contas pelas plataformas de mídia social como sobre o PL das fake news. Em ambos os casos, há o argumento, que vem ganhando adesão, de que não se deve olhar para os conteúdos, mas para os comportamentos, aplicando medidas punitivas mais duras apenas para quem usa contas falsas ou tenta manipular os algoritmos.
Essa saída é boa apenas para as empresas, que desviam assim o foco do enorme poder que exercem sobre a moderação do debate público. Afinal, há vários conteúdos impróprios que circulam nas plataformas e que não vêm acompanhados do chamado "comportamento inautêntico". Nem sempre quem veicula discurso de ódio, por exemplo, se faz passar por outrem.
Se decidirmos então que é preciso olhar para os conteúdos, vamos ter que pactuar as regras do debate democrático. Se é bem verdade que a celeridade que os presidentes das casas legislativas impuseram à tramitação do projeto de lei das fake news não permite fazer agora essa pactuação com o devido cuidado, isso não significa que ela não precisará ser feita no futuro.
O processo de moderação de conteúdos nas mídias sociais precisa ser regulado.
Não podemos deixar que empresas privadas, agindo segundo regras inteiramente próprias e sem nenhuma supervisão, excluam, rotulem ou diminuam o alcance de postagens ou suprimam contas. Talvez seja preciso ir além e mitigar ou eliminar os incentivos que as plataformas oferecem para discursos delirantes, inflamatórios e divisivos.
Intervir nisso é perigoso e delicado, mas depois de tudo o que vivemos —da ascensão da extrema direita ao negacionismo da Covid— manter o status quo não deveria mais ser uma opção.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: Reforma de Guedes racionaliza sistema tributário, mas deixa conta com os mais pobres
Reforma não altera distribuição do ônus fiscal entre ricos e pobres
O governo deve enviar ao Congresso nesta terça-feira (21) a primeira parte de uma ampla proposta de reforma tributária.
Ela busca simplificar e racionalizar a cobrança de impostos, mantendo a carga tributária global no nível atual. Além de não mexer com a carga total, não altera a distribuição do ônus tributário entre ricos e pobres, deixando o peso do Estado ainda apoiado sobre o ombro dos trabalhadores.
A primeira parte do projeto pretende unificar impostos federais como o PIS e a Cofins, uma abordagem muito menos ambiciosa que duas propostas que estão há mais tempo em discussão na Câmara e no Senado e que pretendem unificar até nove tributos (proposta do Senado).
A ideia de unificar tributos, desonerando a produção e simplificando a taxação, é antiga e, enquanto conceito, quase consensual. Mas uma possível elevação da tributação sobre o setor de serviços e disputas sobre a repartição do novo imposto com estados e municípios tornam a negociação difícil e demorada. A proposta minimalista do governo tenta escapar dessas dificuldades.
A segunda parte do projeto consiste em taxar lucros e dividendos, antiga reivindicação da esquerda, mas tendo como contrapartida uma redução do imposto de renda de pessoas jurídicas, de maneira a estimular investimentos.
O ministro Paulo Guedes pretende também acabar com deduções do imposto de renda de pessoas físicas (com gastos com saúde, por exemplo), mas compensar o fim de deduções com uma redução de alíquotas. De maneira geral, torna o sistema mais organizado e eficiente, mas num jogo de soma zero, aumentando de um lado, para tirar do outro.
A última parte da reforma traz a obsessão do governo com um imposto sobre pagamentos eletrônicos, uma proposta que por sua semelhança com a odiada CPMF é rejeitada pelo Congresso e pela sociedade, mas que o ministro Guedes gostaria que fosse introduzida para cobrir a desoneração da folha de pagamentos das empresas ou um Bolsa Família ampliado.
A proposta do governo não tem a menor preocupação com a abissal desigualdade brasileira. Se é verdade que precisamos simplificar o sistema e desonerar a produção e as folhas de pagamento, é muito mais urgente reduzir impostos sobre consumo, que pesam sobre os pobres, e ampliar a tributação sobre a renda e a propriedade, que incide sobre os ricos.
Depois de décadas de espera, inclusive durante os governos de esquerda, não é possível que façamos uma revisão ampla do nosso sistema tributário e deixemos que os mais pobres sigam pagando a conta, em um odioso sistema regressivo.
*Pablo Ortellado, Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: Facebook na berlinda
Derrubada de páginas pode não ter sido motivada apenas por comportamento inautêntico, mas para responder acusações de tolerância ao discurso de ódio
O Facebook derrubou na semana passada uma série de páginas e contas de sua plataforma e também do Instagram por comportamento inautêntico coordenado, ou seja, por se passarem por outras pessoas para enganar usuários ou o algoritmo das duas plataformas. Ao contrário de outras ocasiões em que conjuntos de páginas e contas foram derrubadas, desta vez a empresa deixou claro quem eram os alvos: Roger Stone, colaborador de Donald Trump, e assessores de membros da família Bolsonaro.
Como investigações desse tipo demoram semanas, elas provavelmente foram deflagradas num contexto diferente do atual. Apesar disso, não parece coincidência que tenham sido anunciadas no momento em que o Facebook é acusado de ser condescendente com discurso de ódio pela campanha de boicote “Stop Hate for Profit”.
A campanha foi montada por organizações de direitos humanos e conseguiu a adesão de grandes marcas globais que estão suspendendo anúncios no Facebook como meio de pressionar a empresa a rever uma posição considerada tolerante com discurso de ódio, incitação à violência, discriminação e negação do Holocausto.
Embora esses tipos de discurso sejam diretamente proibidos pelas regras da comunidade do Facebook, a empresa adotou uma política de excepcionalidade para quando o discurso emana de políticos.
O argumento é o de que o interesse dos usuários/cidadãos de saber o que diz um político —por exemplo, o presidente dos EUA ou do Brasil— prevalece sobre a necessidade de limitar a disseminação de um discurso nocivo.
Reportagens da imprensa americana mostraram, porém, que a motivação para a adoção da excepcionalidade foi tentar gerar equilíbrio ao aplicar as regras sobre agentes políticos da esquerda e da direita. Como havia o entendimento de que uma aplicação rigorosa das regras impactaria muito mais a direita e a empresa temia uma reação forte dos republicanos, optou pela excepcionalidade que geraria mais equilíbrio.
Embora as grandes marcas que aderiram ao boicote não representem uma parte significativa da receita do Facebook (que vem principalmente de médios e pequenos anunciantes), o barulho causado por essa adesão, assim como a publicação de um relatório de uma auditoria independente muito crítico aos efeitos das políticas sobre os direitos civis colocou grande pressão sobre a companhia que pode ter respondido com a derrubada de páginas e contas ligadas a políticos conservadores e pode vir a ser complementada com medidas como a suspensão de anúncios políticos no período eleitoral americano.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: Democracia em disputa
Recorde no apoio à democracia esconde disputas sobre o seu significado
A última pesquisa Datafolha mostrou que o apoio à democracia disparou e atingiu o maior índice desde que começou a ser medido, em 1989. Setenta e cinco por cento apoiam hoje a democracia, ante 62% que a apoiavam em dezembro de 2019 e índices ainda menores no passado.
Uma interpretação possível, como a que constava na manchete da Folha de domingo ("Apoio à democracia bate recorde diante do risco Bolsonaro"), é a de que, reagindo às ameaças de ruptura institucional, os brasileiros reforçaram seu apoio à democracia. Mas será que essa é a interpretação mais plausível?
Antes da pesquisa de junho de 2020, o recorde de apoio à democracia havia sido registrado em outubro de 2018, às vésperas da eleição presidencial, quando a dúvida era se Bolsonaro venceria apenas com larga vantagem ou se elegeria logo no primeiro turno.
O que parecia explicar aquele recorde de apoio à democracia era o fato de um candidato outsider, sem alianças, sem financiamento de campanha e sem tempo de TV ter conseguido derrotar todo o establishment político. De fato, se deixássemos de lado que esse candidato fazia apologia da ditadura militar e defendia a tortura —como parece que fez seu eleitor—, aquele sucesso eleitoral mostrava mesmo um vigor da democracia brasileira e um triunfo da soberania popular.
O fenômeno de 2018 talvez seja a chave para entender o novo recorde de 2020. A leitura de que o crescente apoio à democracia é apenas reação contra o autoritarismo de Bolsonaro despreza o fato de que, se uma parte dos bolsonaristas faz apologia da ditadura, celebrando até mesmo o AI-5, uma parte maior adotou o léxico da democracia.
Estes últimos acreditam que é preciso proteger a democracia de uma ditadura do STF e dos governadores: do Supremo, porque extrapola seu papel ao se impor sobre o Executivo, e dos governadores, porque ameaçam prender os cidadãos sob o pretexto de um vírus cuja letalidade é exagerada. Para eles, seriam também antidemocráticas as tentativas de censura às redes sociais, sob o pretexto de combater notícias falsas, assim como a interferência de organismos internacionais, como a OMS, que ferem a soberania nacional.
Enquanto uma parte do bolsonarismo faz o discurso da ordem autoritária, outra parte concebe esse mesmo projeto como a expressão mais plena da democracia. Isso talvez explique o fato de que, na pesquisa Datafolha, quem avalia bem Bolsonaro apoia menos a democracia, mas só um pouco menos (68% contra 79% dos demais).
Tanto críticos como apoiadores de Bolsonaro celebram a democracia --mas atribuem sentidos muito diferentes a ela.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pablo Ortellado: Confusão legislativa sobre mídias sociais
Falta de coordenação entre Câmara e Senado prejudica tramitação e debate de PL que quer regulá-las
Deve ser votada no Senado, ainda nesta semana, uma nova versão do projeto de lei que regulamenta as mídias sociais e os aplicativos de mensagens privadas (um pouco equivocadamente apelidado de 'PL das Fake News').
No momento em que escrevo (tarde da segunda-feira), não conhecemos ainda o texto definitivo que vai para votação na quinta-feira e que já passou por mais de cinco versões diferentes entre as formais e as informais.
A tramitação acelerada do projeto se deve à urgência de enfrentar as campanhas de desinformação nas mídias sociais e no WhatsApp, sejam aquelas relativas a temas políticos, sejam as relativas à crise da Covid-19.
O texto inicial do projeto foi apresentado em conjunto por Tábata Amaral e Felipe Rigoni na Câmara e por Alessandro Vieira no Senado. Na Câmara, o texto foi colocado em consulta pública, passou por análise minuciosa e recebeu propostas da universidade, da sociedade civil e do meio empresarial.
Enquanto o texto recebia colaborações na Câmara, começou a tramitar em paralelo no Senado, com o senador Alessandro Vieira incorporando em múltiplas versões do texto críticas e sugestões. No debate, formou-se um consenso parcial de que o texto não deveria definir desinformação e não deveria regular as agências de verificação e que deveria adotar medidas amplas para promover a transparência das plataformas com respeito a moderação e impulsionamento de conteúdos. Menos consensuais foram as medidas de ampliação dos tipos penais e a introdução da rastreabilidade de conteúdos virais em aplicativos de mensagens.
Quando o texto foi encaminhado para o relator, senador Angelo Coronel, ele foi completamente transformado no começo de junho e apresentado em uma minuta informal com novas propostas que despertaram novas controvérsias (como a exigência de apresentação de documentos para a criação de contas nas mídias sociais e a entrega de dados cadastrais à autoridade policial). O relator acolheu críticas e considerações e apresentou uma nova minuta informal no último fim de semana que apenas começa a ser analisada e discutida.
O texto definitivo, porém, ainda está para ser apresentado e, ou será votado sem tempo suficiente para exame, ou terá sua tramitação mais uma vez suspensa, inclusive com possibilidade de outra versão passar a tramitar na Câmara.
Câmera e Senado precisam urgentemente chegar a um acordo sobre qual vai ser o texto base, dar tempo para que seja devidamente analisado e aperfeiçoado e apresentar uma perspectiva de tramitação que, ainda que acelerada, aconteça sem mudanças bruscas e sem atropelo.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.