os divergentes

Itamar Garcez: O maniqueísmo ideológico dos inimigos da Lava-Jato

É humana a tendência de encarar nossas paixões com fervoroso maniqueísmo. Ou é bom, pleno de virtudes; ou é mal, infesto de defeitos. Este dualismo (ir)refletido, ao lado de inconfidências vazadas e interesses políticos difusos, esvanece o combate à corrupção

O desmanche da Operação Lava-Jato caminha a passos lentos e seguros. Sua desmoralização representará um novo golpe no combate à corrupção no Brasil, como a Operação Castelo de Areia, anulada pelo STJ, em 2011.

A Lava-Jato, no entanto, foi mais longe. As condenações poderão ser anuladas, quiçá os valores roubados e devolvidos pelos malfeitores restituídos. Mas restará histórico que um grupo de homens brancos, ricos e poderosos se organizou para surrupiar bilhões de reais de dinheiro do erário.

Por um punhado de anos foi possível acreditar que não somente pobres e negros mofariam nas masmorras de Cardozo. “Se tanta gente rica e poderosa foi encarcerada, por que não eu?”

Esta expectativa de novos tempos foi embarreirada pelos inimigos, méritos e erros da Lava-Jato. Entre os méritos, o giro excessivo de sua metralhadora, acertando gente demais nem sempre com um tiro fatal. Os erros foram a soberba e o desejo justiceiro. Juízes e promotores deveriam moldar-se pelo equilíbrio, pela sobriedade e pela fidelidade a leis justas. Justiceiros movem-se pela cegueira de convicções pessoais.

Larápios, uni-vos

Os colóquios vazados não representam novidade no mundo jurídico. Se alguém acredita que juízes, promotores e delegados não compartilham suas ações é candidato a viver na Venezuela democrática ou na Amazônia preservada. Causídico de sucesso não é apenas o que sabe os números das leis, mas o telefone de autoridades da Justiça brasiliana. Interações incestuosas indicam a distância entre o Judiciário e a justiça.

A indiscrição hackeada acionou o esprit de corps dos larápios apanhados pela Lava-Jato. A deixa à sobrevivência em liberdade conduziu bolsonaristas e petistas ao mesmo trem rumo à impunidade. PT e seus parceiros, como PP e MDB, acionaram a nata cara da advocacia patrícia. Condenados em busca da ficha-limpa; causídicos atrás dos fartos caraminguás jorrados, de acordo com a Lava-Jato, dos oleodutos irrigados pela corrupção nunca antes desvendada no Brasil, que virou commodity.

Aos acusados juntaram-se togados que, travestidos de promotores, assanharam-se em defesa dos que outrora sentenciaram. Xerifes de ocasião. Com despudor, como uma biruta ao léu, desdisseram-se e o dito passou a não dito. Diante das escancaradas provas dos roubos – R$ 4,3 bilhões devolvidos de R$ 15 bilhões ajustados -, a tática é desmerecer o acusador e desprezar os fatos. Reviravolta e contradições tamanhas, difíceis de explicar a um juiz ou investidor vindos de uma democracia civilizada.

Todo mundo faz…

Se condenados e seus defensores têm motivos palpáveis para se opor aos paladinos da Lava-Jato, o que dizer da militância sequaz que aplaude o desmoronamento da inédita operação policial? Não há aqui resposta única.

Parte dela acredita que nada foi roubado por seus líderes. Parte acha que o assalto ao erário foi praticado por outros companheiros, não pelos seus. Parte crê que o assalto foi por uma causa maior, quando o pecado de hoje justifica o paraíso vindouro. Parte considera que todos se aproveitam dos cofres públicos escancarados, não seria justo que apenas um punhado fosse punido.

Não há, nem de um lado nem do outro, paladinos impolutos. Um lado errou pelo excesso e pela empáfia, largamente respaldados por instâncias legais superiores; o outro, pela rapinagem despudorada e incontida, a qual certamente teria se avolumado inda mais não fosse a contenção lavajatista.

O diretor da Petrobras Marcelo Zenkner disse ao jornalista Eduardo Kattah que o alvo do antilavajatismo é criar um “processo de desmoralização” para fazer crer que toda a operação policial foi “fruto de mera ficção”. Hoje, este processo tem no STF seu bastião irrecorrível. Aos poucos, a Lava-Jato vai derretendo, como visto nos discursos enraivecidos do xerife Gilmar Mendes.

Malfeitos? Não vi

Se é desconhecida a razão da fúria do sufeta supremo, o método adotado para a desconstrução da rara operação policial, que mirou gente muito graúda, é o do maniqueísmo ideológico. Não se trata de algo necessariamente planejado, mas de um mecanismo que cega o raciocínio.

Humanos têm a tendência de enxergar um único lado de suas paixões. A depender de nossos sentimentos ou interesses, superdimensionamos características alheias. Nada mais comum do que o ex-amante que passa a encarar o ex-ser-amado, antes pleno de virtudes, um humano vil e desprezível, onde sobejam defeitos. Sentimento teorizado por Roland Barthes (“O sujeito vê a boa imagem repentinamente se alterar e se inverter”) e poetizado por Chico Buarque (“Amanhã há de ser / Outro dia / Você vai ser dar mal“).

A maior parte da sociedade não reconhece as contradições do Parlamento. “Nada pode haver de positivo num colegiado que rouba e se locupleta”. Generaliza-se que todos os políticos roubam, logo nada de bom pode surgir dali.

O maniqueísmo empalidece a lucidez – ironicamente, um dos pecados fatais dos próceres da Lava-Jato, a sanha de despolitizar a política a partir da politização da Justiça. O Parlamento legou leis avançadas em diversos setores, como o meio ambiente, a proteção a minorias, o direito dos consumidores. “Mas como quem rouba e saqueia os cofres públicos pode produzir algo positivo?” Porque a Terra não é linear, é redonda, e não para de girar em torno de si mesma. Sim, a vida é contraditória.

O maniqueísmo ideológico gera discursos irracionais. “O Congresso Nacional só aprova boas leis porque é pressionado pela opinião pública”. Se assim o faz cumpre bem seu papel, pois, dos três poderes, o único que deve ser plenamente permeável à opinião popular é o Legislativo.

Impunidade estimulada

A Lava-Jato se enquadra neste dualismo excludente, entre o bem pleno e o mal absoluto. À medida que as artimanhas de seus integrantes vazavam, os crimes revelados pela operação eram paulatinamente esvaziados. O roubo que estava ali, escafedia-se. Como provas e evidências dos malfeitos são abundantes, prudente ignorá-las. Detratores da Lava-Jato – os quais, indiretamente, estimulam a impunidade – concentram-se nas intenções malévolas dos investigadores.

Parte desta interpretação polarizada jaz inconsciente. Se não é certo, é errado, fim de papo. Ao mesmo tempo, o maniqueísmo serve como tentativa de evitar que, em 2022, o hodierno mandatário siga à frente da nação. Parece patente, para uma parcela esclarecida e expressiva dos eleitores, que o presidente Jair Bolsonaro representa um retrocesso à democracia a ao desenvolvimento brasilianos. Não é possível contabilizar o valor que o maniqueísmo ideológico, e oportunista, legará aos velhos e novos larápios dos dinheiros públicos.


Weiller Diniz: À sombra mortal da suástica

Entre os métodos recorrentes de Jair Bolsonaro para conspirar contra a democracia representativa, avacalhando as instituições, muitos têm inspiração nefasta no nazismo: hostilizar a liberdade de imprensa diariamente, atribuir todos os malogros aos comunistas (esquerda e o PT), incensar a mitomania ignorante, reforçar o ideário de reiteração de mentiras, apostar na propaganda maciça de falsidades alienantes, o culto à morte, o belicismo, a militarização dos cargos públicos civis e a disseminação do ódio contra todas as minorias, adversários, pensadores, escritores e a academia. O que o capitão diz, pensa e faz tem similitudes despudoradas com o nazismo. Ele trama sua própria noite dos cristais, uma ruptura já vocalizada em várias oportunidades, ora pelo próprio capitão, ora pelos filhos, ora por aliados e intentada por seu preceptor diabólico, Donald Trump, após ser repelido pelo eleitor.

A selvageria assassina no capitólio dos EUA, perpetrada por ogros simpatizantes de Trump, assombrou o mundo, escancarou a barbárie do extremismo de direita e, óbvio, obteve o endosso tosco do capitão. “O pessoal tem que analisar o que aconteceu nas eleições americanas agora, basicamente qual foi o problema, a causa dessa crise toda: falta de confiança no voto. Lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos Correios por causa da tal da pandemia e teve gente que votou três, quatro vezes. Mortos votaram, foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí, então a falta de confiança levou a esse problema que está acontecendo lá. E aqui no Brasil se tivermos o voto eletrônico em 22 vai ser a mesma coisa, a fraude existe”. As ativações golpistas da sua base desmiolada são rotineiras e majoritariamente inverídicas, como as delirantes fraudes eleitorais aqui e nos EUA.

Mais uma vez sem provas, o capitão investiu para deslegitimar as instituições, sabotou a democracia, espancou a Justiça Eleitoral e atentou contra o livre exercício dos poderes. Os pedidos de impeachment por crime de responsabilidade se acumulam quase na mesma proporção das estéreis notas de repúdio de autoridades a cada coice autoritário vindo da estrebaria presidencial. O STF toca 3 inquéritos sensíveis (fake news, atos golpistas e uso político da Polícia Federal). O TSE tem ainda processos sobre possíveis fraudes eleitorais para julgar. Ou seja, os poderes Legislativo e Judiciário, cumprindo seu papel institucional, têm mecanismos democráticos para, além dos protestos burocráticos, abortar a índole despótica e impedir os retrocessos que estão envenenando a democracia brasileira.

Em outra manifestação de inclinação nazista o capitão opinou por segregar o que ele qualificou de alunos “atrasados”. “O que acontece na sala de aula: você tem um garoto muito bom, você pode colocar na sala com melhores. Você tem um garoto muito atrasado, você faz a mesma coisa. O pessoal acha que juntando tudo, vai dar certo. Não vai dar certo. A tendência é todo mundo ir na esteira daquele com menor inteligência. Nivela por baixo. É esse o espírito que existe no Brasil”, pontificou o falso pedagogo Bolsonaro com a mesma desfaçatez de um charlatão que prescreve medicamentos inúteis para Covid 19.

Adolf Hitler e seus facínoras deportavam e encarceravam em campos de concentração pessoas com deficiência, judeus, gays, comunistas e dissidentes. A eugenia, sinônimo de barbárie, foi a base do terror nazista e deve ser lembrada para que não se repita. “Menor inteligência” é mesmo um campo fértil e vasto para os “atrasados” bolsonaristas.

Otto Adolf Eichmann foi o carrasco da sanguinária SS que comandou a política de segregação em guetos e o extermínio na Segunda Guerra. À exemplo de Eduardo Pazuello, o coronel hitlerista também era especializado em logística, a logística do holocausto e da morte no confinamento. Eichmann fugiu após a derrota alemã, mas foi capturado pelo serviço secreto de Israel, o Mossad, em 1960 na Argentina. Levado a Israel foi julgado, condenado e enforcado em 1962 por 15 crimes. Além de Augusto Pinochet, Jorge Videla e Slobodan Milosevic, Eichmann é outro exemplo de que crimes contra a humanidade, morticínios e genocídios não ficam impunes. O “dia D e a hora H” de Pazuello, o pesadelo, trarão o castigo para o escárnio diante dos milhares de mortos. O dia D (desembarque na Normandia) na Segunda Guerra Mundial foi também o começo do fim do terror hitlerista.

Há mais sombras nazistas no governo. A Secretaria de Comunicação da Presidência, chefiada por Fábio Wajngarten, produziu uma peça publicitária em maio de 2020, em plena ascensão da pandemia contra o isolamento social. Ela foi compartilhada pelo capitão e, em determinado trecho afirma: “O trabalho, a união e a verdade nos libertará”. Há dois erros grosseiros. O de concordância e a inconcebível correspondência fúnebre à famosa inscrição nazista na entrada do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia: “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta). A incorreção gramatical foi corrigida posteriormente. O conteúdo e as semelhanças da peça com nazismo são eternas como as câmaras de gás. Um dos terroristas no vandalismo na sede do Congresso norte-americano usava uma camiseta propagandeando Auschwitz. O chefe da diplomacia isolacionista e servil aos EUA, Ernesto Araújo, também foi pressionado a se retratar por comparar erroneamente o isolamento social imposto por uma pandemia aos campos de concentração.

Em janeiro de 2020, ao som de Richard Wagner (compositor predileto de Adolf Hitler), o secretário de Cultura de Bolsonaro, Roberto Alvim, plagiou trechos de um pronunciamento do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada”, afirmou Alvim em vídeo. Goebbels havia dito: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferrenhamente romântica, será desprovida de sentimentalismo e objetiva, será nacional com um grande pathos e será ao mesmo tempo imperativa e vinculante – ou não será nada”, disse Goebbels em seu discurso. A fala de Alvim resgata a grande queima de livros em 1933 na Alemanha, quando Hitler já era chanceler, em nome de uma “limpeza” cultural.

A convergência de valores revela muito da índole dos integrantes do governo. A sucessora de Alvim, Regina Duarte, também demonstrou um repulsivo desprezo pelas vidas subtraídas por governos autoritários e minimizou os métodos nazistas: “Bom, mas sempre houve tortura. Meu Deus do céu… Stalin, quantas mortes? Hitler, quantas mortes? Se a gente for ficar arrastando essas mortes, trazendo esse cemitério… Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas e não desejo isso pra ninguém. Eu sou leve, sabe, eu tô viva, estamos vivos, vamos ficar vivos. Por que olhar pra trás? Não vive quem fica arrastando cordéis de caixões”. Regina Duarte foi usada e, depois, expelida pelo governo que arrasta um cemitério de mortos nas costas e, até aqui, mais de 200 mil caixões pela inépcia no enfrentamento da Covid 19.

As excreções purulentas do nazismo não passaram despercebidas pelo ex-ministro Celso de Mello do STF. Em junho de 2020, anotou com a justificável ênfase maiúscula: “GUARDADAS as devidas proporções, O “OVO DA SERPENTE”, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (1919-1933), PARECE estar prestes a eclodir NO BRASIL! É PRECISO RESISTIR À DESTRUIÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA, PARA EVITAR O QUE OCORREU NA REPÚBLICA DE WEIMAR QUANDO HITLER, após eleito por voto popular e posteriormente nomeado pelo Presidente Paul von Hindenburg, em 30/01/1933, COMO CHANCELER (Primeiro Ministro) DA ALEMANHA (“REICHSKANZLER”), NÃO HESITOU EM ROMPER E EM NULIFICAR A PROGRESSISTA, DEMOCRÁTICA E INOVADORA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR, de 11/08/1919 , impondo ao País um sistema totalitário de poder viabilizado pela edição , em março de 1933 , da LEI (nazista) DE CONCESSÃO DE PLENOS PODERES (ou LEI HABILITANTE) que lhe permitiu legislar SEM a intervenção do Parlamento germânico!!!! “INTERVENÇÃO MILITAR”, como pretendida por bolsonaristas e outras lideranças autocráticas que desprezam a liberdade e odeiam a democracia, NADA MAIS SIGNIFICA, na NOVILÍNGUA bolsonarista, SENÃO A INSTAURAÇÃO, no Brasil, DE UMA DESPREZÍVEL E ABJETA DITADURA MILITAR !!!!”

Mello tem razão. Eles rastejam entre nós chocando um novo ovo da serpente, maquinando uma noite dos cristais, como no ataque contra o STF em junho de 2020. Oportuna a lembrança dos versos do pastor Friedrich Gustav Emil Martin Niemöller: “Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu fiquei em silêncio; eu não era um social-democrata.

Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não protestei; eu não era um sindicalista. Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu. Quando eles me vieram buscar, já não havia mais ninguém para protestar.” Os versos sintetizam a infame perseguição de Adolf Hitler a comunistas, demais esquerdistas (inclusive os moderados), judeus, sindicalistas, homossexuais, oponentes, ciganos entre outros. O que atalhou esse período de terror e da banalização da vileza foi a derrota na segunda guerra simbolizada pela invasão ao bunker de Hitler em Berlin em 30 de abril de 1945. A operação das tropas soviéticas que encontrou Hitler morto foi batizada de “Mito”.


Andrei Meireles: Vacinas escancaram o desleixo de Bolsonaro e seu general de fancaria

Além do puxão de orelha da Anvisa por receitas vigaristas, o maior vexame da gestão irresponsável de Bolsonaro é ter o melhor sistema de vacinar do mundo e não ter vacinas pela leviandade do governo

Esse foi um domingo de comemoração. A Anvisa finalmente falou. E falou bem, reiterou o compromisso com a ciência. Deu autorização emergencial para as vacinas aqui produzidas pelo Instituto Butantan e pela Fundação Oswaldo Cruz. Com a mesma unanimidade, censurou a vigarice do tal tratamento precoce com a cloroquina, o fermífugo ivermectina e outras baboseiras.

O presidente Jair  Bolsonaro, que se finge de maluco por esperteza, saiu de cena e escalou o pau mandado general Eduardo Pazuello, que cumpre suas ordens no Ministério da Saúde, para pagar recibo e mico pelo fato do governador João Doria iniciar a vacinação em São Paulo. As imagens de vacinados, única preocupação de Bolsonaro na tal guerra das vacinas, foram exibidas em um show de marketing pelo governo paulista, com a escolha a dedo das protagonistas — Camila Calazans, uma enfermeira negra da linha de frente no combate a Convid-19 que mora na periferia e se formou com muita dificuldade, e a indígena Vanuzia Costa Santos, assistente social da aldeia multiética Filhos dessa Terra, em Cabuçu, no município de Guarulhos. Boas escolhas.

No desespero palaciano, onde só se pensa na reeleição do chefe, sobrou para Pazuello, um general de fancaria que fala com a sociedade como um sargento de história em quadrinhos se dirige a seus subordinados. Um arremedo do sargento Tainha, genial criação do cartunista Mort Walker, com bem menos empatia. Como um robô, ele seguiu mais uma vez as ordens do chefe e alimentou a cega militância bolsonarista nas redes sociais.  Disse, por exemplo, que do começo ao fim foi o governo Bolsonaro que bancou todos os investimentos na vacina do Butantan. ” O governo de São Paulo não pôs nenhum centavo”, afirmou de maneira categórica como se fosse uma grande revelação mantida até ontem em sigilo pela  discrição com que o governo federal trata a pandemia. Nem o Fio Maravilha teria tanta humildade frente ao gol, na belíssima música de Jorge Ben. Pura cascata.

Uma surpresa também porque Bolsonaro  sempre disse que não compraria a “vachina” chinesa do Doria. Com essa nova lorota, Pazuello levantou a bola e Doria marcou outro gol. Afirmou que o general mentiu e que tudo feito até agora no Butantan foi bancado exclusivamente pelo governo de São Paulo. E não houve tréplica. Soam, além de inacreditáveis, como tiros nos próprios pés  as fantasias mutantes produzidas pelo Palácio do Planalto.

A última delas foi a convocação de governadores para uma solenidade na manhã dessa segunda-feira da operação em Guarulhos de distribuição país afora das vacinas recebidas do Butantan no final da tarde do domingo. O general Pazuello com certeza vai estar na foto. Resultado medíocre para o planejamento da abertura da campanha no Palácio do Planalto com vacinas da Fiocruz, barradas pelo governo da Índia, em mais um retrato da má vontade e imprevidência do governo federal em providenciar as vacinas que lhe foram ofertadas.

O que aumenta a decepção nessa absurda guerra política é que o Brasil, em uma bela construção durante décadas pelo show de bola que é o SUS, talvez seja o país mais preparado no planeta para vacinar. Só faltam as vacinas. Até quando?

A conferir.


Helena Chagas: A resiliência não tão resiliente de Bolsonaro

É falta de honestidade intelectual acreditar nas pesquisas quando seus resultados nos agradam e contestá-las quando trazem dados adversos. É o que muita gente está fazendo hoje, decepcionada com os números do Datafolha que mostram certa resiliência na popularidade de Jair Bolsonaro, que segue com o seu nível mais alto de aprovação, na casa dos 37% de ótimo e bom. Vamos e convenhamos, não é lá essa Brastemp. É um resultado medíocre, o pior, com um ano de 11 meses de mandato, entre os presidentes eleitos diretamente na redemocratização — com a exceção de Fernando Collor, que a esta altura do campeonato já estava entrando pelo cano do impeachment.

Mas pesquisa é assim mesmo: temos a pesquisa e a narrativa da pesquisa, e ganha quem conseguir torcer melhor os números para comprovar sua tese. No caso de Bolsonaro, é forçoso reconhecer que o número dos que o avaliam como ruim ou péssimo (32%) está menor do que os que o aprovam, enquanto o regular está estável em 29%.

Só que é o próprio Datafolha que traz em si os germes do que pode representar a destruição da popularidade estável do presidente. As pesquisas vem mostrando há meses a relação direta entre o crescimento da aprovação de Bolsonaro junto aos setores de menor renda – teve uma alta de 11 pontos percentuais na faixa até dois mínimos – e a injeção de recursos do auxílio emergencial e outros benefícios dados durante a pandemia.

PANDEMIA

Esse auxílio, porém, foi reduzido à metade e acaba a partir de 31 de dezembro. É razoável supor que, junto com fatores como o desemprego e a segunda onda da pandemia, essa situação se reflita na aprovacão de Bolsonaro. E de forma ainda mais forte do  que no primeiro semestre de 2020, início da pandemia, quando houve uma queda na popularidade presidencial, revertida em agosto.

A segunda onda da Covid-19 está sendo tratada pelo governo com o mesmo desleixo mostrado na primeira, mas com o agravante de que, desta vez, outros países do mundo começam a ter acesso à vacinação, enquanto as autoridades brasileiras continuam no bate-cabeças.

Sem vacina disponível, como estará a população daqui a alguns meses?. O Planalto deve estar festejando que 52% dos entrevistados não atribuam ao presidente da República a culpa pelas 181 mil mortes registradas. Mas 46% acham que ele tem responsabilidade por elas.

O resiliente Bolsonaro, a mais de dois anos da sonhada reeleição, pode até comemorar a popularidade medíocre que registra hoje nas pesquisas telefônicas. Mas a realidade é que sua posição é frágil e o horizonte cheio de previsões negativas.


Andrei Meireles: O choque das esquerdas no espelho

O dilema no jogo de poder no Congresso é negociar uma pauta que mantenha conquistas democráticas das últimas décadas ou pegar caraminguás ofertados pela tropa de Bolsonaro

Em circunstâncias diversas, comunistas, socialistas e sociais-democratasconstruíram alguns projetos bem sucedidos das esquerdas no mundo inteiro. Ao longo de mais de um século de conturbados exercícios de poder, geraram grandes esperanças e profundas decepções. Algumas tiveram  momentos de sucesso outras resultaram em verdadeiros genocídios, negação absoluta dos princípios que supostamente as inspiraram. Geram polêmicas até hoje. Só não dá para esconder que, em qualquer lugar do planeta, crime é crime.

No Brasil, as esquerdas também oscilaram nesse vendaval mundial. Foi uma sucessão de rachas desde as revelações dos crimes da mão pesada de Stálin na antiga União Soviética. Depois de uma série de controvertidos episódios, hoje em julgamentos apenas históricos, as esquerdas em seu conjunto apostaram na redemocratização do país. Mesmo com  percalços na Constituinte, quando o PT tentou apenas marcar posição, cumpriram a regra do jogo. Receberam dos eleitores a oportunidade de virar o jogo.Por gosto ou circunstâncias, quando chegou ao poder o PT cumpriu esses compromissos. Cumpriu inclusive, não importa se foi beneficiado por circunstâncias externas, a promessa de combate à pobreza. Mas pisou na bola no quesito da corrupção. E é aí que o PT e seus aliados continuam até hoje na berlinda. Tentam esticar a  corda com uma questão mal resolvida.

O PT não engoliu porque um amplo contingente de eleitores que rejeitavam Bolsonaro não votaram em Fernando Haddad no segundo turno em 2018. Não conseguiram entender porque toda essa gente que votou nulo se recusou a dar um aval à postura do PT de não reconhecer a corrupção que, comprovadamente, bancou e alimentou o projeto de poder do partido. Pagou o preço antes, naquela e nas últimas eleições.Todas essas histórias são passado. Servem de contexto para o sombrio momento político que o país sonha em ultrapassar. O mesmo jogo que o PT, talvez por falta de credibilidade, tentou sem sucesso emplacar no segundo turno em 2018, está agora no tabuleiro.

Pode ou não ajudar Bolsonaro.Com todo o devido respeito a sua história, parte do PT continua vendendo a alma das esquerdas ao diabo. Como ali não se faz autocrítica — método dialético das esquerdas mundo afora–. não há diferença do que rola lá a outras práticas de corrupção no mundo partidário país afora. É inacreditável, por exemplo, que deputados do PT e do PSB apostem em uma disfarçada aliança com Bolsonaro que pode entregar de bandeja à mais atrasada direita todas as pautas que a sociedade brasileira conquistou nas últimas décadas.

O que está em jogo nas eleições para as presidências da Câmara e do Senado, nas quais Bolsonaro aposta todas as fichas e os recursos da União, não é apenas uma escolha entre figurinhas. É muito mais grave. O que está em jogo é uma anistia a todos políticos investigados, acusados ou condenados por corrupção. Mais: 1) – Atropelar de vez as leis de proteção ao meio ambiente; 2) – Liberar geral a violência policial; 3) – Acabar com as proteções a índios e quilombolas; 4 – Revogar todos os avanços no trato da diversidade no país; 5) – Tornar letras mortas as leis da Ficha Limpa e da Lavagem de Dinheiro, entre outras, que proporcionaram uma verdadeira revolução no combate ao crime de colarinho branco.

Não são avanços na pauta, são retrocessos. A manutenção de todas essas conquistas éticas e democráticas seria uma bela pauta das esquerdas, que deveria ser decisiva nesse jogo de poder. Aqui é ficção. Em qualquer país democrático onde os partidos entregam o que vendem aos eleitores seria jogo jogado. No Brasil, não é só a vacina contra o coronavírus que saiu do esquadro. Tem um monte de deputados do PSB, levados por Arthur Lira ao Palácio do Planalto, para negociar liberação de dinheiro para suas bases eleitorais, o que também seduz caciques do PT.

Washington Quaquá, o pragmático e influente vice-presidente nacional do PT, é explícito: “Não tenho nenhum problema com Arthur Lira, pelo contrário. Para a falar a verdade, acho que ele pode ter mais condições de avançar”. O que o petista Quaquá deixa  explícito em outras declarações é o desejo de aprovação de alguma lei que anule  as condenações de Lula e de todos os outros sentenciados a partir da operação Lava Jato. E foi justamente isso que entrou na barganha com Arthur Lira, que a acatou de bom grado por também ser denunciado por corrupção pela Lava Jato.

Esse jogo esquisito e malandro por parte de alguns setores da esquerda, que se deslumbram com as ilusões brasilienses, pegou muito mal. Algumas cúpulas partidárias, como a do PSB e a do PT, que faziam vistas grossas, foram chamadas à ordem, pela pressão de militantes e da opinião pública. A cobrança é para abandonarem esse voo cego em busca de eventuais vantagens.

A conferir.


Andrei Meireles: O clã Bolsonaro caiu junto em Atibaia

A queda de Queiroz escancarou parcerias e alianças que Bolsonaro tentava esconder

Há estragos tão destrutivos que nem os melhores remendos consertam. A prisão de Fabrício Queiroz no refúgio que o advogado Frederich Wassef tentou esconde-lo é um deles. Não há versão que se crie que tire o clã Bolsonaro da cena do crime.

Nesse domingo à noite, Fred Wassef anunciou que estava renunciando a ser advogado de Flávio Bolsonaro e de seu pai presidente da República, Jair Bolsonaro. Tudo previsível desde que o refúgio caiu. Um parceiro de Fred me disse que não havia hipótese dele ser um homem-bomba enquanto negócios com o governo que ele teria interesse fossem mantidos.

Como mostra a forma em que foi descartado, o advogado Fred comprova ser uma peça menor. Fabrício Queiroz é o que importa de verdade para a família Bolsonaro. Ele é o faz tudo do clã, cuida da grana e da segurança de todos, há décadas. Foi também grande cabo eleitoral. Foi quem fez a ligação dos Bolsonaros com as milícias que sempre se beneficiaram e também os ajudaram no conjunto dessa obra.

O ex-capitão da PM do Rio morto no interior da Bahia
A prisão de Fabricio Queiroz

O problema é que a prisão de Queiroz — muito mais até do que a morte do capitão miliciano Adriano na Bahia — traz a bandidagem de Rio das Pedras para Brasília. Por mais que pareça inacreditável para quem ache que viu de tudo nos tapetes verde, azul e de todas as cores na capital da República, a pior face das favelas cariocas ainda não havia batido na porta. As milícias virtuais e reais tão pedindo passagem.

É preciso barrá-las antes que contaminem a República.

Passou da hora. Jair Bolsonaro e seus filhos têm que se explicar. Não adianta se esconderem atrás de imaginárias revoluções culturais. O que está posto na mesa, por todo e qualquer ângulo, é que são suspeitos de envolvimento com crimes. Seja o de corrupção, como a rachadinha com robustas provas de mesada para a família, ou o envolvimento com a milícia e seu amplo cardápio de crimes.

O presidente Bolsonaro e os filhos Flávio, Eduardo e Carlos

Até agora loucuras de Bolsonaro — como a negação da pandemia do novo coronavírus– têm sido matadas no peito, alguns a contragosto, pela elite militar. Ele conseguiu, por exemplo, sensibilizar os generais com queixas de que alguns de seus atos, como a nomeação de um diretor da Polícia Federal, terem sidos barrados no STF. Nesses casos o ajudou a cultura militar da hierarquia e disciplina.

A prisão de Queiroz deu um nó nessa narrativa. Ele e as milícias são a própria negação da ordem, disciplina, hierarquia, e tudo o mais que rege as Forças Armadas. Mas é mais do que isso. As milícias são a negação nessas comunidades do estado e, principalmente, da democracia. É um absurdo, por exemplo, que no Rio de Janeiro, além de seus maus governos constitucionalmente eleitos, grande parte de seu território ser governado por essa e outras bandidagens.

É essa a conta que está chegando a Brasília. Cai no colo dos poderes da República resolver inclusive sobre os custos das múltiplas relações de Bolsonaro com Queiroz. Somado e subtraído, o preço republicano a ser pago depende do tamanho do estrago efetivo e potencial dessa enrolada família. Pode ter desconto se for abreviado.

A conferir.


Weiller Diniz: A maldição do capitão

A nostalgia é o insondável sentimento da recusa ou negação do tempo, do espaço ou de ambos. É o sempre querer estar alhures, desejar retroagir. A república brasileira do século XXI é uma sentença esmaecida da nossa ancestralidade. Depois de 5 séculos, ao menos 5 cruéis e pesadas heranças nos agrilhoam ao passado colonial: a inexperiência de administradores, a descontinuidade de projetos, pandemias, a autonomia das capitanias em relação ao poder central, além de um desonroso e obscuro sebastianismo.

Após o ‘achamento’, em 1500, o Brasil amargou 30 anos de completo abandono pela coroa portuguesa. A ambição e entusiasmos concentravam-se nas Índias de Vasco da Gama. Durante 3 décadas de descaso, o país esteve entregue a saqueadores, mercenários, náufragos, traficantes, contrabandistas de pau-brasil e malfeitores de toda ordem. São os nossos primórdios. Terra de ninguém e reles ilha do desdém. A mais pesada das heranças lusitanas, o acaso, mais uma vez, nos pariu.

A embarcação francesa “Peregrina” foi, casualmente, pilhada em um entreposto comercial com toneladas de pau brasil, peles de animais, algodão e aves silvestres. Féria de meses de pirataria francesa em domínios portugueses, o Brasil. Rapinagem e tratados diplomáticos desprezados pela França, coagiram Portugal a colonizar o Brasil para abortar o dreno das riquezas. “Era o prenúncio de tempos sombrios”, pontuou o escritor Eduardo Bueno em “Capitães do Brasil”.

Em meio ao surto de uma pandemia dizimadora – a peste negra que matou D. Manuel, o Venturoso – inaugurou-se o arrendamento brasileiro, a leste de Tordesilhas e, com ele, iniciou-se nossa desventura. Foram rabiscadas 15 donatarias ou capitanias. Os aquinhoados – começo do compadrio e pioneiros do nepotismo – foram escolhidos em conchavos e lobbies junto aos amigos do rei, D. João III. A nobreza, infantes, condes e duques desdenharam a cortesia ultramarina. Aqui desembarcaram, majoritariamente, aqueles de mais baixa patente. Das 15 extensas faixas de terra, 12 foram dadas a capitães e parentes. Alguns jamais pisaram em suas posses.

O colapso do modelo expropriatório não tardou. O fracasso das capitanias foi outro pesado legado. Os capitães não tinham aptidão ou vocação para administrar. Eram íntimos das armas, do conflito, da beligerância e da morte. Administrativamente eram inexperientes, despreparados, desinteressados e sem projetos para desenvolver as propriedades. À exceção de duas capitanias, os capitães naufragaram em terra firme. Uma das heranças mais perversas – as sesmarias – nos amaldiçoaram para a eternidade. É o DNA do modelo latifundiário, da escravidão, monocultura e estratificação social.

Os capitães tinham poderes absolutistas em suas posses. Administrativamente podiam explorar as riquezas, doar as sesmarias e cobrar impostos; politicamente faziam as próprias leis com poder de escravizar; judicialmente tinham o poder de prender, arrebentar e matar. As leis eram circunscritas aos limites geográficos das capitanias. Cada estado forjava sua lei. A Coroa – ávida pelos 10% dos capitães e o quinto de 20% das riquezas minerais – desprezava o barril de pólvora na iminência de explodir em razão dos conflitos internos. A alternativa ao descalabro foi o centralismo da administração em 1548, com o 1 governo-geral.

A anarquia colonizadora ocorreu em meio ao sebastianismo ou mito sebástico. Um fenômeno de tola crendice popular envolvendo o falecimento de rei português, D. Sebastião, “O Desejado”. Morto em uma batalha na África e sem localização do corpo, disseminou-se um movimento messiânico de salvação através do renascimento do rei. A espera do ressurgimento do mito salvador se espalharia pelo mundo.

Jair Bolsonaro é o atual capitão da donataria. É um peregrino que gosta de predicações golpistas, sabota a ciência e tem desvarios monárquicos absolutistas. É a síntese do Brasil colônia: atrasado, belicoso, primitivo, desprezado pelo mundo e condenado a ruína. A estreiteza para gerir o Brasil é notória e antecede a pandemia. Não apresentou projetos ao país e troça com o diversionismo incensado por abjetas criaturas do rei e o gabinete do ódio. O esvaziamento político, derivado da inépcia, levou o capitão ao isolamento, como no período pré-colonial.

A federação vem sendo redesenhada por travas do Supremo Tribunal Federal. Os estados – como no Brasil colônia – tocam autonomamente a proteção sanitária a despeito do charlatanismo presidencial. As comichões autocráticas, típicas dos capitães de outrora, são democraticamente rechaçadas pelas instituições e o isolamento vai se transformando em confinamento. O débil sebastianismo também é indesejado e será exorcizado. Tampouco conseguirá restaurar os poderes absolutistas dos seus antepassados capitães.


Sandra Starling: O PT começou a acabar muito antes do Lula-lá

O PT da fundação, o do ideal de um partido sem caudilhos, deixou de existir há muito tempo. A agremiação foi tomada pelo corporativismo e a adesão ao nacional-desenvolvimentismo.

No último final de semana, dois colunistas escreveram magníficos artigos sobre os fundamentos da derrocada do PT. Demétrio Magnoli, na Folha de S.Paulo do dia 13 de julho; e Luiz Carlos Azedo, no Correio Braziliense e Estado de Minas do dia seguinte.

Embora concorde que o corporativismo tenha contaminado petistas e outros parlamentares da chamada esquerda na votação na Reforma da Previdência, é preciso ter claro que o fenômeno, entre petistas, vem de muito antes, antes mesmo de Lula ter chegado lá. O que espanta é terem, agora, sucumbido à laudação do capitão às condições especiais da corporação policial para, em troca, obterem vantagens para outra corporação: a dos professores.

Não é o caso de, em contraposição, elogiar esses jovens deputados que acham que o novo na política é estabelecer um padrão gerencial do Estado nos moldes da iniciativa privada. No frigir dos ovos, isso nada de novidade significa.

Ineditismo seria, no caso da previdência, no Brasil, pensar em equilíbrio financeiro e atuarial para um sistema que cobrisse toda a população brasileira com dignidade e equidade. E o mais difícil:  que apontasse para um novo modelo de financiamento do Estado, no qual, a par do controle das despesas primárias, da correção de distorções de benefícios, indicasse a necessidade de reduzir as despesas nominais com a efetiva contribuição de quem vive de renda.

Mas seria demais pensar que esses congressistas, cheios de jovialidade, ousariam questionar os interesses dos que lhes concedem bolsas de estudo para aprimoramento nos EUA ou na Europa ou financiam a formação política em “think tanks” voltados para forjar as futuras lideranças do que Klaus Schwab resolveu chamar de “quarta revolução industrial”.

Por outro lado, o PT radical que, nos seus primórdios, lutava pela ratificação da Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dispõe sobre a liberdade sindical irrestrita, deixou de existir há muito tempo. Antes mesmo de ser governo.

Talvez o suprassumo de sua adesão à ideologia do nacional-desenvolvimentismo, com forte tonalidade de corporativismo, tenha sido a decisão de estender o surrado imposto sindical às centrais sindicais, durante o governo Lula. Àquela altura do campeonato, em que pese a obstinação pela conciliação do capital com o trabalho, também os flertes com a doutrina da social-democracia europeia já eram águas passadas.

Os anos 90 levaram o PT a uma curiosa combinação de eleitoralismo, que não leva em conta os interesses gerais dos trabalhadores brasileiros, mas, sim, os interesses das clientelas representadas, com um leninismo de fachada, no qual a tendência que catapultou o lulismo passou, curiosamente, a se denominar “Campo Majoritário”. Por certo,  uma referência aos tempos em que, no Partido Operário Social Democrata Russo, as preocupações de um tal menchevique chamado Julius Martov com a democracia e liberdade foram mandadas para o lixo da história.

Quem ditou esta sentença implacável, mais tarde seria, ele próprio, vítima do “Campo Majoritário” soviético com uma picareta na cabeça. Seu nome, Leon Trotsky.

A marca do PT, na origem, era sua contrariedade a qualquer forma de cooptação dos movimentos sociais. O partido empunhava, sim, a bandeira contra a corrupção, sobretudo eleitoral, mas tinha, também, o ideal de criar uma organização política  “de baixo para cima”, sem caudilhos de nenhuma espécie e onde o voto de qualquer um da base valeria o mesmo que o dos dirigentes.

Quando bancadas do PT mais robustas começaram a ser eleitas, cada novo congressista já vinha prisioneiro de sua base eleitoral. Nada muito diferente do que, hoje, Bolsonaro busca fazer, cumprindo promessas de campanha.

Todos, no final das contas, viram reféns daquilo que querem as clientelas eleitorais. No caso do PT isso implicou ignorar uma reforma previdenciária que, de fato, liquidasse privilégios.

Ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, o então deputado petista Eduardo Jorge, hoje no PV, elaborou uma proposta ampla que unificava regimes, incluía todos, até mesmo militares,  deixando para quem quisesse a possibilidade de complementação de proventos em fundos de natureza pública ou privada.

Os próprios petistas trataram de desfigurar por completo a proposta original de Eduardo Jorge – por pressão dos diferentes colegas, cada um se dizendo portador de mandato para defender essa ou aquela categoria.

A própria origem do PSOL, anos mais tarde, teria ainda o DNA da resistência corporativista a ajustes necessários. Quando se descobriu o Mensalão, na verdade, descobriu-se o óbvio: o interesse da maioria dos trabalhadores não norteava mais a postura do PT na arena política.

O resto é o resto que todos sabemos, incluindo a imposição por quem, nesse triste itinerário de “um carro alegre, cheio de um povo contente”, se fez timoneiro e impôs o nome de Dilma Rousseff para lançar a pá de cal no sonho que um dia fora o PT…

Sandra Starling é advogada e mestre em Ciência Política pela UFMG


Helena Chagas: Na vida real, menos Guedes e mais Bolsonaro

Depois da forma grosseira como o presidente Jair Bolsonaro conduziu o processo de demissão do então presidente do BNDES, Joaquim Levy, neste fim de semana, o que mais se destacou no episódio foi a atitude do ministro da Economia, Paulo Guedes. Mal foram divulgadas as declarações intempestivas do presidente, Guedes disse reconhecer a “angústia” presidencial e tratou de propagar que estava também insatisfeito com Levy.

Digamos que seja verdade, e que o mesmo Guedes que batalhou para levar Joaquim Levy para o BNDES há seis meses tenha ficado profundamente decepcionado e irritado com sua gestão nesse período. Ainda assim, o normal seria botar panos quentes na situação e preparar uma substituição civilizada, sem humilhações para Levy e, sobretudo, sem provocar a perplexidade e a insegurança que o episódio trouxe ao mercado e ao establishment econômico.

Por trás da atitude de Guedes está, segundo observadores experientes da área política, uma tentativa de mostrar ao mundo que não está fraco como todo mundo pensaria ao constatar que um de seus principais auxiliares foi demitido pelo presidente da República sem consultá-lo.

Paulo Guedes “aderiu” rapidamente à demissão de Levy – que tirou de uma diretoria do Banco Mundial para assumir o cargo – para não tornar explícito o fato de que, diferentemente do que pensavam o mercado e boa parte das elites há seis meses, o governo vai ficando muito mais de Jair Bolsonaro do que de Paulo Guedes.

Aliás, uma obviedade no presidencialismo com eleições diretas, apesar da relutância de muita gente em enxergar. Também no plano das evidências está o fato inegável de que o ministro da Economia – assim como o da Justiça, por razões diversas – se enfraqueceu.

Ainda que Guedes vá nomear o substituto de Levy no BNDES, escolhendo seu perfil e determinando quais mudanças serão feitas na organização do banco, esse sujeito, assim como tudo o que ele fizer, estará sujeito a levar uma paulada fatal de Bolsonaro quando ele acordar de mau humor num sábado de manhã.


Os Divergentes: Livro recupera o dia a dia do impeachment de Dilma

Ainda o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Um livro surpreendente. Um leitor desavisado, ao pegar um exemplar em algum lugar do País que não em Brasília, pensará que está lendo a obra de um historiador que vê os acontecimentos de 2016 em perspectiva. Entretanto, o livro de Luiz Carlos Azedo reproduz suas crônicas e análises produzidas no calor dos acontecimentos.

Por José Antônio Severo

O autor acompanhou e narrou com tamanha precisão o dia a dia que mais parecem, visto de hoje, uma análise de fatos consumados e não o jornalismo dos tumultuados momentos da última queda de um governo desta república.

“O Impeachment de Dilma Rousseff – Crônicas de uma queda anunciada” é a recuperação do trabalho de um dos jornalistas mais completos do País. Azedo revela-se vários pontos acima da média dos comentaristas e analistas da imprensa, salvo algumas honrosas exceções.

O trabalho de Azedo demonstra que um leitor de jornal impresso atento da mídia pode estar bem a par dos acontecimentos. Neste caso, os leitores do Correio Braziliense tiveram essa oportunidade. Quem não viu e não leu o principal diário da capital tem, agora, a chance de recuperar como foram aqueles momentos dramáticos e com que lucidez o jornalista viu e narrou, passo a passo, o governo petista afundar-se em suas contradições e os erros de seus operadores.

Em resumo: é um livro notável. Azedo é um jornalista muito bem equipado, com sólida formação filosófica, de teoria política e histórica. Essa bagagem ele a utiliza com grande segurança, no calor dos acontecimentos, como fica demonstrado para o observador de hoje, vendo como a narrativa dava ao leitor do dia do Correio Braziliense uma informação correta do que estava se passando.

Para o leitor com formação ou leitura nos autores de vertente marxista, um atrativo a mais, pois Azedo vai botando aqueles fatos dentro do enquadramento político/filosófico. Originário do antigo Partidão, dentre sua variada experiência profissional em jornais de várias cidades do País, ele se qualifica como diretor-responsável do semanário “A Voz da Unidade”, órgão central do antigo Partido Comunista Brasileiro, o PCB, matriz da esquerda brasileira.

Como diz na orelha do livro Alberto Aggio: “A leitura das crônicas de Azedo não deixa dúvida de que o impeachment de Dilma está longe da chamada “narrativa do golpe”, construído pelos apoiadores do governo deposto”. Também o prefácio, assinado pelo atual senador do PPS, professor Cristovam Buarque, elogia a visão precisa de um profissional de elite que sempre acertava no centro do alvo.

Para dar uma ideia ao leitor da capacidade profissional e intelectual do autor, vamos reproduzir um trechinho do livro, escrito 10 dias antes da votação do impeachment, mas que parece o texto de um historiador vendo os acontecimentos depois de fatos consumados.

Escreve Azedo dia 14 de agosto: “O impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff, que deve se consumar a partir do dia 25, quando começará seu julgamento pelo Senado, encerra um ciclo de experimentalismo político e econômico de esquerda no Brasil, que se esgotou porque o projeto do ex-presidente Lula e do PT estava referenciado em ideias nacionais desenvolvimentistas e socialistas derrotadas historicamente no século passado, além de alicerçadas em práticas políticas pautadas pelo populismo, pelo fisiologismo e pela corrupção”. O governo Dilma, ele diz logo adiante tentou mudar o país com “capricho e ignorância”.

Editado pela Verbena Editora, com patrocínio da Fundação Astrogildo Pereira, o livro é uma visão de um marxista muito lido e a opinião de um jornalista sólido, concorde-se ou não com suas conclusões, as quais, por sinal, apenas ver se referiam ao dia presente. É este seu grande valor, pois dá uma credibilidade singular ao livro de Luiz Carlos Azedo.