Oriente Médio

Hélio Schwartsman: No Oriente Médio, uma guerra sem saída

Já acreditei que o processo de paz entre israelenses e palestinos baseado na ideia de dois Estados teria sucesso. A ducha de água fria não foram as negociações frustradas de Camp David (2000) ou Annapolis (2007), mas a leitura de “The Two-State Delusion” (a ilusão dos dois Estados, de 2015), de Padraig O’Malley.

Uma nota biográfica é necessária. O’Malley é um especialista em negociações de paz. Ele não só estuda conflitos que um dia pareceram insolúveis como ajuda a encontrar uma saída para eles. Participou dos processos de pacificação na Irlanda do Norte e na África do Sul. Depois, se debruçou sobre o conflito israelo-palestino —e foi derrotado por ele. As conclusões a que chegou estão no livro, que é bem lúgubre.

O ponto central de O’Malley é que as narrativas israelense e palestina são inconciliáveis. Ambos os lados se veem como vítimas em um embate imemorial e não admitem que outros possam ter uma visão diferente, a menos que estejam mal-intencionados. Pior, o conflito virou um modo de vida para lideranças locais e uma espécie de vício para as populações.

Uma ilustração banal e significativa disso ocorreu quando respeitados educadores israelenses e palestinos tentaram elaborar um livro didático de história que pudesse ser usado nas escolas dos dois lados. Não conseguiram. Não havia como desarmar e aproximar as narrativas.

Penso que situação até piorou de 2015 para cá. Até alguns anos atrás, a paz ao menos era um tema importante em pleitos israelenses, dividindo o eleitorado. Não é mais. Os israelenses simplesmente deixaram o assunto de lado. E não só os israelenses. Vários países da região também abandonaram a ideia de unidade árabe e o apoio à causa palestina para firmar acordos de cooperação com Israel.

Não digo que seja impossível mesmo no futuro distante, mas ninguém jamais perdeu dinheiro por apostar contra ela no conflito israelo-palestino.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/no-oriente-medio-uma-guerra-sem-saida.shtml


El País: Primavera Árabe completa uma década com desfecho em aberto

As sociedades do Oriente Médio e do norte da África estão menos livres do que antes do início das revoltas, mas elas acabaram com o medo e mostraram que a mudança é possível

Ángeles Espinosa, El País

No começo de 2011, o mundo árabe viveu uma onda de protestos contra a corrupção e por uma vida mais digna. A mídia internacional prontamente a batizou de Primavera Árabe, expressão que talvez tenha influenciado nas exageradas expectativas que despertou. Dez anos ― e meio milhão de mortos ― depois, a região, com a exceção da Tunísia, está menos livre e em piores condições do que antes. Mesmo assim, a queda de quatro ditadores rompeu o muro do medo e acabou com a ideia de que a democracia era incompatível com a cultura árabe. O status quo já não pode ser considerado inexorável.

“Dez anos não é um marco temporal suficiente para desenvolver mudanças de grande envergadura. As revoltas da dignidade não acabaram. Foram suprimidas, mas voltarão a ocorrer, talvez mais violentas, talvez não. O que está claro é que não há recuo à ordem política anterior a 2011”, resume Kawa Hassan, vice-presidente do programa do Oriente Médio e Norte da África do EastWest Institute, uma organização sem fins lucrativos que promove a resolução de conflitos. É uma ideia compartilhada por numerosos especialistas.

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Soava bem a ideia de uma Primavera Árabe, termo que comentaristas conservadores já haviam criado para se referir aos lampejos democráticos de 2005 no Oriente Médio. O professor Marc Lynch, da Universidade George Washington, recuperou a expressão em um artigo da Foreign Policy sobre os protestos aparentemente desconexos que seis anos depois se estendiam da Tunísia ao Kuwait, passando por Argélia, Egito e Jordânia, e mais tarde alcançariam Líbia, Síria, Bahrein e Iêmen. Transmitia uma imagem luminosa e positiva. Só que, nos meses seguintes, a contrarrevolução financiada pelas monarquias petroleiras acabaria com os sonhos de mudança.

“Prefiro chamá-las de revoltas da dignidade, porque milhões de pessoas saíram às ruas pedindo uma cidadania digna”, esclarece Hassan por telefone.

Os protestos populares e pacíficos, aos quais os manifestantes se referiam como intifada (rebelião) ou zaura (revolução), conseguiram derrubar aos autocratas da Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen. Apenas na Tunísia se consolidou uma frágil democracia. A eleição de um presidente islâmico no Egito (Mohamed Morsi) foi respondida com um golpe militar que aumentou a repressão. Líbia e Iêmen mergulharam em guerras civis, assim como ocorreu na Síria, onde o ditador Bashar al Assad conseguiu se manter a sangue e fogo. Nesses países, o Estado e a sociedade ficaram destruídos, pelo menos meio milhão de pessoas morreram, e 16 milhões tiveram que deixar seus lares.

“Os manifestantes se encontraram cercados entre Estados autoritários e atores não estatais autoritários. Os poderes contrarrevolucionários agiram inclusive em países nos quais não chegou a haver revoltas”, admite Hassan. Mesmo assim, mostra-se convencido de que “o fator medo desapareceu para sempre, e nenhum poder na região pode mais estar tranquilo”. Este cientista político constata que “as sociedades ainda insistem em desafiar a ordem política, como se viu em 2019 no Iraque, Líbano e inclusive, mais surpreendentemente, na Argélia e até no Sudão, onde [Omar al] Bashir foi derrubado e teve início uma frágil transição democrática”.

Haizam Amirah Fernández, pesquisador do Real Instituto Elcano, de Madri, afirma que esta segunda onda de protestos demarca o mal-estar árabe nos movimentos de descontentamento que sacodem outros países, como o Chile e a Tailândia. “Se o mundo árabe ficou à margem das transições democráticas ocorridas na década de oitenta [do século passado] na América Latina, Extremo Oriente e Leste Europeu, 2011 deixou clara a interconexão entre diferentes zonas do mundo pela situação econômica e social depois da crise financeira”, afirma Fernández ao EL PAÍS, referindo-se à mobilização dos indignados na Espanha e do Occupy Wall Street nos Estados Unidos.

Significativamente, a região do Oriente Médio e norte da África tem a maior desigualdade econômica do mundo. Por enquanto, a repressão foi capaz de suprimir os protestos. Mas Hassan defende que, “apesar da resistência dos regimes autoritários, as exigências de uma cidadania digna não desaparecerão”. De fato, destaca que “as causas que motivaram as revoltas, como a reivindicação de melhores serviços e o Estado de direito, não só continuam aí como se agravaram”.

É o que mostra uma recente pesquisa da empresa YouGov para o jornal britânico The Guardian, segundo a qual os sentimentos de desesperança e privação de direitos que alimentaram as revoltas continuaram aumentando. Uma maioria dos consultados em nove países árabes declara que suas condições de vida se deterioraram desde a autoimolação do jovem vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi, cuja morte ― o estopim dos protestos ― completa 10 anos na próxima segunda-feira.

Como era de se esperar, o descontentamento é maior onde a situação degenerou em guerras civis e intervenções estrangeiras. Nessa pesquisa, 75% dos sírios, 73% dos iemenitas e 60% dos líbios dizem estar pior do que antes da Primavera Árabe. Mas inclusive no Egito, Iraque e Argélia, embora menos da metade declare que sua situação piorou, apenas uma quarta parte diz estar melhor. “As reformas foram só de aparências, e a covid-19 exacerbou os problemas socioeconômicos”, aponta Hassan.

“Está sendo feito um experimento que põe a prova a resistência das sociedades árabes. Apesar das diferenças entre países, respondeu-se às demandas de tipo econômico e político com medidas de segurança, mão dura e repressão”, aponta Amirah Fernández. E não só por parte dos regimes questionados. “Do exterior, continuou-se favorecendo de forma descarada o modelo de estabilidade baseado no autoritarismo e na supressão de liberdades, em vez de experimentar qualquer sistema alternativo”, acrescenta.

As petromonarquias, que conseguiram comprar vontades e paz social com os dividendos dos hidrocarbonetos, apostaram no desenvolvimento econômico como substituto da democracia. Daí seu empenho na diversificação e na abertura social, ao mesmo tempo em que se restringem as liberdades políticas. Naquelas autocracias sem recursos relevantes, só há porrete. Até quando a panela a pressão vai aguentar? “Não está claro para onde vamos. Os atuais regimes são ainda mais repressivos e estão mais dispostos a usar a força. Lutarão até a morte para manter o poder”, manifesta o analista do EastWest Institute.

Fernández, do Real Instituto Elcano, remete à realidade demográfica como “o maior condicionante das sociedades árabes”. Com ligeiras diferenças, dois terços de seus 420 milhões de habitantes têm menos de 30 anos. Muitos eram jovens demais para participar dos protestos de 2011, mas “viram que era possível apesar do caos e as interferências que vieram depois”. De fato, a pesquisa mencionada detecta uma diferença geracional. Os mais jovens entre os adultos pesquisados (18-24 anos) são os que menos lamentam as revoltas, enquanto seus pais se mostram mais pessimistas com o resultado e consideram que as novas gerações confrontam um futuro mais difícil do que o de quem cresceu antes das primaveras.

“É muito cedo para dizer que a Primavera Árabe foi um fracasso. Precisamos deixar os jovens terem seu momento, e seu momento chegará”, dizia Lina Khatib, diretora do programa para o mundo árabe do centro de reflexão britânico Chatham House, durante uma recente conferência online. “Trata-se de um processo longo, com muitas desigualdades, que terá um montão de desencantos. Nenhuma revolução transformadora no mundo terminou em poucos anos e sem reação”, concorda Fernández.


Bolsonaro apoia plano de Trump que favorece Israel em meio à guerra, diz José Vicente Pimentel

Em artigo produzido para revista da FAP, embaixador aposentado critica alinhamento do governo brasileiro aos Estados Unidos

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O governo de Jair Bolsonaro preferiu distanciar-se da maioria e manter a tendência de alinhamento integral a Donald Trump, favorecendo Israel no Oriente Médio e modificando mais uma posição tradicional da diplomacia brasileira. A crítica é do embaixador aposentado José Vicente de Sá Pimentel, em artigo que ele produziu para a 16ª edição da revista mensal Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados de graça no site da entidade.

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Em seu artigo, Pimentel lembra que o governo Geisel se posicionou a favor da retirada das tropas israelenses dos territórios árabes ocupados em seguida à guerra de 1967 e reconheceu o direito do povo palestino à autodeterminação e à independência. “Militava em favor dessa postura equilibrada a importância concedida, desde os tempos do Barão do Rio Branco, à diplomacia multilateral”, afirma ele.

Segundo o autor do artigo publicado na Política Democrática Online, também havia, na época, o reconhecimento de que o Oriente Médio é uma região importante para a manutenção da paz e para a estabilidade da economia mundiais. Além disso, conforme acrescenta, a postura de Geisel ocorreu em manifestação de respeito pela notável contribuição que as comunidades árabe e judaica deram e precisam continuar dando à harmonia da sociedade e ao progresso econômico do Brasil.

“O esquema anunciado por Trump em 28 de janeiro último, após três anos de mandato e a dez meses das eleições presidenciais de 2020, foi uma decepção para os que esperavam alguma sutileza política ou criatividade diplomática”, acrescenta Pimentel. “O plano favorece Israel em todos os temas em disputa. Mediações anteriores haviam feito progressos na negociação de medidas para assegurar segurança na fronteira da Jordânia, a fim de que terroristas não atravessassem a Cisjordânia e ingressassem em território israelense”, destaca ele.

No artigo da revista Política Democrática online, o embaixador ressalta que a questão da Palestina está na agenda internacional desde o Acordo de Sykes-Picaut de 1916. O primeiro plano de paz foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947.  “Desde então, é comum ver os presidentes americanos envolverem-se diretamente nos problemas do Oriente Médio”, escreve.

 As guerras de 1948, 1967 e 1973 entre árabes e israelenses, vencidas sempre por estes últimos, aumentaram a pressão para que os EUA se engajassem nas negociações de paz, de acordo com o autor. “Por serem o único honest broker que as partes reconheciam como capaz de negociar soluções pacíficas para os conflitos”, assevera.

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Política Democrática || José Vicente Pimentel: O plano de Trump para o Oriente Médio

Esquema anunciado pelo presidente norte-americano em 28 de janeiro último, após três anos de mandato e a dez meses das eleições presidenciais de 2020, decepcionou os que esperavam alguma sutileza política ou criatividade diplomática 

A questão da Palestina está na agenda internacional desde o Acordo de Sykes-Picaut de 1916. O primeiro plano de paz foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947. Desde então, é comum ver os presidentes americanos envolverem-se diretamente nos problemas do Oriente Médio. As guerras de 1948, 1967 e 1973 entre árabes e israelenses, vencidas sempre por estes últimos, aumentaram a pressão para que os EUA se engajassem nas negociações de paz, por serem o único honest broker que as partes reconheciam como capaz de negociar soluções pacíficas para os conflitos.

A resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), aprovada após a Guerra dos Seis Dias, e reafirmada pela resolução 338, adotada após a Guerra do Yom Kipur, tornou-se um marco nas negociações. O texto preconiza a “retirada das forças armadas de Israel dos territórios ocupados durante o recente conflito”. Mas a delimitação desses territórios é foco até hoje de disputas. Para os palestinos, seriam suas a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, além de Jerusalém Oriental. Israel contesta os limites entre a Jordânia e a Cisjordânia e quer uma Jerusalém unificada sob seu controle. Há outros itens espinhosos, como a retirada israelense do sul do Líbano, os territórios ocupados e os assentamentos neles erguidos por Israel.

Esses temas permaneceram na pauta ao longo dos anos, gerando belos momentos diplomáticos, como os Acordos de Camp David, impulsionados por Jimmy Carter; os três pontos reconhecidos por Yasser Arafat em seus encontros com Ronald Reagan (reconhecimento de Israel, aceitação da resolução 242 e renúncia ao terrorismo); a primeira Conferência Internacional de Madri, organizada por George Bush pai, em 1991, que ensejou o histórico aperto de mão entre Arafat e Yizhak Rabin, e os Acordos de Oslo, impulsionados, em 1995, por Bill Clinton. Esses esforços criaram muita expectativa, a que se seguia desalento diante das intifadas de 1987 e 2000, bem como dos sucessivos assentamentos israelenses em territórios ocupados. Mas assim como a medicina não pode se abater ante a reincidência de um câncer, a diplomacia precisa encontrar nos insucessos motivação para renovar energias, buscar saídas e evitar o mal maior de uma ampliação do teatro de guerra. Nesse contexto, aguardava-se a contribuição de Donald Trump, aquele que ganhou as eleições autodeclarando-se “o grande negociador”.

O esquema anunciado por Trump em 28 de janeiro último, após três anos de mandato e a dez meses das eleições presidenciais de 2020, foi uma decepção para os que esperavam alguma sutileza política ou criatividade diplomática. O plano favorece Israel em todos os temas em disputa. Mediações anteriores haviam feito progressos na negociação de medidas para assegurar segurança na fronteira da Jordânia, a fim de que terroristas não atravessassem a Cisjordânia e ingressassem em território israelense. Trump resolveu a parada presenteando Israel com todo o Vale do Jordão. Dessa maneira, Jericó se transformaria num enclave, cercada por Israel por todos os lados. Os palestinos manteriam apenas 30% da Cisjordânia.

Por sua vez, a soberania sobre Jerusalém Oriental foi integralmente entregue a Israel, que passaria a ter inclusive direitos sobre o Monte do Templo, ou Haram al-Sharif, e sobre a mesquita de al-Aqsa. Como compensação, os árabes receberiam um centro turístico ao norte de Jerusalém e acesso, controlado por Israel, aos lugares santos.

O resto segue o padrão desequilibrado de um diktat, negociado pelo genro de Trump apenas com diplomatas israelenses, sem participação da Palestina. O caráter impositivo ficou patente na cerimônia de anúncio do plano, feita em conjunto por Trump e Benjamin Netanyahu, com a notória ausência de palestinos. Por isso, não causou surpresa que tenha sido de pronto rejeitado pela Liga Árabe e pelas principais Chancelarias mundo afora.

O Governo Bolsonaro preferiu distanciar-se da maioria e manter a tendência de alinhamento integral a Donald Trump, assim modificando mais uma posição tradicional da diplomacia brasileira. Vale lembrar, por exemplo, que o governo Geisel se posicionou a favor da retirada das tropas israelenses dos territórios árabes ocupados em seguida à guerra de 1967 e reconheceu o direito do povo palestino à autodeterminação e à independência. Militava em favor dessa postura equilibrada a importância concedida, desde os tempos do Barão do Rio Branco, à diplomacia multilateral; o reconhecimento de que o Oriente Médio é uma região importante para a manutenção da paz e para a estabilidade da economia mundiais e, ainda, em manifestação de respeito pela notável contribuição que as comunidades árabe e judaica deram e precisam continuar dando à harmonia da sociedade e ao progresso econômico do Brasil.


Demétrio Magnoli: Um mundo que desaparece

EUA subordinaram sua política para o Oriente Médio aos interesses geopolíticos de Israel (ou melhor, à linha extremista do governo israelense) e da monarquia saudita
‘O mais poderoso preditor único da posição do presidente em qualquer tema é a posição de Obama. Ele faz o exato oposto do que Obama fez.” O guia de análise, formulado por Michael Hayden, ex-diretor da CIA, logo após a decisão da Casa Branca de abandonar o acordo nuclear com o Irã, está essencialmente correto. Mas não se trata apenas de Obama: Donald Trump rompe com uma tradição mais antiga, cujas raízes encontram-se no imediato pós-guerra. Nas palavras do próprio Hayden: “Quase todos os presidentes americanos disseram: ‘No fim das contas, quanto mais comércio livre, melhor para os EUA; no fim, a imigração é positiva para os EUA; no fim, os EUA se fortalecem por terem aliados fortes’. Agora, temos um presidente que se opõe ao livre comércio, enxerga os imigrantes como ameaça e vê os aliados como um fardo.”

A ruptura com o acordo nuclear e a inauguração da embaixada americana em Jerusalém, dois gestos conexos separados por apenas uma semana, formam um grande ato de abdicação de influência. Os EUA subordinaram sua política para o Oriente Médio aos interesses geopolíticos de Israel (ou, dito melhor, à linha extremista do atual governo israelense) e da monarquia saudita, renunciando à interlocução com quase todo o mundo árabe e, ainda, com a Turquia.

Livres da teia de compromissos do acordo, os falcões iranianos ampliarão a presença militar na Síria e reforçarão a cooperação com o Hezbollah libanês, enquanto os moderados, enfraquecidos, buscam amparo diplomático na Rússia, na China e nas potências europeias traídas pela Casa Branca. Respaldado por Trump, Netanyahu avançará no projeto de perenização da ocupação dos territórios palestinos, aprofundando o isolamento internacional e regional de Israel.

As pedras do dominó desabam em sequência. Sob o patrocínio da Rússia, as negociações sobre o futuro da Síria envolvem o regime de Assad, o Irã e a Turquia, excluindo os EUA. Nas eleições libanesas, em 6 de maio, a coalizão liderada pelo Hezbollah, partido-milícia xiita financiado pelo Irã, converteu-se no maior grupo parlamentar. Já nas eleições iraquianas, em 13 de maio, triunfou a heterogênea aliança articulada pelo clérigo xiita Moqtada al-Sadr, um inimigo dos EUA. Enquanto isso, no Iêmen, a campanha saudita de bombardeios indiscriminados revela-se incapaz de dobrar os rebeldes houthi, que contam com o apoio iraniano.

Trump bloqueou as estradas da diplomacia. A erosão da autoridade do presidente Hassan Rouhani, que apostava no acordo nuclear para recuperar a economia iraniana, desloca poder para a linha-dura dos aiatolás. Depois do massacre de palestinos em Gaza que assinalou com sangue a transferência da embaixada americana, as forças iranianas na Síria e o Hezbollah tendem a multiplicar as provocações contra Israel. Ao mesmo tempo, um Irã submetido a novo ciclo de sanções americanas ampliará seu programa de mísseis e reativará gradualmente o enriquecimento de combustível nuclear.

“Será aberta a caixa de Pandora”, profetizou o francês Emmanuel Macron, concluindo que “pode haver guerra”. De fato, fazendo o “exato oposto do que Obama fez”, Trump monta, involuntariamente, o cenário para uma guerra. Macron observou, acertadamente, que Trump não deseja um conflito militar com o Irã. Deve-se acrescentar, porém, que esse é precisamente o resultado almejado pelo secretário de Estado Mike Pompeo e pelo conselheiro de Segurança Nacional John Bolton, seus novos timoneiros de política externa.

As reverberações da explosão representada pela ruptura do acordo nuclear ultrapassam em muito a esfera do Oriente Médio. “A primeira linha de confrontação não é com os iranianos, mas com nossos aliados europeus”, enfatizou Hayden. Um editorial do semanário alemão “Der Spiegel” caracterizou a decisão de Trump como “a mais perigosa e arrogante” desde a invasão do Iraque, em 2003, mas destacou que, desta vez, os EUA unificaram a Europa inteira, em “choque”, “cólera” e, especialmente, “desamparo”. O impacto abala as fundações da aliança transatlântica erguida pelo Plano Marshall e corporificada na Otan. “O Ocidente, como o conhecemos, não mais existe”, constata o “Der Spiegel”.

Na hora da ruptura americana do acordo, Ali Khamenei fugiu a seus hábitos, experimentando a ironia. O líder supremo iraniano disse que seu país discutiria o tema com “as duas potências mundiais, China e Rússia”. Os EUA conservam o estatuto de maior potência global, uma condição assegurada pelo seu incontrastável poderio militar e pelo fato decisivo de que o Federal Reserve emite a moeda do mundo. Não estamos diante de uma súbita derrocada americana, mas de algo mais sutil — e inédito.

No passado, a influência do Reino Unido declinou devido ao surgimento de potências mais fortes, enquanto a da URSS se exauriu sob o impacto da combinação de falência econômica doméstica com sucessivas intervenções externas. Sob Trump, como assinalou Richard Haass, os EUA declinam por efeito de uma “renúncia voluntária ao poder e às responsabilidades”. Não é uma boa notícia para o mundo.

* Demétrio Magnoli é sociólogo

 


Luiz Carlos Azedo: A bandeira da ordem

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Os atentados de Nice, na França, e de Munique, na Alemanha, na sexta-feira, acenderam a luz amarela dos serviços de segurança do Brasil e das principais potências ocidentais em relação às Olimpíadas do Rio de Janeiro a duas semanas dos jogos. Por aqui, o fato relevante foi a prisão preventiva, pela Polícia Federal, de 11 suspeitos de envolvimento com Estado Islâmico, que supostamente estariam se organizando para realizar um ato terrorista e agora correm o risco de serem enquadrados na nova Lei Antiterror.

O episódio reacende o debate sobre a segurança dos jogos e os direitos e garantias individuais, porém, em contexto muito diferente das prisões dos black blocs durante as grandes manifestações de junho de 2013, que antecederam a Copa do Mundo de 2014. A paranoia em relação ao terrorismo no Brasil, diante dos atentados de inspiração islâmica na Europa e nos Estados Unidos, não é uma coisa sem sentido. A maioria dos ataques de “lobos solitários” ou grupos ligados virtualmente ao Estado Islâmico foi perpetrada por indivíduos que haviam sido monitorados pelos serviços secretos dos respectivos países.

As Olimpíadas são o maior evento de massas do mundo e, de fato, põem o Rio de Janeiro em situação de risco, devido à presença de grandes delegações de atletas dos países diretamente envolvidos nos conflitos do Oriente Médio, particularmente na guerra contra o Estado Islâmico na Síria e no Iraque. É nesse contexto que o governo interino de Michel Temer, responsável pela segurança das Olimpíadas, empunha a bandeira da ordem, às vésperas da votação do impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff, de quem herdou o problema e pode fazer desse limão uma doce limonada.

Ordem e Progresso, o lema positivista da bandeira nacional, é o slogan oficial do governo Temer. Adotado no contexto da crise político que resultou no afastamento de Dilma Rousseff, parecia uma sacada artificial e démodé, em meio à crise econômica, política e ética. A onda terrorista protagonizada por indivíduos que se associam ao Estado Isâmico pelas redes sociais, porém, com a aproximação das Olimpíadas, fez da manutenção da ordem uma necessidade real. O que não se pode é derivar para a lógica do Estado Leviatã.

Terror e tráfico

Publicado em 1651, O Leviatã, de Thomas Hobbes, foi uma resposta à Guerra Civil inglesa, provocada pela destituição do rei Carlos I pelo parlamento, em meio ao conflito entre anglicanos e presbiterianos. O resultado foi o caos, uma guerra de todos contra todos, que Hobbes atribuiu à natureza humana. Segundo ele, sem uma ordem política estabelecida, a vida se torna “solidária, pobre, repugnante, brutal e breve”. Para construir uma sociedade é necessário que cada indivíduo renuncie a uma parte de seus desejos e chegue a um acordo mútuo de não aniquilação com os outros.

Nasceu daí a ideia hobbesiana do “contrato social”, de modo a transferir os direitos que o homem possui naturalmente sobre todas as coisas em favor de um soberano dono de direitos ilimitados. Este monarca absoluto, cuja soberania não reside no direito divino, mas nos direitos transferidos, seria o único capaz de fazer respeitar esse contrato e garantir, desta forma, a ordem e a paz, exercendo o monopólio da violência que, assim, desapareceria da relação entre indivíduos. Ironicamente, foi a ditadura de Cromwell, o “Lorde Protetor”, que primeiro deu forma ao Estado Leviatã e realizou a revolução burguesa na Inglaterra. Mais tarde, em 1689, na Revolução Gloriosa, que foi pacífica, o parlamento promulgou a Declaração dos Direitos (Bill of Rights), que serve de base para o parlamentarismo monárquico britânico.

A crise humanitária do Mediterrâneo e os atentados terroristas na Europa parece reproduzir o “estado natural” descrito do Hobbes no Leviatã. São consequência da guerra civil e do caos que se instalou com a desestruturação dos estados nacionais do Iraque e da Síria pelas desastradas intervenções das potências ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos durante o governo Bush, após o 11 de Setembro de 2003, que agravaram ainda mais os conflitos do Oriente Médio e do Afeganistão. O Brasil manteve-se sempre à margem desses conflitos, apesar das grandes comunidades brasileiras de origem árabe e judaica.

Entretanto, os indicadores de violência e a presença ostensiva do tráfico de drogas no país, principalmente no Rio de Janeiro, se assemelham a uma espécie de “guerra civil” não declarada. Não há, porém, registro de conexões entre traficantes e supostos apoiadores do Estado Islâmico, mas nem por isso deixa de ser prudente a transferência dos chefes das quadrilhas que atuam no Rio de Janeiro de Bangu para presídios federais de segurança máxima em outros estados e a prisão temporária de suspeitos de envolvimento com organizações terroristas. O que não se pode, porém, é derivar para uma concepção de segurança pública contrária aos fundamentos da democracia, ainda mais num ambiente político pautado pelo processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. (Correio Braziliense – 24/07/2016)


Fonte: www.pps.org.br