Pablo Ortellado

Pablo Ortellado: Transigência que mata

Depois da invasão do Congresso americano, as plataformas de mídia social endureceram a implementação de suas políticas de moderação de conteúdo —e não apenas nos Estados Unidos.

No Brasil, o presidente Bolsonaro e o Ministério da Saúde tiveram tuítes sobre tratamento precoce filtrados (conteúdo borrado, acompanhado de alerta de publicação enganosa), e o YouTube removeu um vídeo sobre ivermectina de Eduardo Bolsonaro.

Apesar disso, ainda há milhares de publicações nas plataformas promovendo o uso de cloroquina, criticando o uso de máscaras e difundindo desinformação sobre as vacinas. Um levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo apontou que 98% dos vídeos recomendados no YouTube sobre tratamento precoce eram desinformativos.

Em tese, nenhum conteúdo desse tipo deveria estar on-line. O Twitter diz que removerá conteúdos que apresentem “um risco direto para a saúde ou o bem-estar das pessoas”; o YouTube diz que “não é permitido o envio de conteúdo que dissemine informações médicas incorretas que contrariem as orientações da OMS”, e o Facebook diz que vai proteger “contra conteúdo prejudicial relacionado à Covid-19”.

O problema é que as regras de aplicação dessas diretrizes genéricas não são transparentes —elas existem e orientam a ação dos algoritmos e dos moderadores humanos, mas não são públicas. É permitida a publicação de conteúdo promovendo a ivermectina e a cloroquina? É permitido fazer publicações desestimulando o uso de máscaras?

Também não há transparência na escala de sanções de Facebook e Twitter para quem viola as políticas. Que gravidade de violação é punida com um rótulo, com a diminuição da distribuição, com a remoção da publicação ou a suspensão da conta?

Como a aplicação da política não é transparente, ela pode se dar de forma arbitrária, e não uniforme. Tudo leva a crer que essa opacidade está sendo utilizada como margem de manobra, que permite às empresas operar discricionariamente num ambiente em que as políticas de saúde foram politizadas.

Embora haja consenso científico contrário ao uso da cloroquina e da ivermectina no tratamento contra a Covid-19, levantamento da Associação Médica Brasileira mostrou que 35% dos médicos brasileiros consideram eficaz a cloroquina, e 41% consideram eficaz a ivermectina. Esses índices, não por acaso, são parecidos com os índices de aprovação do presidente, que defende o uso dessas drogas.

Assim, as empresas precisam impor políticas de moderação a um meio que as rejeita. Não se trata apenas dos usuários comuns, mas também das autoridades políticas e de parte dos médicos.

Não é possível saber em que medida a falta de rigor na aplicação das políticas de moderação de conteúdo ligado à Covid se deve à incapacidade das empresas de moderar uma grande quantidade de conteúdo, ao medo de perderem usuários polarizados ou ao medo de receberem retaliações do governo.

Seja como for, a difusão desse tipo de conteúdo está contribuindo para ampliar a contaminação —sem exagero, está tirando vidas.


Pablo Ortellado: O abominável

Ao confundir o divergente com o abominável, polarização política promove a intolerância.

Nos bastidores das batalhas ideológicas, há uma disputa velada sobre onde demarcar os limites do politicamente aceitável.

Enquanto certos conservadores tentam enquadrar adversários e dissidentes em uma visão ampliada e delirante do comunismo, alguns ativistas de esquerda tentam subsumir seus adversários em uma visão ampliada e distorcida do fascismo.

Em ambos os casos há um movimento duplo de ampliar o escopo e estigmatizar o adversário. O fascista não seria apenas o apologista da tortura e da ditadura, mas também aquele que defende as privatizações, se opõe às cotas raciais ou apoia a Lava Jato; o comunista não seria o apoiador de regimes totalitários, na Coreia do Norte ou na Venezuela, mas também aquele que defende o devido processo legal, apoia a universidade pública ou quer a ampliação das políticas sociais.

O primeiro, abominável, subsome o que vem depois, torna-se a sua verdade. O fascismo vira a verdade oculta das privatizações, e o comunismo, a verdade oculta da universidade pública.

Num efeito paradoxal, a amedrontadora emergência desses inimigos execráveis autoriza as alianças mais espúrias. O movimento relacional e combinado, que acontece à esquerda e à direita, funciona como uma profecia autorrealizada, na qual apologistas da ditadura se fortalecem antagonizando com comunistas fantasiosos, e defensores de Stálin e Maduro se consolidam combatendo fascistas imaginados.

Um dos elementos constitutivos da polarização em curso é que nossa identidade política é essencialmente a negação daquela do adversário. Por isso, as distorções que o campo adversário faz do nosso campo nos define. Aos poucos vamos todos nos convertendo em monstros.

"Nós, stalinistas, odiados pelos fascistas, somos os verdadeiros antifascisistas." "Nós, apoiadores da revolução de 1964, odiados pela esquerda, somos os verdadeiros anticomunistas." Quanto mais nos identificamos com os monstros do inimigo, mais radicalmente antieles nos tornamos —e é a negação do abominável o que nos move.

Precisamos abandonar essa dinâmica de intolerância mútua que está destruindo nossa comunidade política, tornando cada dia mais próxima a iminência de uma guerra civil.

Em vez de equiparar liberais a fascistas, socialistas a totalitários, precisamos condenar os autoritários dos dois lados do espectro e reconhecer que, em uma democracia verdadeira, liberais e socialistas precisam ter voz. Não existe democracia sem convivência da esquerda com a direita.

Nosso desafio é criar acordo sobre os parâmetros democráticos e isolar os carniceiros que se alimentam da polarização.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Se não agirmos, teremos 20 milhões de novos pobres

Fim do auxílio emergencial pode produzir catástrofe social; projetos de lei no Congresso apontam saída

Nesta semana acontecem os últimos pagamentos do auxílio emergencial. O benefício deixará de ser pago a 41 milhões de brasileiros, 15 milhões dos quais têm no auxílio a única fonte de renda. A expectativa é que 20 milhões de pessoas passem a viver abaixo da linha de pobreza.

Apesar da catástrofe social iminente, o governo Bolsonaro ainda não apresentou um programa social que possa conter essa drástica expansão da pobreza que vai engolir 10% da população brasileira.

A saída mais rápida, a renovação do auxílio emergencial, parece enterrada, tanto pelo governo Bolsonaro, como por Rodrigo Maia, ainda que o TCU tenha indicado que os restos a pagar do orçamento de guerra pudessem ser utilizados para essa finalidade sem o rompimento do teto de gastos em 2021.

No Congresso tramitam duas propostas para reformar as políticas de transferência de renda.

Na Câmara tramita o PL 6072/19 de autoria da deputada Tabata Amaral que reforma o Bolsa Família. O projeto recebeu há pouco um substitutivo do deputado Eduardo Barbosa que estabelece duas linhas de cortes, uma para pobreza (R$ 260 per capita) e outra para extrema pobreza (R$ 130 per capita) e pretende, com o valor base, tirar todas as famílias da extrema pobreza.

Além disso, o substitutivo cria valores adicionais por filho, sem limite por família, corrigindo uma notória deficiência do Bolsa Família. Seriam R$ 100 para cada criança até 5 anos e R$ 50 para cada criança ou adolescente entre 6 e 17 anos. A proposta busca investir na infância, sobretudo na primeira infância, equilibrando os esforços sociais que hoje estão concentrados nos cidadãos mais velhos. O substitutivo também prorroga o auxílio emergencial por nove meses com redução gradual do valor até equiparar com o valor desse novo bolsa família.

No Senado, tramita o PL 5343/20 de autoria do senador Tasso Jereissati a partir de proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas. O projeto também estabelece cortes de pobreza (R$ 250 per capita) e extrema pobreza (R$ 120 per capita) e reforma o Bolsa Família, estabelecendo um valor base mais simples orientado a acabar com a pobreza extrema.

Além disso cria dois outros benefícios que funcionam como uma poupança: um orientado a compensar as flutuações de renda dos informais e outro voltado aos estudantes, que poderiam sacar após a conclusão do ensino médio. O projeto estabelece fontes dos recursos (remanejadas do Bolsa Família, abono salarial e seguro defeso) e cria metas sociais de redução da pobreza que, se não forem cumpridas, podem suspender desonerações.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Impeachmente é pouco para Bolsonaro

Negacionismo de Bolsonaro contribuiu para descumprimento do distanciamento social e ampliação de contaminação e mortes

Parte expressiva dos cidadãos brasileiros segue encantada pelo flautista do Vale do Ribeira e vai marchando mesmerizada, prestes a se afogar no rio.

Segundo pesquisa Datafolha, 52% dos brasileiros não veem nenhuma responsabilidade do presidente nas mortes causadas pela Covid-19. As evidências contrárias, porém, são eloquentes.

Bolsonaro não elaborou com antecedência um plano nacional de vacinação e não estabeleceu protocolos para o distanciamento social, gerando descoordenação entre as iniciativas de estados e municípios. Durante todo o período da pandemia, minimizou a mortalidade da Covid, condenou o fechamento do comércio e difundiu a descrença em vacinas.

Os efeitos dessa postura negacionista foram medidos em vários estudos.

Um deles, realizado por pesquisadores da FGV e da Universidade de Cambridge, com dados da empresa In Loco, descobriu uma redução do distanciamento social em municípios com alta votação em Bolsonaro depois que ele discursou contra políticas de isolamento.

Outro estudo, feito na USP com dados do Google, mostrou que estados com alta votação em Bolsonaro relaxaram mais rapidamente a quarentena e que municípios médios e grandes de São Paulo que mais votaram em Bolsonaro cumpriram menos o distanciamento social.

Por fim, estudo de pesquisadores da UFRJ identificou maiores taxas de contaminação e de mortalidade pela Covid nos municípios nos quais Bolsonaro obteve maior votação.

A pesquisa do Datafolha divulgada no último fim de semana mostra novas correlações entre o bolsonarismo e atitudes com relação à Covid.

Simplesmente não pretendem se vacinar contra o vírus 22% dos brasileiros e 33% daqueles que sempre confiam no presidente. Os números são ainda mais chocantes quando o Datafolha pergunta especificamente sobre a vacina desenvolvida pela chinesa Sinovac --cuja confiabilidade tem sido minada pelo presidente e é alvo de intensa campanha negativa no WhatsApp.

Não pretendem tomar a Coronavac --a vacina com mais chances de ser primeiramente aprovada e distribuída-- 50% dos brasileiros e 67% daqueles que sempre confiam no presidente. Essa disposição em não vacinar é grande o suficiente para impedir que o país alcance a imunidade de rebanho.

Bolsonaro tem responsabilidade pelo aumento do descumprimento do distanciamento social, pelo aumento das contaminações e das mortes e, ao que tudo indica, terá também responsabilidade pela cobertura vacinal reduzida. Pode ser que ainda não seja politicamente viável, mas já não é mais motivo para impeachment, é motivo para cadeia.


Pablo Ortellado: Racismo no Carrefour

Conservadores dizem que alegação de racismo em agressão em Porto Alegre é prematura. Estatísticas sugerem racismo estrutural

Até mesmo o torpe assassinato de Beto Freitas em um supermercado em Porto Alegre foi capturado pelas guerras culturais, com vozes conservadoras acusando os progressistas de enxergar racismo onde não havia e dividir uma sociedade racialmente integrada.

A principal crítica desses conservadores tem sido quanto ao emprego do conceito de racismo estrutural. Para eles, o racismo se restringiria apenas àqueles episódios de preconceito e intolerância com motivação racista manifesta.

Seria preciso, então, entender as circunstâncias que levaram à morte de Beto Freitas: se havia algum fato anterior que pudesse justificar o uso excessivo de força e se haveria evidência de motivação racista, como alguma injúria racial que tivesse sido proferida. Sem esses elementos, a alegação de racismo seria prematura e injustificada e mostraria apenas um esforço da esquerda em promover a divisão em uma sociedade conhecida por ter uma integração racial bem-sucedida.

Não é, no entanto, o que dizem as estatísticas. Raça é importante, mesmo quando comparamos índices dentro de uma mesma classe de renda. Entre negros de baixa renda, por exemplo, 42% relatam terem sido desrespeitados pela polícia (contra 34% dos brancos de baixa renda): 35% já receberam agressões verbais e 18% sofreram agressões físicas (contra 27% e 12% dos brancos de baixa renda).

Enquanto 56% da população brasileira é negra ou parda, negros e pardos são 67% dos encarcerados e 76% das vítimas de homicídio. Esses não são números de uma sociedade não racista.

Independentemente das circunstâncias que levaram os seguranças a agredir Beto Freitas, é incontestável que houve uso excessivo de força, já que as agressões foram desproporcionais e não cessaram quando ele foi rendido.

O uso da força pelos seguranças teria chegado a esse grau de excesso e violência se Beto Freitas fosse branco? Quinze pessoas assistiriam passivamente um homem branco ser covardemente espancado e asfixiado por seguranças sem tentar impedi-los? Provavelmente não.

É esse racismo insidioso, não explícito e não manifesto que condiciona as ações individuais e o funcionamento das instituições que vemos atuar em casos como esse. É ele que anui, que consente o exercício de uma violência brutal contra um homem negro que dificilmente seria autorizada contra um homem branco.

É esse racismo furtivo, enfim, que faz com que negros sejam mais interpelados pela polícia, sejam mais encarcerados, sejam mais agredidos e sejam mais assassinados. As estatísticas não são fruto do acaso.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Ciberataques

Vulnerabilidade dos sistemas públicos está sendo explorada por quem quer minar a confiança no sistema eleitoral

O aumento no número de incidentes em que hackers tiveram acesso a sistemas do governo, seguido de dificuldades operacionais nos sistemas do TSE, deve acender um alerta para nossa fragilidade no campo da cibersegurança dos sistemas públicos.

Embora não tenhamos evidências de coordenação, os ataques de domingo foram explorados pela extrema direita que tenta minar a confiança no sistema eleitoral.

A crise começou em outubro, quando os servidores do STJ foram invadidos por hackers, e os conteúdos, copiados e criptografados, supostamente para extorquir dinheiro do Poder Judiciário. Logo após o ataque, outros sistemas de órgãos públicos, como o do SUS e o da Anvisa, foram preventivamente desligados até que as condições de segurança fossem restabelecidas.

No meio desta crise, o TSE optou por dividir as atividades de seus dois servidores, reservando um deles apenas para cópias de segurança e concentrando todas as tarefas no segundo. Foi esse servidor único, sobrecarregado, que teve problemas no seu processador, gerando uma instabilidade que travou o funcionamento do eTítulo (aplicativo que substitui o título de eleitor) e atrasou a computação dos votos.

Além dessa instabilidade do sistema, o TSE foi alvo de dois ataques de hackers, aparentemente desconectados.
O primeiro, reivindicado pelo grupo hacker luso-brasileiro CyberTeam, capturou dados de funcionários do TSE e foi divulgado às 9h25 por meio de uma conta no Twitter. O manifesto do grupo mencionava violações de direitos humanos nas prisões brasileiras, mas parecia motivado apenas em mostrar que conseguiam acessar o sistema. O TSE diz que o ataque aconteceu antes de 23 de outubro, mas que os dados capturados foram divulgados no dia da eleição buscando visibilidade.

Logo depois, às 10h41, o TSE foi vítima de um segundo ataque, agora de negação de serviço (quando muitos acessos simultâneos tentam sobrecarregar o servidor). O CyberTeam nega qualquer relação com esse segundo ataque, que foi divulgado pelo TSE como causa adicional das instabilidades do sistema.
Essas foram as circunstâncias que convergiram com os esforços da extrema direita em minar a credibilidade das urnas, que não foram comprometidas pelos ataques. Desde outubro, os bolsonaristas retomaram as críticas ao sistema eleitoral, que começaram nas eleições de 2018 e foram ampliadas com a crise nas eleições americanas e a proximidade das eleições municipais.
Se não fizermos nada, a combinação de vulnerabilidade dos sistemas com ataques à confiabilidade das urnas pode criar grandes problemas em 2022.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Eleições nos EUA pautam o futuro da esquerda

Vitória de Biden deve dar alento a estratégias eleitorais mais centristas; derrota vai estimular correntes à esquerda

Joe Biden construiu sua carreira política promovendo o diálogo bipartidário no Congresso —ficou conhecido como um político de centro que sabia compor com os republicanos quando necessário. Sua candidatura à Presidência é uma aposta do Partido Democrata de que é mais viável uma candidatura de centro que tenha apelo a uma base mais larga de eleitores do que uma candidatura mais à esquerda que mobilize e estimule o eleitorado.

Por isso, uma vitória de Joe Biden terá grande repercussão sobre as estratégias eleitorais da esquerda, inclusive fora dos Estados Unidos, reorientando o debate que teve início quando Hillary Clinton foi derrotada por Trump em 2016.

A esquerda do Partido Democrata argumenta que a vitória de Trump em 2016 se deveu à concorrência com uma candidata centrista e pró-establishment, fria e sem grande apelo com o eleitorado. Ela argumenta que Bernie Sanders, o principal adversário de Hillary nas primárias, oferecia melhores respostas para os problemas sociais e ambientais do país e que o engajamento que sua campanha produziria aumentaria o comparecimento às urnas.

Já a ala tradicional do Partido Democrata atribuía o sucesso de Trump não ao programa centrista de Hillary, mas a uma combinação de regras eleitorais arcaicas, jogo sujo do adversário e pequenos erros na condução da campanha.

Debate semelhante ocorreu também em outros países. Nas eleições francesas de 2017, discutiu-se se a melhor via para derrotar a extrema-direita de Marine Le Pen seria uma candidatura centrista, como a de Macron ou Fillon, ou se seria mais efetiva uma candidatura radical de esquerda, como a de Melénchon. O mesmo debate se deu no Reino Unido em 2019, quando o Partido Trabalhista entrou na disputa com um programa de esquerda, tentando recuperar o terreno perdido desde o Brexit.

Uma vitória de Biden deve estimular estratégias mais centristas em outras partes do mundo e também no Brasil. Por aqui, ela confirmaria o entendimento produzido pelo resultado de eleições na região que mostraram que uma acomodação um pouco mais ao centro permitiu ao MAS recuperar o poder na Bolivia e à esquerda peronista retomar a Presidência na Argentina.

Por outro lado, uma nova vitória de Trump, ainda que por pequena vantagem no colégio eleitoral ou por manobra na computação dos votos, deve dar fôlego às correntes de esquerda que esperam que uma considerável ampliação dos gastos sociais ou uma tomada de posição mais clara nas guerras culturais seja o melhor caminho para engajar o eleitorado e derrotar o populismo de direita.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Guerras culturais

Declaração do papa a favor da união civil homossexual não altera engajamento da igreja nas guerras culturais

Causou controvérsia a declaração do papa Francisco a favor da união civil homossexual no documentário "Francesco", que estreou no último dia 21 de outubro na Itália.

Apesar do impacto, a declaração não era nova nem inédita. O papa já tinha dado declarações anteriores em defesa da união civil homossexual e tinha publicamente apoiado uma lei de união civil quando era arcebispo de Buenos Aires.

O posicionamento a favor da união civil na Argentina, porém, era uma tentativa de impedir medida mais ampla, a extensão do direito de casamento, que terminou aprovada no país em 2010.

Já como papa, em 2013, Francisco deu uma declaração demonstrando respeito aos homossexuais no voo de volta de sua viagem ao Rio de Janeiro: "Quem sou eu para julgar?".

A declaração que está no documentário ("O que temos que ter é uma lei de convivência civil. Dessa forma, eles [homossexuais] são legalmente cobertos") foi extraída de entrevista à TV mexicana Televisa, em 2019.

O fato de o trecho não ter ido ao ar em 2019 pode indicar dificuldades políticas. A emissora mexicana alegou que, na época, considerou o conteúdo sem interesse jornalístico, mas a transcrição oficial no site do Vaticano também apareceu editada sem o trecho.

Grupos conservadores reagiram criticamente à declaração publicada agora, dizendo que ela não altera as posições doutrinárias da igreja e cria confusão e incerteza na orientação dos fiéis.

Seja como for, a posição do papa de respeito e acolhimento aos homossexuais tem sido consistente. Mas também tem sido consistente sua batalha em defesa do casamento tradicional entre homem e mulher e contra a chamada "teoria de gênero".

Teoria de gênero é uma construção conceitual da teologia católica que acredita que o feminismo e o movimento LGBTQ —ou pelo menos parte deles— estão engajados em promover na sociedade e nas escolas a ideia de que a distinção entre os gêneros não está assentada na divisão biológica dos sexos, mas que seria apenas questão de opção individual.

Essa crença toma a defesa do respeito à diversidade feita pelos movimentos por uma campanha organizada para embaralhar os papéis de gênero e a orientação sexual das crianças com o intuito de destruir a família.

Embora a declaração do papa no documentário colabore para promover a tolerância com os homossexuais que é bastante presente em países de maioria católica, sua batalha reiterada contra o moinho de vento da teoria de gênero alimenta as guerras culturais e, indireta e involuntariamente, fortalece a posição dos violentos e dos preconceituosos.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Vacinação contra a Covid deve ser compulsória

Congresso e STF precisarão garantir instrumentos de coerção para vencer sentimento anti-vacina

Como esperado, a politização da Covid ampliou as resistências à vacinação. Pesquisa da CNN Brasil, publicada na última sexta (16), mostrou que 46% dos brasileiros não tomariam a "vacina da China" (Coronavac) e 38% não tomariam a "vacina da Rússia" (Sputnik V). Os números são altos e podem inviabilizar a imunidade comunitária, já que a Coronovac pode ser aprovada em breve.

A resistência à vacina chinesa, testada pelo Instituto Butantã, é resultado da campanha anti-China do governo Bolsonaro e da disputa política do presidente com o governador João Doria. Esse antagonismo se agravou com a declaração do governador de que a vacinação será compulsória e com a réplica de Bolsonaro de que não será.

O grau de imposição da vacinação é um problema delicado de política pública.

Por um lado, uma democracia liberal deve permitir a expressão do sentimento antivacina, respeitando as liberdades de pensamento, de expressão e de objeção de consciência.

Por outro, a liberdade individual não pode se sobrepor ao interesse coletivo de atingir a imunidade comunitária. Como as vacinas não têm 100% de eficácia, quando alguém não se vacina, não põe em risco apenas a própria vida, mas também a de parte dos seus concidadãos vacinados que ainda podem ser contaminados.

A experiência internacional apresenta um leque de instrumentos de imposição, que vão das multas a quem não se vacinar à exigência de comprovantes de vacinação para matricular as crianças na escola ou para acessar programas sociais.

Como o governo federal promove a hesitação em relação à vacinação, e como há limitações jurídicas às ações dos estados, cabe a Alcolumbre e a Rodrigo Maia, de um lado, e ao STF, de outro, garantirem que, uma vez aprovada uma vacina, possamos atingir a imunidade.

Alguns estados e cidades já solicitam cadernetas de vacinação para a matrícula nas escolas públicas.

Essa proposta pode ser nacionalizada por meio do PL 5.542/19, em tramitação no Senado. Ela pode ser expandida ainda para incluir, no caso da Covid, os estudantes do ensino superior.

Outra medida a ser tomada é exigir a vacinação contra a Covid de todos os membros da família para acessar o Bolsa Família. Além disso, pode-se exigir que trabalhadores que atuam diretamente com o público se vacinem. A cobrança da vacinação a estudantes, famílias beneficiárias do Bolsa Família e trabalhadores que lidam com o público deve ser suficiente para atingir a imunidade comunitária.

Embora a saída para vencer o sentimento antivacina seja o convencimento do público, no curto prazo vamos precisar de instrumentos de coerção.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: A normalização de Bolsonaro

Concessões ao establishment podem desmotivar base militante do presidente

Existe um equilíbrio difícil entre o que é necessário para governar e o que é necessário para se eleger, sobretudo com plataforma populista.

A indicação de Kassio Nunes para o STF, o jantar de Bolsonaro com Toffoli e Alcolumbre e a retomada do diálogo entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia são os sinais mais visíveis da normalização de Bolsonaro que abandonou o discurso golpista e fez sucessivas concessões ao establishment.

As duras críticas que recebeu da militância mostra que os movimentos necessários para estabelecer as bases políticas para a governabilidade podem comprometer a disposição e o entusiasmo dos apoiadores. Será que Bolsonaro vai conseguir equilibrar os pratos?

Dois fatores contribuíram para a mudança de atitude do presidente.

O primeiro foi a agressiva reação de Alexandre de Moraes que conduziu com mão dura dois processos que envolviam apoiadores de Bolsonaro —aquele que investigava os atos antidemocráticos e aquele que investigava ataques à corte nas mídias sociais.

O segundo foi a descoberta tardia e fortuita de que boas políticas públicas —sobretudo políticas sociais —rendem votos. Bolsonaro descobriu esse princípio patente por acaso, quando as circunstâncias da pandemia o forçaram a implementar um programa amplo de transferência de renda.
Bolsonaro pode ser bronco e obtuso, mas tem instinto de oportunidade.
Seu compromisso com o radicalismo online veio do reconhecimento de que sua eleição se deveu à agitação de Carlos Bolsonaro no WhatsApp. E sua nova postura parece vir do reconhecimento de que no momento em que a agitação militante foi contida, sua aprovação cresceu com a implementação do auxílio emergencial.

Mas nem tudo o que o ajuda a governar, o ajuda a se reeleger.

Como Bolsonaro bem demonstrou nas eleições de 2018, uma militância entusiasmada e enraizada na sociedade pode derrotar campanhas adversárias com mais recursos. Sua recondução em 2022 depende de uma base motivada e continuamente mobilizada.

Bolsonaro não pode se dar ao luxo de deixar a militância esmorecer. Ele vai precisar fazer como Lula, que enquanto governava com um pragmatismo desavergonhado, distribuía migalhas à militância de esquerda que passou oito anos acreditando que seu governo estava em disputa.

É o que parece que Bolsonaro já começou a fazer com a promessa feita à base evangélica de que, embora não tenha sido dessa vez, sua próxima indicação ao STF será de um ministro, não apenas evangélico, como pastor —e acendeu a fantasia dos fanáticos com a imagem de sessões do Supremo precedidas por uma oração.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia


Pablo Ortellado: Pesquisadores veem risco de violência política na eleição americana

Um em cada cinco americanos que se identifica como democrata ou republicano considera justificado o uso de violência se o seu partido perder

Cientistas sociais de diferentes instituições de pesquisa dos Estados Unidos perceberam que investigavam em paralelo a aceitabilidade da violência política por cidadãos com forte identidade política.

Quando reuniram seus bancos de dados, descobriram que o país vive uma onda crescente de aceitação da violência política, o que pode culminar em uma explosão caso o resultado das eleições presidenciais seja contestado por uma das partes.

Em artigo no site Politico, os pesquisadores apresentaram números preocupantes: em setembro de 2020, cerca de um terço dos americanos que se identificam como democratas ou como republicanos considerava justificado o uso da violência para atingir objetivos políticos (33% dos democratas e 36% dos republicanos). O índice era de apenas 8% em 2017, passou para 12% em 2018, depois para 15% em 2019 e dobrou para 30% em junho de 2020, no contexto dos embates entre conservadores e progressistas nos protestos do Black Lives Matter.

Os pesquisadores estão particularmente preocupados com dados que sugerem que cada episódio de violência política torna mais aceitável violência adicional, num ciclo vicioso perigoso: logo após um episódio de violência política, a aceitação geral da violência parece subir.

Nos últimos meses, ações armadas dos dois campos resultaram em morte. Em agosto, dois ativistas do Black Lives Matter foram mortos a tiros por um apoiador da ação da polícia na cidade de Kenosha. Quatro dias depois, um militante de extrema direita foi morto a tiros por um ativista antifascista em Portland.

Além dessas mortes, casos de agressão se espalharam por todo o país no contexto dos protestos.

Episódios de violência armada também aconteceram em protestos contra as políticas de isolamento social, como as diversas invasões da Assembleia Legislativa de Michigan por ativistas de extrema direta pesadamente armados.

O dado mais preocupante descoberto pelos pesquisadores mostra que um em cada cinco americanos que se identificam como democrata ou como republicano considera bastante justificada a violência se seu partido perder as eleições presidenciais, em novembro (20% dos republicanos, 19% dos democratas).

Quanto mais forte a identificação partidária, maior essa abertura à violência.

Como Donald Trump insiste que o voto pelo correio pode levar a uma fraude eleitoral, e Hillary Clinton recomendou ao candidato democrata Joe Biden não reconhecer a derrota se o resultado for apertado, os pesquisadores acreditam que sua preocupação com uma explosão de violência em novembro é bastante pertinente.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: E se Trump decidir ficar?

Presidente americano quer deslegitimar voto pelo correio que pode dar vitória a democrata

Faltando pouco mais de um mês para as eleições presidenciais, os Estados Unidos podem ver o atual presidente não reconhecer eventual derrota e se negar a fazer uma transição pacífica caso a eleição se decida com os votos pelo correio.

Trump foi questionado duas vezes, recentemente, se se comprometia com uma transição pacífica de poder se vier a perder as eleições; uma em entrevista à Fox News, em julho, e outra em entrevista coletiva na Casa Branca, na última quarta-feira (23). Nas duas ocasiões, preferiu não se comprometer. Na convenção do partido Republicano, em agosto, disse que só perderia a eleição se houvesse fraude.

Em 2016, mesmo tendo vencido, Trump acusou Hillary Clinton de ter se beneficiado de milhões de votos de imigrantes ilegais —alegação feita sem nenhum embasamento.

Nas últimas semanas, Trump tem dado em média quatro declarações diárias colocando em dúvida a confiabilidade do voto postal. Esse tipo de voto, no qual o eleitor recebe as cédulas com antecedência e as envia pelo correio, é utilizada desde o século 19 e tem um nível de segurança aceitável.

Na verdade, esse ou qualquer outro tipo de fraude eleitoral é muito infrequente nos Estados Unidos.

Levantamento do Centro Brennan, ligado à Universidade de Nova York, mostrou que fraudes apuradas variam de 0,0003% a 0,0025% dos votos, o que, no universo de uma eleição presidencial, com cerca de 155 milhões de eleitores, equivale a menos de 3,9 mil votos —uma quantidade quase certamente incapaz de afetar o resultado final.

Apesar disso, o fantasma da fraude no voto postal pode gerar um perigoso impasse.

Em tempos normais, não há diferença significativa na opção pelo voto por correio entre eleitores democratas e republicanos, mas durante a pandemia pesquisas têm mostrado que democratas --que consideram a Covid mais grave —pretendem fazer mais uso do voto pelo correio.

A diferença é tão grande que simulações da empresa de dados Axios dão como altamente provável que a apuração com os votos presenciais dê vitória parcial a Trump, mas, após a contagem dos votos pelo correio, Biden saia eleito.

A incerteza é como Trump vai agir no intervalo entre a publicação do resultado parcial e do resultado final.

Reportagem da revista The Atlantic mostra que líderes do partido Republicano estudam, em alguns cenários, declarar suspeição das eleições, de modo que deputados estaduais determinem qual vai ser o voto de todo o Estado —uma possibilidade prevista na Constituição, mas jamais colocada em prática, e que pode jogar o país numa crise sem precedentes.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.